segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Máximo o Confessor: Breve interpretação do Pai Nosso


Foi você mesmo, meu mestre guardado por Deus, a quem eu recebi, você que me assiste com suas cartas dignas de todo louvor, que está sempre presente e que não pode jamais estar ausente pelo Espírito, mas que, imitando a Deus, não recusa ajudar seus servidores na abundância de sua virtude e através da irradiação que Deus lhe deu por natureza. Por isso, admirando a grandeza de sua compaixão, eu fiz com que meu temor diante de você se misturasse com a afeição. E dos dois, do temor e da afeição, eu suscitei um único amor formado de pudor e bem-aventurança, a fim de que o temor desprovido de afeto não se tornasse aversão e que o afeto, por não estar unido ao temor, não se tornasse engano. Assim, o amor aparece como uma lei interior de ternura unindo tudo o que é aparentado por natureza: pela bem-aventurança ele domina a aversão, e pelo pudor afasta o engano. Sabendo bem que ele – refiro-me ao temor – religa ao amor divino mais do que tudo, o bem-aventurado Davi disse: “O temor ao Senhor é puro, ele permanece pelos séculos dos séculos[1]”. Ele sabia, com toda evidência, que este temor é diferente daquele que é causado pelo medo do castigo quando somos acusados de ter cometido faltas, pois é verdade que esta segunda forma de temor é afastada e apagada pela presença do amor, como o demonstra algures as palavras do grande evangelista João que diz “O amor afasta o temor[2]”, e que a primeira forma de temor caracteriza a lei da verdadeira ternura, guardando para sempre, pelo pudor, no coração dos santos, totalmente incorruptíveis, a lei e o modo do amor de Deus e o amor fraternal.


Assim é que eu também, como disse, misturei o afeto ao temor que tenho diante de meu mestre, e suscitei esta lei do amor até hoje. Por pudor, abstive-me de escrever, para não dar chance ao erro, mas, pela bem-aventurança, eu fui forçado a escrever, para que a recusa total em escrever não seja considerada como aversão. Pressionado a fazê-lo, eu escrevi, não o que eu penso, mas o que Deus quer e concede por graça para que nos aconteça o que é melhor para nós. Pois “os desígnios do Senhor, diz Davi, permanecem eternamente, e os pensamentos de seu coração de geração em geração[3]”. Sem dúvida, ele chama de “desígnio” de Deus a inefável kénose[4] do Filho único em vista da deificação de nossa natureza, esta kénose por meio da qual ele carrega em si o fim de todos os séculos. E ele chama de “pensamentos de seu coração” as razões da providência e do juízo, segundo as quais ele dirige com sabedoria, como gerações distintas, nossa vida presente e nossa vida futura, assinalando respectivamente a cada uma o modo de ação que lhe convém.



Mas se a obra do desígnio de Deus é a deificação de nossa natureza, e se o objetivo dos pensamentos divinos é levar nossa vida ao termo daquilo que pedimos, então é útil conhecer e praticar, e portanto escrever como se deve o poder da oração do Senhor. Ora, como, levado por Deus ao escrever a este servidor, meu mestre mencionou esta oração, tornei-a o tema de minhas palavras e pedi ao Senhor que nos ensinou esta prece que abrisse meu intelecto à compreensão dos mistérios presentes nela e me desse uma palavra na medida da claridade daquilo que esta oração significa. Pois ela engloba inteiramente o objetivo que mencionei, este objetivo misteriosamente oculto, ou, para falar com mais propriedade, proclamado manifestamente por aqueles cuja inteligência é forte.



As palavras da oração contêm, de fato, tudo o que o Verbo de Deus, por sua própria kénose, cumpriu na carne[5]. Elas ensinam a se apropriar desses bens que, em verdade, no Espírito Santo, somente Deus Pai nos dispensa, pela mediação natural do Filho, pois o Senhor Jesus é “o mediador entre Deus e os homens[6]”, segundo o Apóstolo divino. Por sua carne, ele tornou manifesto aos homens o Pai ignorado[7]. E ao Pai, pelo Espírito, ele conduziu os homens com ele reconciliados[8], estes homens pelos quais e por cuja causa ele se tornou homem sem mudança ou transformação. Ele mesmo operou e ensinou aos homens muitos mistérios novos cuja razão não pode ainda ser medida em multitude e grandeza. Podemos enumerar sete deles, que são mais gerais do que os outros, e que, ao que parece, ele deu aos homens na eminência de sua generosidade. O objetivo visado pela oração, como eu disse, contém misteriosamente a potência destes mistérios: a teologia, a filiação pela graça, a igualdade de honra com os anjos, a participação na vida eterna, o restabelecimento da natureza devolvida a si mesma na impassibilidade e no assentimento, a abolição da lei do pecado e a destruição da tirania do maligno que nos dominou com suas enganações.



Consideremos então a verdade aquilo que dissemos. Com efeito, o Verbo de Deus encarnado nos ensina a teologia, pois ele nos mostra em si mesmo o Pai e o Espírito Santo. Pois o Pai inteiro e o Espírito Santo inteiro estavam essencial e perfeitamente no Filho inteiro, mesmo encarnado, enquanto eles próprios não eram encarnados, mas um queria a encarnação, por sua benevolência, enquanto o outro a cumpria com o Filho que por si só a operava, uma vez que o Verbo permaneceu em seu próprio intelecto e em sua própria vida, ao mesmo tempo em que não era compreendido na essência por nada outro do que o Pai e o Espírito, quando, por amor ao homem, cumpriu a união na hipóstase da carne.



Ele, o Verbo, deu a filiação, concedendo pelo Espírito, na graça, o nascimento que veio do alto sobrenaturalmente e a deificação correspondente, que estão guardados e conservados em Deus pela escolha daqueles que nascem. Esta escolha afeta a alma que pede uma disposição inata: ela adorna a beleza que a graça dá pela prática atenta dos mandamentos; e pela kénose das paixões, ela se apropria da divindade enquanto que o Verbo de Deus, conforme a economia, esvazia voluntariamente a si mesmo de sua própria glória sem mistura, ao se fazer verdadeiramente homem.



Ele tornou os homens dignos de receber a mesma honra que os anjos, não apenas por ter, após haver pacificado pelo sangue de sua cruz o que está nos céus e na terra[9] e depois de haver batido a inércia das potências inimigas que enchem o espaço entre o céu e a terra, demonstrado que é única a assembléia das potências terrestres e celestes que recebem em partilha os dons divinos, uma vez que a natureza humana, na única e mesma vontade, celebra com alegria, com as potências do alto, a glória de Deus; mas também porque, depois de haver cumprido a economia de nossa salvação e de se ter elevado com o corpo que havia assumido, uniu em si o céu e a terra, religou o sensível ao inteligível, e mostrou que a natureza criada é uma, que ela forma um todo unido a si mesmo, até em suas partes extremas, pela virtude e o conhecimento da causa primeira. Assim, ele quis significar misteriosamente, penso eu, por meio daquilo que ele cumpriu, como a razão é a união do que havia sido separado, e como a irracionalidade é a divisão daquilo que havia sido unido. E nós aprendemos a nos apropriar da razão pela ação, a fim de nos unirmos não apenas aos homens pela virtude, mas também a Deus, pelo conhecimento, nos destacando dos seres.



O Verbo nos comunicou a vida divina, fazendo a si próprio alimento, como ele próprio sabia e como sabiam os que receberam dele este sentido do intelecto, um sentido tal que, provando deste alimento eles souberam por um conhecimento verdadeiro que o Senhor é bom[10], e que, para os deificar, ele transforma os que comem misturando-os a uma qualidade divina, pois ele é e é chamado claramente de pão de vida e de poder[11].



Ele restabeleceu a natureza devolvendo-a a si mesma, não apenas porque, tornado homem, ele manteve diante da natureza sua vontade impassível, calma e imperturbável em seu próprio fundamento natural, mesmo diante daqueles que o crucificavam, escolhendo por eles a morte ao invés da vida, como o demonstra o caráter voluntário da Paixão, confirmado pela disposição que levou Aquele que sofreu a Paixão a amar o homem; mas também porque ele “aboliu a inimizade pregando na cruz a caução do pecado[12]”, por cuja causa a natureza guerreava implacavelmente contra si mesma e  porque, depois de haver chamado os que estavam próximos e os que estavam distantes – ou seja, os que estavam sob a Lei e os que não estavam submetidos a ela – e de haver destruído o muro de separação, ou seja, de ter dito o que era a Lei dos mandamentos em seus segredos, ele criou os dois em um só homem novo, fazendo a paz e nos reconciliando em si mesmo com o Pai[13] e uns com os outros, para que não tivéssemos mais em nós a vontade oposta  à razão da natureza e que fôssemos imutáveis em nossa vontade como o somos em nossa natureza.



Ele purificou a natureza da lei do pecado, porque ele não permitiu que o prazer preceda sua encarnação por nós. Sua concepção foi feita sem semente, paradoxalmente, e seu nascimento foi sobrenaturalmente feito sem corrupção. Com toda a evidência, o Deus que foi gerado deste modo mais alto do que a natureza encerrou em sua mãe, com seu nascimento, os laços da virgindade e libertou toda a natureza do poder da Lei que a dominava, naqueles que o desejam e o imitam em sua morte voluntária fazendo morrer de encontro aos sentidos seus membros que estão sobre a terra. Pois o mistério da salvação é para aqueles que o desejam, não para os que o recebem.



Ele destruiu a tirania do maligno que nos dominou com suas enganações. Pois, projetando a carne como uma arma contra o maligno, ele venceu a carne vencida em Adão, a fim de mostrar que esta carne, que havia tomado o fruto e dele recebido a morte, tomou aquele que a havia dominado e destruiu sua vida pela morte natural; e para mostrar também que ela se tornou para ele um veneno destinado a lhe fazer vomitar todos os que havia engolido, pois ele deteve o poder da morte; assim ela se tornou para a raça dos homens uma vida que permite fermentar como uma massa toda a natureza para que a vida ressuscite, esta vida pela qual, justamente, o Verbo, que é Deus[14], se fez homem (coisa nova e verdadeiramente estranha) e aceitou voluntariamente a morte na carne.



De tudo isto, como eu disse, encontraremos a demanda nas palavras da oração.



Com efeito, ela fala do Pai, do nome do Pai e do Reino. Ela mostra, de resto, que quem reza é filho deste Pai na graça. Ela pede que aqueles que estão no céu e os que estão na terra provenham de uma única vontade. Ela prescreve pedir o pão épiousios[15]. Ela dá aos homens a lei da reconciliação: e, pelo fato de perdoar e ser perdoado, ela religa a natureza a si mesma para que ela não seja dividida pela diferença das vontades. Ela ensina a se esforçar, pela prece, a não cair em tentação, que é a lei do pecado. E ela exorta a que nos libertemos do maligno. Era preciso, com efeito, que aquele que cumpriu ele próprio os bens e os deu aos que acreditaram nele e imitaram sua conduta na carne, fosse também o que os ensinou como a discípulos, oferecendo-lhes os fundamentos desta vida, as palavras da oração, estas palavras por meio das quais ele revelou os tesouros ocultos da sabedoria e do conhecimento[16] que permaneciam especificamente nele, uma vez que ele conduziu com toda evidência para a fruição de seus tesouros o desejo daqueles que pediram.



É por isso que, penso eu, o Verbo denominou oração este ensinamento que carrega em si o pedido dos dons que, pela graça, Deus concede aos homens. Assim, nossos Pais inspirados por Deus expuseram e definiram a oração dizendo que a prece é uma demanda daquilo que Deus concede naturalmente aos homens conforme lhe apetece. Do mesmo modo, eles expuseram que o voto é uma profissão, ou seja, uma promessa daquilo que os homens oferecem a Deus quando lhe prestam um culto legítimo. E eles estabeleceram que a Escritura dá testemunho disto de muitas maneiras. Ela diz: “Faça seus votos e ofereça-os ao Senhor nosso Deus[17]”, e: “Aquilo que eu prometi, eu lhe oferecerei, Senhor[18]”. Isto quanto à promessa. Quanto à oração, ela diz: Senhor todo-poderoso, Deus das Potências, se você quiser atender à sua serva e dar um fruto ao seu seio[19]”, e “Ezequias, rei de Judá, e o profeta Isaías, filho de Amós, oraram ao Senhor[20]”. E disse o Senhor aos seus discípulos: “Quando vocês rezarem, digam: Pai nosso que estais nos céus[21]”. Assim, a promessa pode ser a guarda dos mandamentos decidida pela vontade daquele que faz o voto, e a prece pode ser a demanda que aquele que guardou os bens faz para ter parte nos bens que guardou. Ou antes, o voto pode ser o combate pela virtude, que Deus recebe com benevolência, como uma oferenda; e a prece é a recompensa da virtude, que Deus dá em retorno, cheia de alegria.




COMENTÁRIO





Portanto, como ficou demonstrado que a oração é a demanda de bens que o Verbo encarnado concede, avancemos com confiança, aproximando-nos d'Aquele que nos ensina as palavras da prece e pondo cuidadosamente a nu pela contemplação, na medida do possível, o sentido de cada palavra, como o próprio Verbo costuma fazer para nosso bem dando a compreender o poder do pensamento daquele que fiz:



“Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome,

venha a nós o vosso reino[22]”.



Com estas palavras, o Senhor ensina aos que oram a iniciar como convém pela teologia e os ensina no mistério como existe a causa criadora dos seres, ele que é, por essência, a causa dos seres. As palavras da oração apontam, com efeito, o Pai, o nome do Pai e o Reino do Pai, para que aprendamos a partir da origem mesma a venerar, invocar e adorar a Trindade una. Pois o nome de Deus Pai, este nome que existe essencialmente, é o Filho único. E o Reino de Deus Pai, este Reino que existe essencialmente, é o Espírito Santo. Aquilo que aqui Mateus chama de Reino, outro evangelista denomina algures de Espírito Santo, ao dizer: “Que venha o Espírito Santo e que ele nos purifique[23]”. Com efeito, o Pai não adquiriu seu nome na seqüência, e tampouco nós concebemos o Reino como uma dignidade considerada depois dele. Ele não começou a ser, para começar também a ser Pai ou Rei. Mas ele é sempre, e é igualmente sempre Pai e Rei, pois ele não precisou absolutamente começar a ser, nem começar a ser Pai ou Rei. Ora, se ele que é sempre, é sempre Pai e Rei, então o Filho e o Espírito Santo sempre existiram na essência do Pai. Eles são naturalmente dele e estão nele, para além da causa e da razão, mas não depois dele, como vindos a seguir a partir de uma causa. Pois a relação possui a faculdade de mostrar simultaneamente: ela não permite que sejam considerados um após outro aqueles dos quais ela é e é chamada de relação.



Portanto, ao iniciarmos nossa oração somos conduzidos a honrar a Trindade consubstancial e supra-essencial como causa criadora de nossa gênese. Além disso, aprendemos a anunciar para nós mesmos a graça da filiação, uma vez que somos considerados dignos de chamar de Pai, pela graça, Aquele que nos criou por natureza. Assim, reverenciando a invocação d’Aquele que nos engendrou pela graça, nos esforçamos para transparecer na vida que levamos as marcas d’Aquele que nos fez nascer: santificamos seu nome sobre a terra, o imitamos como a um Pai, nos mostramos filhos seus por nossos atos e glorificamos naquilo que pensamos e fazemos o Filho do Pai por natureza, o qual opera esta filiação. Ora, nós santificamos o nome do Pai pela graça nos céus mortificando, claramente, o desejo provocado pela matéria e nos purificando das paixões corruptoras, pois a santificação é a total imobilidade e a mortificação da concupiscência dos sentidos. Quando atingimos esta condição, apaziguamos os mugidos inconvenientes do ardor, pois não temos mais a concupiscência para excitá-lo e persuadi-lo a defender nossos prazeres: a concupiscência foi mortificada pela santidade conforme a razão. Pois o ardor que, por natureza, vinga a concupiscência, cessa de ser furioso quando a vê mortificada.



É assim com todo o direito que, pela rejeição do ardor e da concupiscência chega, seguindo-se à prece, o poder do Reino de Deus Pai para aqueles que, depois de despojados, são considerados dignos de dizer: “Venha a nós o vosso Reino”. Vale dizer, o Espírito Santo, pois, graças à razão e ao modo da mansidão, estes já se tornaram templos de Deus pelo Espírito[24]. De fato, foi dito: “Sobre quem repousarei eu, senão sobre aquele que é manso e humilde e que teme minhas palavras?[25]” Daí fica claro que o Reino de Deus Pai pertence aos humildes e aos mansos, conforme foi dito: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra[26]”. Não se trata desta terra colocada pela natureza no meio do universo que Deus prometeu como herança aos que o amam, se é verdade o que ele disse: “Quando eles ressuscitarem, já não tomarão esposos e esposas, mas serão como os anjos nos céus[27]”, e também: “Venham, benditos de meu Pai, herdem o Reino que foi preparado para vocês desde a fundação do mundo[28]”. Também foi dito a um outro que havia servido com benevolência: “Entre na alegria do Senhor[29]”. E segundo o Apóstolo divino: “Pois a trombeta soará, os que estão mortos em Cristo ressuscitarão primeiro, incorruptíveis. Depois nós, os vivos, que permanecemos, seremos arrebatados com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor no espaço, e assim estaremos sempre com o Senhor[30]”.



Uma vez que são estas as promessas feitas aos que amam o Senhor, quem jamais poderá dizer – se for conduzido pelo Verbo e se desejar ser servidor do Verbo – que o céu, o Reino preparado desde a fundação do mundo, a jóia misteriosamente oculta do Senhor e, para os que são dignos, o fato de que permanecerão resolutamente e sem descontinuidade junto ao Senhor, são coisas semelhantes à terra? Agora, no entanto, penso poder afirmar que a terra consiste no estado e na potência firmes e imutáveis suscitados pela beleza da retidão dos mansos, pois ela está sempre com o Senhor,, ela carrega uma alegria incessante, ela conquistou o Reino preparado desde a origem e foi tornada digna do lugar e da ordem do céu, tal qual uma terra cujo posto no meio do universo é a razão da virtude, segundo a qual o homem manso que está no meio permanece impassível entre o louvor e a difamação, nem inchado pelos elogios, nem entristecido pelas difamações. Pois depois de haver afastado o desejo destas coisas das quais ela é livre por natureza, a razão já não sente seus ataques quando elas a perturbam: ela descansou de sua agitação e transportou toda a potência da alma para o porto da liberdade divina desembaraçada de toda e qualquer ação, esta liberdade que o Senhor desejava transmitir aos seus discípulos. Ele disse: “Carreguem minha carga e aprendam comigo que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão o repouso de suas almas[31]”. Ele chamou de repouso a potência do Reino divino, esta potência que suscita naqueles que são dignos uma soberania livre de qualquer servidão.



Ora, se a potência indestrutível do Reino em estado puro é dada aos humildes e aos mansos, quem seria a tal ponto sem amor e sem desejo dos bens divinos para não tender ao extremo para a humildade e a mansidão, a fim de se tornar a marca do Reino de Deus – na medida em que isto é possível ao homem – levando em si aquilo que, pela graça, lhe dá uma forma espiritual semelhante à de Cristo, o qual é naturalmente por essência o grande Rei? Quando adquirimos esta forma, diz o Apóstolo divino, “não há mais homem nem mulher[32]”, ou seja, nem ardor nem concupiscência. O ardor empurra tiranicamente o pensamento e o faz afastar-se da lei da natureza da reflexão. E a concupiscência desvia o desejo para aquilo que está depois da causa, ao invés de orientá-lo para a causa única e para a natureza única, que é a única desejável e impassível. Ao fazer isto, ela concede à carne mais honrarias do que ao espírito e encontra mais delícias no desfrutar do visível do que na glória e no esplendor do inteligível: pela doçura do prazer dos sentidos, ela afasta o intelecto da percepção divina inata dos inteligíveis.



Mas quando alcançamos uma forma semelhante à de Cristo, não resta mais do que a razão somente, a qual, por um acréscimo de virtude, se despoja até o fim da ternura e da afetividade pelo corpo, que são impassíveis, mas que também são naturais. A partir daí, o espírito domina perfeitamente a natureza e convence o intelecto a abandonar a filosofia moral e a se unir ao Verbo supra-essencial pela contemplação simples e indivisível, ao mesmo tempo em que contribui naturalmente para que o intelecto se separe facilmente das coisas que escoam no tempo. Uma vez ultrapassadas estas coisas, não cabe mais impor como um manto um caminho ético para aquele que se mostrou separado do sensível.



É isto o que quis dizer claramente o grande Elias quando, por suas ações, mostrou em imagens este mistério[33]. Quando ele foi arrebatado ao céu, ele deu seu manto a Eliseu (ou seja, a mortificação da carne, por meio da qual ele assegurou a magnificência da boa ordem moral) para que assistisse o espírito no combate contra as potências adversas e para bater a natureza instável que escoava – esta natureza cuja imagem é o Jordão – a fim de que não fosse impedido de passar para a terra santa o discípulo engolido por tudo o que há de confuso e escorregadio na tendência para as coisas materiais. Quanto a ele, avançou na direção de Deus, liberto, totalmente desembaraçado daquilo que o ligava aos seres, simples em seu desejo e sem nenhuma composição em sua vontade, para estabelecer sua morada junto d’Aquele que é simples por natureza, por intermédio das virtudes gerais unidas entre si, atreladas ao conhecimento como cavalos de fogo. Ele sabia, com efeito, que o discípulo de Cristo devia se afastar das disposições desiguais cujas diferenças estabelecem o caráter alienante, pois a paixão da concupiscência provoca um empanzinamento ao redor do coração e o movimento do ardor faz manifestamente ferver o sangue. Alcançando o movimento, a vida e o ser de Cristo[34], ele afastou de si as coisas desiguais e estrangeiras (pois já não trazia em si as disposições passionais, estas disposições contrárias de que falei, que são como homem e mulher) a fim de a razão não fosse submetida a estas coisas, alterada por suas mudanças instáveis, ela na qual foi naturalmente infundida a santidade da imagem divina para persuadir a alma a se transformar por sua vontade na semelhança de Deus e pertencer ao grande Reino que está em sua essência com Deus Pai de todas as coisas , como uma morada luminosa do Espírito Santo, morada que recebe, se podemos nos exprimir assim, o poder de conhecer a natureza divina, na medida em que isto é possível. Por este poder desaparece naturalmente a origem do inferior e subsiste naturalmente a origem do superior, a alma, semelhantemente a Deus, guardando intacta em si mesma pela graça de sua vocação a hipóstase dos bens que lhe foram dados. E por este poder, Cristo nasce sempre, como quer, misteriosamente, encarnando-se através daqueles a quem salva: ele faz da alma grávida uma mãe virgem, que não traz, para dizê-lo em poucas palavras, como na relação entre homem e mulher, as marcas da natureza submetida à corrupção e à geração.



Que ninguém se espante de ver a corrupção vir antes da geração. De fato, se examinarmos sem paixão e com razão direita a natureza daquilo que nasce e daquilo que morre, veremos claramente que a geração extrai sua origem da corrupção e depois termina na corrupção. Ora, as paixões que são os sinais da corrupção – essas paixões de que falei – Cristo (ou seja, a vida e a razão de Cristo e segundo Cristo) não as tem, pois é verdade o que foi dito: “Pois em Jesus Cristo não existe homem nem mulher”, mostrando assim, com toda evidência, os sinais e as paixões da natureza submetida à corrupção e à geração. Existe apenas uma razão semelhante a Deus, suscitada pelo conhecimento divino, e um movimento único da vontade que escolhe apenas a virtude.



“Nem grego, nem judeu[35]”. Grego e judeu significam concepções diferentes, ou, para falar mais exatamente, opostas, da crença em Deus. Uma introduz com fartura uma multitude de origens e divide a origem única em energias e potências opostas: torna-se um culto politeísta em plena dimensão, tão numerosos são os deuses adorados, e risível, tantos e tão diversos são os modos de adoração. A outra introduz uma origem única, mas estreita e imperfeita, quase inconsistente, como que desprovida de razão e de vida. Indo em sentido contrário, ela cai num mal idêntico ao da primeira concepção: o ateísmo. Ela limita a uma só pessoa a origem única, que existe sem o Verbo e sem o Espírito, ou que foi suscitada pelo Verbo e o Espírito. Ela não enxerga que tipo de Deus é este Deus provado de Verbo e de Espírito, ou de que modo ele é Deus se tem parte no Verbo e no Espírito como acidentes, por uma participação próxima daquela dos seres racionais submetidos à geração.



Como eu disse, nenhuma destas concepções está em Cristo. Nele não existe mais do que uma concepção de verdadeira piedade e uma sólida lei de teologia mística, que recusa distender a divindade, como a primeira concepção, e que não aceita reduzi-la, como a segunda. Assim, não existe nem dissensão pela natural pluralidade, como entre os gregos, nem submissão à unidade da hipóstase, como entre os judeus, dentre os quais, privado do Verbo e do Espírito ou suscitado pelo Verbo e pelo Espírito, o divino não é venerado como Inteligência, Verbo e Espírito. A nós que, pela vocação da graça segundo a fé, fomos introduzidos no conhecimento da verdade, a concepção cristã ensina a saber que a natureza e a potência da divindade são únicas, e que, portanto, existe um só Deus, contemplado no Pai, no Filho e no Espírito Santo: Inteligência única, sem causa, existente por essência, que engendrou o Verbo único, sem começo, existente por essência, e que é fonte da vida eterna única, existente por essência, como  Espírito Santo, Trindade na Unidade e Unidade na Trindade.



Não como um outro dentro de um outro, pois a Trindade não está contida na Unidade como um acidente está contido na essência, e, inversamente, a Unidade tampouco está com tida na Trindade como acidente, pois ela não possui qualidade própria.



Nem como um outro e um outro: pois a Unidade não difere da Trindade por uma diferença de natureza, uma vez que sua natureza é simples e única.



Nem como um outro que se segue a outro: pois a Trindade não se distingue da Unidade por um relaxamento da potência, nem a Unidade se distingue da Trindade por este mesmo relaxamento; ela não difere dela também como algo de comum e de semelhança geral entre partes e que não pudesse ser contemplada senão por um pensamento único, pois ela é uma essência que existe propriamente por si mesma, e uma potência que possui em si sua própria força.



Nem como um outro a partir de um outro: pois a Trindade não provém da Unidade, pois ela não é engendrada e gera a si mesma.



Afirmamos e acreditamos que uma só coisa é em verdade Unidade e Trindade. Ela é Unidade em razão da essência. E é Trindade pelo modo de existência. Uma só coisa é inteiramente Unidade, sem ser partilhada pelas hipóstases; e ela mesma é inteiramente Trindade, sem que se confunda com a Unidade. Assim, o politeísmo não é introduzido pela divisão, nem o ateísmo pela confusão. Fugindo a uma e outra, resplandece a concepção cristã. Chamo de concepção cristã a nova proclamação da verdade: “Nele não existe homem nem mulher”, ou seja, nem os sinais nem as paixões da natureza submetida à corrupção e à geração. “Não existe grego nem judeu”: não existem concepções opostas da divindade. “Não há circunciso nem incircunciso”, portanto não existem cultos correspondentes a estas concepções: um – o culto da circuncisão – através dos símbolos da Lei, considera que a criação visível é má e acusa o Criador de ser o autor dos males; o outro – o culto da incircuncisão – através das paixões, deifica a criação e subleva a criatura contra o Criador. Ambos desembocam no mesmo mal: o ultraje a Deus. “Não há bárbaro nem cita”, ou seja, não existe distensão da vontade que leva a natureza única a se voltar contra si própria, esta distensão por cuja causa introduziu-se entre os homens a lei contra a natureza que os leva a se destruírem mutuamente. “Não existe escravo nem homem  livre”, ou seja, não há divisão da mesma natureza de encontro à vontade, pois a divisão traz consigo o desprezo por aquele que por natureza é digno da mesma honra; ela traz em si, como uma lei que a confirma, a tendência dos mestres despóticos de tiranizar a imagem de Deus. Mas “Cristo é tudo em todos[36]”, ele que, por intermédio daquilo que ultrapassa a natureza e a lei, suscita no Espírito a formação do Reino sem começo, formação assinalada naturalmente pela marca da humildade e da doçura de coração, como foi demonstrado, e cuja reunião significa o homem perfeito criado segundo Cristo. Com efeito, todo homem humilde é também manso, e todo homem manso é humilde. Ele é humilde, porque sabe que o ser lhe foi emprestado; e ele é manso, porque sabe utilizar as potências da natureza que lhe foram dadas. Ele coloca estas potências a serviço da razão para engendrar a virtude. E ele reduz com perfeição sua atividade nos sentidos. É por isso que em seu intelecto ele está em permanente movimento para Deus, mas não produz nenhum movimento nos sentidos quando experimenta simultaneamente todas as coisas que afligem o corpo, nem imprime em sua alma traço algum de tristeza para substituir o estado de bem-aventurança que reside nela. Pois ele não considera que a dor dos sentidos seja uma privação do prazer. Ele só conhece um prazer: a vida em comum da alma com o Verbo, cuja privação sim é um tormento que não tem fim e que engloba naturalmente todos os séculos. É por isso que, abandonando este corpo e tudo o que é do corpo, ele se dirige intensamente para a vida em comum com Deus. De fato, ele considera como o único dano, ainda que fosse ele mestre de tudo o que há sobre a terra, perder a deificação pela graça, esta deificação que ele espera acima de tudo.



Assim, purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito[37], a fim de santificar o nome de Deus extinguindo a concupiscência indecentemente varrida pelas paixões. E afoguemos sob a razão o ardor levado à fúria pela desordem dos prazeres, a fim de acolher o Reino de Deus Pai, que vem pela mansidão, e de acrescentar às primeiras palavras as palavras seguintes da oração, dizendo:



“Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.[38]



Aquele que, unicamente pela potência da razão desembaraçada da concupiscência e do ardor, oferece misticamente a Deus o culto de adoração, cumpre a vontade divina sobre a terra, do mesmo modo como as ordens dos anjos nos céus. Ele adora e vive constantemente com os anjos, como diz o grande Apóstolo: “Nossa cidadania está nos céus[39]”, onde não existe concupiscência para relaxar pelos prazeres as tensões do intelecto, nem ardor raivoso para rosnar de inveja contra o semelhante. Nos céus não há outra coisa do que a pura razão, que conduz naturalmente os seres racionais à razão primeira. É somente nela que Deus se regozija, e é somente ela que ele nos pede, a nós seus servidores. É o que ele quis dizer quando fez o grande Davi falar: “O que existe para mim no céu, e que poderei eu querer de outro sobre a terra?[40]” Ora, nada há nos céus que seja oferecido a Deus pelos anjos senão a adoração da razão, esta adoração que ele nos pede ensinando-nos a dizer quando rezamos: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”.



Que nossa razão se coloque, assim, à procura de Deus, que a potência da concupiscência se esforce por desejá-lo, e que o ardor se esforce por guardá-lo, ou, para falar mais precisamente, que todo o intelecto se volte para Deus, tensionado pelo ardor como uma corda, e queimando de desejo pelo apelo extremo da concupiscência. Pois, imitando desta maneira os anjos do céu, adoraremos a Deus continuamente mostraremos possuir sobre a terra a mesma cidadania que eles, e como eles não teremos o intelecto voltado para nada além do que aquilo que nos aproxima de Deus. Pois, assumindo esta cidadania conforme nossos votos receberemos como um pão épiousios e vivificante para nutrir nossas almas e conservar em bom estado os bens que nos foram dados, o Verbo que disse: “Eu sou o pão que desceu dos céus e que dá vida ao mundo[41]”. Assim, ele se torna tudo para nós na medida em que somos alimentados de virtude e sabedoria, e, de maneira inversa, como ele o sabe, ele toma um corpo em cada um dos que foram salvos, mesmo que ainda estejam neste século, segundo o poder do texto da oração, que diz:



“O pão épiousios nos daí hoje.[42]



Eu penso, com efeito, que “hoje” significa “este século”. Assim, para interpretarmos com a maior clareza possível esta passagem da oração, diríamos: nosso pão, que você preparou no começo para a imortalidade da natureza[43], nos dê hoje, a nós que estamos na vida presente destinados à imortalidade, para que a morte do pecado seja vencida pelo alimento do pão da vida e do conhecimento, que a transgressão do mandamento divino impediu ao primeiro homem de tomar parte[44]. Pois se ele tivesse se saciado com este alimento divino, ele não teria sido presa da morte pelo pecado.



De resto, aquele que ora para receber este pão épiousios jamais o acolhe inteiramente tal como ele é, mas cada qual o acolhe na medida de sua capacidade em recebê-lo. Pois o pão da vida, em seu amor pelo homem, é dado a todos os que o pedem, mas não da mesma maneira a todos. Aos que fizeram grandes obras é dado mais; aos que fizeram obras menores é dado menos. Ele é dado, portanto, a cada um conforme o possa acolher a dignidade de seu intelecto. Ora, o Salvador revelou-me o sentido dessas palavras quando prescreveu explicitamente aos seus discípulos que não se preocupassem com o alimento sensível, quando disse: “Não se aflijam em suas almas sobre o que irão comer ou o que irão beber, nem em seus corpos com o que irão vestir. Todas estas coisas, as nações do mundo as buscam. Mas procurem antes o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas lhes serão dadas em acréscimo[45]”. Assim, como poderia ele ensinar a rezar por coisas que antes ele ordenava não buscar? É claro que ele não prescreveu pedir, na oração, aquilo que, pelo mandamento, ele exortou a não procurar. Pois não se pode pedir na oração senão aquilo que se deve buscar pelo mandamento. Aquilo que não nos foi ordenado pelo mandamento tampouco nos é permitido solicitar pela prece. Se o Salvador ordenou que buscássemos apenas o Reino de Deus e sua justiça, é razoável que seja também este Reino que ele incentivou aos que desejam os dons divinos a pedir na oração, a fim de que, depois de haver confirmado a graça daquilo que é naturalmente solicitado pela oração, ele pudesse ligar, à vontade d’Aquele que concede a graça, a resolução dos que demandam, tornando esta resolução idêntica à vontade de Deus pela união que as liga.



Se nos foi ordenado pedir também pela oração o pão de cada dia por meio do qual nossa vida presente é conservada naturalmente, não ultrapassemos os limites da oração atribuindo-nos cupidamente longos períodos de anos. Não nos esqueçamos de que somos mortais e que nossa vida passa como uma sombra. Peçamos pela prece, sem nenhuma preocupação, o pão para um dia, e mostremos que, segundo a filosofia de Cristo, passamos a vida a nos preparar para a morte, protegendo a alma dos cuidados com as coisas do corpo, a fim de que ela não seja acorrentada ao corruptível desviando para a matéria a finalidade do desejo natural e não aprenda a cupidez, que priva da abundância dos bens divinos.



Fujamos portanto, na medida de nossas possibilidades, do amor à matéria, e livremos os olhos de nosso intelecto, como de uma poeira, daquilo que liga a ela. Contentemo-nos com as simples coisas que nos permitem subsistir, evitando aquelas que dão prazer à nossa vida presente. E peçamos a Deus, ademais, como nos foi ensinado, poder manter a alma livre de qualquer servidão, nunca submetida a nenhuma coisa visível por causa do corpo. Mostremos que comemos para viver, e não sejamos acusados de que vivemos para comer. Pois a primeira é nitidamente própria de uma natureza dotada de razão, enquanto a outra é própria de uma natureza desprovida de razão. Guardemos rigorosamente a oração, mostrando por nossos próprios atos que estamos firmemente ligados apenas e tão somente à vida no Espírito, e que é visivelmente para possuirmos esta vida no Espírito que usamos nossa vida presente. É ainda por causa desta vida no Espírito que nos contentamos de usar assim nossa vida presente, na medida em que não nos é recusado confortá-la apenas pelo pão e de manter intacto seu bom estado natural, na medida em que nos é permitido, não a fim de viver, mas a fim de viver para Deus[46], fazendo do corpo submetido à razão pelas virtudes um anjo da alma, e fazendo da alma levada pela firmeza do bem um mensageiro de Deus, enfim, limitando este pão a um dia apenas, sem ousar estender a demanda a um segundo dia, por causa d’Aquele que nos deu a oração. Assim agindo conforme a potência da prece, possamos, com efeito, avançar com toda pureza para as palavras seguintes, e dizer:



“Perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos

os nossos devedores.[47]



Aquele que, conforme a primeira extensão da contemplação das palavras precedentes, busca na oração, neste século cujo símbolo dissemos ser o “hoje”, o pão incorruptível da sabedoria de que fomos privados inicialmente pela transgressão, este, sabendo que o único prazer consiste em alcançar as coisas divinas, cujo acesso é dado naturalmente por Deus e cuja guarda cabe à resolução voluntária de quem as recebe, e sabendo também que a única dor é a falta destas coisas divinas cuja perda é inspirada pelo diabo (mas cumprida por quem abandona o divino pelo relaxamento da vontade sem proteger com seu amor aquilo que deveria ser honrado por uma disposição desta vontade), este, cuja resolução não se inclina para nada de visível e que, por causa disso, não está submetido às coisas penosas que acontecem a seu corpo, este verdadeiramente perdoa aqueles que pecam contra ele. Pois absolutamente ninguém pode lançar mão sobre o bem a que ele se dedica com todo seu desejo, este bem que acreditamos ser por natureza inalcançável. E ele próprio se torna para Deus um exemplo de virtude, se podemos dizê-lo, convidando o Inimitável a imitá-lo quando diz: “Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos nossos devedores”. Ele pede a Deus que faça por ele o mesmo que ele faz por seu próximo. Como ele perdoa as dívidas àqueles que pecaram contra ele, ele pede que suas próprias dívidas lhe sejam perdoadas por Deus. Vale dizer que, como Deus em sua impassibilidade perdoa aos que perdoam, também ele, permanecendo impassível naquilo que lhe acontece, perdoa aos que o ofenderam, não permitindo a nenhuma lembrança daquilo de penoso que lhe aconteceu se imprima em seu intelecto, a fim de não ser acusado de romper a natureza por sua vontade, afastando-se de outro homem, ele que também é homem. De fato, uma vez que a vontade está assim unida à razão da natureza, a reconciliação de Deus com a natureza se faz naturalmente. De outra maneira não é possível natureza revoltada contra si mesma pela razão acolha a inexprimível compaixão divina. É sem dúvida por isso que Deus quer que nos reconciliemos primeiro uns com os outros, não para aprender conosco a se reconciliar com os pecadores e a consentir na quitação de suas numerosas e terríveis faltas, mas a fim de nos purificar das paixões e mostrar que a disposição dos que são perdoados corresponde à relação da graça. Ora, ele quis dizer claramente que, se a vontade estiver unida à razão da natureza, a escolha dos que cumprirem com sucesso esta união não estará em dissensão com deus, uma vez que ele não deseja nada de irrazoável na razão da natureza, que é também a lei natural e divina, quando o movimento da vontade se faz segundo esta razão. E se não há nada de irrazoável na razão da natureza, é verossímil que a vontade movida por esta razão terá sua atividade continuamente votada a Deus, qual uma disposição efetiva suscitada pela graça d’Aquele que é bom por natureza, para engendrar a virtude.



É neste estado que encontra, ao rezar, aquele que pede o pão do conhecimento. E depois dele, o que pede o pão de cada dia, apesar da natureza, achar-se-á no mesmo estado: tendo perdoado as dívidas aos que lhe deviam, por saber-se mortal por natureza, e aguardando na incerteza a cada dia aquilo que lhe permitirá viver naturalmente, ele ultrapassa a natureza com sua vontade e, por si mesmo, morre para o mundo, conforme as palavras: “Por sua causa somos levados à morte todos os dias, somos considerados como cordeiros destinados à imolação[48]”. É por isso que ele se reparte em libação para todos[49], a fim de não levar consigo nenhuma marca da miséria do século presente quando de sua passagem para a vida que não envelhece, e receber do Juiz do universo a recompensa se suas obras anteriores aqui em baixo. Uma disposição pura voltada para aqueles que os afligiram é necessária tanto a um como ao outro para o benefício de ambos, por causa de tudo o que foi dito, mas sobretudo por causa do poder das palavras que restam e que dizem o seguinte:



“Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal[50]



Pois a Escritura nos mostra com estas palavras que aquele que não perdoou perfeitamente aos que o ofenderam e que não ofereceu a Deus seu coração puro de toda tristeza, iluminado pela luz da reconciliação com o próximo, perderá a graça dos bens pelos quais orou e, por um justo julgamento, será abandonado à tentação do maligno, a fim de aprender a se purificar de suas faltas deixando de condenar os outros. A tentação significa aqui a lei do pecado, que o primeiro homem não carregava quando foi criado. O mal significa o diabo, que misturou esta lei à natureza humana e que persuadiu o homem a transportar o desejo de sua alma daquilo que lhe era permitido para o que era proibido e de se voltar para a transgressão do mandamento divino, que lhe fez perder a incorruptibilidade que a graça lhe havia concedido.



Também podemos denominar “tentação” a tendência voluntária da alma para as paixões da carne. E podemos chamar de “mal” o cumprimento ativo da tendência passional. E o Juiz não libera de nenhum dos dois – nem da tentação, nem do mal – quem não perdoou as dívidas aos seus devedores, ainda que este lhe peça na oração, mas, ao contrário, ele permite que este homem seja manchado pela lei do pecado, e abandona ao domínio do mal aquele cuja vontade é dura e cortante, pois ele preferiu as paixões da infâmia semeadas pelo diabo à natureza criada por Deus. Deus não o impede de tender voluntariamente para as paixões da carne e não o livra do cumprimento ativo de sua tendência passional pois, ao considerar menos a natureza do que as paixões inconsistentes, ele, em seu ardor pelas paixões, ignora a razão da natureza. Sob a autoridade desta razão ele o fará conhecer qual é a lei da natureza e qual a das paixões, cuja tirania é suscitada em nós por uma escolha da vontade, mas não pela natureza. Ser-lhe-á necessário ainda preservar a lei da natureza pelas atividades naturais, afastar da vontade o ardor pelas paixões, salvaguardar pela razão a natureza que por si só é pura e irrepreensível, fazer com que por sua vez a vontade se torne irrepreensível, sem ódio e sem dissensão, e que acompanhe a natureza não se aplicando a nada que não seja suscitado pela razão da natureza, com isto rejeitando todo ódio e toda dissensão em relação a quem lhe é semelhante por natureza, a fim de que, ao dizer esta oração ele seja atendido e receba de Deus uma dupla graça ao invés de uma simples, a saber o perdão das faltas passadas e a proteção e redenção das faltas futuras: Deus não permitirá que ele caia em tentação e não deixará o maligno subjugá-lo, pelo simples fato de haver perdoado diligentemente as dívidas ao seu próximo.



Portanto, também nós, para retrocedermos um pouco retomando sucintamente o significado do que foi dito, se quisermos nos livrar do mal e não cair em tentação, acreditemos em Deus e perdoemos as dívidas a quem nos deve. Com efeito, foi dito: “Se vocês não perdoarem aos homens seus pecados, tampouco o Pai celeste lhes perdoará os seus[51]”. Assim, não apenas receberemos o perdão das faltas que cometemos, como também venceremos a lei do pecado, se não formos levados a experimentá-la. E pisotearemos a serpente maligna, que engendrou esta lei e da qual pedimos ser libertados. Pois Cristo, que venceu o mundo[52], nos leva ao combate. Ele nos dá como armas as leis dos mandamentos e, fazendo-nos rejeitar as paixões por intermédio destas leis, ele religa pelo amor a natureza a ela mesma, ele conduz nosso desejo insaciavelmente para si próprio que é o pão da vida, de sabedoria, de conhecimento e de justiça, e, pelo cumprimento da vontade paterna, ele faz de nós adoradores semelhantes aos anjos, a partir do momento em que refletiremos, imitando-o em nossa conduta de vida, a beatitude celeste. Enfim, daí ele nos elevará para o Pai das luzes[53], na suprema ascensão do divino, e nos fará comungar da natureza divina[54] concedendo-nos parte na graça do Espírito, pela qual seremos consagrados filho de Deus revestindo inteiramente, sem limite nem mancha, Aquele que por si só opera esta graça e que é por natureza o Filho do Pai, de quem, por quem e em quem temos e teremos o ser, o movimento e a vida[55].



Que a finalidade da prece seja para nós o olhar voltado para este mistério da deificação, a fim de que saibamos em lugar de quê a kénose do Filho único na carne nos tornou aquilo que somos e de onde, e onde, pelo poder de sua mão que ama o homem, ele fez subir aqueles que haviam tocado o fundo do universo, sobre o qual fôramos precipitados pelo peso do pecado, para que assim possamos amar daqui em diante Aquele que, com tanta sabedoria, nos preparou tal salvação. Com aquilo que fazemos, mostremos que a oração está cumprida e manifestemos, proclamando-o, que Deus é verdadeiramente Pai pela graça. E mostremos claramente que não temos o maligno como pai de nossas vidas, o qual, por meio das paixões da infâmia, tenta sempre dominar tiranicamente a natureza, e não tomemos contra nossa vontade a morte em lugar da vida, uma vez que cada um dos adversários divide naturalmente com os que vão contra eles. Um concede a vida eterna aos que o amam; outro, sugerindo que cedamos voluntariamente às tentações, suscita a morte naqueles que dele se aproximam.



Pois, conforme as Escrituras, existem dois modos de tentação. Um leva ao prazer, outro à dor; um é deliberado, outro involuntário. Um engendra o pecado e nos foi ordenado pelo ensinamento do Senhor rezar para evitá-lo, ao dizer: “Não nos deixeis cair em tentação[56]”, e: “Vigiem e rezem, a fim de não cair em tentação[57]”. O outro protege do pecado, invertendo por acréscimos involuntários de penas nossa tendência a desejá-lo. Se o suportarmos com paciência, e sobretudo se não nos ligarmos a ele pelas cadeias da malícia, ouviremos o apóstolo Tiago dizer precisamente: “Considerem como uma alegria total, irmãos, cair diante de todas as sortes de tentações, pois a prova de sua fé suscitará a paciência, e a paciência suscitará a experiência. Quer a experiência traga consigo uma obra perfeita[58]”. O maligno, em suas enganações, dedica-se aos dois tipos de tentação ao mesmo tempo, à voluntária e à involuntária. Semeando e excitando a alma por meio dos prazeres do corpo, ele trama a primeira para afastar nosso desejo do amor divino. E, querendo alterar a natureza por meio da dor, ele solicita falaciosamente a segunda, a fim de abrigar a alma abatida, enfraquecida pelas penas, a emitir pensamentos que irão separá-la do Criador.



Mas nós, uma vez que descobrimos os desígnios do maligno, afastemo-nos da tentação voluntária, a fim de não separarmos nosso desejo do amor divino, e suportemos nobremente, com paciência, a tentação involuntária que nos acontece com a permissão de Deus a fim de tornar manifesto que preferimos à natureza o Criador da natureza. E possamos todos, que invocamos o nome de nosso Senhor Jesus Cristo[59], sermos separados dos prazeres presentes do maligno e libertados das dores por vir, pela participação na hipóstase real dos bens futuros[60], que veremos no próprio Cristo nosso Senhor, que, com o Pai e o Espírito Santo é glorificado por toda a criação. Amém.





Máximo o Confessor



[1]  Salmo XIX, 10.
[2]  I João IV, 18.
[3]  Salmo XXXIII, 11.
[4]  Kénose: vacuidade, despojamento de si.
[5]  Cf. Colossenses III, 13.
[6]  Cf. I Timóteo II, 5.
[7]  Cf. João XIV, 9.
[8]  Cf. Efésios II, 18.
[9]  Cf. Colossenses I, 20.
[10]  Salmo XXXIV, 9.
[11]  Cf. João VI, 48; Salmo LXXVII, 25.
[12]  Colossenses II, 14.
[13]  Cf. Efésios II, 14.
[14]  Cf. João I, 1.
[15]  Épiousious: conforme a derivação, pode significar o pão “que vem” ou o pão “supra-essencial”, que é mais do que o ser do mundo.
[16]  Cf. Colossenses II, 3.
[17]  Salmo LXXVI, 12.
[18]  Jonas II, 10.
[19]  I Samuel I, 10-11.
[20]  II Crônicas XXXII, 20.
[21]  Mateus VI, 9-10.
[22]  Mateus VI, 9-10.
[23]  Lucas XI, 2, de acordo com determinados manuscritos.
[24]  Cf. Efésios II, 21-22.
[25]  Isaías LXVI, 2.
[26]  Mateus V, 4.
[27]  Mateus XXII, 30.
[28]  Mateus XXV, 34.
[29]  Mateus XXV, 21.
[30]  I Tessalonicenses IV, 16-17.
[31]  Mateus XI, 29.
[32]  Gálatas III, 28.
[33]  Cf. II Reis II.
[34]  Cf. Atos XVII, 28.
[35]  Gálatas III, 28; Colossenses III, 11.
[36]  Para o conjunto destas citações, cf. Colossenses III, 11 e Gálatas III, 28.
[37]  Cf. II Coríntios VII, 1.
[38]  Mateus VI, 10.
[39]  Filipenses III, 20.
[40]  Salmo LXXIII, 25
[41]  João VI, 33.
[42]  Mateus VI, 11.
[43]  Cf. Gênese II, 9.
[44]  Cf. Gênese III, 19.
[45]  Mateus VI, 25. 31-33.
[46]  Cf. Gálatas II, 19.
[47]  Mateus VI, 12.
[48]  Salmo XLIV, 23, citado em Romanos VIII, 36.
[49]  Cf. Filipenses II, 17.
[50] Mateus VI, 13.
[51]  Mateus VI, 15.
[52]  Cf. João XVI, 33.
[53]  Cf. Tiago I, 17.
[54]  Cf. II Pedro I, 4.
[55] Cf. Atos XVII, 28.
[56] Mateus VI, 13.
[57]  Mateus XXVI, 11.
[58]  Tiago I, 2-3; Romanos V, 4.
[59]  Cf. Atos II, 21.
[60] Cf. Hebreus XI, 1.

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