Filocalia Tomo I Volume 2 - Diádoco de Foticéia


DIÁDOCO DE FOTICÉIA





     CEM CAPÍTULOS ESPIRITUAIS






Nosso Pai entre os Santos, Diádoco, que foi bispo de Foticéia na antiga Épira de Ilíria, viveu no sétimo século: é o que podemos concluir a partir dos capítulos de são Máximo, nos quais estão mencionados os de Diádoco. Que ele foi um homem sábio, brilhantemente dotado para a ação e a contemplação, é o que poderá concluir quem quiser, lendo este tratado que foi conservado, tão bem escrito por ele, com um amor à sabedoria obtido ao longo de uma vasta experiência,e com as elevações divinas no coração. Tendo dividido a obra em cem capítulos, e feito destes, por assim dizer, uma celebração dos mistérios mais profundos da virtude da prece, e tendo-os incrustado das palavras da Escritura e das contemplações do conhecimento extao, ele os deixou a todos os Padres népticos e teóforos que vieram depois dele, como um ensinamento original da santa népsis formada por todas as virtudes. É por isso que vemos muitos Padres referindo-se frequentemente a estes capítulos como testemunhos firmes, e extrair deles em idênticos termos suas razões e seus testemunhos nas obras népticas que eles próprios redigiram. Photius os menciona, quando diz:



“Os cem capítulos estão baseados em dez definições. O tratado foi composto por excelência para aqueles que se dedicam à ascese e estão engajados em ações sobre os caminhos da perfeição Não há nada obscuro... Em presença de Andronico Paleólogo reuniu-se um sínodo. Gregório de Tessalônica, Simeão de Tessalônica, Gregório o Sinaíta, santo Calixto e muitos outros atestaram o caráter irrepreensível do tratado”.



Mesmo se, como diz Photius, o centésimo capítulo parece repreensível, ele está, no entanto, dentro daquilo a que se referiu o divino Máximo, no estreito gume da piedade, como fica claro no final



*



Diádoco foi, no século V, bispo de Foticéia, uma pequena cidade da Épira, na Grécia continental. Nós quase que só o conhecemos por sua obra. Naqueles tempos, em que a ortodoxia de um cristianismo sem fronteiras estava exposto a todas as efervescências e a todos os riscos, Diádoco de Foticéia aparece como um testemunho singular e fundamental, a um tempo garantidor da ordem eclesiástica e predicador da radicalidade evangélica. Seus cem capítulos sobre o conhecimento e o discernimento espiritual fazem realmente dele um dos primeiríssimos predicadores do caminho reto imitado pelos monges, dedicado à oração, ofertado ao êxtase, mas acima de tudo feito de equilíbrio e rigor.



A linguagem é límpida, simples e bela. Como todos os grandes bispos de sua época, Diádoco foi visivelmente formado na cultura grega, embora seja também herdeiro direto dos anacoretas egípcios. Terá ele os conhecido em sua terra? Ou terá simplesmente sido tocado, na própria Grécia, pela expansão da via monástica e pelos escritos de Evagro? Uma coisa é certa: ele é totalmente tributário deste. Mas ele também é totalmente singular, até os abismos da humildade. “Eu conheço alguém, diz ele, que ama Deus a tal ponto e que a tal ponto chora por não amá-lo como queria, que sua alma vive sem cessar num desejo ardente de ver Deus glorificado nele, e de ser ele mesmo como se não existisse”.



Só importa aqui a passagem do criado para o incriado: o amor à glória de Deus. Daí, para conservar puro o amor e aberta a glória, a renúncia a tudo o que não é ação de graças. Diádoco prega a pobreza, a nudez, o jejum, a compaixão evangélica, a ascese da morte para o mundo; permanecer em seu próprio coração; fechar todas as saídas pela lembrança de Deus; invocar o nome do Senhor Jesus; não rezar às vezes e às vezes não rezar, mas orar continuamente, mesmo que se viva fora dos mosteiros; e saber que a aquisição das virtudes não é uma garantia de perfeição, porque cada um de nós está sempre ameaçado à direita e à esquerda pela presunção e a intemperança; enfim, encontrar a paz na doçura “semelhante às lágrimas”. Acima de tudo, porque em sua época era grande a tentação e a confusão, ele adverte contra toda e qualquer visão intempestiva de formas luminosas exteriores ao intelecto, embora afirme com a mesma intensidade a realidade das primícias. O intelecto, o nous, quando separado de toda imaginação, de todo pensamento, de todo conhecimento, para se fazer única e exclusivamente prece, torna-se ele próprio luz, e nesta luz ele participa da vida eterna. “Que o intelecto, diz ele, quando começa a receber frequentemente a energia da luz divina, se torna inteiramente transparente, a ponto de ver ele próprio sua própria luz, disto não se pode duvidar”.



Diádoco define as condições, as modalidades, os limites, a orientação e a finalidade do combate espiritual. O asceta da fé deve evitar do mesmo modo o amor à vanglória e o desprezo pela natureza humana. Seu intelecto está dedicado pela graça à luminosidade do bem original. A plerophoria – a plena certeza, a percepção da origem luminosa – é continuamente requerida. Mas a humildade é mais do que nunca necessária. Toda suficiência, mesmo involuntária, apaga o estado de graça. Entretanto, o abandono instrui, reconduz à humildade, e com a humildade retorna a plenitude. Diádoco regra aqui, de uma vez por todas, aquilo que será na história, entre a derelição e a graça, o passo dos monges, oferecido como modelo para o caminho dos cristãos.



Tudo foi dito antecipadamente. Durante quase um milênio, do Egito ao Sinai, depois do Sinai a Constantinopla, ao Athos e a Tessalônica, às portas de Épiro, os defensores e os mensageiros dos monges, estes “mártires da consciência”, não farão outra coisa do que verificar e atestar as indicações de Diádoco de Foticéia.





DEFINIÇÕES DO BEMAVENTURADO DIÁDOCO,
BISPO DE FOTICÉIA


1.      Definição de fé: pensamento impassível de Deus.

2.      Definição de esperança: partida do intelecto [no amor][1] em direção ao esperado.

3.      Definição de paciência: aguardar para ver o invisível com os olhos da reflexão, sem relaxar a perseverança[2].

4.      Definição da ausência de avareza: querer não possuir, tanto quanto se quer possuir.

5.      Definição de conhecimento: ignorar a si mesmo no enlevo de Deus.

6.      Definição de humildade: esquecimento contínuo do bem que se fez.

7.      Definição de calma: grande desejo de não se irritar.

8.      Definição de pureza: sentidos sempre ligados em Deus.

9.      Definição de amor: afeição maior pelos que nos ultrajam.

10.  Definição da transformação perfeita: nas delícias de Deus, considerar como uma alegria a terrível tristeza da morte.






DO BEMAVENTURADO DIÁDOCO,

BISPO DE FOTICÉIA NA ANTIGA ÉPIRA DE ILLYRIKON,

DISCURSO ASCÉTICO, DIVIDIDO EM CEM CAPÍTULOS PRÁTICOS SOBRE O CONHECIMENTO E O DISCERNIMENTO ESPIRITUAL





1. Irmãos, que a fé, a esperança e o amor, mas sobretudo o amor, conduzam toda contemplação espiritual. Os primeiros ensinam a desprezar os bens visíveis, e o amor une a própria alma às virtudes mesmas de Deus, seguindo as pegadas do Invisível pelo sentido do intelecto.



2. Por natureza, só Deus é bom. Mas o homem também se torna bom pelos cuidados que toma com sua conduta, caminhando pela via do bem, transformando-se naquilo que ele não é, quando a alma, aspirando ao bem, se une a Deus tanto quanto lhe permitem as faculdades que ela põe em marcha. Com efeito, foi dito: “Sejam bons e compassivos, como o Pai que está nos céus[3]”.



3. O mal não é natural, e ninguém é mau por natureza. Pois Deus não fez nada de mau. Mas quando, por um desejo do coração, damos forma ao que na realidade não é, então começa a existir aquilo que pretende aquele que faz isto. Assim, é preciso sempre que, pelo cuidado que dedicamos à lembrança de Deus, não nos inquietemos com a experiência do mal. Pois a natureza do bem é mais forte do que a experiência do mal, porque aquela é, enquanto que esta não é, a menos que consintamos que ela exista.



4. Todos os homens são feitos à imagem de Deus[4]. Mas a semelhança de Deus é própria dos poucos que, por um imenso amor, sujeitaram a Deus sua liberdade. De fato, quando nós não somos nós mesmos[5], é então que nos tornamos semelhantes Àquele que nos reconciliou consigo[6] por amor.  Mas ninguém alcançará esta semelhança se não persuadir sua alma a não se apaixonar pela glória desta vida fácil, [pela pobre glória humana].



5. A liberdade é a vontade de uma alma dotada de razão, pronta a se dirigir ao seu objetivo. Esforcemo-nos por levá-la a se dedicar unicamente ao bem, a fim de consumir continuamente a lembrança do mal por meio dos bons pensamentos.



6. A luz do verdadeiro conhecimento consiste em discernir infalivelmente o bem do mal. Então, com efeito, o caminho da justiça, que conduz o intelecto ao Sol de justiça, o faz penetrar na iluminação infinita do conhecimento, a partir do momento em que ele passa a buscar o amor. É preciso, assim, que, com um coração sem cólera, sejamos capazes de conceder o direito àqueles que ousam ultrajá-lo. Pois não é odiando, mas denunciando o erro, que o zelo da piedade obtém a vitória.



7. A palavra espiritual enche de certeza o sentido do intelecto. Pois ela provém de Deus pela energia do amor. É por isso que nosso intelecto jamais é atormentado pelos movimentos da teologia. Pois ele não sofre com a indigência que a inquietude traz consigo, a partir do momento em que se dilata nas contemplações, na medida da energia do amor. É, portanto, bom esperar continuamente, com fé, pelo amor ativo[7] [uma fé ativa na caridade]. Pois nada é mais pobre do que o pensamento que, estando fora de Deus, filosofa sobre as coisas de Deus.



8. Não é conveniente aplicarmo-nos às contemplações espirituais se não estamos iluminados, nem começarmos a falar sem estarmos cheios de luz pela bondade do Espírito Santo. Pois aonde está a indigência, ela traz a ignorância. E aonde existe a riqueza, ela não permite falar. Então, com efeito, a alma embriagada pelo amor de Deus só quer desfrutar em silêncio da glória do Senhor. Assim, é preciso, ao agirmos, observarmos o justo meio, para podermos falar das coisas de Deus. É esta medida que permite à alma expressar de alguma maneira palavras gloriosas. Mas o esplendor da flama nutre a fé daquele que fala com fé, para que o que ensina seja o primeiro a provar pelo amor o fruto do conhecimento. O cultivador que trabalha deve ser o primeiro a ter sua parte nos frutos[8] [diz o Apóstolo].



9. A sabedoria e o conhecimento são uma graça do único Espírito Santo, como todas as graças divinas, e têm sua energia própria, como cada uma delas. É por isso que o Apóstolo testemunha que a um é dada a sabedoria e a outro o conhecimento, segundo o mesmo Espírito[9]. Pois o conhecimento une a alma a Deus pela experiência, sem que a alma precise falar das coisas. É por este motivo que alguns dos que levam a vida solitária a filosofar são de maneira sensível iluminados pelo conhecimento, mas não chegam a falar de Deus. Quanto à sabedoria, se no temor ela é dada a alguém com o conhecimento, o que é raro, ela manifesta no amor as energias próprias do conhecimento. Pois o conhecimento costuma iluminar pela energia, e a sabedoria pela palavra. O conhecimento vem com a prece e muita hesíquia, num desligamento total. A sabedoria vem pela humilde meditação das palavras do Espírito, e em primeiro lugar pela graça do Deus que dá.



10. Quando o ardor da alma se levanta contra as paixões, é preciso saber que o momento é de silêncio pois é hora da luta. Mas quando vemos a agitação se acalmar pela oração ou pela compaixão, podemos nos deixar levar pelo ardente desejo de falar [o desejo pelas palavras divinas], firmando as asas do intelecto com os laços da humildade. Pois se não nos rebaixarmos a nós mesmos, considerando-nos como nada, não poderemos falar da grandeza de Deus.



11. As palavras espirituais mantêm a alma sempre longe da vanglória. Pelo bem com que elas cumulam todas as partes da alma permitindo-lhe sentir a luz, elas fazem com que a alma não sinta necessidade das honrarias que vêm dos homens. É também por isso que elas protegem sempre o pensamento de todas as imaginações, transformando-a inteiramente em amor a Deus. Mas as palavras da sabedoria do mundo incitam sempre o homem à vanglória. Pois, incapaz de fazer o bem pela experiência da percepção de Deus, elas dá aos seus seguidores o amor aos louvores, porque ela é a expressão de homens vaidosos. Quanto à disposição que nos leva para as palavras divinas, podemos reconhece-la infalivelmente porque, no silêncio e isolamento, passamos a nos lembrar de Deus com fervor nos momentos em que não falamos.



12. Quem gosta de si mesmo não pode amar a Deus. Mas quem não gosta de si por causa da riqueza maior do amor a Deus, este ama a Deus. É por isso que tal homem jamais busca sua própria glória, mas a glória de Deus[10]. Pois quem gosta de si mesmo busca sua própria glória. Mas quem gosta de Deus ama a glória de seu Criador. É próprio de uma alma que sente e gosta de Deus buscar sempre a glória de Deus, em todos os mandamentos que ela segue, e se regozijar com sua humildade, a fim de que por meio dela nos unamos a Deus. Se fizermos isto, regozijando-nos com a glória do Senhor, como são João Batista, começaremos a repetir interminavelmente: “É preciso que ele cresça para que eu diminua[11]”.



13. Eu conheço alguém que ama a Deus a tal ponto e que a tal ponto chora por não amá-lo tanto quanto gostaria, que sua alma permanece todo o tempo presa de um desejo ardente de ver a Deus glorificado em si e de ser ele mesmo como se não existisse. Este homem não sabe mais quem ele é, nem se regozija com as palavras que o louvam. Pois em seu grande desejo de ser humilde, ele não pensa em sua própria dignidade, enterrando a glória desta de certa forma no abismo do amor a Deus, pelo espírito da humildade, a fim de aparecer continuamente a seus olhos e em seu pensamento como um servidor inútil, estranho à sua própria dignidade, pelo desejo de ser humilde. Isto é o que também nós devemos fazer: fugir às honras e à glória, por causa da riqueza transbordante do amor do Senhor que tanto nos amou[12].



14. Quem ama a Deus até senti-lo em seu coração, é porque foi conhecido por ele[13]. Com efeito, na mesma medida em que recebemos e sentimos na alma o amor de Deus, penetramos neste amor. É por isso que um homem assim não cessará mais, daí em diante, de sentir um desejo – um eros – violento, uma tendência à iluminação do conhecimento, até senti-lo em si quando a própria força de seus ossos se esgotar [até senti-lo em seus próprios ossos]; então ele já não conhecerá a si mesmo, mas estará inteiramente transformado pelo amor de Deus. Este homem estará aqui, nesta vida, e em outro lugar também. Ele estará em seu corpo, mas pelo amor, seguindo o movimento de sua alma, ele não cessará de emigrar para Deus[14]. Pois, sem relaxar daí para diante, com o coração queimando com o fogo do amor, ele permanecerá ligado a Deus, obrigado por seu desejo. Ele estará como que possuído de uma vez por todas por sua própria afeição por amor a Deus. “Pois se somos possuídos, é por Deus, e se somos sensatos, é por vocês[15]”.



15. Quando começamos a sentir plenamente o amor a Deus, começamos também, pelo sentimento do Espírito, a amar o próximo. Este é o amor de que falam todas as santas Escrituras. Pois a afeição da carne se dissipa com facilidade  ao menor pretexto; ela não está ligada ao sentimento do Espírito. Assim, mesmo que aconteça da alma na qual Deus está agindo ficar irritada por qualquer razão, ela não romperá os laços do amor. Pois inflamando-se novamente ao calor do amor de Deus, ela retornará rapidamente ao bem e retomará com alegria o amor ao próximo, mesmo que este a tenha ultrajado ou maltratado. Pois na doçura de Deus ela consumirá totalmente a amargura da discórdia.



16. Ninguém pode amar a Deus com todo o coração sem que primeiro o tenha temido, sentindo-o do fundo do coração [ninguém pode amar a Deus sem primeiro começar por temê-lo com todo seu coração]. Com efeito, é sob a ação do temor que a alma, como que transmutada em pura e terna, começa a amar com um amor ativo. Mas ninguém consegue chegar ao temor a Deus do modo como foi dito se não se desfizer de todos os cuidados desta vida. Com efeito, quando o intelecto experimenta uma grande hesíquia e um grande desligamento, é então que o temor a atormenta, permitindo-lhe sentir profundamente que este a purifica de todo o peso terrestre a fim de levá-la a um grande amor pela bondade de Deus. É assim que o temor é típico dos justos que amam moderadamente e que ainda estão se purificando. Mas o amor perfeito cabe àqueles que já estão purificados e que não têm mais temor algum. De fato, foi dito: “O amor perfeito afasta o temor[16]”. Os dois amores pertencem apenas aos justos que, pela energia do Espírito Santo, praticam as virtudes. É por isso que a Escritura tanto diz: “Que todos os seus santos temam ao Senhor[17]”, quanto diz: “Que todos os fiéis amem ao Senhor[18]”, a fim de que aprendamos claramente que o temor a Deus é típico dos justos que amam moderadamente, como foi dito, e que ainda estão se purificando, e que o amor perfeito cabe aos que já foram purificados: nestes já não existe nenhum pensamento de temor, mas um abrasamento incessante e uma ligação contínua da alma a Deus, pela energia do Espírito Santo, conforme aquele que disse: “Minha alma está ligada a você e sua direita me mantém[19]”.



17. Assim como as feridas que afetam o corpo, se deixadas ao abandono e sem cuidados não sentem o remédio que os médicos lhe aplicariam, mas, se tratadas, sentem a ação do remédio, chegando até a cura total, também a alma, na medida em que permanece sem cuidados e toda coberta pela lepra do amor pelos prazeres não pode sentir o temor a Deus, mesmo quando a ameaçamos incessantemente com o terrível e poderoso tribunal de Deus. Mas quando ela começa a se purificar com toda a atenção, então ela sente, como um verdadeiro remédio de vida, o temor divino a queimá-la, sob a ação das censuras, como um fogo que a torna impassível. Assim, de uma purificação parcial ela chega à purificação perfeita, crescendo no amor na mesma medida em que diminui seu temor, até chegar ao amor perfeito, no qual, como foi dito, não existe mais temor[20], mas a impassibilidade total suscitada pela glória de Deus. Que em nós, para que alcancemos a alegria das alegrias sem fim, surja primeiro o temor, depois o amor: o cumprimento da lei da perfeição em Cristo[21].



18. Uma alma que não estiver desligada dos cuidados do mundo não amará verdadeiramente a Deus, nem sentirá a aversão ao diabo tal como ele a merece. Pois ela tem sobre si como que um pesado véu: o apego a esta vida. Sendo assim, em tais almas, o intelecto não é capaz de reconhecer seu próprio tribunal, para verificar por si mesmo, sem erro, as decisões do juízo, Por todas estas razões, a anacorese é útil.



19. É típico de uma alma pura a palavra sem ciúme, o zelo sem malícia, o amor – eros – incessante pelo Senhor da glória. Então também o intelecto regra com exatidão suas próprias balanças, pois ele comparece diante de sua reflexão como diante de um tribunal íntegro.



20. Uma fé sem obras e obras sem fé serão reprovadas da mesma maneira. O fiel deve oferecer ao Senhor uma fé que demonstre o que ele faz. Pois a fé de nosso pai Abraão não lhe teria trazido a justiça se, como fruto desta fé, ele não tivesse oferecido seu filho[22].



21. Quem ama a Deus e crê verdadeiramente, também cumpre santamente as obras da fé. Mas aquele que apenas crê, mas não vive o amor, não possui sequer a fé que julga ter. Ele crê com um intelecto leviano, pois não é pressionado pela glória do amor. A fé suscitada pelo amor[23] é o cúmulo da virtude.



22. O abismo da fé agita-se quando o sondamos; mas acalma-se se o contemplamos com simplicidade. Pois a profundidade da fé é a água do esquecimento dos males: ela não suporta ser contemplada por pensamentos indiscretos. Assim, naveguemos por estas águas mantendo nossa reflexão com simplicidade, a fim de alcançarmos deste modo o porto da vontade de Deus.



23. Ninguém pode amar ou crer verdadeiramente se não for o acusador de si mesmo. Quando, com efeito, nossa consciência se perturba sob as censuras, o intelecto não consegue mais sentir o perfume dos bens mais altos do que o mundo e, na incerteza, ele logo se divide: de um lado, por um movimento fervoroso, ele tende para a fé, por causa da experiência anterior, mas, de outro, ele não consegue captá-la pelo amor, sentindo-a no coração, por causa das numerosas ferroadas da consciência que o refuta, como já disse. Mas quando formos purificados por uma atenção mais ardente, com mais experiência, em Deus, nós obteremos o que desejamos.



24. Assim como os sentidos do corpo se voltam com certa violência para aquilo que nos parece bom, também o sentido do intelecto costuma nos conduzir para os bens invisíveis, a partir do momento em que provou da bondade divina. Pois cada coisa aspira àquilo com o que é aparentada. A alma, que é incorpórea, tende para os bens celestes. E o corpo, que é pó, tende para as delícias [os alimentos] terrestres. Chegaremos, portanto, sem erro, a experimentar o sentido imaterial se, por meio de nossas penas, refinarmos e afinarmos a matéria.



25. A própria energia da santa consciência nos ensina que existe na alma um único sentido natural, que este sentido foi dividido em duas energias por causa da transgressão de Adão, mas que ele é único e simples quando vem do Espírito Santo: ninguém é capaz de conhecê-lo, exceto aqueles que, vivendo a esperança dos bens futuros, desligam-se de boa vontade dos bens desta vida e, pela temperança, despojam-se de todo o desejo dos sentidos corporais, Pois somente nestes o intelecto, avançando com rigor graças a seu desligamento, pode indizivelmente sentir a bondade divina. A partir daí, na medida de seu progresso, ele transmite igualmente ao corpo sua própria alegria, regozijando-se, falando sem parar e confessando seu amor. Com efeito, foi dito: “Meu coração esperou nele e eu fui socorrido. Minha carne refloresceu e com toda minha vontade eu o confessarei[24]”. Pois a felicidade que então cumula verdadeiramente a alma e o corpo é uma reminiscência infalível da vida incorruptível.



26. Aqueles que combatem devem manter sempre sua reflexão ao abrigo das ondas, a fim de que o intelecto, discernindo os pensamentos que o atravessam correndo, deposite nos tesouros da memória os que são bons e enviados por Deus. Com efeito, quando o mar está calmo, os que pescam os peixes vêem seus movimentos mesmo nas profundezas, de tal maneira que aos seus olhos não escapa nenhum dos animais que percorrem o fundo. Mas quando ele está agitado pelos ventos, ele esconde sob a opacidade da agitação aquilo que ele se sentiria honrado em apresentar no sorriso de sua calma. E vemos que a arte dos que têm prática nos truques da pesca é então impotente. Exatamente o mesmo acontece com o intelecto, sobretudo quando o fundo da alma é perturbado por uma cólera injusta.



27. Conhecer exatamente todas as suas faltas é prerrogativa de muito poucos, daqueles cujo intelecto nunca se deixa distrair da lembrança de Deus. Pois, do mesmo modo como ocorre com nossos olhos corporais que, quando estão em bom estado conseguem enxergar tudo, até mesmo as moscas e mosquitos que voam nos ares, mas que, quando embaçados por um problema ou por humores vêem confusamente mesmo as coisas grandes que se apresentam e as pequenas nem sequer enxergam, também a alma, se consegue diminuir, pela sua atenção, o ofuscamento que advém do amor ao mundo, percebe como grandes até as menores faltas e não cessa de oferecer, numa profunda ação de graças, lágrimas sobre lagrimas. Com efeito, foi dito: “Os justos confessarão seu nome[25]”. Mas se ela permanece nas disposições do mundo, tenha ela cometido um assassinato ou uma falta digna de grande castigo, ela o sente fracamente. Quanto às demais faltas, ela é incapaz de perceber seja lá o que for, e chegam, muitas vezes, até a considerá-las como boas ações. É por isso que a infeliz sequer tem vergonha de falar delas calorosamente.



28. Purificar o intelecto cabe apenas ao Espírito Santo. Com efeito, se o poderoso não entra, não desarma e não amarra o ladrão, o produto do roubo não pode ser recuperado[26]. É preciso, portanto, por todos os meios e no mais alto grau, pela paz da alma, permitir ao Espírito Santo repousar, para que tenhamos sempre brilhando em nós a lâmpada do conhecimento. Pois se o conhecimento irradia sem cessar nos tesouros da alma, não apenas as menores sugestões tenebrosas do demônio são claramente percebidas pelo intelecto, como ainda elas perdem toda a sua força, rejeitadas por esta santa e gloriosa luz. É por isso que o Apóstolo diz: “Não extingam o Espírito[27]”, ou seja: não aflijam a bondade do Espírito Santo com suas ações e pensamentos maus, para não serem privados desta chama que os protege. Pois não é o Espírito eterno e vivificante que se extingue. É a sua tristeza, vale dizer, seu distanciamento, que deixa o intelecto opaco, longe da luz do conhecimento.



29. Sabemos, como já disse, que só existe um sentido na alma: pois os cinco sentidos se diferenciam conforme as necessidades de nosso corpo. É isto que nos ensina, em seu amor pelo homem, o Espírito Santo de Deus. Mas por causa da queda devida à transgressão, até este sentido se divide, assim como o intelecto, segundo os movimentos da alma. É por isso que uma parte do sentido é carregada pelo elemento passional; e com ela sentimos com prazer os bens desta vida. A outra parte, no mais das vezes, se reúne ao movimento da alma que carrega a razão e o intelecto: assim, quando somos sábios, nosso intelecto aspira correr para as belezas celestes. Assim, se formos capazes de desprezar os bens deste mundo, poderemos unir até mesmo o desejo terrestre da alma à sua natureza dotada de razão: a comunhão do Espírito Santo regula isto para nós. Pois se sua divindade não iluminasse com toda energia os tesouros de nosso coração, não poderíamos, assim como o sentido indivisível, ou seja, com uma total disposição, provar daquilo que é bom.



30. O sentido do intelecto consiste no gosto preciso daquilo que discernimos. Pois, assim como, quando estamos bem, distinguimos pelo sentido corporal do paladar o excelente do ruim e desejamos o que é bom, também nosso intelecto, a partir do momento em que começa a se desenvolver com vigor e grande despojamento, pode sentir plenamente o consolo divino sem jamais se deixar levar por seu adversário. Tal como o corpo, que tem a experiência infalível dos sentidos ao experimentar as doçuras terrestres, o intelecto, quando glorificado acima dos cuidados da carne, pode provar sem erro a consolação do Espírito Santo[28]. Pois foi dito: “Provem e vejam como o Senhor é bom[29]”. Ele pode também, pela energia do amor, conservar a lembrança inesquecível deste sabor, como diz o Santo: “O que eu peço em minha prece, é que seu amor cresça mais e mais em conhecimento e em toda percepção, para que vocês experimentem o melhor[30]”.



31. Quando nosso intelecto começa a sentir a graça [a consolação] do Espírito Santo, então também Satanás consola a alma, permitindo-lhe perceber um rosto de doçura no repouso noturno, no momento em que ela está em sono ligeiro. Se então o intelecto, com uma lembrança fervorosa, agarra-se com toda força ao santo nome de Jesus Cristo e se serve deste nome santo e glorioso como de uma arma contra a ilusão, o enganador se retira com sua armadilha, mas daí para diante ele se agarrará à alma para lhe dar combate. A partir daí, o intelecto, que conhece precisamente a ilusão do maligno, progredirá na experiência do discernimento.



32. Se o corpo vela ou começa a entrar numa aparência de sonho[31], o bom consolo vem quando, como uma fervorosa lembrança de Deus, permanecemos como que ligados ao seu amor. Mas o consolo da ilusão vem sempre, como já disse, quando aquele que combate penetra num sono leve e se recorda moderadamente de Deus. Com efeito, o primeiro consolo, uma vez que provém de Deus, convida, numa grande efusão, as almas dos combatentes da piedade abertamente ao amor. Mas o outro, que costuma agitar a alma sob os ventos da ilusão, tenta roubar pelo sono do corpo a experiência do sentido do intelecto que guarda intacta a lembrança de Deus. Se, então, acontecer de o intelecto, como já disse, lembrar-se continuamente do Senhor Jesus, ele dissipa esta brisa do inimigo e seu semblante de doçura, e avança feliz para o combate, portando daí em diante, como uma arma destra, a bravura de sua experiência.



33. Se, por um movimento desprovido de equívoco e imaginação, a alma se agarra ao amor a Deus, arrastando consigo o próprio corpo na profundidade deste amor indizível (esteja dormindo ou acordado aquele que recebe a santa graça, como já disse), e se, neste momento ela não concebe absolutamente nada além daquilo para o quê se dirige, é preciso saber que esta é a energia do Espírito Santo. Pois, cumulada por esta doçura inexprimível, ela não consegue pensar em outra coisa, pois regozija-se numa alegria indefectível. Mas, se o intelecto que recebe esta energia concebe a menor dúvida ou um pensamento sujo, ainda que ela se sirva do santo nome para se defender do mal e não mais somente pelo amor a Deus, é preciso compreender que este consolo vem do enganador, sob a aparência de alegria, e que esta alegria sem caráter e sem alcance é típica do inimigo que quer entrar, quando ele percebe o intelecto firme pela experiência de seu próprio sentido. Então o enganador atrai a alma com consolações de uma doçura aparente, como eu disse, a fim de que esta, dividida por este desejo poroso e fluído, não consiga desmanchar a mistura feita de engano. É assim que reconhecemos o Espírito de verdade e o espírito de ilusão[32]. É naturalmente impossível tanto sentir e provar a bondade divina quanto perceber e experimentar o amargor dos demônios, se não tivermos em nós a plena certeza de que a graça faz sua morada nas profundezas do intelecto e que os espíritos maus se ocupam ao redor dos membros do coração: é isto que os demônios tentam impedir que os homens creiam, por medo que o intelecto, sabendo-o, se arme contra eles com a lembrança de Deus.



34. Uma coisa é o amor natural da alma e outra o amor que vem do Espírito Santo. O primeiro, quando o queremos, é suscitado harmoniosamente por nossa vontade; é por isso que ele é facilmente arrastado pelos espíritos maus, quando não dominamos fortemente nossa própria resolução. O segundo inflama a alma de tal maneira com o amor a Deus que todas as partes desta se agarram [indizivelmente] à doçura indizível do desejo divino, numa simplicidade infinita de disposições. O intelecto, como que fecundado então pela energia espiritual, faz jorrar uma fonte de amor e alegria.



35. Assim como o mar agitado cede naturalmente se nele vertermos óleo, pois as ondas se deixam vencer pela unção do óleo, também nossa alma, ao receber a unção da doçura do Espírito Santo, apazigua-se de bom grado. Pois ela se deixa vencer pela alegria, como disse o Santo: “Submeta-se a Deus, alma minha[33]”, por esta impassibilidade e esta doçura indizíveis que a cobrem com seu manto. É por isso que, por numerosas que sejam as provocações dos demônios contra a alma, esta permanece sem cólera e cheia de alegria plena. Mas este é um estado ao qual ninguém chega e no qual ninguém permanece se não apaziguar continuamente sua alma pelo temor a Deus. Pois o temor do Senhor Jesus concede àqueles que combatem uma espécie de purificação. Foi dito: “O temor do Senhor é puro: ele permanece pelos séculos dos séculos[34]”.



36. Que ninguém, ouvindo falar do sentido do intelecto, imagine que a glória de Deus lhe aparecerá visivelmente. Com efeito, dizemos que quando a alma é pura, sente a consolação divina e a prova inefavelmente. Mas nada de indivisível lhe aparece, porque, por enquanto, como diz o bem-aventurado Paulo, nós caminhamos na fé e não na realidade[35]. Assim, se a alguém que combate aparece uma luz, ou uma forma de fogo, ou uma voz, que ele evite acolher tal visão. Pois trata-se de uma manifesta ilusão do inimigo: muitos foram vítimas disto e se afastaram do caminho da verdade. Mas nós o sabemos: enquanto permanecermos neste corpo perecível estaremos em exílio longe de Deus[36]. Vale dizer que não poderemos ver visivelmente, nem a ele, nem a nenhuma de suas maravilhas celestes.



37. Os sonhos que aparecem à alma no amor a Deus são a seu modo, testemunhos infalíveis de uma alma sã. É porque eles não passam de uma forma a outra: eles não atormentam os sentidos, não apresentam ao mesmo tempo um rosto risonho e sombrio, mas se aproximam da alma com toda bondade, cumulando-a de júbilo espiritual. A partir daí, mesmo depois que o corpo desperta, a alma busca com todo o desejo a alegria do sonho. As aparições do demônio, entretanto, vão em sentido contrário. Pois os demônios não mantêm a mesma forma, nem manifestam em sua aparência uma calma durável. Porque aquilo que eles não possuem por sua própria vontade, mas emprestam para sua ilusão, não lhes fica por muito tempo. Eles falam alto e proferem grandes ameaças, tomando muitas vezes a aparência de soldados. Às vezes eles atingem a alma com seus clamores. É então que o intelecto, que os reconhece se for puro, desperta o corpo destas imaginações. Às vezes ele se regozija de ter conseguido reconhecer os seus truques, e por isso, no mais das vezes, ao denunciá-los no sonho, suscita nos demônios uma grande cólera. Porém, às vezes também, os bons sonhos não levam alegria à alma, mas fazem nascer nela uma doce tristeza e lágrimas sem dor: isto é o que acontece com aqueles que já progrediram bastante na humildade.



38. Falamos da distinção entre os bons e os maus sonhos a partir do que aprendemos daqueles que tiveram a experiência. Basta, porém, que pratiquemos a grande virtude de jamais confiar nas imaginações. Pois os sonhos, na maior parte das vezes, não passam de simulacros de pensamentos, ou mesmo, como já disse, de ilusões demoníacas. E se por acaso uma visão nos for enviada por Deus e acontecer que não a recebamos, não será por isso que o Senhor Jesus, tão desejado, ficará irritado conosco. Pois ele sabe que fizemos isto por causa das armadilhas dos demônios. A distinção que mencionei é rigorosa, mas pode ser que, manchada por uma complacência inconsciente – da qual ninguém está livre, penso eu – a alma perca a pista do discernimento rigoroso e tome como bom aquilo que não é bom.



39. Tomemos como exemplo o caso de um servidor cujo mestre, depois de uma longa viagem, retorna e chama, no meio da noite, diante da porta de sua casa. Na incerteza, o criado recusar-se á de abrir-lhe a porta, pois ele temerá que, iludido pela semelhança da voz, poderá levar a perder todos os bens que seu mestre lhe confiou. Ao chegar o dia, não apenas o senhor da casa não se irritará com ele, mas o considerará digno dos maiores elogios por ter pensado que a voz do mestre poderia ser um truque, evitando assim a perda dos bens.



40. Não devemos duvidar que o intelecto, ao começar a receber com freqüência a energia da luz divina, torna-se inteiramente transparente a ponto de ver plenamente sua própria luz em si mesmo. É isto o que acontece quando o poder da alma domina as paixões. Mas o divino Paulo nos ensina claramente, ao dizer que o inimigo se transforma em anjo de luz[37], que tudo o que toma uma forma, seja como luz, seja como fogo, vem dos seus malefícios. Assim, não é com esta esperança que devemos buscar a vida ascética, para que Satanás não encontre a alma pronta para se deixar levar. O único objetivo é o de chegar a amar a Deus na total percepção e plena certeza do coração, vale dizer, com toda a alma, com todo o coração e todo o pensamento[38]. Pois quem alcança este estado pela graça de Deus está ausente do mundo, mesmo quando está no mundo.



41. Dentre as virtudes iniciais, a obediência é conhecida como o primeiro bem. Ela começa por impedir a presunção, e engendra em nós a humildade. A partir daí, para os que se agarram a ela de bom grado, ela se torna o umbral e a porta do amor de Cristo. Foi por tê-la repudiado que Adão escorregou para o fundo do Tártaro[39]. E foi por tê-la adotado que o Senhor, conforme a ordem e a lei do projeto divino, escutou seu Pai até chegar à cruz e à morte[40] (e isto, mesmo sendo em nada menor que o Pai), a fim de apagar com sua obediência a acusação de desobediência que pesava sobre a humanidade, e conduzir à vida bem-aventurada e eterna aqueles que venceram na obediência. É, portanto, a isto que devem se aplicar primeiramente os que se engajam na luta conterá a presunção do diabo. Pois com o progresso, a obediência nos mostrará por si só o caminho das virtudes.



42. A temperança é uma denominação comum a todas as virtudes. Aquele que combate deve ser temperante em tudo. Pois, assim como a amputação de um membro qualquer do homem, ainda que dos menores, deforma o home por inteiro, mesmo que pouco lhe falte, também aquele que negligencia uma só virtude apaga, a um ponto que ele ignora, toda a beleza da temperança. È preciso, assim, não apenas cultivar as virtudes corporais, mas também as que purificam nosso homem interior. De fato, que vantagem terá quem mantém o corpo virgem, se deixar o demônio da desobediência levar sua alma ao adultério? E como será coroado o que evita a gula e a concupiscência do corpo, se não evitar a presunção e a vanglória, nem suportar uma breve aflição, uma vez que a balança deve dar o mesmo peso da luz da justiça àqueles que cumprem as obras justas com espírito humilde?



43. Quem combate deve sentir pelas concupiscências desprovidas de razão uma tal aversão a ponto que ela se torne um hábito. Diante dos alimentos, ele deve manter a temperança a ponto de jamais detestar qualquer um deles, o que é na verdade maldito e demoníaco, pois não devemos nos abster de alimentos como se eles fossem maus, praza a Deus, mas porque, ao nos afastarmos dos numerosos alimentos terrestres, sejamos capazes de reter dentro de uma justa medida os membros inflamados da carne, e para que nosso supérfluo possa dar aos pobres o que lhes é necessário: esta é a marca de um coração puro.



44. Comer e beber de tudo o que nos é servido, rendendo graças a Deus[41], não é contrário à regra do conhecimento: pois tudo é muito bom[42]. Mas abster-se voluntariamente da abundância e do prazer é um sinal do maior discernimento e de um grande conhecimento. No entanto, não seremos levados a desprezar os prazeres presentes se experimentarmos a doçura de Deus na total percepção e na plena certeza do coração.



45. Da mesma maneira como o corpo pesado pela abundância de alimentos torna o intelecto preguiçoso e lento, também a parte contemplativa da alma, quando esgotada por uma grande abstinência, torna-se triste e perde o gosto pela palavra. É preciso, portanto, conciliar os movimentos do corpo e os alimentos, a fim de que o corpo, quando em boa saúde, seja convenientemente contido e, quando doente, seja razoavelmente confortado. Quem combate deve ter não um corpo enfraquecido, mas suficientemente forte para a luta, a fim de que a alma se purifique como convém, mesmo quando o corpo estiver sofrendo.



46. Quando a vanglória incha no fundo de nós, por ter encontrado ocasião de manifestar sua malícia à chegada de algum irmão ou de um estrangeiro, convém fazer uma pausa razoável em nosso regime alimentar. Pois assim deixaremos o demônio desconcertado e, mais ainda, desolado com o fracasso de sua tentativa, e cumpriremos com discernimento a lei do amor e, pela compaixão, manteremos sem ostentação o segredo da temperança.



47. Existe algo de que se orgulhar no jejum, mas não diante de Deus. O jejum é um instrumento que orienta para a castidade aqueles que o praticam. Aqueles que levam o combate pela piedade devem, portanto, não tirar disto nenhuma vaidade, mas apenas aguardar, com fé em Deus, até atingir este objetivo que é o de todos nós. Com efeito, aqueles que estão instruídos numa arte, qualquer que seja ela, jamais colocam nos seus instrumentos o orgulho que extraem dos frutos do seu ofício, mas cada qual aguarda que seu trabalho tenha tomado forma, para então mostrar todo o rigor de sua arte.



48. Do mesmo modo como a terra arada moderadamente faz crescer sem mistura a semente que nela atiramos e a multiplica, mas se for afogada pelo excesso de chuvas não produz senão arbustos e espinheiros , também a terra do coração, se usarmos o vinho com moderação, fará crescer sem mistura suas sementes naturais e dará muitas flores e frutos pelo Espírito Santo. Mas se ela for mergulhada em excesso de bebida, todos os pensamentos que produzir não passarão de arbustos e espinheiros.



49. Quando nosso intelecto nada nas ondas do excesso de bebida, ela não apenas olha com paixão as imagens formadas nos sonhos pelos demônios, mas, produzindo em si certas imagens belas para olhar, ele se entrega com ardor a seus próprios fantasmas, como que tomado por eles. Com efeito, quando o ardor do vinho esquenta os órgãos da geração, é inevitável que o intelecto se represente apresenta o prazer com uma sombra de paixão. É preciso que tenhamos moderação para evitar os prejuízos do excesso. Pois quando o intelecto não sente prazer em ser arrastado ao cenário do pecado, ele permanece inteiramente sem imaginar e, o que é melhor, sem perder seu vigor.



50. Todas as bebidas preparadas cujos inventores chamam de aperitivos de antes da refeição, talvez porque ajudem a conduzir os alimentos para o ventre, devem ser evitadas por aqueles que desejam dominar as partes do corpo que podem inflar, Pois não somente a sua qualidade é nociva ao corpo dos que combatem, como ainda sua mistura irracional faz mal à consciência temente a Deus [na qual Deus repousa]. Com efeito, o que falta à natureza do vinho, para que ele perca assim seu vigor quando lhe acrescentamos especiarias variadas?



51. Nosso Senhor, o mestre desta vida santa, Jesus Cristo, foi servido de vinagre[43], durante a Paixão, por aqueles que executavam as ordens diabólicas, a fim de nos dar um exemplo claro[44], me parece, da disposição que é preciso ter nos combates sagrados. Com isto ele nos disse, com efeito, que os que lutam contra o pecado não devem utilizar alimentos e bebidas muito agradáveis, mas antes suportar com constância o amargor do combate. E que, à esponja do ultraje se acrescente o hissope[45], para que a forma de nossa purificação se parece perfeitamente ao modelo. Pois a acidez é própria dos combates. Mas aquilo que purifica conduz com certeza à perfeição.



52. Ninguém sustenta que haja pecado ou falta de bom senso em freqüentar os banhos. Mas eu digo que abster-se disto por temperança é corajoso e totalmente casto. Agora, com efeito, o prazer de estar dentro d'água não tira o vigor do corpo, e nós não diremos que é inglória a nudez de Adão[46]; mas chamamos a atenção para as folhas que cobriam a segunda razão da vergonha, principalmente por nós que, há pouco saídos da corrupção da vida, devemos, pela pureza do corpo, nos unirmos à beleza de um coração casto.



53. Nada impede de chamar os médicos, quando estamos doentes. De fato, como a arte da medicina deveria surgir um dia a partir da experiência dos homens, os remédios já existiam previamente. Portanto, não é nos médicos que devemos colocar a esperança da cura, mas no verdadeiro salvador e no verdadeiro médico, Jesus Cristo. Eu digo isto por causa daqueles que, nas comunidades e nas cidades, levam a temperança adiante, por não poderem, devido às doenças que os afligem, possuir em si, sem cessar, por amor, a energia da fé, e sobretudo para que não caiam na vanglória e na tentação do diabo que levam alguns irmãos a proclamar a todos que não necessitam de médico. Se alguém leva uma vida de anacorese nos lugares desertos junto com dois ou três irmãos, que ele receba socorro, na fé, do único Senhor que cura todos os males e todas as enfermidades[47], quaisquer que sejam os sofrimentos que o assaltem. Pois ele terá, depois do Senhor, a solidão para consolá-lo das doenças como convém. Assim este homem nunca perderá a energia da fé, principalmente por que não encontrará ninguém a quem mostrar sua virtude de paciência, por levar o belo véu da solidão. É por isso que o Senhor conduz os solitários à sua moradia[48].



54. Quando nos revoltamos contra as indisposições que nos acontecem, devemos saber que nossa alma ainda está submetida à concupiscência do corpo. É porque, em seu desejo de bem-estar material, ela não quer se retirar das benesses desta vida, mas considera como um grande empecilho não poder usufruir dos encantos da existência por causa de uma doença. Mas se ela recebe as aflições trazidas pela doença dando graças, ela revela que não está longe dos confins da impassibilidade. E ela aguarda a morte com alegria, considerando-a como uma oportunidade para a verdadeira vida.



55. A alma não desejaria senão separar-se do corpo se a condição que nos liga ao espaço que nos envolve perdesse o significado. Pois todos os sentidos do corpo se opõem à fé, porque estão voltados para os bens presentes. Mas a fé promete o esplendor dos bens futuros. Convém assim que o combatente da fé não se preocupe com as árvores com belos ramos, ou com sua sombra, nem com as fontes de águas claras, com as pradarias forradas de flores, com casas confortáveis, com a vida familiar, nem que se lembre, eventualmente, das honrarias públicas, mas que ele apenas utilize o necessário, dando graças, e que considere esta vida como um caminho estrangeiro, vazio de toda afeição da carne. Pois somente assim, limitando nossa percepção, poderemos nos engajar inteiramente nas trilhas do caminho eterno.



56. A primeira Eva nos diz que a vista, o paladar e os demais sentidos dissipam a memória do coração quando deles nos servimos sem medida. Com efeito, enquanto ela não pode contemplar a árvore que trazia o fruto proibido, ela se lembrava cuidadosamente da ordem de Deus: é por isso que ela ainda se achava coberta pelas asas do eros divino, e ignorava sua nudez. Mas a partir do momento em que ficou encantada pela visão da árvore, que a desejou fortemente, que a tocou, que depois provou do seu fruto com ardente prazer, rapidamente foi levada à união dos corpos, abandonou-se à paixão de sua nudez, e entregou todo o seu desejo à fruição do presente, misturando sua própria falta à de Adão, por causa da doçura aparente do fruto[49]. A partir de então o intelecto humano tem grande dificuldade de se lembrar de Deus e de seus mandamentos. Portanto, passemos nós como cegos por esta vida que ama a ilusão, sem jamais desviarmos os olhos do fundo de nosso coração e lembrando-nos sempre de Deus. Pois é típico de uma filosofia verdadeiramente espiritual não dar asas ao amor – ao eros – das aparências. É o que nos ensina Jó a partir de sua experiência, quando nos diz: “Se meu coração seguisse meus olhos...[50]”. Tal filosofia é verdadeiramente a marca da mais extrema temperança.



57. Quem permanece constantemente em seu próprio coração ausenta-se de todos os encantos desta vida. Pois, caminhando em espírito, deixa de conhecer os desejos da carne[51]: este homem faz daí por diante suas rondas na cidadela das virtudes, que ele traz em si como guardiãs da cidade da pureza. É por isso que as máquinas de guerra dos demônios não podem contra ele, mesmo que as flechas do eros comum a todos alcancem por assim dizer as próprias janelas da natureza.



58. Quando nossa alma começa a não mais desejar os encantos da terra, o mais comum é que um espírito de acidia entre nela, não a deixando entregar-se ao ministério da palavra nem lhe concedendo o claro desejo dos bens futuros. O espírito de acídia desqualifica ao máximo esta vida passageira, porque ela não possui em si nenhuma obra digna de virtude; ele deprecia o próprio conhecimento, seja porque ele já foi concedido a muitos, seja porque ele nada nos promete de perfeito. Só poderemos escapar à tibieza e ao abandono desta paixão se mantivermos nossa reflexão dentro de limites muito apertados, contemplando unicamente a lembrança de Deus. Pois somente retornando com toda pressa ao seu próprio fervor o intelecto poderá fugir a esta dissipação irracional.



59. Quando fechamos todas as saídas do intelecto mantendo unicamente a lembrança de Deus, ele exige de nós absolutamente uma obra para coroar sua diligência. Devemos então dar-lhe a prece do nome do Senhor Jesus, como uma ocupação que responde totalmente ao seu objetivo. Com efeito, está escrito: “Ninguém diz 'Senhor Jesus', se não for pelo Espírito Santo[52]”. Mas que  o intelecto não deixe de contemplar assim nos seus próprios tesouros aquilo que ele diz de maneira concisa, a fim de não se desviar para determinadas imaginações. Aqueles que não cessam de meditar nas profundezas de seus corações este nome santo e glorioso poderão um dia contemplar a luz de seu intelecto. Mantido com extremo zelo pela reflexão, o nome, sentido com toda força, consume toda a sujeira que existe na superfície da alma. De fato, foi dito: “Nosso Deus é um fogo que devora[53]” o mal. É por isso que, daí em diante, o Senhor convida a alma a um grande amor de sua própria glória. Pois, mantendo-se pela memória do intelecto no fervor do coração, este nome glorioso e tão desejável implanta em nós o hábito de amar sua bondade, sem que nada se oponha daí para frente. Esta é, de fato, a pedra preciosa[54] que se pode adquirir vendendo todos os bens: quando a encontramos, encontramos uma alegria indescritível.



60. Uma é a alegria inicial, e outra a que leva à perfeição. A primeira não é isenta de imaginação. A segunda tem a potência da humildade. Entre elas existe uma tristeza amada por Deus e lágrimas sem dor. Pois “na grande sabedoria existe muito conhecimento, e quem acrescenta seu conhecimento acrescenta sua dor[55]”. É por isso que é preciso que a alma seja primeiramente chamada ao combate pela alegria inicial, para depois ser retomada e experimentada pela verdade do Espírito Santo sobre o mal que ela fez ou mesmo sobre as vaidades às quais ainda se entrega. Com efeito, está dito: “Você instruiu o homem recusando sua injustiça, e você consumiu sua alma como uma aranha[56]”. Depois que a refutação divina a tenha posto à prova, a alma receberá a energia da alegria fora de toda imaginação, na fervorosa lembrança de Deus.



61. Quando a alma é agitada pela cólera, ou perturbada pela embriaguez, ou atormentada por uma dura aflição, o intelecto (mesmo que se esforce) não consegue dominar a lembrança de Deus [a lembrança do Senhor Jesus]. Entenebrecido que está pelo efeito dessas paixões, ele se torna estranho ao seu próprio sentido. É porque o desejo de ver o intelecto levar além do esquecimento a marca de sua meditação não acha onde imprimir sua própria marca, uma vez que a memória da reflexão se endurece sob a aspereza das paixões. Mas quando ele se liberta, ainda que aquilo que ele deseje esteja escondido pelo esquecimento naquele instante, o intelecto recupera rapidamente sua própria atividade e reencontra com fervor este fruto tão desejado e tão salutar de sua procura. Pois ele carrega então esta graça que medita com a alma e que com ela chama pelo “Senhor Jesus Cristo”, como uma mãe que ensina o filho e que com ele repete a palavra “Pai”, até que, em lugar de qualquer outra expressão infantil, ela o torna capaz de chamar com clareza pelo pai, mesmo durante o sono. É por isso que o Apóstolo diz: “Da mesma forma, o Espírito vem em socorro de nossas fraquezas; porque nós não sabemos como orar. É o próprio Espírito que intercede por nós com gemidos inefáveis[57]”. Com efeito, uma vez que somos como crianças diante da perfeição da virtude, temos necessidade de sua ajuda para que, com todos os pensamentos penetrados e adoçados por sua indizível doçura, nos transportemos com toda nossa afeição para a lembrança e o amor de nosso Deus e nosso Pai. É por isso que, como diz ainda o próprio divino Paulo quando nos convida a nunca deixar de chamar regularmente a Deus “Pai”, devemos clamar por Deus: “Abba, Pai[58]”.



62. Mais ainda do que as outras paixões, o ardor costuma perturbar e agitar a alma; porém, às vezes, ele lhe presta grandes serviços. De fato, quando  o usamos calmamente contra os ímpios e os debochados de tida espécie, para salvá-los ou confundi-los, damos à alma um acréscimo de doçura, pois estamos de acordo com o objetivo de justiça e bondade de Deus. Também quando nos irritamos fortemente contra o pecado, damos virilidade àquilo que a alma tem de feminino. Da mesma forma, tremendo e nos rebelando contra este espírito de corrupção [tremendo em espírito contra o demônio da corrupção] quando nos encontramos desencorajados, erguemos nossos pensamentos acima da ostentação da morte – não duvidemos disto. Para nos ensinar isto, depois de haver chorado por duas vezes e de se ter perturbado diante do Hades, embora pudesse fazer o que quisesse por efeito de uma vontade sem perturbação, o Senhor devolveu a alma de Lázaro ao seu corpo[59]. Assim, me parece, foi mais como uma arma que Deus nosso Criador deu à nossa natureza o ardor saudável. Se Eva tivesse se servido dele contra a serpente, ela não teria sido levada ao prazer passional[60]. Parece-me, portanto, que quem, por zelo ou piedade, usou do ardor de forma saudável e sã, terá na balança retribuições de mais peso do que quem, pela lentidão de seu intelecto, nunca foi levado ao ardor. Realmente, o segundo parece um condutor inexperiente para acompanhar o coração humano. Mas o primeiro participa da corrida montado nos cavalos da virtude, e se volta até contra as fileiras dos demônios, conduzindo a quadriga da temperança no temor a Deus. Este é o carro de Israel que encontramos descrito na Escritura na ascensão do divino Elias[61]. Pois parece que Deus falou claramente das quatro virtudes aos Judeus. E foi por isso que este homem casto, tão forte e tão grande, que foi nutrido pela sabedoria, elevou-se no carro de fogo tomando como cavalos suas próprias virtudes, ao que me parece, quando o Espírito o transportou num sopro de fogo.



63. Quem participou do santo conhecimento e que provou a doçura de Deus não deve jamais se defender na justiça, nem tampouco suscitar processo contra outrem, tomando-lhe as vestes. Pois a justiça dos príncipes do mundo é muito inferior à justiça de Deus, ou melhor, não é nada comparada com ela. Que diferença haveria, de fato, entre os filhos de Deus e os filhos do século se o direito destes não se revelasse mais imperfeito diante da justiça daqueles, a ponto de que um é chamado direito humano e outro direito divino? É assim que nosso Senhor [Jesus], quando injuriado, não injuriava de volta e, quando sofria, não ameaçava[62], mas suportava em silêncio que lhe tomassem as vestes[63], afligindo-se por nossa salvação[64], e mais ainda, pedindo a Deus por aqueles que lhe faziam mal [chegando até a pedir ao Pai a salvação dos criminosos[65]]. Mas os homens deste mundo não cessarão de processar uns aos outros, desde que consigam com usura os bens arrolados no processo, sobretudo se receberem os juros antes que lhes seja atribuído o que lhes é devido, de tal modo que seu direito é, no mais das vezes, a origem de uma grande injustiça.



64. Não se deve, dizem (e ouvi isto de homens piedosos), deixar quem quer que seja nos despojar daquilo que temos para nosso sustento ou para sustento dos pobres, a fim de não nos tornarmos, por nossa resignação, ocasião de pecado para aqueles que nos fizeram mal, e principalmente se sofrermos isto da parte de cristãos. Não existe aí outra coisa senão a vontade de preferir seus bens a si mesmo, sob um pretexto irracional. Se, com efeito, relaxando a prece e a guarda de meu coração, eu começo pouco a pouco a contestar aqueles que querem me causar dano, e a me sentar nos vestíbulos dos tribunais, está claro que eu coloco aquilo que reivindico acima de minha salvação, para não dizer acima do mandamento salutar. E como seguirei eu o mandamento evangélico que me ordena: “Não reclame daquele que tomou seus bens[66]”, se não suporto com alegria, segundo a palavra do Apóstolo, ser despojado das coisas que possuo? Pois, depois de haver disputado e recuperado o que reclamei, não libertarei do pecado o homem ganancioso, uma vez que os tribunais corruptíveis não são capazes de definir o julgamento incorruptível de Deus. O acusado certamente não satisfará senão as leis com as quais defenderá sua causa. Assim, é melhor suportar a violência dos que querem nos prejudicar, e rezar por eles, a fim de que, pelo arrependimento, não pela restituição daquilo que roubaram, eles sejam absolvidos da cupidez de que são acusados. É o que quer a justiça de Deus: que recuperemos não o que nos foi tomado pela ganância, mas o ganancioso, liberto do pecado pelo arrependimento.



65. É conveniente e muito útil, desde que reconhecemos o caminho da piedade, vender o mais depressa possível tudo o que possuímos, distribuindo o recebido de acordo com o mandamento do Senhor[67], e não negligenciarmos esta ordem salutar sob pretexto de querermos cumprir o conjunto dos mandamentos. Acima de tudo, ganharemos com isto o belo desprendimento e a pobreza daí para diante desprovida de armadilhas, que eleva os pensamentos acima das injustiças e dos litígios, por não mais possuirmos em nós a matéria que acende o fogo com o qual queimam os homens gananciosos. Mas a humildade nos aquecerá mais do que as demais virtudes e, porque estaremos nus, ela nos fará repousar em seu seio, como uma mãe que toma em seus braços seu filhinho e o aquece quando, em sua simplicidade infantil, ele despiu-se e atirou longe suas roupas: sua inocência é tão grande que ele se alegra com sua nudez mais do que com os brocados de suas vestimentas. Com efeito, foi dito: “O Senhor protege os pequeninos. Eu me humilhei e ele me salvou[68]”.



66. É certamente a partir do que temos que o Senhor nos pedirá contas de nossa compaixão, não a partir do que não temos. Se, portanto, eu dispenso em pouco tempo, no temor a Deus e abrasado pelo fogo de seu mandamento bem-aventurado, tudo o que eu poderia dar em muitos anos, do que eu, que não tenho nada, posso ainda ser acusado? Alguém poderá dizer: “Como poderão ser socorridos os pobres daqui em diante, já que estavam acostumados a receber nossos bens, paulatinamente, dia após dia?” Que este homem aprenda a não insultar a Deus estendendo sua própria avareza. Pois Deus não deixará de prover às necessidades de sua criatura, assim côo era no princípio. Antes que este ou aquele se levantassem para compartilhar, os pobres não deixavam de ter nem roupas nem alimentos. É bom, portanto, que, uma vez que reconhecemos isto e servimos a Deus com nobreza, rejeitemos o sentimento e o amor próprio que a riqueza traz, desprezando nossos próprios desejos – vale dizer, desprezando nossa própria alma[69] – a fim de não nos regozijarmos por distribuirmos nosso dinheiro, considerando nossa alma como um nada, porque não fazemos bem algum. Com efeito, enquanto estamos cobertos de riquezas, sentimos uma grande alegria em distribuí-las (se acaso tivermos em nós a energia do bem), felizes que somos por nos colocarmos a serviço do mandamento divino. Mas quando esgotamos tudo, uma tristeza e uma humilhação profundas nos penetram, pois nada mais fazemos que seja digno da justiça. Então, a alma retorna a si mesma num grande abatimento, a fim de que aquilo que ela já não pode obter dia após dia pela compaixão lhe seja dado pela prece constante, pela paciência e pela humildade. Com efeito, foi dito: “O pobre e o indigente louvarão seu nome, ó Senhor[70]”. Assim, a ninguém Deus prepara o carisma da teologia, se a pessoa não preparar a si mesma despojando-se de todos os seus bens pela glória do Evangelho de Deus, a fim de anunciar, na indigência que ele ama, a boa nova da riqueza de seu Reino. É o que quis dizer com toda clareza aquele que disse: “Em sua bondade, Deus preparou seus bens para o pobre”, acrescentando: “O Senhor dará a palavra aos que anunciam com todas as suas forças a boa nova[71]”.



67. Todos os carismas de nosso Deus são bons e estão na origem de toda bondade. Mas nenhum inflama e transporta nosso coração para sua bondade tanto quanto a teologia. Pois sendo ela as primícias dos frutos da bondade de Deus, ela traz à alma dons que são seguramente os primeiros. Em primeiro lugar, ela nos predispõe a desprezar alegremente todo amor por esta vida, uma vez que no lugar dos desejos corruptíveis obtemos a riqueza indizível das palavras de Deus. Depois ela envolve de luz nosso intelecto pelo fogo que o transforma, e lhe permite tomar parte dos espíritos litúrgicos[72]. Assim preparados, bem amados, caminhemos fielmente para esta nobre virtude contemplativa que traz consigo todo desligamento; que, no esplendor de sua luz inefável, alimenta o intelecto com as palavras de Deus; e que, pelos santos profetas, em vista da indivisível comunhão, une a alma dotada de razão a Deus o Verbo, a fim de que, mesmo no meio dos homens, ó milagre, esta iniciadora divina que nos leva às bodas e nos une às palavras de Deus cante claramente os poderes do Senhor.



68. Na maior parte do tempo, nosso intelecto suporta com dificuldade a oração, devido ao caráter demasiado estreito e oculto da virtude que nos leva a orar. Mas ele se aplica alegremente à teologia por causa da amplidão e da liberdade das contemplações divinas. Portanto, a fim de não deixá-lo começar a falar demais ou mesmo a exaltar-se além da conta, devemos moderar a alegria e nos aplicarmos o máximo possível à prece, à salmódia e à leitura das Sagradas Escrituras, ainda que sem negligenciar as considerações dos que gostam de falar e cuja fé se reconhece nas palavras. Pois, ao fazermos isto, evitamos que o intelecto misture suas próprias palavras às palavras da graça e impedimos que ele, levado por um excesso de alegria e muitos discursos, seja levado à vanglória. No momento da contemplação, mantenhamos o intelecto longe de toda imaginação, permitindo a ele ter em lágrimas seus pensamentos. Pois, repousando no momento da hesíquia e penetrado pela doçura da oração, não apenas ele escapará das causas que mencionamos, como irá se renovar sempre, daí em diante, para se aplicar rapidamente e sem esforço às considerações divinas, progredindo ao mesmo tempo com grande humildade na contemplação do discernimento. Mas é preciso saber que se trata de uma oração acima de todo e qualquer espaço, que só está ao alcance daqueles que, com toda percepção e plena certeza, estão cheios da santa graça.



69. No começo, a graça costuma envolver e iluminar a alma com sua própria luz, permitindo a ela que a sinta profundamente. Mas quando começam os combates, é de um modo desconhecido, na maior parte do tempo, que ela opera seus mistérios na alma teológica, a fim de tanto nos deixar alegres com os sinais da contemplação divina quanto de manter longe da vanglória nosso conhecimento em meio aos combates. Devemos então nos afligir com moderação quando nos sentirmos abandonados, para que nos humilhemos daí por diante e para que nos submetamos sempre mais à glória do Senhor; e devemos nos alegrar quando chegar o momento de sermos levados nas asas da boa esperança. Com efeito, do mesmo modo como uma grande aflição mergulha a alma no desespero e na incredulidade, também uma grande alegria a incita à presunção (digo-o daqueles que ainda são crianças). Pois, entre a iluminação e a derelição, o meio é a prova. E entre a aflição e a alegria, o meio é a esperança. Com efeito, foi dito: “Eu esperei o Senhor com paciência, e ele veio a mim[73]”, e também: “Eu estava sobremodo aflito em meu coração, mas suas consolações alegraram minha alma[74]”.



70. Assim como as portas do banho, continuamente abertas, esvaem rapidamente o calor de dentro, da mesma forma a alma dissipa sua memória pela porta da voz, se quiser falar demais, ainda que o que disser for bom. O intelecto fica assim desprovido de pensamentos soberanos, e expõe, por assim dizer, um fluxo de pensamentos ao primeiro que se apresentar, pois já não tem o Espírito Santo para conservá-lo numa reflexão desprovida de imaginações. Pois o bem foge sempre do falatório, por ser estranho a todas as confusões e a todas as imaginações. O silêncio oportuno é uma boa virtude: esta não é outra coisa que a mãe dos pensamentos sábios.



71. Numerosas paixões perturbam a alma teológica no princípio: é o que nos mostra a revelação do conhecimento. De todas as paixões, as piores são a cólera e a aversão. Mas o que a alma experimenta aí não provém tanto dos demônios que fomentam as paixões quanto de seu próprio progresso. Com efeito, na medida em que a alma se deixa desviar pelos cuidados deste mundo, se ela vê a justiça espezinhada de um modo ou de outro, ela não treme nem se perturba. Pois, preocupada com seus próprios desejos, ela não vê a justiça de Deus. Mas quando ela começa a sobrepujar suas paixões graças ao desprezo pelas coisas presentes e ao amor a Deus, ela não suporta ver em si mesma nem em outro a transgressão da justiça, e ela se irrita contra os malfeitores e se perturba até ver os que ultrajaram a justiça render piedosamente homenagem à sua dignidade. É por isso que ela sente aversão pelos injustos e ama os justos. Pois é impossível ocultar o olhar da alma quando seu véu – quero dizer: o corpo – tecido pela temperança, se torna tão fino. No entanto, melhor do que sentir aversão pelos injustos é chorar por sua insensibilidade. Pois se estes homens são dignos de aversão, a razão não quer que esta perturbe a alma que ama a Deus; com efeito, quando a aversão se instala na alma, o conhecimento deixa de operar.



72. O intelecto teológico, cuja alma está cumulada de doçura e inflamada pelas palavras do próprio Deus, alcança os espaços da impassibilidade que se abrem largamente diante dele. De fato, foi dito: “As palavras do Senhor são palavras puras, como prata levada ao fogo e limpa de toda terra[75]”. O gnóstico, confortado pela experiência da energia divina, eleva-se acima das paixões. Mas também o teólogo, se se torna mais humilde, saboreia a experiência gnóstica, assim como o gnóstico, se manter infalivelmente o discernimento da alma, saboreia pouco a pouco a virtude contemplativa. Pois jamais acontece que os dois carismas caibam apenas ao gnóstico, ou apenas ao teólogo, a fim de que, admirando cada um deles aquilo que um tem a mais do que o outro, a humildade neles abunde com o zelo da justiça. É por isso que o Apóstolo disse: “A um o Espírito dá uma palavra de sabedoria, enquanto a outro é dada uma palavra de conhecimento pelo mesmo Espírito[76]”.



73. Quando a alma transborda de seus frutos naturais, ela canta com mais força a salmódia e daí para diante quer rezar em voz alta. Mas quando ela é levada pela energia do Espírito Santo, ela canta com abandono e doçura, e ora apenas com o coração. A primeira disposição é acompanhada de uma alegria ostensiva. A segunda é seguida de lágrimas espirituais. Depois surge no coração um regozijo inflamado de hesíquia. Pois a lembrança que a moderação da voz mantém aquecida prepara o coração para receber pensamentos doces, semelhantes às lágrimas. A partir daí, enquanto se espera a alegria da colheita, é verdadeiramente possível ver as sementes da oração semeadas com lágrimas na terra do coração[77]. Da mesma forma, quando estamos esmagados por um grande desencorajamento, devemos cantar a salmódia com uma voz mais forte, fazendo ressoar a alma com a alegria da esperança, até que esta densa nuvem seja dissipada pelos ventos da melodia.



74. Quando a alma começa a se conhecer, ela traz em si um calor e um pudor que agrada a Deus. Pois uma vez que ela não é mais perturbada pelos cuidados desta vida, ela engendra um eros que tende para a paz, buscando convenientemente o Deus da paz. Mas ela se separa rapidamente deste desejo, seja porque os sentidos traem a memória, seja porque a natureza, por indigência, dispensa depressa demais seu próprio bem. É por isso que os sábios gregos não obtinham aquilo que pensavam obter com a temperança, porque seu intelecto não era animado pela sabedoria eterna e verdadeira. Ora, o calor que o Espírito Santo dá ao coração é primeiramente agradável e constante, chamando todas as partes da alma para Deus e não se deixando escapar fora do coração, mas alegrando inteiramente o homem num amor e numa felicidade infinita. Depois de haver conhecido o amor, deve-se chegar à alegria. O amor natural é sinal de que a natureza está de certo modo mantida em boa saúde pela temperança, mas ele não consegue levar o intelecto à impassibilidade, como o amor espiritual.



75. O ar que nos envolve permanece puro quando sopra o vento norte sobre a criação, pois a natureza deste vento é sutil e suscita a serenidade. Mas quando sopra o vento sul, o ar fica como que espesso pela natureza deste vento que suscita a bruma e que traz das regiões de onde vem, devido a um certo parentesco, nuvens que cobrem toda a terra habitada. O mesmo acontece com a alma. Quando ela é levada pelo sopro do Espírito verdadeiro e santo, ela se coloca inteiramente fora da bruma demoníaca. Mas quando o sopro do espírito da ilusão a toma com violência, ela fica toda coberta pelas nuvens do pecado. É preciso que voltemos sempre, com todas as forças, nossa resolução para o sopro purificador e vivificante do Espírito Santo, ou seja, para o vento que o profeta Ezequiel, na luz do conhecimento, diz vir do norte[78], a fim de que a parte contemplativa de nossa alma permaneça sempre serena, o máximo possível, e que, vendo no espaço os esplendores da luz, possamos nos aplicar sem erro às contemplações divinas. Pois é aí que está a luz do verdadeiro conhecimento.



76. Alguns imaginaram que a graça e o pecado, ou seja, o espírito da verdade e o espírito do erro[79], estão escondidos juntos no intelecto dos batizados. Eles dizem que uma das faces estimula o intelecto para o bem, e a outra o faz em sentido contrário. Quanto a mim, as divinas Escrituras e o próprio sentido do intelecto me levaram a compreender que antes do santo batismo, a graça conduz de fora a alma ao bem, enquanto Satanás se esconde nas suas profundezas e tenta fechar todas as saídas que levam a alma para a direita. Mas a partir do momento em que nascemos de novo, o demônio se acha fora, e a graça dentro. Então descobrimos o seguinte: assim como antes era o erro que dominava a alma, depois do batismo é a verdade que a domina. Satanás não age menos sobre a alma do que antes, e inclusive o faz de pior maneira, não por nela residir junto com a graça, apraza a Deus, mas buscando, por meio dos humores do corpo, mergulhar o intelecto nos vapores com que a cobre através da doçura dos prazeres irracionais. Ora, isto acontece porque Deus permite, a fim de que, passando pela tempestade, pelo fogo e pela prova, o homem alcance a felicidade do bem. Com efeito, foi dito: “Nós passamos pelo fogo e pela água, e você nos conduziu ao frescor[80]”.



77. A partir do instante em que somos batizados, como eu disse, a graça se esconde na profundeza de nosso intelecto, subtraindo sua presença ao próprio sentido deste. Mas quando começamos, com toda decisão, a sermos tomados pelo amor a Deus, então a graça, em sua linguagem inefável, pelo sentido do intelecto, comunica à alma uma parte de seus próprios bens. A partir daí, aquele que quiser assegurar-se de possuir em si esta descoberta começa a querer se desembaraçar com alegria de todos os bens deste mundo presente, a fim de adquirir verdadeiramente o campo no qual achou escondido o tesouro da vida[81]. Com efeito, quando nos desembaraçamos da riqueza deste mundo é que encontramos o bem em que está oculta a graça de Deus. Pois é na medida em que a alma progride que o dom divino manifesta sua bondade no intelecto. Entretanto, agora o Senhor permite que a alma seja atormentada pelos demônios, a fim de ensinar-lhe o discernimento entre o bem e o mal e de torná-la mais humilde, na medida em que ela experimenta, quando purificada, uma grande vergonha diante da infâmia dos pensamentos demoníacos.



78. Somos feitos à imagem de Deus[82] pelo movimento do intelecto na alma. Pois o corpo é como que a morada desta. Mas a partir do momento em que, pela transgressão de Adão, não apenas os traços de sua marca na alma foram apagados como ainda nosso corpo tombou sob o golpe da corrupção, o santo Verbo de Deus teve que encarnar-se, concedendo-nos pelo batismo em Deus a água da salvação que nos permite nascer de novo. Assim renascemos pela água, como sendo a energia vivificante do Espírito Santo. Somos purificados tanto na alma como no corpo, se nos encaminhamos a Deus com todas as nossas forças: o Espírito Santo faz em nós sua morada, e o pecado foge para bem longe. Pois não é possível que existam na alma, como pensam alguns, dois lado de sua marca, que é única e simples. Pois se, como garantia da semelhança, a graça divina, por intermédio do santo batismo, com infinita afeição se adapta aos traços da imagem, aonde encontrará lugar a face do maligno, ainda mais se não há nada em comum entre a luz e as trevas[83]? Assim nós, os corredores dos combates sagrados, acreditamos que a serpente multiforme é expulsa dos tesouros do intelecto pelo banho de incorruptibilidade. Mas não nos perguntamos por que, depois do batismo, ainda temos maus pensamentos misturados aos bons. Pois o banho de santidade limpa a sujeira de nosso pecado, mas não muda ainda a dualidade de nosso querer e não impede que os demônios nos combatam ou nos mantenham na ilusão, a fim de que, tomando as armas da justiça pelo poder de Deus[84], guardemos aquilo que deveríamos ter guardado quando ainda estávamos em estado natural.



79. Satanás, como já disse, é expulso da alma pelo santo batismo. Mas pelas razões que indiquei, lhe é permitido agir sobre ela por intermédio do corpo. Pois a graça de Deus tem sua morada na profundeza da própria alma, ou seja, no intelecto. Com efeito, foi dito que a glória da filha do Rei reside no interior[85]: ela não se mostra aos demônios. É por isso que sentimos brotar das próprias profundezas de nosso coração o desejo divino, quando nos lembramos ardentemente de Deus. Mas então os espíritos maus saltam para  os sentidos do corpo e neles se escondem: aproveitando-se do relaxamento da carne, eles agem sobre aqueles cujas almas ainda se encontram na infância. Assim, portanto, nosso intelecto, segundo o Apóstolo divino, regozija-se sempre na lei do Espírito[86], enquanto que a carne quer se deixar levar sob o impulso dos prazeres. Pelo sentido do intelecto, a graça enche o corpo de júbilo indizível naqueles que progridem no conhecimento. Mas os demônios, por meios dos sentidos do corpo, ao nos encontrarem negligentes e displicentes em estado de piedade, capturam a alma, e com exortações os bandidos a constrangem a fazer o que ela não quer.



80. Aqueles que afirmam que as duas faces da graça e do pecado estão juntas nos corações dos fiéis (porque o Evangelista disse: “A luz brilhou no meio das trevas, mas as trevas não a compreenderam[87]”, pretendem demonstrar sua própria conjectura declarando que o esplendor divino não é absolutamente manchado pela frequentação do maligno, mesmo que, dizem eles, a luz de Deus se aproxime na alma das trevas do demônio. Mas é a própria palavra evangélica que os acusa de pensar fora da Santa Escritura; assim, uma vez que o Verbo de Deus, a luz verdadeira, quis se manifestar à criação em sua própria carne, acendendo em nós, em seu incomensurável amor pelo homem, a luz de seu conhecimento divino o espírito do mundo não compreendeu o desígnio de Deus, ou seja, desconheceu-o – pois as preocupações da carne são inimigas de Deus[88] – o Teólogo[89] se utilizou daquelas palavras. E com toda justiça, após uma breve transição, o maravilhoso Evangelista acrescenta: “Ele era a verdadeira luz, que ilumina todo homem vindo ao mundo (ele quis dizer: que guia e vivifica). Ele estava no mundo e o mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu. Ele veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas aos que o receberam, aos que creram em seu Nome, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus[90]”. E o sábio Paulo, interpretando “eles não o receberam”, diz: “Não que eu já tenha alcançado o objetivo ou que já tenha chegado à perfeição, mas eu corro para a meta a fim de conquistá-la, uma vez que eu mesmo já fui conquistado por Jesus Cristo[91]”. Assim, não é de Satanás que o Evangelista diz que ele não recebeu a luz verdadeira, pois desde o começo ela lhe foi estranha, uma vez que ela não brilha nele. Mas ele estigmatiza com estas palavras os homens que entendem os poderes e as maravilhas [do Filho] de Deus, mas que, devido ao seu coração entenebrecido, não desejam se aproximar da luz de seu conhecimento.



81. A palavra do conhecimento nos ensina que existem como que dois tipos de espíritos maus. Dentre eles, alguns são, por assim dizer, mais sutis, enquanto outros são mais materiais. Os mais sutis combatem a alma, e os outros costumam capturar a carne com o grude de suas solicitações. É por isso que os demônios que combatem a alma e os que combatem o corpo estão sempre em luta uns contra os outros, embora tanto uns como outros tentem igualmente prejudicar os homens. Assim, quando a graça não reside no homem, eles se aninham nas profundezas do coração, como verdadeiras serpentes, e não deixam a alma voltar seu olhar para o desejo do bem. E quando a graça se esconde no intelecto, eles passam a percorrer os espaços do coração como nuvens negras, transformados nas paixões do pecado e em todos os tipos de distrações, a fim de roubar a memória do intelecto e de arrancá-la de sua relação com a graça. Assim, quando os demônios que perturbam a alma nos consomem nas paixões psíquicas, em especial na presunção que é a mãe de todos os males, é possível confundirmos o influxo de nosso amor pela vanglória, sobretudo se pensarmos na dissolução de nosso corpo. Devemos fazer o mesmo quando os demônios que combatem o corpo tentam ferver em nosso coração seus desejos infames. Pois este pensamento pode extinguir, pela lembrança de Deus, todas as espécies de espíritos maus. Mas se com estas considerações os demônios da alma nos inspirarem um desprezo infinito pela natureza humana, por não ter esta nenhum valor por causa da carne (é o que eles gostam de fazer quando querem nos atormentar com tais pensamentos), devemos então refletir sobre a honra e a glória do Reino celeste, sem esquecer das amarguras do Juízo, a fim de que, com um superemos o desencorajamento e, como o outro, retomemos a compaixão em nosso coração.



82. Nosso Senhor nos ensina nos Evangelhos que Satanás, ao encontrar em seu regresso a casa limpa e vazia, ou seja, um coração estéril, ele chama então sete espíritos piores do que ele e nela entra e se instala, tornando ainda pior o estado do homem do que era a princípio[92]. Devemos entender com isto que Satanás não consegue entrar nem se manter nas profundezas do coração quando o Espírito Santo está em nós. Mas o maravilhoso Paulo também nos ensina claramente o sentido daquilo que devemos ver aí. Ele considera em primeiro lugar a questão referindo-se à ciência do combate. Ele diz o seguinte: “Eu me regozijo na lei de Deus conforme o homem interior. Mas vejo em meus membros uma outra lei, que faz guerra à lei de meu intelecto e o captura pela lei do pecado que reside nos membros[93]”. Depois, referindo-se à perfeição, ele diz: “Não existe mais condenação contra aqueles que, em Jesus Cristo, não marcham segundo a carne. Pois a lei do Espírito da vida me libertou da lei do pecado e da morte[94]. Ele diz ainda, em outra passagem, para nos ensinar novamente que, partindo do corpo, Satanás combate a alma que tem parte com o Espírito Santo: “Permaneçam em pé, cingidos com o cinto da verdade, revestidos com a couraça da justiça e calçados com a prontidão em anunciar o evangelho da paz. Levem sempre o escudo da fé, com o qual vocês poderão extinguir todas as flechas incendiárias do maligno. Recebam também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus[95]”. Uma coisa é o cativeiro, outra coisa é a luta. Pois o primeiro significa uma deportação violenta, enquanto a outra indica um combate entre duas forças iguais. É por isso que o Apóstolo diz que o diabo ataca também com flechas incendiárias as almas que carregam em si a Cristo. Pois quem não domina seu adversário utiliza em todos os casos flechas contra ele, a fim de poder expulsar com flechas aladas aquele que combate à distância. O mesmo acontece com Satanás: uma vez que ele não pode, por causa da graça, aninhar-se no intelecto  daqueles que combatem, ele voa sobre os humores e aninha-se no corpo, cuja complacência lhe permite atirar contra a alma. É por isso que é preciso consumir o corpo numa certa medida, a fim de que o intelecto não escorregue na vertente dos prazeres, levada pelos humores daquele. Devemos estar convencidos destas palavras do Apóstolo, quando ele diz que o intelecto dos que combatem é animado pela luz de Deus, e que assim ele se dobra à lei divina e se regozija nela. Mas a carne, por causa de sua complacência, se volta de bom grado para os espíritos maus. É por isso que às vezes ela é constrangida a servir à sua malícia. Assim fica demonstrado que o intelecto não pode ser a um tempo morada de Deus e do diabo. Pois como é possível que eu me dobre à lei divina em meu intelecto e ao mesmo tempo esteja subjugado pela lei do pecado em minha carne[96], como é possível que meu intelecto se erga com toda liberdade para combater os demônios dobrando-se de bom grado à bondade da graça enquanto o corpo se volta com mais gosto ainda para o odor dos prazeres irracionais, uma vez que é permitido aos demônios, como eu disse, aninharem-se naqueles que combatem?  Pois foi dito: “Eu sei que o bem não habita em mim, na minha carne[97]”, portanto também naqueles que resistem ao pecado em meio dos combates, pois o Apóstolo não diz outra coisa de si mesmo. Os demônios combatem o intelecto, mas também tentam, com a cola de suas solicitações, levar a carne a relaxar na vertente dos prazeres. Pois um justo julgamento lhes permitiu de uma vez todas residir nas profundezas do corpo, mesmo naqueles que levam um renhido combate contra o pecado, pois a liberdade do coração humano está sempre à prova. Mas se alguém é capaz de morrer pelas penas que se impõe enquanto está nesta vida, ele se torna inteiramente morada do Espírito Santo. Pois este homem, antes de morrer, já ressuscitou: assim era o bem-aventurado Paulo e todos os que lutaram e lutam contra o pecado.



83. O coração carrega em si tanto os bons quanto os maus pensamentos; não que por natureza ele suscite a que não é bom, mas ele guarda suas lembranças como um hábito, desde o primeiro engano, de uma vez por todas, ainda que ele conceba a maior parte dos maus pensamentos devido à amargura dos demônios. Nós mesmos os sentimos como se proviessem do coração, e é por isso que alguns imaginaram que o pecado reside no intelecto juntamente com a graça. É também por isso, afirmam eles, que o Senhor disse: “O que sai da boca vem do coração, e aí está o que mancha o homem; pois do coração saem os maus pensamentos, os adultérios[98], etc.” Eles não sabem que nosso intelecto, cuja atividade é uma percepção muito sutil, se apropria pela carne da ação dos pensamentos que lhes são sugeridos pelos maus espíritos, quando, de um modo que ignoramos, ao se misturarem, a alma é conduzida pela complacência do corpo. Pois a carne adora, acima de qualquer medida, ser acariciada pelo engano. É por isso que os pensamentos semeados na alma pelos demônios parece, provir do coração. E nos nos apropriamos deles, quando queremos agradá-lo. É isto que o Senhor condena, como suas próprias palavras demonstram ao usar a expressão que mencionamos. Pois aquele que se compraz nos pensamentos que lhe são sugeridos pela malícia de Satanás e que inscreve sua lembrança em seu coração, passará a suscitá-los daí em diante como se fossem frutos de sua própria reflexão.



84. O Senhor diz nos Evangelhos: “O homem forte não pode ser expulso de sua morada se aquele que é mais forte do que ele não o amarrar, o despojar e o fizer sair[99]”. Como é possível que aquele que foi expulso e confundido possa entrar novamente e viver com o verdadeiro mestre, que repousa em sua própria casa? Pois um rei que um dia combateu um tirano rebelde não admitirá que ele viva consigo no mesmo palácio real. Ele antes o fará perecer no campo ou, depois de amarrado, o entregará a seus próprios soldados, para um longo castigo e uma  morte miserável.



85. Se pelo fato de termos tanto pensamentos bons quanto maus pensamentos alguém crer que o Espírito Santo e o diabo residam juntos no intelecto, que ele aprenda que isto decorre do fato de que ainda não termos experimentado e visto o quanto o Senhor é bom[100]. Pois antes de tudo, com eu já disse, a graça oculta sua presença nos batizados, aguardando uma resolução da alma. Pois só quando o homem se volta inteiramente para o Senhor, é que ela manifesta sua presença imperceptivelmente no coração. E novamente ela aguarda o movimento da alma, deixando que as flechas demoníacas cheguem até seu sentido mais profundo, para que ele busque a Deus com uma resolução mais ardente e com uma disposição amis humilde. Se daí por diante o homem começa a avançar observando os mandamentos e invocando o Senhor Jesus sem cessar, então o fogo da santa graça consome até os sentidos exteriores do coração, queimando totalmente as ervas daninhas da terra humana. A partir daí, os desígnios demoníacos se detêm longe deste lugar: com dificuldade eles atingem a parte passional da alma. Mas quando o homem que combate amarrou em si todas as virtudes e singularmente a perfeita despossessão, então a graça ilumina por meio de uma perfeição mais profunda toda sua natureza, aquecendo-o, daí para frente, para o grande amor a Deus. É então que, longe dos sentidos do corpo, as flechas demoníacas se extinguem. Pois a brisa do Espírito Santo, que leva ao coração os ventos da paz, extingue, ainda no ar, as flechas incendiárias do demônio. Entretanto, mesmo aquele que chegou a este ponto, Deus às vezes o abandona à malícia dos demônio, deixando então seu intelecto privado de luz, a fim de que nossa liberdade não seja entravada pelos laços da graça, não apenas por ter sido o pecado vencido no combate, mas também porque o homem deve progredir ainda na experiência espiritual. Pois, diante da riqueza de Deus que nos instrui e tem como ponto de honra nos amar, aquilo que nós consideramos como a perfeição daquele que se instrui é ainda imperfeita, ainda que fosse possível subir pela progressão da penas toda a escada que foi mostrada a Jacó[101].



86. O próprio Senhor disse que Satanás caiu do céu [como um raio][102] a fim de que o demônio disforme não pudesse voltar seus olhos para as moradas dos santos anjos. Então como é possível que aquele que não foi considerado digno sequer de comungar com os bons servidores habitar ao mesmo tempo que Deus no intelecto humano?  Se for dito que isto acontece porque Deus se retira, não diremos mais nada. Pois o abandono que nos instrui não priva absolutamente a alma da luz divina. É somente a graça, como eu disse, que, no mais das vezes, esconde sua presença no intelecto, a fim de empurrar a alma, por assim dizer, por meio da amargura dos demônios, a buscar por si própria, como todo o temor e mais humildade ainda, o socorro de Deus, aprendendo pouco a pouco a reconhecer a malícia do seu inimigo, como uma mãe que, vendo o filho recusar o aleitamento, o afasta um pouco de seus braços, para que, assustado por homens assustadores e feras de todos os tipos que o cercam, ele retorne com grande temor e lágrimas ao seio maternal. O abandono de Deus, que surge quando ele se afasta, deixa cativa dos demônios a alma que não quer carregar Deus. Ora, nós não somos crianças perdidas[103], se Deus quiser. Acreditamos ser crianças fiéis à graça de Deus, que nos aleita em meio a pequenos abandonos e freqüentes consolações, a fim de que, por sua bondade, nos apressemos a alcançar o estado do homem perfeito, no grau da plenitude de Cristo[104].



87. O abandono que nos instrui leva à alma uma grande tristeza, uma grande humildade e também um justo desespero, para que aquilo que nela ama a vanglória e se deixa levar pela paixão, retorne à humildade. Mas logo o abandono leva ao coração o temor a Deus, as lágrimas da confissão e um grande desejo do mais belo silêncio. Ao contrário, o abandono que nos sobrevém quando Deus se afasta deixa a alma se encher de desespero, infidelidade, orgulho e cólera. É preciso, portanto, que tenhamos a experiência dos dois tipos de abandono, para voltar a Deus conforme o modo que convém a cada qual. No primeiro abandono, devemos a um tempo prestar-lhe contas e lhe render graças, na medida em que ele castiga o desregramento de nosa vontade retirando-nos o consolo, a fim de nos ensinar, como um bom pai, a diferença entre virtude e vício. No segundo abandono, devemos sem descanso confessar nossos pecados, derramar lágrimas sem cessar e nos dedicar a uma anacorese mais rigorosa  para podermos, acrescentando mais penas, suplicar a Deus que volte seu olhar para nossos corações como antes. Mas é preciso saber o seguinte: quando o combate se dá realmente entre a alma e Satanás –  refiro-me ao abandono que nos instrui -  a graça se retira, como eu já disse, mas ela retorna em socorro da alma sem se deixar dar a conhecer, a fim de mostrar aos seus inimigos que a vitória da alma não pertence senão a ela.



88. Quando, durante o inverno, alguém se põe em pé ao ar livre e se volta inteiramente para o oriente ao nascer do dia, toda a parte da frente de seu corpo é aquecida pelo sol, mas seu dorso fica privado de calor porque o sol não está acima de sua cabeça. Do mesmo modo, os que estão no começo da vida espiritual têm seu coração parcialmente aquecido pela santa graça: é por isso que seu intelecto começa a dar os frutos dos pensamentos espirituais. Mas o coração, naquilo que ele tem de visível, continua a pensar segundo a carne, pois todos os seus membros, em sua percepção profunda, ainda não se acham iluminados pela santa luz da graça. Alguns não compreenderam isto, e acham que existem como que duas realidades opostas no intelecto daqueles que combatem. Assim, pode acontecer que a alma, no mesmo tempo, conceba o que é bom e o que é ruim, assim como o homem de nosso exemplo, igualmente tocado pelo sol, está ao mesmo tempo frio e quente. Com efeito, a partir do momento em que nosso intelecto escorregou na dualidade do conhecimento, ele fica forçado, ainda que não queira, a produzir no mesmo instante pensamentos belos e maus pensamentos, em especial naqueles que alcançaram a finura do discernimento. No mesmo momento em que eles se esforçam por conceber sempre o bem, imediatamente eles se lembram do mal. Pois, depois da desobediência de Adão, a memória do homem ficou dividida em um duplo pensamento. Mas se começarmos, com zelo ardente, a cumprir os mandamentos de Deus, a graça que ilumina todos os nossos sentidos na profundidade de sua percepção, consume por assim dizer nossos próprios pensamentos e, cumulando de doçura nosso coração numa paz cheia de inalterável afeto, nos prepara para pensarmos espiritualmente e não mais segundo a carne. É isto o que acontece continuamente com aqueles que se aproximam da perfeição: eles têm sem cessar em seus corações a lembrança do Senhor Jesus.



89. Pelo batismo do novo nascimento, a santa graça nos concede dois bens, dos quais um ultrapassa o outro infinitamente. O primeiro, ela nos concede imediatamente: pois ela nos renova na própria água e faz brilhar todos os traços da alma, ou seja, a imagem de Deus, apagando todas as dobras de nossos pecados. Quanto ao outro, ela aguarda para colocá-lo em movimento junto conosco: é a semelhança. Pois, assim como os pintores traçam primeiro em uma só cor a forma do homem de quem estão fazendo um retrato, para depois, fazendo florescer cor sobre cor, representar até o aspecto dos fios dos cabelos do modelo que estão pintando, também a santa graça de Deus, pelo batismo, concede primeiro a imagem segundo a qual foi de início criado o homem, para só então, vendo-nos desejar com toda nossa resolução a beleza da semelhança e permanecermos nus e calmos enquanto ela trabalha, fazendo florescer virtude sobre virtude e reproduzindo de glória em glória o aspecto da alma, conferir-lhe a marca da semelhança[105]. Neste momento os sentidos nos mostrarão que fomos feitos à semelhança. Mas somente pela iluminação conheceremos a perfeição da semelhança. Pois o intelecto recebe todas as virtudes dos sentidos, progredindo numa medida e num ritmo indizíveis. Mas ninguém pode adquirir o amor espiritual sem ter sido iluminado em toda sua plenitude pelo Espírito Santo. Pois se o intelecto não receber a perfeição da semelhança pela luz divina, ele pode até possuir quase todas as virtudes, mas continuará desprovido do amor perfeito. Somente quando o homem se torna semelhante a Deus – quero dizer, na medida em que o homem pode se tornar semelhante a Deus – é que ele passa a trazer em si a semelhança do amor divino. Pois, assim como nos retratos a cor mais viva, acrescentada à imagem, conserva até no sorriso a semelhança do modelo, também naqueles que a graça divina pintou à semelhança de Deus, a iluminação do amor, quando acrescentada, mostra que a imagem alcançou inteiramente a semelhança. Com efeito, nenhuma outra virtude que não o amor pode conferir a impassibilidade à alma. Pois o amor é o cumprimento da lei[106]. Assim, nosso homem interior se renova dia após dia no gosto pelo amor[107], e ele se completa na perfeição deste amor.



90. Quando começamos a evoluir, se estivermos ardentemente tomados pela virtude de Deus, o Espírito Santo nos fará provar na alma a doçura de Deus com toda percepção e plena certeza, a fim de que o intelecto possa conhecer com exata ciência a perfeita recompensa das penas dedicadas ao amor de Deus. Mas na maior parte do tempo, ele prefere esconder a magnificência deste dom vivificante, para que, mesmo que coloquemos em movimento todas as outras virtudes, continuemos a nos considerar como nada, por não termos tido ainda, por assim dizer, a experiência do santo amor. É neste momento que o demônio da aversão perturba as almas daqueles que combatem, a ponto de eles acusarem de aversão mesmo os que os amam e de sentirem a ação corruptora da aversão até no beijo. A partir daí a alma sofre por carregar a lembrança do amor espiritual ao mesmo tempo em que lhe é impossível chegar a senti-lo, por não ter chegado até o fundo de suas penas. Nestes tempos, é preciso violentar-se para fazê-lo trabalhar, a fim de poder senti-lo com toda a percepção e com plena certeza. Pois ninguém é capaz de adquirir sua perfeição enquanto ainda estiver imerso nesta carne. Só os santos o conseguem, que alcançaram o martírio e a perfeita confissão, pois todo aquele que chegar a este ponto transforma-se por inteiro e torna-se fácil para ele não mais desejar nenhum alimento. De fato, que desejo dos bens deste mundo terá quem se alimenta do amor divino? É por isso que o sábio Paulo, o grande vaso do conhecimento, diz o seguinte ao nos anunciar, a partir de sua plena certeza, a boa nova das delícias futuras dos justos: “O reino de Deus não é comida e bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo[108]”. Tal é o fruto do amor perfeito. Portanto, aqueles que progridem em direção à perfeição podem continuamente experimentá-lo aqui em baixo. Mas ninguém consegue adquiri-lo perfeitamente se aquilo que é mortal não tiver sido perfeitamente enterrado pela vida[109].



91. Um dos que amam a Deus com uma resolução insaciável disse-me o seguinte: “Eu queria conhecer por experiência o amor de Deus, e o bom Deus mo concedeu permitindo-me sentir profundamente este amor e dele ter uma certeza absoluta. E eu provei esta energia de tal forma, dizia ele, que então minha alma, com uma alegria e um amor indizíveis, queimava por sair do corpo e se dirigir para o Senhor, e ela se sentia mergulhada na ignorância desta vida passageira”. Ora, quem teve a experiência deste amor não se irrita contra quem o ofende, ainda que seja mil vezes ofendido e lesado por ele; pois pode acontecer também que tal homem, que aceita a cada dia todas as penas, tenha que passar por algumas provas. Mas ele se sentirá como que ligado à alma daquele que o ultrajou ou mesmo que o lesou. Ele não se inflamará senão contra aqueles que ou bem exploram os pobres ou que dirigem palavras iníquas a Deus, como diz a Escritura[110], ou ainda que vivem de uma maneira ou de outra no mal. Pois quem ama o Senhor mais do que a si mesmo, ou melhor, que não ama a si mesmo mas somente a Deus, não reivindicará para si nenhuma honra, mas desejará ver honrada apenas a justiça Daquele que o honrou com uma honraria eterna. E ele não deverá isto a uma vontade menor, mas terá esta disposição como um estado, em sua grande experiência do amor de Deus. Por outro lado, devemos saber que aquele que é levado por Deus a tamanho amor, eleva-se acima da própria fé no momento em que age este amor, pois ele abraça daí por diante, na percepção do coração e por meio deste grande amor, Aquele que o honra pela fé. É o que nos ensina claramente São Paulo, quando diz: “Agora permanecem estas três virtudes: a fé, a esperança e o amor. Mas a maior dentre elas é o amor[111]”. Pois aquele que abraça a Deus na riqueza do amor, como eu disse, é tornado maior do que sua própria fé: ele permanece inteiramente dentro de seu desejo.



92. Durante sua ação, o santo conhecimento nos prepara uma grande aflição quando, por ultrajarmos alguém sob o ímpeto de uma irritação, fazemos deste nosso inimigo. É por isso que ela não cessa de atiçar nossa consciência até que, a custa de implorar, devolvemos à sua anterior disposição aquele que foi ultrajado. Mas quando um homem do mundo se irrita injustamente contra nós,  esta mesma consciência, abrindo-se à suprema compunção, no limite, nos leva  a nos lamentarmos e a nos tornarmos inquietos, por nos termos tornado motivo de escândalo para todos os homens deste século, e então o próprio intelecto se torna incapaz de alcançar a teologia. Pois a palavra do conhecimento, que é inteiramente amor, não deixa a reflexão estender-se até conceber as considerações divinas se, antes, não recebermos com amor a quem inopinadamente se irritou contra nós. Mas se este homem não o desejar, ou se, retirando-se, afastar-se do lugar  em que vivemos, caberá a nós, dilatando nosa alma, acrescentar à nossa disposição os traços de seu rosto para assim cumprir do fundo do coração as leis do amor. Com efeito, foi dito que quem quiser possuir o conhecimento de Deus deve considerar com pensamentos apaziguadores, em sua reflexão, os rostos daqueles que o irritaram. Se fizermos isto, não apenas nosso intelecto se dirigirá sem titubear para a teologia, como ainda ele se elevará com grande liberdade até o amor de Deus, passando do primeiro ao segundo degrau sem encontrar obstáculo.



93. O caminho da virtude, para aqueles que começam a enamorar-se da piedade, parece rude e bem triste, não que o seja, mas porque, desde o seio materno a natureza humana vive com toda liberdade no meio dos prazeres. Mas para aqueles que conseguiram ultrapassar este meio, ele se mostra inteiro acolhedor e repousante. Pois os maus hábitos, dominados pela energia do bem em tais homens, desaparecem com os prazeres desprovidos de razão. Daí por diante a alma percorre com alegria os caminhos das virtudes. É por isso que o Senhor, quando nos conduz pela via da salvação, diz que é estreita e apertada esta via que conduz à vida e que bem poucos passam por ela[112]. Mas aos que querem, com grande resolução, emprenhar-se em guardar seus santos mandamentos, ele diz: “Pois meu jugo é doce e minha carga é leve[113]”. É preciso, portanto, no começo dos combates, cumprir à base de força de vontade os santos mandamentos de Deus, para que nosso bom Senhor, vendo nosso olhar e nossas penas, nos envie sua vontade o mais depressa possível, a nós que servimos com grande prazer suas gloriosas vontades. Pois é então o Senhor que prepara a vontade[114], de tal maneira que, com grande alegria, não cessemos de cumprir o bem. E então sentiremos que Deus opera em nós o querer e o fazer[115], por sua benevolência.



94. Assim como a cera não pode receber o selo que é aplicado sobre ela, se antes não for aquecida e amolecida por um longo tempo, também o homem, se não conheceu as provações das penas e das fraquezas, não pode portar em si o selo da virtude de Deus. É por isso que Deus disse ao maravilhoso Paulo: “Minha graça lhe basta. Pois meu poder se realiza na fraqueza[116]”. E o próprio Apóstolo se glorifica dizendo: “É assim de todo o coração que eu me glorificarei de minhas fraquezas, a fim de permaneça sobre mim o poder de Cristo[117]”. E também está escrito nos Provérbios: “O Senhor castiga a quem ele ama, ele corrige os filhos a quem reconhece[118]”. O Apóstolo chama de fraquezas as revoltas dos inimigos da cruz[119], que o assaltavam continuamente, a ele e aos santos de então, para que não se elevassem além da medida, como ele próprio o disse, por causa de eminência das revelações. Ao contrário, pela humildade, eles se mantinham dentro das vias da perfeição, guardando santamente o dom divino em meio ao desprezo de que estavam sempre cercados. Mas nós, hoje, chamamos de fraquezas os maus pensamentos e as indisposições corporais. Então, com efeito, como os corpos dos santos que lutavam contra o pecado eram atirados aos golpes mortais e a diversas outras aflições, eles estavam muito acima das paixões que penetraram na natureza humana pelo pecado. Hoje porém, como cresce a paz nas Igrejas graças ao Senhor, é preciso que os corpos sejam constantemente provados por contínuas indisposições, mas também que as almas dos que combatem sejam testadas pelos maus pensamentos, especialmente as daqueles em quem o conhecimento age com toda percepção e plena certeza, a fim de que eles se mantenham afastados de toda vanglória e de toda vaidade e possam trazer no coração, como eu já disse,  com grande humildade, o selo da beleza divina, conforme disse o santo: “Em nós está impressa, ó Senhor, a luz da sua face[120]”. É preciso, portanto, que tomemos sobre os ombros, dando graças, a vontade do Senhor. Então, de fato, a continuidade das enfermidades e a luta contra os pensamentos demoníacos nos serão contadas como um segundo martírio. Pois aquele que, na ocasião, pela boca de seus magistrados iníquos, ordenava aos santos mártires que renegasse a Cristo e desejassem as glórias desta vida, ainda hoje, por sua própria boca, continua a dizer a mesma coisa aos servidores de Deus. Aquele que, na ocasião, por meio daqueles que serviam aos seus desígnios diabólicos, torturava os corpos dos justos e infligia os piores ultrajes aos nossos mestres venerados, ele próprio, ainda hoje, inflige todos esses sofrimentos, misturados a outros tantos ultrajes e opróbrios, aos que confessam a piedade, sobretudo quando, para glória de Deus, eles socorrem com toda sua força os pobres que sofrem. É por isso que devemos, com segurança e paciência, cumprir diante de Deus o martírio da consciência. Foi dito: “Com paciência eu esperei o Senhor, e ele veio até mim[121]”.



95. A humildade é uma coisa difícil de se adquirir. Pois quanto maior ela é, mais combate são necessários para adquiri-la. Ela é concedida de duas maneiras aos que tem parte no santo conhecimento. Quando aquele que sustenta o combate pela piedade se encontra num estágio intermediário da experiência espiritual, é pela fraqueza do corpo, ou pelos adversários dos adeptos da justiça, ou pelos maus pensamentos, que ele é levado, de um modo ou de outro, a se tornar mais humilde. Mas quando, por uma percepção profunda e com plena certeza, o intelecto foi iluminado pela santa graça, então a alma traz em si a humildade como que por natureza. Alimentada pela abundância da bondade divina, ela não pode ser levada à inchar-se com a vanglória, mesmo que cumpra sem cessar os mandamentos de Deus. Por estar em comunhão com a doçura divina, ela se considera abaixo de tudo o que existe. A primeira forma de humildade suscita no mais das vezes a tristeza e o desencorajamento, enquanto a segunda suscita uma alegria e um pudor sábio. Assim, a primeira, como eu disse, chega àqueles que estão no meio dos combates, enquanto a outra é concedida aos que se aproximam da perfeição. É por isso que a primeira muitas vezes é joguete dos sucessos desta vida; mas a segunda, ainda que lhe ofereçamos todos os reinos do mundo[122], não se emociona, nem sente as terríveis flechas do pecado; pois, sendo inteiramente espiritual, ela ignora por completo as glórias corporais. Mas é preciso que o combatente passe antes pela primeira para alcançar a segunda. Pois se a graça, pela primeira, não amolecer inicialmente nossa livre vontade para prová-la, impondo-lhe sofrimentos instrutivos, tampouco ela nos concederá a magnificência da segunda.



96. Aqueles que são amigos dos prazeres da vida presente passam dos pensamentos Às faltas. Pois, levado por um julgamento inconsiderado, eles desejam colocar em palavras iníquas e em obras ímpias quase todos os seus pensamentos passionais. Mas os que se esforçam por levar a vida ascética vão das faltas aos maus pensamentos ou a certas palavras infelizes e nocivas. Pois se os demônios vêem tais homens terem prazer em insultar, ou em dizer palavras odiosas e intempestivas, ou rirem como não se deve, ou se irritarem desmesuradamente, ou desejarem a glória vã e vazia, então eles entram em acordo todos juntos para atacá-los. Tomando sobretudo a vanglória para suscitar sua própria malícia, e saltando por ela como por uma janela escura, eles devastam a alma. É preciso, portanto, que aqueles que querem viver a multitude das virtudes não busquem a glória, não encontrem muita gente, não saiam com freqüência, nem façam aos outros reprimendas que os firam, mesmo que os reprimidos o mereçam, nem falem demais, mesmo que possam. Pois a abundância de palavras, relaxando noso intelecto além da medida, não apenas o torna inapto para o trabalho espiritual, mas ainda o entrega ao demônio da acídia que, esgotando-o além da conta, o entrega ao demônio da tristeza, e deste ao da cólera. É preciso assim que o intelecto se consagre sempre à observância dos santos mandamentos e à lembrança profunda do Senhor de glória. Pois foi dito: “Quem guarda os mandamentos não conhece a linguagem do mal[123]”, ou seja, não se voltará para pensamentos ou palavras vis.



97. Quando o coração, com uma dor abrasadora, recebe as flechas que lhe enviam os demônios, a ponto de o combatente ter a impressão de que ele próprio recebe estas flechas, a alma sofre tentando evitar as paixões, porque ela começa a se purificar. Pois se ela não sofresse grandemente com a impudência do pecado, ela não poderia se alegrar outro tanto com a bondade e a justiça. Assim, aquele que quer purificar seu coração deve abraçar continuamente a lembrança do Senhor Jesus, fazendo disto seu único estudo e seu trabalho constante. Pois quem quer se livrar de sua podridão não deve ora orar ora não, mas consagrar-se todo o tempo à oração guardando seu intelecto, mesmo quando estiver fora da casas de oração. Com efeito, assim como quem quer purificar o ouro, se deixar extinguir-se por um instante o fogo da fornalha, devolve a dureza à matéria que está tentando purificar, também aquele que às vezes se lembra de Deus, às vezes o esquece, perde, cada vez que para, aquilo que pensou ter adquirido com a prece. A característica do homem que ama a virtude é consumir permanentemente tudo o que há de terrestre em seu coração pela lembrança de Deus, a fim de que, fazendo devorar o mal pelo fogo da boa memória, a alma volte perfeitamente, com uma glória ainda maior, ao seu esplendor natural.



98. A impassibilidade não consiste em não sermos combatidos pelos demônios, pois então, como dizia o Apóstolo, nós deveríamos sair deste mundo[124], mas sim que nos tornemos inatacáveis quando eles nos combatem. Pois os combatentes que trazem armaduras de ferro recebem as flechas de seus adversários, escutam o ruído dos tiros, até mesmo enxergam as flechas que lhes são enviadas, mas não são feridos, graças à solidez de suas armaduras. É graças ao ferro que os protege que eles se tornam inatacáveis quando são combatidos. Quanto a nós, trazendo a armadura da santa luz e o elmo da salvação por todas as boas obras, destroçamos as falanges tenebrosas dos demônios[125]. Pois não é apenas não fazendo o mal que se alcança a pureza, mas rejeitando o mal com todas as nossas forças, desejando sempre o bem.



99. Quando um homem de Deus venceu quase todas as paixões, ainda restam dois demônios que lutam contra ele. Um, que o leva de um grande amor a Deus a um zelo intempestivo, perturba a alma a tal ponto que este homem não quer que nenhum outro agrade a Deus tanto quanto ele. O outro, por meio de um certo aquecimento, suscita nele o desejo por uma relação carnal, perturbando o corpo. Isto acontece primeiro ao corpo pelo fato de ser o prazer próprio da natureza e por servir à procriação (mas, também por isto, ele pode ser facilmente vencido), mas também porque Deus o permite. De fato, quando o Senhor vê na plenitude se suas forças – por estar cumulado de virtudes – um dos que sustentam o combate, ele permite às vezes que ele seja manchado por esse demônio, a fim de que ele se considere mais vil do que todos os homens que vivem no mundo. Sem dúvida, ou bem o tiroteio da paixão sucede às boas ações, ou bem ele as precede, a fim de que, pelas premissas ou pelas conseqüências da paixão, o tiroteio faça a alma parecer inútil, por maiores que sejam suas boas ações. Nós combatemos o primeiro destes demônios com muita humildade e muito amor; e combatemos o segundo pela temperança, pela serenidade, pelo pensamento profundo da morte, a fim de que, sentindo a energia do Espírito Santo, nos elevemos, no Senhor, acima dessas paixões.



100. Nós que tomamos parte do santo conhecimento devemos prestar conta de nossa estupidez, mesmo involuntária. “O Senhor marcou, disse o divino Jó, mesmo aquilo que eu transgredi sem querer[126]”, e com justiça. Pois se alguém não deixa de se lembrar de Deus nem jamais negligencia seus santos mandamentos, jamais cairá em falta, voluntária ou involuntariamente. É preciso assim dirigir ao Mestre uma ardente confissão de nossas faltas, mesmo involuntárias, vale dizer, acrescentar um trabalho à regra habitual (pois não nos é possível, uma vez que somos homens, deixar de cometer faltas humanas), até que nossa consciência, com lágrimas de amor, seja cumulada com a certeza de que suas faltas lhe são perdoadas. Com efeito, foi dito: “Se confessarmos nossos pecados, ele é tão fiel e justo que nos perdoará e nos purificará de toda injustiça[127]”. Devemos, portanto, estar constantemente atentos ao sentido da confissão, para que nossa consciência não se engane imaginando já ter se confessado o bastante a Deus. Pois mais vale o julgamento de Deus do que nossa consciência, mesmo se com plena certeza não nos demos conta de nada, como nos ensina o sábio Paulo, ao dizer: “Eu não julgo a mim mesmo. Pois eu posso não ter consciência de nenhuma falta, mas nem por isto estar justificado. Quem me julga é o Senhor[128]”. Com efeito, se não confessarmos também estas faltas, sentiremos em nós um medo secreto no momento de nosso êxodo. Se amamos ao Senhor, devemos rezar, para perdermos todo o medo. Pois quem tiver algum medo, não passará com liberdade diante dos príncipes do Tártaro. Pois o medo da alma é para eles como que um defensor de sua própria malícia. Mas a alma que se regozija no amor a Deus, na hora de sua libertação, é transportada pelos anjos da paz, acima de todas as coortes das trevas. Pois ela é como que carregada nas asas do amor espiritual: ela tem em si sem descanso o amor, a plenitude da lei[129]. É por isso que, na vinda do Senhor, aqueles que possuem uma tal liberdade confiante ao partir desta vida, serão elevados juntos com todos os santos. Mas os que tiverem medo, ainda que pouco, no momento da morte, serão deixados para trás com a multitude dos outros homens, e serão submetidos ao Juízo, a fim de que, provados no fogo do Julgamento, recebam da bondade de Deus e de nosso rei Jesus Cristo a sorte que lhes for devida segundo seus atos. Pois ele é o Deus de justiça e a ele pertencem, despejada sobre nós que o amamos, a doçura de seu Reino na eternidade e por todos os séculos dos séculos. Amém.



[1]      Entre colchetes as variantes da edição das Sources Chrétiennes.
[2]      Cf. Hebreus XI, 27.
[3]      Cf. I Coríntios XIII, 13.
[4]      Cf. Gênesis I, 27.
[5]      Cf. I Coríntios VI, 19.
[6]      Cf. II Coríntios V, 18.
[7]      Cf. Gálatas V, 6.
[8]      II Timóteo II, 6.
[9]      Cf. I Coríntios XII, 8.
[10]    Cf. João VII, 18.
[11]   João III, 30.
[12]    Cf. Efésios II, 7.
[13]    Cf. I Coríntios VIII, 3.
[14]    Cf. II Coríntios V, 6.
[15]    II Coríntios V, 13.
[16]    I João IV, 18.
[17]    Salmo XXXIV, 10.
[18]   Salmo XXXI, 24.
[19]    Salmo LXIII, 9.
[20]    Cf. I João IV, 18.
[21]    Cf. Romanos XIII, 10.
[22]    Cf. Gênesis XXII; Romanos IV, 3; Hebreus XI, 17.
[23]    Cf. Gálatas V, 56.
[24]    Salmo XXVIII, 7.
[25]    Salmo CXL, 14.
[26]    Cf. Lucas XI, 21-22.
[27]    I Tessalonicenses V, 19.
[28]    Cf. Atos IX, 31.
[29]    Salmo XXXIV, 9.
[30]    Filipenses I, 9-10.
[31]    Um êxtase.
[32]    Cf. João XV, 26; I Timóteo IV, 1.
[33]   Salmo LXII, 6.
[34]    Salmo XIX, 10.
[35]    Cf. II Coríntios V, 7.
[36]    Cf. II Coríntios V, 6.
[37]    Cf. II Coríntios XI, 14.
[38]    Cf. Mateus XXII, 37, citando Deuteronômio VI, 5.
[39]    Cf. Gênesis III.
[40]    Cf. Filipenses II, 8.
[41]    Cf. I Coríntios X, 27-30.
[42]    Cf. Gênesis I, 31; I Timóteo IV, 4.
[43]    Cf. João XIX, 29.
[44]    Cf. I Pedro I, 21.
[45]    Cf. João XIX, 29.
[46]    Cf. Gênesis III, 7.
[47]    Cf. Mateus IV, 23.
[48]    Cf. Salmo LXVII, 7.
[49]    Cf. Gênesis III, 6.
[50]    XXXI, 7.
[51]    Cf. Gálatas V, 16.
[52]    I Coríntios XII, 3.
[53]   Deuteronômio IV, 24; Hebreus XII, 29.
[54]    Cf. Mateus XIII, 45.
[55]    Eclesiastes I, 18.
[56]   Salmo XXXIX, 12.
[57]    Romanos VIII, 26.
[58]    Cf. Gálatas IV, 6
[59]    João XI, 33-38.
[60]    Cf. Gênesis III, 6.
[61]    Cf. II Reis II, 11.
[62]    Cf. I Pedro II, 23.
[63]    Cf. Mateus XXVII, 28.
[64]    Cf. Isaías LIII, 4.
[65]    Cf. Lucas XXIII, 24.
[66]    Lucas VI, 30.
[67]    Cf. Mateus XIX, 21.
[68]   Salmo CXV, 6.
[69]    Cf. Lucas XIV, 26.
[70]    Salmo LXXIV, 21.
[71]    Salmo LXVIII, 11-12.
[72]    Cf. Hebreus I, 14.
[73]    Salmo XL, 26.
[74]   Salmo XCIV, 19.
[75]   Salmo XII, 7.
[76]    I Coríntios XII, 8.
[77]    Cf. Salmo CXXVI, 5.
[78]    Cf. Ezequiel I, 14.
[79]    Cf. I João IV, 6.
[80]    Salmo LXVI, 12.
[81]    Cf. Mateus XIII, 4.
[82]    Cf. Gênesis I, 27.
[83]    Cf. II Coríntios VI, 14.
[84]    Cf. II Coríntios VI, 7.
[85]    Cf. Salmo XLV, 14.
[86]    Cf. Romanos VII, 22.
[87]   João I, 5.
[88]    Cf. Romanos VIII, 6.
[89]    São João Evangelista.
[90]   João I, 9-12.
[91]    Filipenses III, 12.
[92]  Cf. Mateus XII, 45.
[93]     Romanos VII, 23.  
[94]     Romanos VIII, 1.
[95]     Efésios VI, 14-17.
[96]     Cf. Romanos VII, 23.
[97]     Romanos VII, 18.
[98]    Mateus XV, 19.
[99]    Mateus XII, 29.
[100]           Cf. Salmo. XXXIV, 9.
[101]            Cf. Gênesis XVIII, 12.
[102]            Cf. Lucas X, 18.
[103]            Cf. Hebreus X, 39.
[104]            Cf. Efésios IV, 13.
[105]           Cf. II Coríntios III, 18.
[106]           Cf. Romanos XIII, 10.
[107]           Cf. II Coríntios IV, 16.
[108]          Romanos XIV, 17.
[109]           Cf. I Coríntios XV, 55.
[110]           Salmo LXXV, 6.
[111]           I Coríntios XIII, 13.
[112]           Cf. Mateus VII, 14.
[113]           Mateus XI, 30.
[114]           Cf. Provérbios VIII, 35.
[115]           Cf. Filipenses II, 13.
[116]           II Coríntios XII, 9.
[117]           Id.
[118]           Provérbios III, 12.
[119]          Cf. Filipenses III, 18.
[120]          Salmo IV, 7.
[121]          Salmo XL, 2.
[122]           Cf. Mateus IV, 8-9.
[123]           Eclesiastes VIII, 5.
[124]           Cf. I Coríntios V, 10.
[125]           Cf. Efésios VI, 3 e ss.
[126]           XIV, 17.
[127]           I João I, 9.
[128]           I Coríntios IV, 4.
[129]           Cf. Romanos XIII, 10.

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