Filocalia Tomo I Volume 1 - Marcos o Asceta


MARCOS O ASCETA





DUZENTOS CAPÍTULOS SOBRE  A LEI ESPIRITUAL

 SOBRE OS QUE PENSAM SER JUSTIFICADOS PELAS OBRAS

 CARTA AO MONGE NICOLAS



































Marcos o Asceta



Nosso bem-aventurado Padre Marcos o Asceta viveu por volta do ano 430. Segundo Nicéforo Calisto, ele foi discípulo de João Crisóstomo, e contemporâneo de são Nilo e de Isidoro de Pelúsia, renomados ascetas. Dedicado à ascese e à meditação da santa Escritura, ele escreveu numerosos tratados, instrutivos e de grande ajuda. Nicéforo Calisto menciona trinta e dois tratados, que ensinam todos os caminhos da vida ascética. Porém, só oito foram conservados, citados por Calisto e Photius.



O primeiro é o tratado sobre a lei espiritual. O terceiro é o tratado sobre aqueles que pensam ser justificados pelas obras, e o oitavo é a carta ao monge Nicolas. Eles foram inseridos aqui, na medida em que são mais úteis do que os outros e na medida em que estão ligados à lei espiritual. Pedro Damasceno, Gregório de Tessalônica, Gregório o Sinaíta, Calisto o Patriarca, Paulo Evergetinos e muitos outros Padres mencionam estes textos. Eles os leram e nos convidam a lê-los.



A santa Igreja de Cristo honra e celebra a memória de Marcos o Asceta em 5 de março, lembrando seus combates ascéticos, a sabedoria dos seus escritos e a graça dos milagres que ele recebeu do alto.



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Nada sabemos de Marcos o Asceta senão a partir das indicações contidas em sua obra. Seu próprio nome varia: Marcos o Monge nos manuscritos mais antigos, depois Marcos o Eremita no Ocidente, enfim Marcos o Asceta na antologia filocálica, nome que de certo modo corresponde ao próprio sentido de sua obra. Marcos viveu nos séculos V e VI. Mas onde? Talvez para os lados da Ásia Menor. E como? Foi ele eremita, foi higoumeno? Sem dúvida um e outro, sucessivamente; em todo caso, seus textos mostram que ele possuía experiência nos dois estados. Mas o essencial permanece sendo seu lugar na transmissão do testemunho hesiquiasta, que é verdadeiramente fundamental. Como Diádoco de Foticéia, de quem se aproxima por seu papel de mediador entre as fontes egípcias e a expansão do monaquismo na Ásia e na Europa. Marcos o Asceta defende e ilustra a via estreita do radicalismo evangélico. A Filocalia grega adotou três de suas obras,, justamente aquelas que significam a condição e a manutenção da ascese radical: os 200 capítulos “sobre a lei espiritual”, os 226 capítulos “sobre os que pensam ser justificados pelas obras” e a carta a Nicolas.



A lei espiritual é para Marcos uma lei de liberdade. Ela implica o conhecimento das Escrituras e a prática das virtudes, mas não poderia ser alcançada apenas pelas obras espirituais. Mesmo boas, as obras não podem conduzir a mais do que à humildade. E a humildade reclama a compaixão de Cristo. A salvação depende em última instância da graça. Assim, o monge torna-se livre, mas com uma condição, a da ascese: recusar as três paixões cardinais (o amor pelo dinheiro, pela vanglória e pelos prazeres), jamais considerar outra coisa que o Reino dos céus e o século do porvir, mantendo-se continuamente no mais baixo degrau, e jamais ligar a mínima para a importância das obras. Pois se a condição da ascese não é preenchida, sua importância é nula, ou ilusória. Aqui só importa a condição da ascese. Antes de abrir para a salvação, a lei espiritual leva ao arrependimento e permite o livre acesso ao seu umbral: a lembrança de Deus e a prece pura. Marcos não vai além.



Os 226 capítulos “sobre aqueles que pensam ser justificados pelas obras” detêm-se no mesmo umbral. A ascese é necessária. Mas sozinha ela não seria suficiente para cumprir a lei. O servidor é sempre inútil. O Reino dos céus é uma graça, diz Marcos, ele não é salário para obras. Inicialmente não recebemos de Deus mais do que a liberdade e a responsabilidade. Nem o testemunho das obras, nem mesmo a experiência da graça, colocam alguém acima dos outros – bem ao contrário. O respeito pelo outro, portanto o amor ao próximo, seja este ignorante, descrente, injusto, é a face humana do amor de Deus. A ascese não pode ser mais do que o exercício contínuo, e gratuito, da humildade e do amor. Somente uma amorosa humildade permite o estado de oração. E somente este permite o estado de graça, que Marcos define como: “Ter no coração a obra do Espírito Santo”. E ele sublinha: “Aquele que quer fazer o bem e espera disto uma recompensa, não serve a Deus mas à sua própria vontade”. Marcos prega a confiança nua.



A carta a Nicolas ilustra justamente a maneira, delicada e rigorosa, como se transmite a confiança na via monástica: de coração a coração. A mais profunda solidão (Marcos afirma mesmo estar no deserto ao escrever a carta) se alia à mais alta fraternidade. O princípio da vocação monástica, e daí o de toda a vida cristã, é a gratidão. Tudo recebemos de Deus por pura graça, e tudo lhe devolvemos em ações de graças, para daí para frente vivermos gratuitamente, guardando-nos da ignorância, do esquecimento e da negligência, e então descer com Cristo – “observar sua humildade”, diz Marcos. E ele acrescenta: “Quem não se colocar abaixo de todos não pode se tornar um verdadeiro cristão”. Marcos não impõe nada: ele recomenda , ele aconselha. Ele diz a Nicolas: “Deixamos à sua escolha fazer o que quiser”. Nenhum poder existe, exceto o do amor: a regra de ouro da transmissão hesiquiasta.



Marcos é aqui um testemunho da via estreita. Ele combate em duas frentes: à esquerda, todas as faltas que desagregam e desarticulam a união entre a alma e o corpo; e à direita, a ostentação. Sobretudo, como Diádoco, ele previne contra os transbordamentos de um testemunho que, se buscasse e pregasse o fim antes do começo, a chave de abóboda antes das fundações, ou, como ele próprio diz, “as energias do Espírito Santo antes da observação dos mandamentos”, arriscaria se perder. A glória de Deus – a luz incriada – não pode ser, antes de tudo, senão a esperança e o remédio do coração partido. A meditação de Marcos o Asceta é realmente fundamental.




























































DUZENTOS CAPÍTULOS SOBRE A LEI ESPIRITUAL







1. Como você desejou tantas vezes saber em quê a lei é espiritual, como diz o Apóstolo, e quais são o conhecimento e a prática daqueles que a querem observar, então eu vou lhe dizer, na medida em que estiver ao meu alcance.



2. Em primeiro lugar, sabemos que Deus é o começo, o meio e o fim de todo bem. Quanto ao bem em si, é impossível fazê-lo ou recebê-lo, se não for por meio de Jesus Cristo e do Espírito Santo.



3. Todo bem nos é dado pelo Senhor como por um bom intendente, e Aquele que no-lo confia assim não o deixará perecer.



4. A firmeza da fé é uma torre sólida. Para quem crê, Cristo é tudo.



5. Seja a fonte dos seus desejos Aquele que é a fonte de todo o bem, para que seus projetos se realizem conforme a Deus.



6. Aquele que é humilde e que cumpre a obra espiritual dedica-se inteiramente a si mesmo, quando lê as divinas Escrituras.



7. Peça a Deus para abrir os olhos do seu coração, para que você possa ver, por sua própria experiência, a utilidade da prece e da leitura.



8. Aquele que desfruta de um carisma espiritual e se compadece dos que não o têm, resguarda o dom pela compaixão. Mas quem se vangloriar o perderá, assaltado por pensamentos que lhe vêm da ostentação.



9. A boca do humilde profere a verdade. Mas aquele que contradiz a verdade é semelhante ao guarda que esbofeteou a face do Senhor[1].



10. Não se torne discípulo daquele que faz seu próprio elogio, para não aprender o orgulho em lugar da humildade.



11. Não se orgulhe do seu conhecimento das Escrituras, a fim de não cair sob o espírito da blasfêmia.



12. Não tente enfrentar um assunto tortuoso pela contestação, mas pelos meios indicados pela lei espiritual: a paciência, a prece, uma esperança simples.



13. O cego gritou: “Filho de Davi, tem piedade de mim[2]”. Sua oração foi corporal. Ele ainda não tinha o conhecimento espiritual.



14. Aquele que um segundo antes era ainda cego ergueu os olhos e, vendo o Senhor, não mais o proclamou filho de Davi, mas Filho de Deus, e prosternou-se para adorá-lo[3].



15. Não se orgulhe das lágrimas que verter durante suas orações. Pois foi Cristo quem tocou seus olhos, e daí para frente você verá com o seu intelecto.



16. Quem, a exemplo do cego, se desfaz de seu manto e se aproxima do Senhor, passa a segui-lo e se torna mensageiro dos mais perfeitos ensinamentos.



17. A malícia entretida pelos pensamentos endurece o coração. Mas afastada pela esperança e pela temperança, ela o rompe.



18. Existe uma aflição do coração, doce e benfazeja, que leva à compunção. E existe outra, violenta e perigosa, que tende a destruí-lo.



19.  As vigílias, a oração, a paciência diante dos eventos partem o coração sem feri-lo e lhe fazem muito bem, com a única condição de que sua ajuda não seja recusada pelo espírito da concupiscência. Quem nelas perseverar será ajudado em todo o demais; mas quem as negligenciar e se dispersar experimentará, ao partir deste mundo, um sofrimento intolerável.



20. Um coração que ama o prazer é uma prisão e uma cadeia para a alma na hora da morte. Mas o coração que ama o sofrimento é uma porta aberta.



21. Um coração duro é uma porta de ferro que interdita a cidade. Mas diante daquele que foi provado e dedicado, a porta se abrirá sozinha, como diante de Pedro[4].



22. São numerosos, e muito diferentes uns dos outros os modos da oração. Mas nenhum deles é nocivo, pois do contrário não seria uma oração, mas uma obra de Satanás.



23. Um homem, que tinha intenção de fazer algo errado, começou a orar em seu coração, como de hábito. Providencialmente sobreveio-lhe um obstáculo, e no final ele teve que dar graças.



24. Davi havia resolvido matar Nabal do Carmelo; mas, lembrando-se de que a retribuição é obra de Deus, ele renunciou ao seu desígnio e rendeu graças[5]. Ao contrário, sabemos também o que ele fez quando esqueceu a Deus: ele perseverou, até que Natã o profeta o reconduzisse à lembrança de Deus[6].



25. No momento em que você se lembrar de Deus ore imediatamente, para que o Senhor se manifeste à sua lembrança quando você o esquecer.



26. Quando você ler as santas Escrituras, considera o que está oculto nelas. Pois se diz que aquilo que foi escrito antes de nós, o foi para nossa instrução[7].



27. A Escritura diz que a fé é o fundamento daquilo que se espera[8], e ela chama de reprovados aqueles que não reconhecem que o Cristo reside em nós[9].



28. Assim como o pensamento se manifesta pelas obras e as palavras, também e retribuição futura se manifesta pelas boas ações do coração.



29. É evidente que será feita misericórdia ao coração misericordioso; mas o contrário pedirá uma resposta contrária.



30. A lei da liberdade nos ensina toda a verdade. A maior parte a descobre como um conhecimento. Poucos a compreendem a partir de sua prática dos mandamentos.



31. Não procure a perfeição da lei da liberdade nas virtudes humanas; ninguém é tão perfeito. A perfeição destas virtudes se esconde na cruz de Cristo.



32. A lei da liberdade é descoberta a partir do conhecimento verdadeiro. Mas ela só é compreendida pela prática dos mandamentos, e ela se cumpre pelas compaixões de Cristo.



33. Quando nossa consciência nos obrigar a nos orientar segundo todos os mandamentos de Deus, então compreenderemos que a lei do Senhor é irreprochável[10]: ela atua naquilo que fazemos de bem, mas ela não poderia cumprir-se entre os homens sem as compaixões de Deus.



34. Aqueles que pensam não ter obrigação para com todos os mandamentos de Cristo, fazem uma leitura carnal da lei de Deus. Eles não compreendem nem o que dizem, nem o que afirmam[11]. É por isso que eles imaginam cumprir a lei pelas obras.



35. Uma ação qualquer é feita com toda a aparência de bem, mas a intenção com que é feita não é dirigida para o bem. Outra parece ser má, mas a intenção daquele que a pratica é dirigida para o bem. E isto não concerne apenas as ações que as pessoas realizam, mas também as palavras que elas pronunciam. Uns, com efeito, distorcem o sentido de sua ação por inexperiência ou ignorância; outros têm o desejo de fazer o mal. Enfim, existem outros que são movidos pela piedade.



36. Os simples têm dificuldade em ver tal como é aquele que, por trás dos louvores esconde a calúnia e a vergonha, assim como aquele que esconde a vanglória debaixo de uma aparência humilde. Mas os que passam a maior parte do tempo transformando a verdade em mentira com seus sofismas, cedo ou tarde serão denunciados e refutados por suas ações.



37. Alguém que faz uma ação aparentemente boa ofende seu próximo. Outro, abstendo-se de fazer tal ação, recebe em seu c oração um bem ainda maior.



38. Existem reprimendas inspiradas pela falsidade e a vingança. E existem outras inspiradas no temor a Deus e na verdade.



39. Deixe de censurar aquele que renunciou ao pecado e agora se arrepende. E se você diz que o repreende conforme a Deus, comece por confessar suas próprias faltas.



40. Deus está na origem de todas as virtudes, como o sol está na origem da luz do dia.



41. Se você pretende trabalhar a virtude, lembre-se Daquele que disse: “Sem mim vocês nada podem”[12].



42. Os bens vêm aos homens pelas aflições[13]; da mesma forma, o mal lhes chega pela vanglória e o prazer.



43. Quem é vítima da injustiça dos homens escapa ao pecado; e ele encontrará um socorro igual à sua aflição.



44. Aquele que se remete a Cristo para a retribuição suporta corajosamente todas as injustiças, na medida de sua fé.



45. Que ora pelos homens que lhe fizeram mal  expulsa os demônios; mas quem se opõe aos primeiros será morto pelos segundos.



46. Melhor a ofensa dos homens do que a dos demônios. Mas quem agrada ao Senhor domina uns e outros.



47. Todo bem vem do Senhor segundo sua providência; misteriosamente ela evita os ingratos, os inconscientes e os preguiçosos.



48. Todo vício leva a um prazer proibido, mas toda virtude conduz ao consolo espiritual. Se você for levado pelo primeiro, ele estimulará sempre aquilo que lhe é próprio; se for levado pela última, ela também desenvolverá em você o que lhe é natural.



49. Os ultrajes dos homens suscitam a aflição no coração, mas purificam quem os suporta.



50. A ignorância leva a opor-se ao que é útil; e, em sua insolência, ela agrava a dimensão do mal.



51. Se você não experimenta nenhum dano, aguarde as aflições. E, como você deverá prestar contas[14], evite a cupidez.



52. Se você pecou em segredo, não tente esconder. Pois tudo está a nu aos olhos do Senhor[15], a quem deveremos prestar contas.



53. Mostre-se aos Mestre revelando a ele seus pensamentos. Pois os homens vêem o rosto, mas Deus vê o coração[16].



54. Não faça nem pense nada sem ter a Deus como objetivo. Pois quem viaja sem objetivo perde seu esforço.



55. Aquele que peca sem necessidade terá o mal para se arrepender, pois nada escapa à justiça de Deus.



56. Na mesma medida em que um evento penoso suscita no homem sensato a lembrança de Deus, ele oprime aquele que se esquece de Deus.



57. Que todo sofrimento involuntário o ensine a se lembrar, e você terá sempre uma razão para se arrepender.



58. O esquecimento não tem em si mesmo nenhum poder, mas ele tira sua força de nossa negligência.



59. Não diga: “Que fazer? Aquilo que eu não queria me acontece.” Mas lembre-se de que você faltou com seu dever.



60. Lembre-se de fazer o bem que você lembra, e você descobrirá o bem que você esqueceu. Não abandone seu pensamento à confusão e ao esquecimento.



61. A Escritura diz: “O inferno e a perdição estão a descoberto diante do Senhor”[17]; ela se refere à ignorância e ao esquecimento do coração.



62. De fato, o inferno é a ignorância, pois ambos são invisíveis. E a perdição é o esquecimento, pois ambos escapam ao que existe.



63. Ocupe-se com suas faltas, não com as do próximo. Assim você não se afastará do lugar em que trabalha a sua inteligência.



64. A negligência jamais poderia se prestar ao bem que podemos fazer; mas a esmola e a oração reanimam os negligentes.



65.  Toda aflição suportada conforme a Deus é fundamentalmente uma obra de piedade. Pois o amor se prova nas adversidades.



66. Não diga que a virtude pode ser adquirida sem aflição, pois ela não se prova nas facilidades.



67. Examine a saída para toda aflição involuntária, e você verá a desaparição do pecado.



68. Os conselhos do próximo são frequentemente úteis. Mas nada convém tanto ao homem quanto seu próprio discernimento.



69. Se você pretende se curar, esteja atento à sua consciência. Faça tudo o que ela lhe disser, e aí você encontrará o seu bem.



70. Deus conhece os segredos de cada um, e a consciência também. Que cada qual se corrija graças a ambos.



71. O homem faz o que quer, na medida de sua vontade. Mas é Deus quem fornece as saídas, segundo o que é justo.



72. Se você quiser ser louvado pelos homens com toda justiça, queira primeiro ser condenado por suas faltas.



73. Os ultrajes que suportamos pela verdade de Cristo será retribuída ao cêntuplo quando formos glorificados pelas multidões. Mas é melhor praticarmos as boas obras tendo em vista o século futuro.



74. Se um homem vem em socorro de outro com palavras ou atos, ambos devem reconhecer que é graças a Deus que está atuando ali. Quem não compreender isto será ultrapassado por quem entender.



75. Quem louva o próximo com hipocrisia há de ultrajá-lo no momento seguinte, e então ele se cobrirá de vergonha.



76. Quem ignora as armadilhas do inimigo é imolado sem dificuldade. Quem não conhece as causas das paixões tomba nelas com facilidade.



77. Do amor ao prazer nasce a negligência, e da negligência o esquecimento. Pois Deus deu a todos o conhecimento daquilo que nos é bom.



78. O homem aconselha seu próximo na medida dos seus conhecimentos. Mas Deus trabalha com aquele que o escuta, na medida de sua fé.



79. Já vi ignorantes que se fizeram verdadeiramente humildes, e assim tornaram-se mais sábios do que os sábios



80. Outro ignorante, ouvindo elogiá-los, não imitou sua humildade; ao contrário, gloriando-se de sua ignorância, cobriu-se de orgulho.



81. Quem despreza o intelecto e se vangloria de nada saber, não apenas é ignorante em suas palavras, como também em seu julgamento[18].



82. Assim como uma coisa é a eloqüência e outra coisa a inteligência, também uma coisa é a simplicidade do discurso e outra coisa a estupidez.



83. A ignorância das palavras não será prejudicial ao que é verdadeiramente piedoso, e a eloqüência não será prejudicial ao que é humilde.



84. Não diga: “Como não sei o que devo fazer, não posso ser culpado por não fazê-lo”. Pois se você fizer tudo o que você já sabe que é certo, o resto lhe será revelado na seqüência. Você compreenderá as coisas uma a uma, como quem passa de uma sala a outra. Antes de por mãos à obra não se preocupe com o que virá. Porque a ciência infla quando nada faz,mas o amor edifica, porque ele suporta tudo[19].



85. Entenda seus atos diretamente a partir das palavras da sagrada Escritura, e não espalhe discursos vãos, inflado apenas pelos seus próprios pensamentos.



86. Aquele que abandona a prática e pretende apoiar-se apenas sobre o conhecimento toma um ramo de junco por uma espada de duplo corte. No momento do combate, o junco cortará e penetrará na sua mão, diz a Escritura, injetando aí seu veneno natural, ao invés de ser lançado contra os inimigos[20].



87. É na presença de Deus que todo pensamento tem sua medida e seu peso. O pensamento, seja passional ou simples, é sempre o mesmo.



88. Quem cumpre um mandamento deve esperar pela prova que está ligada a ele. Com efeito, o amor a Cristo se prova na adversidade.



89. Jamais tenha a presunção de negligenciar os pensamentos, pois nenhum pensamento escapa a Deus.



90. Quando você vê um pensamento inspirar a glória humana, saiba claramente que ele lhe prepara a perturbação.



91. O inimigo conhece muito bem a justiça da lei espiritual, e ele só busca o consentimento do intelecto. Desta forma, ou ele submeterá às duras penas do arrependimento aquele que está em seu poder, ou atormentará com seus ataques, para obrigá-lo, aquele que não se arrepende. Às vezes ele o dispõe a resistir aos ataques, para aumentar seu sofrimento e provocar, na hora da morte, pela perda da paciência, a falta de fé.



92. Diante dos acontecimentos, muitos resistem com todas as suas forças. Mas fora da oração e do arrependimento, ninguém escapa ao perigo.



93. Os males reforçam-se mutuamente. Da mesma forma, os bens estimulam o crescimento uns dos outros, e levam cada vez mais adiante aquele que os partilha.



94. O diabo leva a negligenciar a pequenas faltas. De outro modo, ser-lhe-ia impossível conduzir a um mal maior.



95. A raiz dos maus desejos está nos louvores dos homens. Da mesma forma, a raiz da castidade é a vergonha da malícia, não apenas quando ouvimos, mas também quando a consentimos.



96. De nada serve renunciar a tudo e atirar-se ao prazer. Equivale a continuar fazendo, agora que nada se tem, o mesmo que se fazia de posse de  riquezas.



97. Inversamente, o asceta, quando adquire suas riquezas, é irmão daquele, mas em espírito. Eles têm a mesma mãe, que é o prazer experimentado pelo intelecto. Mas o pai é diferente, por causa da transformação da paixão.



98. Alguém que desenraíza uma paixão apenas para se entregar a um prazer ainda maior é glorificado por aqueles que ignoram seu objetivo. E sem dúvida também ele ignora que aquilo que ele faz não lhe serve de nada.



99. A fonte de toda malícia é a vanglória e o prazer. Quem não os detestar não alcançara o fim das paixões.



100. Foi dito que a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro[21]. Mas também é claro que este existe para aqueles.



101. O intelecto é cegado por estas três paixões, a saber, o amor ao dinheiro, o amor à vanglória e o prazer.



102. Estas paixões são as três filhas da sanguessuga de que fala a Escritura, que são ternamente amadas por sua mãe, a loucura[22].



103. O conhecimento e a fé, que acompanham a nossa natureza, não são embotados por outra coisa que não estas três paixões.



104. É por meio destas três paixões que o furor e a cólera, as guerras, os assassinatos e outros males dominaram tudo entre os homens.



105. Assim, devemos odiar o amor ao dinheiro, o amor à vanglória e o prazer, como mães dos vícios e madrastas das virtudes.



106. É por causa delas que recebemos a ordem de não amar o mundo nem o que existe no mundo[23], não para odiar sem discernimento as criaturas de Deus, mas para cortar rente as causas dessas três paixões.



107. Foi dito que ninguém parte para o combate sem antes se desembaraçar dos seus negócios do dia-a-dia[24]. Quem, debaixo de tamanho embaraço, pretende vencer as paixões assemelha-se a alguém que pretende extinguir um incêndio com uma palha.



108. Aquele que por uma questão de dinheiro, de glória ou de prazer se levanta contra seu próximo, está longe de entender que Deus dirige as coisas com justiça.



109. Quando você ouve o Senhor dizer: “Se alguém não renunciar a tudo o que possui, este não é digno de mim”[25], compreenda que ele não fala apenas do dinheiro, mas de tudo o que conduz ao mal.



110. Quem não conhece a verdade tampouco será capaz de crer verdadeiramente, porque o conhecimento precede naturalmente a fé.



111. Assim como Deus assinalou a cada coisa visível aquilo que lhe é próprio, também ele assinalou o que é próprio aos pensamentos humanos, quer queiramos quer não.



112. Se um homem, que vive abertamente no pecado e que não se converte, sem nada sofre até a hora da morte, esteja cero de que o Juízo será impiedoso para com ele.



113. Quem ora com toda consciência suporta o que vier. Mas quem guarda a lembrança do mal ignora a prece pura.



114. Quando você for lesado, contrariado, expulso por alguém, não considere o presente, mas volte-se para o futuro, e você descobrirá que este homem foi para você a fonte de inúmeros bens, não apenas no século presente, mas no futuro.



115. Assim como o amargo absinto faz bem aos que não têm apetite, também é bom para os que se conduzem mal que conheçam um pouco de sofrimento. Estes remédios ajudam alguns a se comportar e outros a se arrepender.



116. Se você não quer sofrer o mal, renuncie a fazê-lo, pois uma coisa nunca vem sem a outra. Cada qual recolherá o que semeou[26].



117. Nós que semeamos nosso próprio mal e que colhemos o que não queremos, deveríamos nos admirar da justiça de Deus.



118. Assim como existe um tempo entre a semeadura e a colheita, também aguardamos entre incertezas a retribuição.



119. Quando você pecar, não incrimine o ato, mas o pensamento. Pois se o intelecto não fosse na frente, o corpo não o teria seguido ali.



120. Quem se esconde para fazer o mal é ainda pior do que aquele que pratica a injustiça abertamente. Por isso ele será castigado mais duramente.



121. Aquele que trama intrigas e se esconde para fazer o mal é, segundo a Escritura, uma serpente que se coloca à beira do caminho para morder o calcanhar dos cavalos[27].



122. Quem ao mesmo tempo louva seu próximo na frente de uns e o critica na frente de outros, está sob o domínio da vanglória e da inveja. Com os elogios, ele tenta disfarçar a inveja; e pelas críticas, ele tenta ser mais considerado do que o outro.



123. Assim como é impossível apascentar juntos cordeiros e lobos[28], também aquele que engana seu próximo não pode conhecer a compaixão.



124.  Aquele que secretamente mistura suas próprias vontades à ordem recebida se torna adúltero, como o mostra a Sabedoria[29], e por irracionalidade se expõe ao sofrimento e à desonra.



125. Assim como unir água e fogo é uma contradição, também são contraditórias a justificação de si e a humildade.



126. Quem procura o perdão dos seus pecados ama a humildade. Mas quem condena o outro reafirma suas próprias faltas.



127. Não deixe sem apagar nem as menores faltas, para que elas em seguida não o arrastem a males maiores.



128. Se você quiser ser salvo, ame a palavra verdadeira, e jamais rejeite uma pequena reprimenda.



129. Foi a palavra verdadeira que converteu a raça de víboras, e lhe mostrou a ira que a esperava[30].



130. Quem recebe as palavras de verdade recebe Deus o Verbo, pois foi dito: “Quem recebe a vocês, recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou”[31].



131. O paralítico que foi descido do teto[32] representa o pecador que os fiéis recuperam em nome de Deus, e que, graças à sua fé, recebe o perdão.



132. Valer mais rezar com piedade pelo próximo do que condenar a cada um por suas faltas.



133. Quem se arrepende de verdade é motivo de riso para os insensatos; para ele, isto é a prova de que seu arrependimento agrada a Deus.



134. Aquele que mantém o combate tem autodomínio em tudo, e ele não cessará enquanto o Senhor não tiver exterminado toda a raça da Babilônia[33].



135. Lembre-se de que existem doze paixões da infâmia. Se você adquirir voluntariamente uma delas, esta tomará facilmente o lugar das outras onze.



136. O pecado é uma fogueira acesa: se você o privar de madeira, ele se extinguirá; se você alimentá-lo, ele queimará.



137. Se você se deixar levar por elogios, receba também a desonra. Pois foi dito: “Quem se eleva será rebaixado”[34].



138. Quando rejeitamos do intelecto toda malícia voluntária, então deveremos combater, além das paixões, também nossas tendências.



139. A tendência é uma reminiscência involuntária das faltas passadas. Quem a combate impede-a de se tornar uma paixão. Quem a domina rejeita mesmo a simples sugestão.



140. A sugestão é um movimento do coração independente de qualquer imagem. Aqueles que possuem esta experiência evitam-na antecipadamente, como a encosta de uma montanha.



141. Quando as imagens se seguem a um pensamento, isto é um consentimento. Pois um movimento independente de qualquer imagem é uma sugestão que não é imputável; existem os que escapam dela como uma brasa retirada do fogo[35], mas há os que não se desviam até serem inteiramente queimados.



142. Não diga: “Eu não queria, mas as coisas aconteceram”, pois mesmo que você não quisesse que elas acontecessem você apreciou suas causas.



143. Quem busca elogios ama a paixão; quem deplora a aflição que o assalta ama o prazer.



144. O pensamento daquele que se entrega ao prazer oscila como no prato de uma balança. Tanto ele chora e se lamenta por causa dos seus pecados, como ele agride e se opõe ao próximo para defender seus próprios prazeres.



145. Quem experimentou tudo e só reteve o que é bom[36] evita desta maneira todo o mal.



146. O homem paciente é cumulado de inteligência, assim como o que dá ouvidos às palavras sábias.



147. Sem a lembrança de Deus, não existe conhecimento verdadeiro. Pois, sem a primeira, o segundo é bastardo.



148. O coração empedernido pode tirar proveito de um discurso ligado ao conhecimento. Pois, sendo-lhe estranho o temor, ele não aceita as penas do arrependimento.



149. O homem humilde pede um discurso de confiança. Pois ele não coloca à prova a paciência de Deus, nem se expõe a frequentes transgressões.



150. Não censure a vanglória ao homem poderoso, mas mostre-lhe a desonra que o espera no século futuro; se ele for prudente, ele se deixará repreender.



151. Quem detesta ser admoestado persegue deliberadamente a paixão. Mas aquele que aceita a admoestação mostra que foi levado pela tendência.



152. Não dê ouvidos quando lhe contarem as más ações de outros. Se você o fizer, estas más ações deixarão traços em você.



153.  SE você for compelido a ouvir mentiras, atenha-se apenas a você mesmo, e não àquele que lhe falou. Quando o que se ouve é mau, quem o registra torna-se mau ele também.



154. Se você encontrar com homens que falam muito sem dizer nada, considere que você é responsável por suas palavras. Mesmo que você não seja responsável no caso, você se torna devedor de uma dívida antiga.



155. Se você vê alguém que o elogia com hipocrisia, espere, porque a qualquer momento você será caluniado por ele.



156. Tenha sempre diante dos olhos as aflições presentes e os bens futuros. Assim, jamais a negligência o fará relaxar o combate.



157. Se você elogia alguém que lhe fez um serviço material, e o chama de bom sem referência a Deus, o mesmo homem lhe parecerá mau depois.



158.  Todo bem procede providencialmente do Senhor. E os que trazem os bens são seus servidores.



159. Acolha de uma alma semelhante a mistura de bens e males, e Deus corrigirá o equilíbrio das coisas.



160. A instabilidade dos pensamentos transforma aquilo que nos pertence. Pois Deus atribui naturalmente aquilo que não depende de nós ao que provém da nossa vontade.



161. A realidade sensível é filha da atividade intelectual. Ela traz o que nos é necessário, da maneira como decidiu Deus.



162. Os pensamentos e as palavras de um coração atirado aos prazeres se propagam, como a peste. Pela fumaça que se desprende se conhece a madeira.



163. Permaneça na sua reflexão, e você não perderá seu esforço nas tentações; mas se você a deixar, suporte o que viera acontecer.



164. Reze para a tentação não venha sobre você[37]. Mas se ela vier, receba-a como sua, não como estranha a você.



165. Retire de seu pensamento toda concupiscência, e então você poderá ver os artifícios do diabo.



166. Quem diz conhecer todos os artifícios do diabo se imagina perfeito sem sabê-lo.



167. Quanto mais o intelecto se afasta das necessidades do corpo, tanto mais ele distingue as mentiras dos inimigos.



168. Quem se deixa levar pelos pensamentos é cegado por eles; ele vê as obras do pecado, mas não consegue ver suas causas.



169. Existem alguns que aparentemente observam um mandamento, ao mesmo tempo em que estão sujeitos à paixão, e que desperdiçam uma boa ação com maus pensamentos.



170. Quando você se aproximar dos umbrais do pecado, não diga: “Ele não me vencerá”. Pois quanto mais você se aproxima, mais será vencido por ele.



171. Tudo o que existe começa pequeno e, alimentando-se paulatinamente, se torna grande.



172. As mentiras da malícia são como uma rede com milhares de malhas: quem se deixa prender um pouco, se não prestar atenção, será inteiramente enredado.



173. Não tente ouvir o relato das infelicidades dos homens que são seus inimigos. Quem escuta essas palavras recolhe os frutos de sua própria disposição.



174. Não pense que todas as aflições chegam aos homens pelo pecado, pois existem alguns que agradam a Deus e que são testados. Pois está escrito: “Os ímpios e os iníquos será expulsos[38]”; mas também está escrito: “Os que querem viver piedosamente em Cristo serão perseguidos[39]”.



175. Quando você estiver afligido, cuidado com a sugestão do prazer, pois temos a inclinação a aceitá-la facilmente, uma vez que ela nos consola da aflição.



176. Alguns dizem que são sábios os que sabem discernir as coisas sensíveis. Porém, mais sábios são os que dominam suas próprias vontades.



177. Não escute seu coração até ter retirado dele o mal. Pois ele defende os interesses de tudo aquilo que lhe confiamos.



178. Assim como existem serpentes que encontramos na floresta e outras que se escondem nas casas, também existem paixões que se formam na razão e outras que se põem em movimento na ação, mesmo se elas passam de uma forma a outra.



179. Quando você perceber impulsos ocultos agindo no seu interior, atraindo para as paixões o intelecto em estado de hesíquia, saiba que foi o próprio intelecto que as suscitou algum dia, as pôs em movimento e as guardou no coração.



180. Uma nuvem não se forma sem o sopro do vento, e a paixão não pode nascer sem o pensamento.



181. Se não fizermos mais as vontades da carne, como diz a Escritura[40], os impulsos escondidos no fundo de nós cessarão facilmente no Senhor.



182. As imagens nascidas fundamentalmente do intelecto são mais nocivas e mais resistentes; mas as imagens saídas da razão as suscitam e precedem.



183. Existe uma malícia que penetra no coração, quando a tendência existe em nós há muito tempo. E existe uma malícia que nos combate no nível da razão, nas coisas cotidianas.



184. Deus julga os atos conforme as intenções. Com efeito, foi dito: “Que o Senhor lhe dê conforme seu coração[41]”.



185. Quem não persevera em examinar sua consciência tampouco acolherá as penas do corpo com piedade.



186. A consciência é o livro da natureza; quem a lê assiduamente recebe a experiência do socorro divino.



187. Quem não escolhe sofrer voluntariamente pela verdade será instruído mais duramente por sofrimentos que não pediu.



188. Quem conhece a vontade de Deus e a cumpre na medida de suas possibilidades, pelos pequenos sofrimentos escapará dos grandes.



189. Aquele que pretende vencer as tentações sem a prece e a paciência, não as conseguirá expulsar, mas antes será destruído por elas.



190. O Senhor está oculto em seus próprios mandamentos. É na medida de sua observância que o encontram aqueles que o buscam.



191. Não diga: “Eu observei os mandamentos, mas não encontrei o Senhor”. Pois a Escritura diz: “Muitas vezes você encontrou o conhecimento com justiça. E aqueles que com retidão procuram o Senhor encontrarão a paz[42]”.



192. A paz é a libertação das paixões. Ela não pode ser encontrada sem a energia do Espírito Santo.



193. Uma coisa é a prática dos mandamentos, outra a virtude, mas elas tiram uma da outra a origem dos seus bens.



194. Foi dito que a prática dos mandamentos consiste em fazem o que foi ordenado, e que a virtude está presente quando o que se faz é conforme a verdade.



195. Assim como a riqueza material é uma, mas se reparte em múltiplas posses, também a virtude é uma, mas suas obras tomam formas numerosas.



196. Quem raciocina sem obras e não faz mais do que falar, é rico em iniqüidades. Os frutos de suas penas, diz a Escritura, irão para casas desconhecidas[43].



197. Foi dito que tudo obedece ao ouro[44], e que tudo o que é concebido pelo intelecto é regido pela graça de Deus.



198. A boa consciência é obtida pela oração, e a oração pura pela consciência; uma, de fato, está naturalmente ligada à outra.



199. Jacó mandou fazer para José uma túnica de todas as cores[45]. Assim o Senhor dá ao homem doce o conhecimento da verdade, conforme está escrito: “O Senhor ensinará aos homens mansos seus caminhos[46]”.



200. Faça sempre o bem, tanto quanto puder, e quando puder fazer mais, não faça menos. Foi dito, com efeito, que aquele que olha para trás não é digno do Reino dos céus[47].










































DUZENTOS E VINTE E SEIS CAPÍTULOS SOBRE                                       OS QUE PENSAM SER JUSTIFICADOS POR SUAS OBRAS







1. Nos escritos a seguir, a má fé daqueles que estão de fora será refutada por aqueles cuja fé é segura e que reconhecem a verdade.



2. Querendo demonstrar que somos obrigados a observar os mandamentos, mas que a filiação adotiva é uma graça concedida aos homens pela efusão de seu próprio sangue, o Senhor disse: “Quando vocês tiverem feito tudo o que lhes foi ordenado, digam: Nós somos servidores inúteis, nós só fizemos o que devíamos fazer[48]”. Assim o Reino dos céus não é o salário das obras, mas uma graça do Mestre preparada para os servidores fiéis.



3. O servidor não reclama a liberdade como salário: ele quer ser devedor, e então a recebe como uma graça.



4. Cristo, diz a Escritura, morreu pelos nossos pecados[49], e ele concede a liberdade aos que o servem bem. Com efeito, ele diz: “Muito bem, servidor bom e fiel. Você foi fiel sobre as pequenas coisas, e eu lhe estabelecerei sobre muitas. Entre na alegria de seu Senhor[50]”.



5. O servidor fiel não é aquele que se mantém no simples conhecimento, mas sim aquele que, pela obediência, se entrega a Cristo que dá o conhecimento.



6. Quem honra seu mestre faz aquilo que ele ordenou; mas também assume a responsabilidade pelo que lhe acontecer, caso lhe falte ou desobedeça.



7. Se você ama o estudo, ame também o sofrimento; porque o simples conhecimento infla o homem[51].



8. As provas que nos acontecem de improviso nos ensinam providencialmente a amar as penas e, mesmo que não o queiramos, nos levam ao arrependimento.



9. As aflições que nos acontecem são da mesma geração de nossas próprias faltas. Se as suportamos através da prece, encontraremos em retorno nelas uma plêiade de bens.



10. Alguns se comprazem com elogios dedicados à sua virtude e têm como grande consolo o prazer de sua vanglória. Outros, condenados por seus pecados, sofrem e consideram que este sofrimento é obra do mal.



11. Aqueles que, com base na autoridade de seus próprios combates, acusam os negligentes, pensam ser justificado por suas obras corporais. E nós que, nos prevalecendo de nosso simples conhecimentos, desprezamos os ignorantes, somos ainda mais insensatos do que eles.



12. Independente de suas obras o conhecimento não é ainda certo e seguro, embora verdadeiro. Assim, em todas as coisa, é a obra que é a confirmação.



13. Muitas vezes, quando a prática é negligenciada, o conhecimento também fica obscurecido. Pois mesmo a lembrança daquilo que deixamos de fazer pouco a pouco se apagará.



14. É por isso que a Escritura nos ensina a ver a Deus pelo conhecimento, a fim de que o sirvamos corretamente pelas obras.



15. Quando cumprimos abertamente os mandamentos, recebemos do Senhor aquilo que nos convém, na medida de nossas obras. Mas o bem que extraímos disto depende do objetivo que temos em vista.



16. Aquele que quer fazer uma coisa e não faz é como se houvesse feito, aos olhos de Deus que conhece os corações.



17. Sem o corpo, o intelecto executa muitas coisas boas e más. Mas sem o intelecto o corpo não consegue executar estas coisas. É por isso que a lei de liberdade se manifesta antes dos nossos atos.



18. Alguns, que não seguem os mandamentos, imaginam ter uma fé reta. Outros, que os seguem, aguardam o Reino como um salário que lhes é devido. Tanto uns como outros se afastam da verdade.



19. O mestre não deve salário aos servidores; mas os que não o servem corretamente tampouco obterão a liberdade.



20. Se Cristo morreu por nós, conforme as Escrituras[52], e se vivemos, não por nós mesmos, mas por Cristo que morreu e ressuscitou por nós[53], é claro que devemos servi-lo até a morte. Portanto, como podemos pensar que uma filiação adotiva nos seja devida?



21. Cristo é nosso Mestre em essência e nosso mestre na administração da salvação. Pois não não éramos, e ele nos fez; nós estávamos mortos e ele nos resgatou com seu próprio sangue. Àqueles que assim crêem, ele concedeu o dom de sua graça.



22. Quando você ouve a Escritura dizer que ele retribuirá a cada um segundo suas obras[54], não devemos entender com isto as obras que merecem a geena ou o Reino, mas sim que Cristo retribuirá a cada um segundo suas obras de incredulidade ou fé, não como estabelecendo uma troca, mas como nosso Deus Criador e Redentor.



23. Nós, que fomos considerados dignos do banho do novo nascimento, juntemos-lhe as boas obras, não para promover uma troca, mas para manter a pureza que nos foi concedida.



24. Toda boa obra que fazemos por meio de nossa natureza nos afasta do mal contrário, mas sem a graça não consegue suscitar o acréscimo da santificação.



25. Quem tem temperança se precavê contra a gula. Quem renuncia às posses evita a cupidez. Quem vive na hesíquia se guarda de falatórios. Quem é puro se protege do amor ao prazer. Quem é casto se guarda da prostituição. Quem é doce se guarda da perturbação. Quem é humilde, da vanglória. Aquele que obedece evita a contestação, e o que examina se guarda da hipocrisia. Do mesmo modo, quem ora se protege do desespero, e quem é pobre, do excesso de bens. Quem confessa se guarda do remorso. Você vê que toda virtude praticada até a morte não é mais do que a abstenção do pecado? Ora, abster-se do pecado é a obra da natureza, não uma moeda de troca tendo em vista o Reino.



26. O homem considera penosos os deveres da sua natureza. É Cristo que, pela cruz, lhe concede a graça da filiação adotiva.



27. Existe um mandamento relativo e um mandamento absoluto. O mandamento relativo diz que devemos dar a quem não tem[55]; o outro ordena renunciar a tudo o que possuímos[56].



28. Existe uma energia da graça que o noviço ignora. E existe uma outra energia, do mal, que se confunde com a verdade. É melhor não perscrutar estas energias, por causa do erro, nem tampouco as rejeitar, por causa da verdade. Mas tudo devemos remeter a Deus com esperança. Com efeito, ele conhece a utilidade das duas.



29. Quem quiser atravessar o mar da hesíquia necessitará de constância, humildade, vigílias e temperança. Se ele se esforçar por atravessar sem estas virtudes, ele perturbará o coração, mas não atravessará.



30. A hesíquia é um retiro que se corta e se separa do mal. Acrescentando-se à oração as quatro virtudes, não há meio mais rápido de se obter a impassibilidade.



31. É impossível ao intelecto conhecer a hesíquia sem o corpo, bem como destruir o muro que os separa sem a hesíquia e a oração.



32. Os desejos da carne se opõem ao espírito, e os do espírito se opõem à carne[57]. Assim, os que caminham segundo o espirito não seguem os desejos da carne[58].



33. Não existe prece perfeita sem a invocação do intelecto. O Senhor escuta o intelecto que não cessa de chamar.



34. O intelecto que ora continuamente aflige o coração. Ora, Deus não despreza um coração partido e humilhado[59].



35. A oração também é chamada de virtude, embora ela seja mais a mãe da virtude. Pois é ela que as gera, por sua união com Cristo.



36. Aquilo que fazemos sem a oração e sem a boa esperança logo se revelará nocivo e imperfeito.



37. Quando você ouve que os últimos serão os primeiros e que os primeiros serão os últimos[60], entenda que se trata dos que compartilham as virtudes e o amor. O amor, com efeito, é a última das virtudes pela ordem, mas a primeira em dignidade, mostrando assim que as virtudes que o precedem são as últimas.



38. Se você experimenta a acídia durante a prece, se você é afligido de todas as maneiras pelo mal, lembre-se da morte e dos duros castigos. Mas é melhor agarrar-se a Deus pela prece e a esperança[61] do que ter pensamentos estranhos, por mais úteis que sejam.



39. Nenhuma virtude é capaz de abrir as portas de nossa natureza, se todas as demais não a seguirem sustentando-se mutuamente.



40.  Quem se nutre de pensamentos não possui temperança. Por úteis que eles sejam, não o são mais do que a esperança.



41. Todo pecado é mortal, se não for seguido de arrependimento. Mesmo que um santo rezasse por outro, ele não seria atendido.



42. Quem se arrepende corretamente não procura resgatar com suas penas as faltas passadas. Mas, com seu sofrimento ele implora a compaixão de Deus.



43. Se devemos fazer todos os dias o máximo bem de que é capaz nossa natureza, quanto devemos a Deus por todo o mal que já fizemos?



44. Por mais alto que seja o grau de virtude que atingimos hoje, ela não passa da sentença de nossa negligência passada, não é uma compensação.



45. Quem é afligido no intelecto e se refugia no corpo é semelhante ao que é afligido no corpo mas possui um intelecto disperso.



46. Conformar-se com esta ou aquela aflição trará um remédio para a outra. A aflição do intelecto remedia a do corpo, e a aflição do corpo remedia a do intelecto. O mais penoso é quando elas coincidem.



47. É uma grande virtude suportar o que nos acontece, e amar o próximo que nos odeia, conforme a palavra do Senhor[62].



48. Perdoar as injustiças é um sinal de amor verdadeiro. Foi assim que o Senhor amou o mundo.



49. É impossível perdoar do fundo do coração as faltas de alguém, sem o conhecimento verdadeiro. Ele mostra, de fato, a cada um, que o que lhe acontece é aquilo que lhe cabe.



50. Você não perderá nada do que abandonou pelo Senhor; pois, a seu tempo, tudo lhe será retribuído ao cêntuplo.



51. Quando o intelecto perde de vista o objetivo da piedade, então a obra aparente da virtude é vã.



52. Se a maldade é prejudicial a qualquer homem, fazer o mal prejudica ainda mais aqueles que negligenciaram o rigor.



53. Filosofe por meio da prática sobre a vontade do homem e a retribuição de Deus. Pois a palavra não é mais sábia nem mais útil do que as obras.



54. Depois das penas suportadas pela piedade vem o socorro. Mas é preciso saber disto pela lei divina e pela consciência.



55. Um homem recebe um pensamento e o acolhe sem examiná-lo. Outro recebe o mesmo pensamento, e o confronta com a verdade. É preciso se perguntar qual dos dois foi melhor inspirado pela piedade.



56. O verdadeiro conhecimento consiste em ser paciente nas aflições, e não responsabilizar os homens pelas próprias infelicidades.



57. Quem faz o bem esperando uma recompensa, não serve a Deus, mas à sua própria vontade.



58. É impossível àquele que peca escapar da retribuição, senão for através de um arrependimento proporcional à sua falta.



59. Alguns dizem: “Não poderíamos fazer o bem se não recebêssemos, com sua energia própria, a graça do Espírito”.



60. Aqueles que se atiram deliberadamente aos prazeres recusam-se a fazer o que poderiam, como se não tivessem ajuda.



61. A graça foi dada secretamente àqueles que foram batizados em Cristo. Mas ela só age na medida em que cumprimos os mandamentos. Ela não cessa de nos ajudar em segredo, mas cabe a nós fazer o bem o quanto pudermos.



62. A graça começa por despertar divinamente a consciência. Mesmo os que fizeram o mal e se arrependeram agradam a Deus.



63. Mas a graça se esconde também naquilo que o próximo nos ensina. Às vezes até, durante a leitura, ela assiste à reflexão e, por uma conseqüência natural, ensina sua própria verdade ao intelecto. Se nós não enterrarmos a aptidão para esta progressão, entraremos efetivamente na beatitude do Senhor[63].



64. Quem procura as energias do Espírito antes mesmo de por em marcha os mandamentos, assemelha-se o escravo comprado por dinheiro que, no momento da compra, exige que lhe passem por escrito seu aceite e sua alforria.



65. Quem descobre que as infelicidades que nos vêm de fora derivam da justiça de Deus, encontra de uma só vez o conhecimento e a justiça, buscando a Deus[64].



66. Se você considera, conforme a Escritura, que os julgamentos do Senhor cobrem toda a terra[65], cada acontecimento lhe ensinará o conhecimento de Deus.



67. Cada qual enfrenta seu dever segundo sua própria inteligência. Somente Deus conhece a diversidade da convergência harmoniosa.



68. Quando você sofre com o desprezo dos homens, considere antes a glória que lhe virá de Deus. Assim você não ficará triste nem perturbado com o desprezo, e permanecerá fiel e irreprochável perante a glória, quando ela vier.



69. Se a bem-aventurança divina permite que a multidão o louve, não mescle nenhuma ostentação à providência o Senhor, para que uma reviravolta não o atire para o lado oposto.



70.  A semente não pode crescer sem terra e sem água. Também o homem não encontrará aquilo que lhe é útil sem assumir suas penas e sem o socorro divino.



71. A chuva não cai se não houver nuvens. Da mesma forma, é impossível agradar a Deus sem uma consciência boa.



72. Nunca recuse aprender, por mais sábio que você seja. Pois a providência de Deus é mais útil do que a nossa sabedoria.



73. Quando, para se entregar ao prazer, o coração deixa de amar o sofrimento, dominá-lo é mais difícil do que deter um rochedo rolando numa vertente.



74. O pequeno novilho sem experiência que corre pelas pradarias acaba de repente num lugar cheio de precipícios. O mesmo acontece com a alma que se deixa pouco a pouco levar pelos pensamentos.



75. Quando o intelecto consolidado no Senhor luta por desenraizar um hábito antigo, o coração é como que torturado por dois carrascos, o intelecto e a razão, que o puxam de um lado para outro.



76. Assim como os olhos dos que ganham sua vida no mar suportam o ardor do sol sem queixa, também aqueles que odeiam o mal amam as penas. É por isso que uns enfrentam os ventos e outros, as paixões.



77. A fuga no inverno ou em dia de sábado[66] é sofrimento para o corpo e profanação para a alma; o mesmo acontece com a irrupção de paixões num corpo envelhecido e numa alma consagrada.



78. Ninguém é tão bom e complacente como o Senhor; mesmo assim, até ele não perdoa quem não se arrepende.



79. Nós somos muitos a nos afligir por nossos pecados. Mas aceitamos de bom grado as suas causas.



80. Cavando sob a terra e cega, a toupeira não é capaz de ver as estrelas. Também aquele que não se confia a Deus nas coisas do tempo não poderá confiar nele no que toca à eternidade.



81.Graça anterior à graça, o verdadeiro conhecimento foi dado aos homens por Deus. Acima de tudo, aos que a receberam e compartilharam, ela ensina a confiar-se Àquele que a concedeu.



82. Quando uma alma em pecado não acolhe as aflições que lhe chegam, os anjos dizem dela: “Nós curamos Babilônia, mas ela não sarou[67]”.



83. O intelecto que perde de vista o verdadeiro conhecimento se bate com os homens por aquilo que lhe é prejudicial, como se fosse útil.



84. Assim como o fogo não pode perdurar na água, também os pensamentos vergonhosos não conseguem permanecer num coração que ama a Deus. Pois todo homem que ama a Deus ama também o sofrimento, e o sofrimento assumido é por natureza inimigo do prazer.



85. Uma paixão que, pela vontade, fez seu trabalho e se apoderou de um campo, logo desencadeará violência, mesmo se aquele que a recebeu e acolheu não o queira.



86. Nós amamos as causas dos pensamentos involuntários, e é por isso que eles nos chegam. Quanto aos pensamentos voluntários, está claro que amamos também as suas conseqüências.



87. A presunção e arrogância são as causas da blasfêmia. O amor ao dinheiro e a vanglória são as causas da dureza impiedosa e da hipocrisia.



88. Quando o diabo percebe que o intelecto reza do fundo do coração, ele o assalta com tentações cheias de violência e mentiras. Quanto às pequenas virtudes, não é com grandes ataques que ele tenta destruí-las.



89. Um pensamento persistente denuncia uma tendência do homem. Mas um pensamento rapidamente destruído significa combate e oposição.



90. Em sua evolução, o intelecto passa por três estágios: segundo a natureza, acima da natureza e contra a natureza. Quando ela passa pelo estágio, ela se descobre responsável por seus maus pensamentos e confessa a Deus seus pecados, em si reconhecendo as causas das suas paixões. Quando ele se encontra no estágio contrário à natureza, ele esquece a justiça de Deus e combate os homens, como se fossem nocivos. Enfim, quando ele é levado ao estado acima da natureza, ele encontra os frutos do Espírito Santo de que fala o Apóstolo: o amor, a alegria, a paz, e assim por diante[68]. Então ele percebe que, se preferir os cuidados do corpo, ele não poderá permanecer aí. Se ele deixar este lugar cairá no pecado e em suas terríveis conseqüências, senão de imediato, ao menos com o tempo, como o quer a justiça de Deus.



91. O verdadeiro conhecimento se encontra em cada um de nós, na medida em que o confirmem a doçura, a humildade e o amor.



92. Todo homem batizado na fé ortodoxa recebeu misteriosamente toda a graça. Mas ele não obterá logo a plena certeza senão cumprindo os mandamentos.



93. Quando cumprido conscientemente, o mandamento de Cristo traz um consolo proporcional às numerosas aflições do coração. Entretanto, para cada uma delas, o consolo só chega a seu tempo.



94. Em todas as coisas, ore continuamente. Pois você não pode nada sem o socorro de Deus.



95. Nada é mais poderoso do que a oração para nos dar a energia divina. E nada mais útil do que ela para obtermos a bem-aventurança de Deus.



96. Toda a prática dos mandamentos está na oração. Pois não há nada mais elevado do que o amor de Deus.



97. A prece sem distração é um sinal do amor de Deus por aquele que persevera. Mas a negligência e a distração durante a prece denunciam o amor ao prazer.



98. Aquele que vela, persevera e ora sem esforço recebe visivelmente e compartilha do Espírito Santo. Mas quem sofre com tudo isso e mantém sua resolução, também recebe rapidamente o socorro.



99. Um mandamento difere do outro. Por isso também uma fé pode ser mais consolidada do que outra.



100. Existe uma fé que provém daquilo que ouvimos[69], como diz o Apóstolo, e existe uma fé que é o fundamento daquilo que se espera[70].



101. É bom dizer palavras úteis aos que estão aprendendo. Mas ainda melhor é vir em seu auxílio com orações e com a virtude. Pois quem se oferece a Deus por meio delas ajuda seu próximo com o socorro que ele próprio recebe.



102. Se você quiser, em poucas palavras, prestar um serviço àquele que deseja aprender, mostre-lhe a prece, a fé reta, a paciência nas provações. É por meio destas três virtudes que se obtém todas as demais.



103. Aonde se espera Deus, não se combate mais o próximo.



104. Se tudo o que é involuntário tem sua fonte naquilo que desejamos, como diz a Escritura[71], ninguém é tão inimigo do homem quanto ele mesmo.



105. A ignorância está na cabeça de todos os males, e logo a seguir vem a falta de fé.



106. Fuja das tentações pela paciência e a oração. Se você pretender combatê-las sem estas virtudes, elas o atacarão cada vez mais.



107. Quem é manso conforme Deus é mais sábio do que os sábios, e quem é humilde de coração é mais poderoso do que os poderosos, pois eles carregam o jugo de Cristo com conhecimento de causa.



108. Tudo o que podemos dizer ou fazer sem a prece se revelará mais tarde perigoso ou inútil, e seremos contra nossa vontade condenados pelos fatos.



109. É por seus atos, pensamentos e palavras que cada qual é justo. Mas é pela fé, a graça e o arrependimento que muitos encontram a justiça.



110. Assim como o orgulho é estranho àquele que se arrepende, também é impossível que seja humilde o que peca deliberadamente.



111. A humildade não é uma condenação que a consciência carrega, mas o reconhecimento da graça de Deus e de sua compaixão.



112. O intelecto dotado de razão está para a graça divina assim como uma casa material está para o espaço que a envolve. Quanto mais matéria você retirar dela, mas se irá; quanto mais fizer entrar, mais virá.



113. A matéria da casa são os móveis e os alimentos; a matéria do intelecto são a vanglória e o prazer.



114. Aquilo que dilata o coração é a esperança em Deus. Aquilo que oprime são os cuidados do corpo.



115. Uma e imutável é a graça do Espírito, mas ele age sobre cada um da maneira como quiser[72].



116. Assim como a chuva que cai sobre a terra fornece às plantas sua propriedade natural, a doçura às doces e o amargor às amargas, também a graça, espalhando-se, sempre a mesma, no coração dos fiéis, lhes dispensa as energias que combinam com suas virtudes.



117. A graça se torna alimento para quem tem fome por amor a Cristo, bebida doce para o que tem sede, vestes para o que tem frio, repouso para o que sofre, certeza plena para o que ora, consolo para o que chora.



118. Quando você ouve a Escritura dizer que o Espírito Santo pousou sobre cada um dos apóstolos[73], que ele desceu sobre o profeta[74], ou que ele age[75], ou que ele se entristece[76], ou que ele se apagou[77], ou que ele se irrita, ou ainda que alguns recebem dele as primícias[78] e que outros estão cheios dele[79], não pense que o Espírito se divida, mude ou se altere, mas creia, como dissemos, que ele é imutável, invariável e todo-poderoso. É por isso que, nas suas energias, ele permanece sendo aquilo que ele é, e ele assegura divinamente a cada um aquilo que lhe é necessário. Com efeito, como o sol, ele se espalha plenamente sobre os batizados. Mas cada um de nós será iluminado na medida em que detestar e dissipar as paixões que o entenebrecem. Mas na medida em que as amar e se ligar a elas, o homem permanecerá nas trevas.



119. Quem detesta as paixões cuida de suprimir-lhes as causas. Mas quem permanece ligado às causas será atacado pelas paixões mesmo contra sua vontade.



120. Quando somos submetidos aos maus pensamentos, atribuamos a nós mesmos, e não ao pecado de nosso primeiro pai.



121. As raízes dos pensamentos são os vícios manifestos. Não cessemos de nos defender deles, com os pés, as mãos e a boca.



122. É impossível ligar-se em pensamento a uma paixão sem amar-lhe as causas.



123. Quem se liga à vanglória, se desdenha a vergonha? Quem é perturbado pela desonra, se ama ser considerado como nada? Quem acolhe o prazer da carne, se seu coração está partido e humilhado? Quem se inquieta com o combate das coisas passageiras, se crê em Cristo?



124. Quem foi ofendido e não disputou com o ofensor nem em palavras nem em pensamentos, possui o verdadeiro conhecimento e dá provas de uma fé segura no Mestre.



125. Os filhos dos homens são as mentiras sobre a balança da justiça[80]. É Deus quem dispensa a cada um aquilo que é justo.



126. Se aquele que comete uma injustiça não é mais, e aquele que a sofre não é menos, o homem passa como uma sombra e ele se preocupa em vão[81].



127. Se você vê alguém que se aflige pelos numerosos ultrajes que recebeu, saiba que ele está cheio de pensamentos de vanglória, e que ele recolhe sem alegria aquilo que ele semeou em seu coração.



128. Quem desfruta dos prazeres do corpo além da conta pagará seus excessos com cem vezes mais penas.



129 O mestre não deve dizer ao discípulo o que este deve fazer, nem mostrar-lhe as faltas, se ele não o escutar.



130. Aquele que foi ofendido por alguém e não cobra desculpas de seu ofensor, por isso mesmo se remete a Cristo. Ele receberá o cêntuplo no século presente, e herdará a vida eterna[82].



131. A lembrança de Deus é a pena que confere a si mesmo o coração pela piedade. Mas os que esquecem Deus entregam-se aos prazeres e se tornam insensíveis.



132. Não diga que o impassível não pode ser afligido. Pois se ele não é afligido por si mesmo, será pelo seu próximo.



133. Quando o inimigo guarda numerosos escritos nos quais aquele que esqueceu seus pecados reconhece suas dívidas, ele obriga seu devedor a cometê-las na memória, aproveitando-se normalmente da lei do pecado.



134. Se você quiser se lembrar continuamente de Deus, não rejeite as provações como se elas fossem injustas, mas suporte-as como sendo justo que lhe tenham sido enviadas. Pois a paciência em todos os acontecimentos desperta a lembrança. Mas a recusa apequena a memória inteligente do coração e, pelo relaxamento, suscita o esquecimento.



135. Se você quiser que seus pecados permaneçam encobertos diante do Senhor[83], não exponha diante dos homens suas virtudes, se as tiver. Pois aquilo que fizermos com nossas virtudes, Deus fará com nossos pecados.



136. Se você esconde suas virtudes, não se orgulhe, como se você cumprisse com a justiça. Pois a justiça não consiste apenas em esconder o bem, mas antes jamais sequer conceber o que é proibido.



137. Não se alegre quando você fizer o bem a alguém, mas quando você suportar sem ressentimento a hostilidade que virá. Como a noite segue o dia, também o mal sucede a benemerência.



138. A vanglória, o amor ao dinheiro e o prazer jamais deixam sem mancha a benemerência, se não forem previamente arrasados pelo temor a Deus.



139. A piedade de Deus se esconde nos sofrimentos involuntários. Ela conduz quem as suporta ao arrependimento, e o preserva do castigo eterno.



140. Dentre os que observam os mandamentos, alguns esperam que na balança estes façam contrapeso aos seus pecados, enquanto outros esperam obter o perdão d'Aquele que morreu por nossos pecados. É preciso ver quais deles têm razão.



141. O medo da geena e o desejo do Reino liberam paciência nas aflições. Não em si, mas pela graça d'Aquele que conhece nossos pensamentos[84].



142. Quem crê no século futuro por si só se abstém dos prazeres do século presente. Mas quem não crê se entrega ao prazer e se torna insensível.



143. Não diga: “Como pode um pobre atirar-se aos prazeres, se ele não possui os meios para tanto?” Pois é possível entregar-se aos prazeres em pensamento, e da maneira mais miserável ainda.



144. Uma coisa é o conhecimento das coisas e outra é o reconhecimento da verdade. Tanto quanto difere o sol da lua, tanto o segundo é mais útil do que o primeiro.



145. Adquire-se o conhecimento das coisas na medida em que observa os mandamentos. Mas o reconhecimento da verdade se obtém na medida de nossa esperança em Cristo.



146. Se você quiser ser salvo e alcançar o conhecimento da verdade[85], esforce-se sem cessar para ultrapassar o sensível e agarrar-se a Deus apenas com sua esperança. Pois quando você for desviado contra sua vontade, você encontrará as potências e os poderes que irão combatê-lo com suas sugestões. Mas você os vencerá pela prece, você manterá a boa esperança, e você receberá a graça de Deus, que o salvará da ira que virá.



147. Quem compreende o sentido místico das palavras de são Paulo, quando ele diz que o combate é levado contra os espíritos do mal[86], compreenderá também a parábola em que o Senhor afirma que é preciso orar continuamente e jamais relaxar[87].



148. A lei ordena simbolicamente trabalhar seis dias e repousar no sétimo[88]. É por isso que a obra da alma passa pelas riquezas, ou seja pela própria fruição das coisas. Mas o laser e o repouso da alma consistem em tudo vender e dar aos pobres, conforme a palavra do Senhor[89], para depois, uma vez alcançado o repouso, dedicar-se à esperança espiritual. É também neste repouso que Paulo nos exorta insistentemente a entrar, quando ele diz: “Esforcem-se para entrar em repouso[90]”.



149. Mas não dizemos isto para excluir o século futuro, nem para limitar ao século presente  a retribuição universal, mas porque é preciso antes de tudo possuir a graça do Espírito Santo na obra do coração, para daí entrar no Reino dos céus. É o que mostrou claramente o Senhor, quando disse: “O Reino dos céus está dentro de vocês[91]”. E o Apóstolo diz também: “A fé é o fundamento daquilo que se espera[92]”; e ainda: “Corram de maneira a ganhar o prêmio[93]”; e: “Provem a si mesmos, para saber se estão na fé. Não reconhecem que Jesus Cristo reside em vocês? A menos que sejam reprovados[94]”.



150. Quem reconheceu a verdade não se revolta contra as infelicidades que o possam afligir, pois ele sabe que elas conduzem o homem a Deus.



151. As faltas passadas, quando recordadas em detalhe, prejudicam aquele que possui uma boa esperança, pois elas suscitam a tristeza e enfraquecem a esperança. E se elas se deixam representar sem tristeza, elas trazem de volta as impurezas.



152. Quando o intelecto, pela renúncia a si mesmo, liga-se à única esperança, então o inimigo, sob pretexto de confissão, lhe apresenta as faltas passadas, com o fim de reanimar nele as paixões que a graça de Deus lhe fizera esquecer, para assim prejudicar o homem contra sua vontade. Ainda que luminoso e avesso às paixões, o intelecto é então necessariamente envolto em trevas, e mais uma vez misturado aos seus erros passados. Perdido em meio às brumas e o amor ao prazer, o intelecto retrocede e se entrega passionalmente às paixões, de tal maneira que a lembrança se mostra uma tendência, e não uma confissão.



153. Se você quiser oferecer a Deus uma confissão irreprochável, não repasse na memória seus fracassos, mas resista corajosamente aos seus ataques.



154. As provas nos chegam a partir das faltas passadas; elas nos trazem aquilo que resulta naturalmente de toda ofensa.



155. O gnóstico, aquele que conhece a verdade, confessa-se perante Deus não pela lembrança daquilo que fez, mas pela paciência naquilo que lhe acontece.



156. Se você rejeita as penas e a desonra, não anuncie que irá se arrepender por meio de outras virtudes. Pois a vanglória e a insensibilidade naturalmente levam à escravidão do pecado, mesmo pelos caminhos retos.



157. De fato, assim como a pena e a desonra costumam engendrar as virtudes, o prazer e a vanglória engendram os vícios.



158. Todo prazer do corpo provém de um relaxamento interior. A falta de fé é que engendra este relaxamento.



159. Quem está submetido ao pecado é incapaz de sozinho superar as necessidades do corpo. Por esta razão ele nunca deixa de estar excitado em seus membros.



160. Quando estamos presas da paixão, é preciso orar e se conhecer. Pois é difícil, mas possível, com socorro, combater as tendências.



161. Aquele que, pela obediência e a oração, luta contra sua própria vontade, é um atleta competente. Por sua renúncia ao sensível, ele expõe claramente seu combate espiritual.



162. Quem não confia a Deus sua vontade, fracassa no que faz e cai em poder dos adversários.



163. Quando você vê a amizade entre dois malfeitores, saiba que eles concordam um com o outro no que satisfazer suas vontades.



164.  O orgulhoso e o vaidoso concordam de bom grado. Um elogia o vaidoso, que se submete servilmente. O outro louva o orgulhoso, que não cessa de elogiá-lo.



165. O discípulo que ama a Deus tem benefícios nas duas direções. Aprovado naquilo que faz de bem, ele se torna ainda mais fervoroso. Condenado pelo que faz de mal, obriga-se ao arrependimento. É preciso orientarmos nossa vida na direção de nosso progresso. E devemos oferecer a Deus orações no sentido de nossa vida.



166. É bom deter-se no primeiro mandamento, de não ter nenhuma necessidade em especial, de não rezar por nenhuma intenção particular, de não buscar senão o Reino dos céus e a palavra de Deus[95]. Se nos inquietamos por cada uma de nossas necessidades, devemos igualmente orar por elas. Pois aquele que age, inquieta-se mas não ora, perde o bom caminho para atingir seu objetivo. É o que diz o Senhor: “Sem mim vocês nada podem[96]”.



167. As desobediências mais inusitadas esperam aquele que se engana sobre o mandamento da oração; uma coisa arrasta a outra como que por um laço.



168. Quem acolhe as aflições presentes com vistas ao século por vir, encontrou o conhecimento da verdade. Ele se livrará facilmente da cólera e da tristeza.



169. Quem, por amor à verdade, escolhe a vida dura e a desonra, caminha sobre a via apostólica, toma sua cruz e carrega suas cadeias[97]. Mas aquele que, não aderindo a esta escolha, tenta guardar seu coração, se perde no intelecto e cai nas tentações e armadilhas do diabo[98].



170. É impossível a quem combate vencer os maus pensamentos sem atacar suas causas, e vencer as causas, sem atacar os pensamentos. Pois quando rejeitamos uns separadamente, logo somos capturados pelo outro por sua vez.



171. Quem ataca os outros homens por medo dos sofrimentos e dos ultrajes, ou bem sofrerá ainda aqui em baixo por causa de seus males, ou será castigado impiedosamente no século por vir.



172. Quem quiser evitar toda agressão do mal deve por meio da prece confiar tudo o que fizer a Deus, guardar seu intelecto na sua esperança e, na medida do possível, desligar-se de todo cuidado com o sensível.



173. Quando o diabo encontra alguém ocupado sem necessidade com as coisas do corpo, primeiro ele o despoja de seu conhecimento, depois ele corta, como se fosse a cabeça, sua esperança em Deus.



174. Se algum dia você alcançar o lugar fortificado da oração pura, evite neste instante de acolher o conhecimento das coisas suscitadas pelo inimigo, a fim de não perder o mais importante. É melhor perfurá-lo com as flechas da oração, enquanto ele está como que trancado abaixo de nós, do que entreter-se com ele, que vem nos oferecer suas mentiras e que tenta, com sua astúcia, nos separar da prece que nos afasta dele.



175. O conhecimento das coisas ajuda o homem no momento da tentação e da acídia. Mas normalmente ela é prejudicial no momento da oração.



176. Se você está encarregado de ensinar no Senhor e não o escutam, aflija-se em espírito, mas não se perturbe ostensivamente. Aflito, você não será condenado junto com aquele que não o escuta. Mas se você se deixar perturbar, você será tentado em sua própria perturbação.



177. Quando você ensinar, não esconda dos que o escutam aquilo que eles devem fazer. Exponha claramente aquilo que for mais fácil, mas o que for mais difícil coloque em enigmas.



178. Não reprove na frente dele quem não estiver ligado a você pela obediência, pois isto tem mais a ver com a autoridade do que com o conselho.



179. Aquilo que é repetido muitas vezes torna-se útil a todos, e cada qual reterá em sua consciência aquilo que lhe disser respeito.



180. Aquele que fala com retidão deve receber suas próprias palavras como provindas de Deus. Pois a verdade não pertence ao que fala, mas a Deus que age nele.



181. Não discuta com aqueles que se opõem à verdade e que não estão ligados a você pela obediência, a fim de não despertar seu ódio, como diz a Escritura[99].



182. Quem cede a seu discípulo naquilo que não deveria o desorienta quanto à questão e o prepara para transgredir as com dições de obediência.



183. Quem adverte ou corrige o pecador no temor de Deus adquire a virtude oposta à falta. Mas quem guarda rancor e censura com maledicência cai na mesma paixão, segundo a lei espiritual.



184. Quem conhece bem a lei teme o legislador., e quem teme o legislador afasta-se do mal[100].



185. Não tenha duas linguagens: não se mostre um nas palavras e outro em sua consciência. A Escritura enche de maldições tal pessoa[101].



186. Existem os que dizem a verdade e são vítimas da raiva dos insensatos, como diz o Apóstolo[102]. E existem os que a dissimulam, e que por isso mesmo são amados. Mas a retribuição, nos dois casos, não tardará, pois o Senhor dá a cada um o que lhe é devido.



187. Quem quer escapara das penas futuras deve suportar de boa vontade os sofrimentos presentes. Trocando desta maneira em espírito uma coisa por outra, pelos pequenos sofrimentos evitará os grandes castigos.



188. Evite a ostentação nas palavras e a presunção do pensamento, a fim de não ceder e de não fazer o contrário do bem. Pois não é o homem sozinho que faz o bem, mas Deus que vê tudo.



189. Deus, que tudo vê, concede frutos dignos às nossas obras, às nossas intenções e aos nossos pensamentos voluntários.



190. Os pensamentos involuntários nascem de um pecado anterior, mas os pensamentos voluntários nascem de uma vontade livre. Daí serem os segundos causa dos primeiros



191. Aos maus pensamentos que vêm de encontro às nossas intenções segue-se a tristeza; por isso eles se desvanecem rapidamente. Mas aos pensamentos que vão na mesma direção de nossas intenções segue-se a alegria; assim, eles não se deixam dissipar facilmente.



192. Aquele que ama o prazer aflige-se entre as condenações e a miséria. Mas quem ama a Deus se aflige em meio aos elogios e ao sucesso.



193. Quem não conhece os juízos de Deus segue em espírito por uma via bordejada de precipícios, e a menor brisa basta para desequilibrá-lo. Elogiado, ele se orgulha. Censurado, lamenta-se. Mimado, torna-se impudente. Afligido, se prostra. Se ele compreende, vangloria-se. Se não entende, finge. Rico, glorifica-se. Pobre, dissimula. Se está saciado, torna-se arrogante. Se jejua, faz disso motivo de vaidade. Discute com quem o censura. E considera tolos os que o perdoam.



194. Assim, se não adquirirmos o conhecimento da verdade e o temor a Deus pela graça de Cristo, seremos duramente mortificados, não apenas pelas paixões, mas também pelos acontecimentos.



195. Quando você quiser corrigir um assunto pessoal complicado, procure aquilo que agrada a Deus no caso e você encontrará a solução mais útil.



196. Toda a criação concorre para a obra que agrada a Deus, mas resiste à obra da qual Deus se desvia.



197. Quem se opõe aos acontecimentos penosos combate sem o saber as ordens de Deus. Mas quem os aceita, porque tem o verdadeiro conhecimento, conforme a Escritura, este espera o Senhor[103].



198. Quando sobrevém uma provação, não pergunte porque, nem por quem, ela aconteceu; procure apenas o modo de suportá-la dando graças, sem tristeza e sem ressentimento.



199. O mal que os outros nos fazem não nos impõem nenhum pecado, se o acolhermos sem maus pensamentos.



200. Se é difícil encontrarmos alguém que agrade a Deus sem ter sido provado, devemos dar graças a Deus por todos os acontecimentos penosos.



201. Se Pedro não tivesse perdido a pesca noturna[104], ele não teria tido sucesso na pesca diurna. Se Paulo não tivesse sido cegado nos seus sentidos[105], ele não teria recuperado a visão de seu intelecto. E se Estevão não tivesse sido acusado de blasfêmia caluniosamente, os céus não teriam se aberto para ele, e ele não teria visto a Deus[106].



202. Assim como agir segundo Deus se chama virtude, também uma aflição imprevista se chama provação.



203. Deus testou Abraão[107], ou seja, ele o afligiu para seu próprio bem, não para saber como ele era (pois ele o sabia, ele que conhece todas as coisas antes que elas aconteçam), mas para permitir-lhe alcançar a fé perfeita.



204. Toda aflição indica o lado para o qual pende a vontade, se para a direita ou para a esquerda. É por isso que a aflição imprevista se chama prova. Ela revela as vontades ocultas daquele que a recebe e acolhe.



205. O temor a Deus nos obriga a combater o mal. E quando o combatemos, a graça de Deus o combate junto.



206. A sabedoria não consiste apenas em conhecer a verdade em suas conseqüências naturais, mas também em suportar como nosso próprio bem a desonestidade daqueles que cometem injustiças. Os que se contentam com o primeiro grau crescem em orgulho; os que chegam ao segundo, adquirem a humildade.



207. Se você não quiser ser dominado por maus pensamentos, aceite ser humilhado em sua alma e afligido em sua carne. E isto, não eventualmente, mas em todo tempo, todo lugar, todas as coisas.



208. Quem se deixa instruir voluntariamente pelas aflições não será dominado por pensamentos involuntários. Mas quem não aceita aquelas será cativo destes, mesmo contra sua vontade.



209. Quando, sob o impacto de uma injustiça, suas entranhas e seu coração se endurecem, não se entristeça. Pois esta emoção, que revela o que você trazia dentro de si, é providencial. Desvie com alegria os pensamentos que se levantam, sabendo que se eles forem destruídos logo ao nascer, o mal será destruído naturalmente com eles, antes da emoção surgir. Mas se os pensamentos perdurarem é normal que o mal também continue a crescer.



210. Sem a contrição do coração é impossível escapar ao mal. Ora, aquilo que parte o coração é a tripla abstinência, ou seja, a abstinência de sono, de alimento e de relaxamento corporal. O excesso destas três coisas leva, com efeito, ao amor pelo prazer. E o amor pelo prazer acolhe os maus pensamentos: ele se opõe à prece e ao serviço que nos é imputado.



211. Se acontecer de você ser encarregado de comandar seus irmãos, assuma seu cargo e não se cale, por causa dos seus contraditores, quanto àquilo que deve ser feito. Nos que lhe obedecerem estará sua recompensa, para virtude deles. Quanto aos que não o escutarem, perdoe-lhes do mesmo modo, e você receberá o perdão d'Aquele que disse: “Perdoe e será perdoado[108]”.



212. Todo acontecimento é como um mercado: quem sabe negociar ganhará muito; quem não sabe, perderá.



213. Não force quem não obedece logo de início, e não discuta com ele, mas tome para si o ganho que ele rejeitou. Você ganhará mais tendo paciência do que o corrigindo.



214. Quando o prejuízo sofrido por um recai sobre muitos, então não é preciso mais ter paciência, nem buscar o próprio bem, mas o bem de todos, a fim de que todos sejam salvos. É por isso que uma virtude múltipla é mais útil do que uma virtude singular.



215. Se cairmos num pecado, qualquer que seja, e não nos afligirmos na medida correspondente, cairemos outra vez facilmente na mesma armadilha.



216. Assim como uma leoa não se aproxima afetuosamente de uma novilha, também a impudência não é capaz de acolher com alegria a tristeza segundo Deus.



217. Assim como a ovelha não cruza com o lobo para ter cordeirinhos, também as penas do coração não podem unir-se à saciedade para engendrar as virtudes.



218. Ninguém consegue experimentar a pena e a tristeza segundo Deus se primeiro não amar aquilo que as suscita.



219. O temor a Deus e a condenação inclinam à tristeza. A temperança e as vigílias combinam com o sofrimento.



220. Aquele que não se deixa corrigir pelos mandamentos e as exortações da Escritura será conduzido com o chicote do cavalo e a espora da mula[109]. E se os recusar será levado pelas rédeas e com os freios nos maxilares[110].



221. Quem sucumbe facilmente às pequenas tentações, será facilmente sujeitado pelas grandes. Mas quem resiste às pequenas resistirá às grandes, com a ajuda do Senhor.



222. Não tente, censurando-o, ser útil ao que se glorifica de suas virtudes. Pois o mesmo homem não consegue amar ao mesmo tempo a ostentação e a verdade.



223. Toda palavra de Cristo manifesta a misericórdia, a justiça e a sabedoria de Deus. Aqueles que se regozijam em ouvir recebem seu poder. É por isso que aqueles que são desprovidos de sua misericórdia e de sua justiça e que não têm nenhum prazer em escutar, não puderam compreender a sabedoria de Deus e chegaram a crucificar Aquele que a ensinava a eles. Também nós, examinemos se nos regozijamos em escutá-lo[111]. Pois ele próprio disse: “Quem me ama, observará meus mandamentos; meu Pai o amará e também eu o amarei e me revelarei a ele[112]”. Podemos ver assim como ele escondeu sua revelação nos mandamentos. O mais fundamental dos mandamentos é o amor a Deus e ao próximo, que é suscitado pela abstenção das coisas materiais e pela hesíquia dos pensamentos.



224. O Senhor, sabendo disto, nos prescreveu: “Não se inquietem pelo amanhã[113]”, e com razão. Pois como é possível a alguém que não se livrou das coisas materiais e das preocupações que elas trazem livrar-se dos maus pensamentos? Como alguém que está presa de pensamentos poderá ver o pecado que eles encobrem? Este pecado é na alma trevas e brumas, e tem sua origem nos pensamentos e nas más ações. Com efeito, o diabo tenta o homem por meio de sugestões, sem violência, permitindo-lhe entrever a origem do pecado. E o homem se deixa prender com complacência, por amor ao prazer e à vanglória. Pois mesmo que, pelo discernimento, ele não o queira, ele se atirará ao prazer e o consentirá. Quanto àquele que não vê o pecado que o envolve, como poderá ele orar para ser purificado? E se ele não for purificado, como encontrará o lugar da natureza pura? E, se ele não o encontrar, como poderá ver a mansão interior de Cristo, ainda que sejamos nós a morada de Deus, como dizem os profetas, os evangelistas e os apóstolos[114]?



225. É preciso, portanto, buscar a morada em questão, e perseverar pela oração em bater à sua porta[115], a fim de que então, ou quando de nossa morte, o Mestre nos abra, e não nos diga, como aos negligentes: “Eu não sei de onde são vocês[116]”. E nós devemos não apenas pedir e receber[117], mas também conservar o que nos foi dado. Pois existem aqueles que perdem depois de haver recebido. Aqueles que foram instruídos tarde e os noviços não possuem mais do que um conhecimento simples ou mesmo uma experiência acidental das coisas de que tratamos. Quanto à prática assídua e paciente, até os anciãos cheios de piedade e experiência a possuem com dificuldade. Muitos a perderam por negligência, a buscaram novamente, esforçaram-se e a reencontraram. É isto que, também nós, jamais devemos deixar de fazer, até que a tenhamos obtido indefectivelmente.



226. Estes são, dentre muitos outros, alguns dos preceitos da lei espiritual que aprendemos, estes preceitos que o grande Salmista não se cansa de ensinar[118], a fim de que aqueles que cantam continuamente ao Senhor os guardem e sigam. A Ele a glória, o poder e a adoração, agora e por todos os séculos. Amém.






























CARTA  AO MONGE NICOLAS





Há algum tempo, preocupado com sua salvação e zeloso quanto à maneira como convém levar a vida segundo Deus, você veio nos ver para nos confiar seu estado e nos perguntar por quais penas deveria você passar para agarrar-se ao Senhor com um coração fervoroso, com todo o rigor de conduta e de temperança, como em toda ascese, e conduzindo o combate com vigílias freqüentes e uma ardorosa oração. Você nos contou quais as guerras e os enxames de paixões da carne que se levantavam na sua natureza corporal, dirigidas contra a alma, sendo a lei do pecado sempre contrária à lei de nosso intelecto[119]. E você deplorou ainda ser perturbado pelas paixões da cólera e da concupiscência. Você buscava um método e conselhos para descobrir por meio de que penas e de que combates você seria capaz de superar estas paixões mortais.



Naquele instante, de viva voz, nós o exortamos à caridade, e lhe demos conselhos e regras de sabedoria para o bem de sua alma, mostrando-lhe por meio de quais penas e de quais esforços ascéticos voltados para o discernimento e para a luz do conhecimento espiritual, a alma que se conduz de acordo com os Evangelhos pode, pela fé e com a ajuda da graça, superar os vícios do mal que nascem no coração, e especificamente as paixões de que falamos.



Pois contra as paixões a alma deve levar uma luta tanto mais ardente e constante na medida em que elas tentam manejá-la por meio de suas tendências e hábitos, e tentam arrastá-la cada vez mais, até que ela se submeta às energias carnais e irracionais da malícia, às quais ela obedecerá daí por diante, energias que a tomarão e capturarão pela lembrança contínua dos pensamentos e pela meditação do mal, uma vez que a alma consinta na entrada destes pensamentos no coração.



Uma vez que, desde há algum tempo, estivemos distantes de você, separados de corpos mas não de coração[120], e partimos para o deserto, para junto de verdadeiros operários e atletas de Cristo, a fim de lutarmos, também nós, por pouco que fosse, e combatermos junto com os irmãos que enfrentem as potências contrárias e que resistem corajosamente às paixões, afastemos a preguiça, rejeitemos para longe de nós toda negligência, e vistamo-nos de fervor e solicitude, desejosos de agradar a Deus. É assim que decidimos traçar por escrito e enviar à sua nobreza alguns breves conselhos e recomendações, para o bem de sua alma, a fim de que, a respeito das questões de que já lhe falei face a face, se você ler atentamente o pouco que escrevemos em nossa exortação, você possa dar os frutos espirituais, como se estivéssemos presentes.



Eis, meu filho, o que você deverá fazer para começar aquilo que lhe será útil para viver segundo Deus. É preciso, sem jamais os esquecer e deles lembrando-se sempre, recordar por meio de uma meditação contínua os dons providenciais e   as benesses que Deus, em seu amor pelo homem, lhe concedeu e lhe concede para a salvação da sua alma. Não esqueça, cobrindo-se com o véu da malícia, tantas e tais benesses, e não perca a sua lembrança por negligência, pois do contrário você passará o tempo que lhe resta a viver privado de todos os privilégios e de todo reconhecimento.



Estas recordações incessantes, picando o coração como um ferrão, o levarão continuamente à confissão, à humildade, à ação de graças de uma alma partida, a todo bom fervor e à resposta que ele deve dar em retribuição ao Senhor por meio dos comportamentos e das condutas, e por meio de todas as virtudes dignas de Deus, sem jamais cessar de meditar com toda a consciência as palavras do profeta: “Que retribuirei eu ao Senhor por tudo o que ele me deu?[121]



Com efeito, quando a alma se recorda das benesses com que foi cumulada por Deus que ama os homens desde seu nascimento, ou de todos os perigos dos quais tantas vezes ela foi preservada, ou de todos os males nos quais ela tombou, ou das faltas voluntárias em que ela se deixou levar tantas vezes, ela lembra que não foi abandonada aos espíritos malfeitores, como o seria pela justiça, para sua perdição e morte, mas que, ao contrário, com sua paciência, o Mestre que ama os homens a guardou, passando por cima de suas faltas, acolhendo seu retorno, e que ele próprio a alimentou, protegendo-a e prevendo tudo, mesmo quando, ligada à paixão, ela voluntariamente pôs-se a serviço dos seus inimigos, os espíritos do mal. E ela se recorda de que no final, por uma decisão de sua bondade, ele a conduziu sobre a via da salvação, colocou em seu coração o encanto da vida ascética, lhe deu forças para abandonar o mundo e as ilusões dos prazeres e da carne com alegria, vestiu-a com o hábito angélico da ordem dos ascetas, e lhe permitiu ser recebida pelos homens santos na comunhão de sua fraternidade. Quem, recordando estas benesses na pureza de sua consciência, não guardaria constantemente um coração partido? Prevenido pelas garantias de tantas benesses, sem ter feito antecipadamente nada de bom, não manterá ele sempre uma firme esperança?



Eu digo a mim mesmo que se, sem que eu próprio tenha feito nada de bom, mas ao contrário tendo cometido diante dele numerosos pecados e vivido em meio às impurezas da carne e a tantos outros males, ele não me viu segundo as minhas faltas nem me tratou de acordo com as minhas iniqüidades[122], mas, em vista da salvação, dotou-me de tão grandes dons e tão grandes graças, se eu daqui em diante me consagrar inteiramente a servi-lo com toda a pureza da conversão e toda a retidão das virtudes, de quantos outros bens e graças espirituais não me julgará digno ele, dando-me a força para realizar a boa obra sobre este caminho pelo qual me conduz?



É por isso que quem guarda sempre em si tal pensamento e jamais esquece as benesses de Deus, desconfia de si mesmo, se corrige e se engaja com ardor em todas as boas asceses da virtude e em todas as obras de justiça, sempre disposto, sempre pronto a fazer a vontade de Deus.



Filho bem-amado, que pela graça de Deus foi dotado de compreensão natural, guarde sempre em si mesmo esta meditação e este bom estudo. Não se deixe ensombrecer pelo esquecimento maléfico. Não permita que a distração esvazie seu intelecto e o desvie da vida. Não deixe a ignorância, causa de todos os males, entenebreça seu pensamento. Recuse ser seduzido pela despreocupação, arrastado pelo prazer da carne e vencido pela gulodice. Não deixe que a concupiscência capture seu intelecto, nem que o suje o consentimento dos pensamentos de prostituição, nem se deixe vencer pela cólera que engendra o ódio ao irmão. E não vá, sob algum pretexto miserável e digno de pena, entristecer os outros ou a si mesmo, cultivar a lembrança dos maus pensamentos contra o próximo, desviar-se da prece pura dedicada a Deus, reduzir seu intelecto à servidão, e suspeitar do próximo que possui uma alma igual à sua. Não acorrente sua consciência às expressões irracionais dos cuidados da carne. Não se atire aos maus espíritos aos quais você cedeu para que eles o instruíssem até que, desprovido de toda certeza, arrasado pela tristeza e pela negligência, incapaz de progredir em Deus devido às faltas anteriores, o intelecto se pôs novamente a buscar, em profunda humildade, o começo da via da salvação. Assim, aceitando os muitos sofrimentos das orações e vigílias noturnas, apagando suas faltas pela confissão diante de Deus e do próximo, ele reencontrará a sobriedade e a vigilância e, pela graça de Deus, o flamejar das iluminações do conhecimento evangélico, sabendo que quem não se entrega inteiramente à cruz, com um sentimento de humildade e autonegação, quem não se coloca abaixo de todos os outros para ser pisado, desdenhado, desprezado, ultrajado, ofendido, abandonado, a tudo suportando com alegria no amor ao Senhor, quem não busca jamais as coisas humanas nem a glória, nem as honras, nem os elogios, nem os prazeres da comida, da bebida e das vestimentas, não pode se tornar um verdadeiro cristão.



Uma vez que nos propusemos a estes combates, lutas e coroas, até quando, sob a cobertura de uma piedade formal, iremos nos rir do mundo, deixando-o acreditar que estamos a serviço do Senhor, nós que não somos julgados pelos homens da mesma forma como aparecemos aos olhos d'Aquele que conhece os segredos dos corações? Pois muitos nos consideram santos, enquanto que ainda agora nos comportamos como selvagens. Na verdade, temos a aparência de piedade, mas diante de Deus ainda não adquirimos aquilo que dá força a ela[123]. Muitos nos consideram virgens e puros, quando para Aquele que conhece os segredos dos corações somos internamente sujos das impurezas do consentimento aos pensamentos de prostituição, mergulhados no lodaçal aonde se ativam as paixões, e por causa de nossa ascese sempre formal, o intelecto cego, somos ainda mais arrastados para trás pelos elogios dos homens.



Até quando caminharemos na vaidade do intelecto sem tomarmos sobre nós a sabedoria evangélica, sem reconhecermos aonde se encontra a conduta consciente, a fim de buscá-la com fervor e descobrirmos a liberdade que esta consciência dá? Mas nós permanecemos ainda naquilo que acreditamos ser a única justiça do homem exterior. Na falta de um verdadeiro conhecimento, nós nos enganamos a nós mesmos seguindo observações que não são mais do quem exteriores, pretendendo agradar aos homens e perseguindo a glória de suas honras e de seus elogios.



Mas certamente ele virá, Aquele que desvela os segredos das trevas e revela os desígnios dos corações, o Juiz que ninguém engana, Aquele que não se deixa levar nem pelo temor diante do rico, nem pela piedade diante do pobre, Aquele que ergue o hábito exterior e mostra a verdade escondida lá dentro, Aquele que junto a seu Pai, em presença dos anjos, coroa os verdadeiros combatentes e os verdadeiros atletas, que se conduzem segundo sua consciência. Mas os que portam o hábito mas se revestem da piedade formal, aqueles que expõem diante dos homens uma conduta puramente aparente, que assim se mantém vaidosamente e enganam a si mesmos[124], a estes ele levará cativos diante da Igreja do alto, a Igreja dos santos, e de toda a assembleia celeste. E ele os devolverá assim, cobertos de vergonha, às trevas exteriores, como as virgens tolas[125]. Estas haviam guardado a virgindade exterior, mas não é por isso que foram consideradas culpadas. Elas também possuíam uma parte de óleo em suas vasilhas, ou seja, elas haviam também recebido conjuntamente algumas virtudes, algumas ações exteriores corretas e algumas graças. É por isso que suas lamparinas ainda permaneceram algum tempo acesas. Mas pela negligência, pela ignorância, pelo descuido, elas faltaram com a prudência e não reconheceram precisamente o enxame de paixões escondido no interior e dirigido pelos espíritos do mal. Elas deixaram suas reflexões se corromperem sob as energias contrárias. Elas se sujaram ao consentir os pensamentos, secretamente seduzidas e vencidas pela pior inveja, pelo ciúme inimigo do bem, as discórdias, as disputas, a raiva, a cólera, o azedume, o rancor, a hipocrisia, a irritação, o orgulho, a vanglória, a preocupação em agradar aos homens, a autossuficiência, o amor ao dinheiro, a acídia, os desejos da carne que suscitam o prazer em pensamento, a perfídia, a presunção, o desencorajamento, a tristeza, a preguiça, o sono, a ostentação, a pretensão, a insolência, o autoelogio, a avidez, o deboche, a cupidez, o desespero mais duro que tudo, e até os menores efeitos do mal. Quanto às suas boas obras e à sua conduta casta, também aí eles fizeram de tudo para aparecer diante dos homens e recolher seus elogios. Se elas tivessem compartilhado certas graças, as teriam vendido aos espíritos da vanglória e do desejo de agradar e, entregando-se às outras paixões, teriam misturado seus bons hábitos aos maus pensamentos da carne. É por isso que o que elas fizeram era inaceitável e impuro, como o sacrifício de Caim[126]. Elas foram privadas da alegria do Esposo e excluídas do lugar celeste das bodas.



Eis, portanto, aquilo que é preciso considerar, discernir, experimentar, para saber e compreender em que estado estamos, e nos corrigirmos enquanto temos ainda tempo para arrependimento e conversão. Também nossas boas obras, cumpridas com toda a pureza, serão verdadeiras e límpidas, e não se misturarão às coisas da carne, para que não sejam rejeitadas como um sacrifício defeituoso, por desrespeito a Deus, negligência e falta de verdadeiro conhecimento. Após havermos suportado as penas da virgindade, da temperança, das vigílias, dos jejuns e da hospitalidade, quando terminarmos nossos dias, evitaremos deste modo que, por causa das paixões de que falamos, aquilo que considerávamos como obras de justiça não se mostre um sacrifício defeituoso que não será recebido por Cristo, o sacerdote mais alto do que o céu.



É preciso assim, meu filho, que quem quiser tomar a cruz e seguir a Cristo vigie em primeiro lugar para adquirir o conhecimento e a inteligência, sondando continuamente em si mesmo os pensamentos, pensando sempre na salvação, cultivando a consciência, esforçando-se por ir em direção a Deus, interrogando os servidores de Deus que estão com ele de coração e alma e que levam adiante o mesmo combate, se não quiser, ignorando por onde caminha, andar pelas trevas sem a luz da lamparina. Pois quem vive como quer, na idiorritmia[127], sem o conhecimento evangélico, e vai pelo caminho sem ninguém que o guie, encontrará muitos obstáculos, cairá em muitos grotões e armadilhas do maligno, se perderá frequentemente, correrá múltiplos perigos, e não saberá que fim lhe aguarda. São numerosos, com efeito, os que passaram por muitas penas e asceses, que suportaram por Deus a vida dura e muitas aflições, mas que, pela idiorritmia, a falta de discernimento, a recusa à ajuda do próximo, viram anulados e tornados inúteis tantos sofrimentos.



Portanto você, filho bem-amado, como já lhe disse no início desta exortação, não vá, levado pelas enganações da malícia e da negligência, esquecer as benesses com que o cumulou o Deus adorado que ama os homens. Mas os bens que você recebeu desde seu nascimento até agora, sejam corporais ou espirituais, conserve-os diante dos seus olhos, medite sobre eles, repasse-os na memória, como foi dito: “Não esqueça nenhum de seus benefícios[128]”, a fim de que seu coração seja tranqüilamente levado a temer e amar a Deus, a ele respondendo, o quanto for possível, com uma vida rigorosa, uma conduta virtuosa, uma consciência pia, palavras afáveis, uma fé direita, um coração humilde, numa palavra, consagrando-se inteiramente a ele, cheio de pudor à lembrança dos bens que lhe confiou o bom Mestre que ama os homens. Então, dele próprio, ou melhor, com a ajuda e o impulso do alto, seu coração se abrirá à ferida do amor e do desejo[129], porque as maravilhas que ele não fez por outros muito melhores do que você, ele as fez para você em seu inefável amor pelo homem.



Portanto, esforce-se para manter sempre na memória estes bens que lhe foram concedidos por Deus. Em especial, lembre-se sempre desta grande e maravilhosa graça e deste benefício que ele lhe concedeu, como você nos contou, quando, juntamente com sua mãe, você fazia o périplo pelos Lugares Santos a caminho de Constantinopla, e uma terrível e irresistível tempestade se levantou em plena noite, desencadeando ondas enormes, tendo perecido no abismo todos os passageiros, os marinheiros e até sua própria mãe, enquanto que, pela incompreensível potência divina, apenas você, junto com outros dois, foram lançados à praia e salvos. Lembre-se como a providência lhe permitiu ir a Ancora, aonde você foi recebido por um homem livre com amor paternal, que o uniu numa mesma afeição a Epifânio, seu piedoso filho, de tal maneira que, conduzidos os dois por um santo homem, vocês alcançaram o caminho da salvação e foram acolhidos pelos santos servidores de Deus como crianças nobres.



A todas estas benesses que lhe vieram de Deus, o que tem você de digno para responder Àquele que atraiu sua alma para a vida eterna? Pois daqui para diante, o que é justo, é que você não viva mais para si mesmo, mas para Cristo que morreu e ressuscitou por você[130], esforçando-se para alcançar todas as virtudes da justiça, a observação dos mandamentos, procurando sempre a vontade de Deus, aquilo que é bom, que o agrada, aquilo que é perfeito[131], com todas as suas forças.



Meu filho, submeta apenas a sua juventude à palavra de Deus, como ela própria lhe pede. Ofereça seu corpo em sacrifício vivo, santo, que agrade a Deus, como o culto espiritual[132]. Moderando suas necessidades, bebendo pouco, passando as noites em vigília, você esfriará e secará a umidade dos desejos da carne, a fim de que também você possa dizer: “Eu me tornei como gelo, não esqueci seus mandamentos[133]”.



Sabendo que você é de Cristo, crucifique sua carne, como diz o Apóstolo, juntamente com suas paixões e desejos[134], e mortifique seus membros que estão sobre a terra[135], não apenas o ato da prostituição, mas toda impureza que age na carne sob o impulso dos maus espíritos. Pois não é somente até lá que aquele que quer receber a verdadeira virgindade, pura e perfeita, deve conduzir seu combate. Pois, segundo o ensinamento do Apóstolo, ele deve lutar para destruir até a marca e o movimento da própria paixão. E mesmo assim ele ainda não terá a plena certeza de estar recebendo em sua morada corporal, pela força de seu amor, a pura e angélica virgindade. Que ele reze para que desapareça até mesmo a lembrança do simples desejo do pensamento, lembrança que, independente do movimento e da energia corporal da paixão, vem como um sopro perturbar o intelecto. Mas não é possível chegar lá a não ser com o socorro do alto, o poder e os dons do Espírito, e no mínimo sendo julgado digno de receber tais graças.



É assim que aquele que recebeu a coroa da virgindade pura e imaterial crucifica sua carne pelas penas da ascese e mortifica seus membros que estão sobre a terra pela tensão e a paciência da temperança. Ela destrói o homem exterior, o afina e extenua, ela o seca, a fim de que, pela fé, pelos combates e pela energia da graça, o homem interior se renove a cada dia[136], progrida para o melhor, cresça em amor e se vista de doçura, feliz pela exultação do Espírito, recompensado pela paz de Cristo, conduzido pela obrigação, guardado pela bondade, cercado pelo temor a Deus, iluminado pela consciência e pelo conhecimento, esclarecido pela sabedoria, guiado pela humildade. Renovado por meio de tais virtudes, o intelecto, sob a ação do Espírito, descobre em si mesmo a marca da imagem divina, compreende a inefável beleza espiritual de sua semelhança com o Mestre, e torna sua a riqueza da sabedoria da lei interior, que instrui e ensina por si só.



Portanto, meu filho, afine esta carne ainda jovem. Alimente a alma imortal, como dissemos. E por meio das virtudes de que falamos, renove o intelecto na sinergia do Espírito. Pois a carne embebida em sua juventude pelas comidas e o vinho é como um leitão pronto para ser imolado. Também a alma é imolada pelo fogo dos prazeres do corpo. E o intelecto, incapaz de resistir aos prazeres da carne, torna-se cativo do calor dos desejos maus. Pois o afluxo de sangue provoca o refluxo do Espírito. É preciso, sobretudo, que a juventude não toque no vinho, que ela ignore até mesmo seu odor. Senão, pelo duplo incêndio, provocado de dentro pela energia da paixão e de fora pelo vinho entornado e consumido, o prazer da carne expulsará para longe o prazer espiritual fornecido pela pena e a compunção, e trará para o coração a perturbação e a dureza. Mais ainda, que, pelo desejo espiritual, a juventude recuse mesmo beber água até a saciedade. Pois a privação de água em muito ajuda a manter a castidade. Experimente isto na prática. É pela própria experiência que você receberá a plena certeza.



Pois não estamos lhe dando estas leis e regras porque queremos lhe impor o jugo do constrangimento, mas nós as recomendamos e aconselhamos afetuosamente, como um bom projeto e um bom método para alcançar a verdadeira virgindade e uma castidade rigorosa. Deixamos a você a liberdade de fazer o que quiser.



E agora falemos um pouco a respeito desta paixão irracional da cólera, que devasta a alma por inteiro, a coloca em confusão e trevas, e que, quando se levanta e se mostra, torna o homem, sobretudo aquele que se deixa levar facilmente, semelhante às feras. Singularmente, é no orgulho que esta paixão se enraíza, se reconstitui e se fortifica. Na medida em que a árvore diabólica do rancor, da cólera e da fúria é regada pela água perniciosa do orgulho, ela floresce, cresce e dá em abundância os frutos da iniqüidade. Assim se edifica na alma a moradia inefável do maligno, que tem seu apoio e sua força nas fundações do orgulho. Assim, se você notar que a árvore da iniqüidade – quero dizer, a paixão do rancor, da cólera e da fúria – seca em você e se torna estéril, a fim de que o machado do Espírito venha cortá-la e atirá-la ao fogo, segundo as palavras do Evangelho[137], e destruí-la junto com todos os males; se você quiser que seja destruída a moradia da iniqüidade, que o maligno edificou maldosamente em sua alma, trazendo para ela, por qualquer motivo, por nossos atos e palavras, em nossos pensamentos, diferentes pretextos racionais e irracionais que são outras tantas pedras, preparando assim na alma sua morada de malícia, fundamentando-a a consolidando-a por meio dos pensamentos de orgulho; se, digo eu, você quiser que esta casa seja destruída e arruinada, tenha constantemente, sem esquecê-la jamais, a humildade do Senhor em seu coração: quem ele é, o que ele se tornou para nós, de que alturas ele desceu, estas alturas de divina luz tanto quanto possível revelada às essências do alto e glorificada nos céus por todas as naturezas espirituais, anjos, arcanjos, tronos, dominações, principados, poderes, querubins e serafins, e outras potências intelectuais inefáveis cujo nome não chegou a nós, conforme o enigma do Apóstolo[138]. Lembre-se em que abismo de humilhação dos homens ele desceu por sua indizível bondade, em tudo fazendo-se semelhante a nós que estávamos nas trevas e nas sombras da morte[139], cativos desde a transgressão de Adão, e submetidos ao domínio do inimigo pelo efeito das paixões.



Enquanto estávamos infelizes em tal cativeiro, sob o império amargo da morte que não podíamos ver, o Mestre de toda criação visível e invisível não teve opróbrio. Ele humilhou a si mesmo, assumindo o homem submetido às paixões da infâmia e da concupiscência e condenado pela sentença do Mestre. Em tudo ele se fez semelhante a nós, mas sem o pecado[140], ou seja, sem as paixões da infâmia. Pois as penas infligidas ao homem pela sentença do Mestre depois do pecado da transgressão – a morte, o sofrimento, a fome, a sede e as demais – ele as tomou todas sobre si, tornando-se aquilo que somos, para que nos tornemos aquilo que ele é. O Verbo se fez carne[141], para que a carne se torne Verbo. De rico ele se fez pobre, para nos enriquecer com sua pobreza[142]. Em seu grande amor pelo homem, ele se fez semelhante a nós, a fim de que sejamos semelhantes a ele em todas as virtudes. Com efeito, depois que Cristo esteve entre nós o homem criado à imagem e semelhança se renovou verdadeiramente, pela graça e o poder do Espírito, alcançando enfim a medida do amor perfeito, que atira fora todo temor[143] e que não pode mais estar submetido ao golpe da queda, pois o amor não tomba jamais[144]. “Deus é amor, disse João, e quem permanece no amor permanece em Deus[145]”. Os apóstolos foram considerados dignos desta medida do amor, como  também o foram aqueles que se dedicaram às virtudes e que foram levados diante do Senhor até a perfeição, seguindo a Cristo por toda a vida num desejo perfeito.



É preciso então que você recapitule continuamente, sem nada esquecer, a enorme humilhação de que se revestiu o Senhor por afeição a nós, em seu amor pelo homem: a moradia do Verbo no seio de Deus, sua assunção como homem, seu nascimento de uma mulher, o progressivo crescimento de seu corpo, as repreensões, os ultrajes, os insultos, as gozações, as injúrias, o chicote, as cusparadas, o abandono espiritual, a ironia, o manto púrpura, a coroa de espinhos, a sentença das autoridades contra ele, os gritos dos Judeus iníquos, os homens de sua raça: “Levem-no, levem-no, crucifiquem-no[146]”, a cruz, os pregos, a lança, a bebida de vinagre com fel, o triunfo dos pagãos, a ironia daqueles que passavam dizendo: “Se você é filho de Deus, desça da cruz e acreditaremos em você[147]”, e todos os outros sofrimentos que ele suportou por nós: a crucificação, a morte, o enterro por três dias num túmulo, a descida aos infernos. E depois os frutos destes sofrimentos, e que frutos! A ressurreição dentre os mortos, o inferno e a morte abandonados pelas almas que retornaram com o Senhor, a subida aos céus, o assento à direita do Pai, a honra e a glória acima de toda autoridade, de todo poder, de todo nome que seja possível pronunciar[148], a adoração de todos os anjos ao primeiro nascido de entre os mortos[149], em razão de seus sofrimentos, segundo as palavras do Apóstolo: “Que haja em vocês os mesmos sentimentos que em Jesus Cristo, ele que, embora de condição divina, não guardou para si aquilo que o igualava a Deus, mas se despojou de tudo para assumir a condição de escravo. Ele se tornou igual aos homens e se comportou como um homem. Depois ele humilhou a si mesmo, obediente até a morte, e morte sobre a cruz. É por isso que Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo nome, a fim de que ao nome de Jesus Cristo todo joelho se dobre, nos céus, na terra e nos infernos[150]”.



Eis, segundo a justiça divina, a que glória e a que altura as razões que mencionamos levaram o Homem-Deus. Portanto, se em seu desejo e em suas disposições, você guardar em seu coração estas lembranças sem jamais as esquecer, você não será dominado pela paixão do rancor, da cólera e da fúria. A partir do momento em que os fundamentos da paixão do orgulho foram transformados pela humildade de Cristo que você recapitular em si, todo o edifício da iniqüidade, da fúria, da cólera e da tristeza ruirá sem dificuldade, como que por si só. Pois qual coração de pedra, por mais duro que seja, não será partido, trespassado, humilhado, se guardar constantemente em seu intelecto esta humilhação que a divindade do Filho único assumiu por todos nós, e a lembrança dos sofrimentos de que falamos? Não fará ele de si mesmo terra e cinzas[151], não se deixará ele pisotear por todos os homens, como diz a Escritura[152]? E se a alma é humilhada e partida à força de considerar assim a humildade de Cristo, que furor poderá dominá-la, que cólera, que rancor poderão carregá-la?



Mas naturalmente o esquecimento desses pensamentos que nos assistem e nos vivificam, sua irmã a negligência e seu auxiliar e parelha a ignorância, estas paixões da alma mais profundas e mais interiores, mais difíceis de descobrir e de corrigir, que velam e entenebrecem a alma sob uma perigosa inconseqüência, preparam as paixões do mal para operar e se ocultar na alma, levando para aí o desrespeito e a negligência do bem, e permitindo a cada paixão entrar e se exercer sem perigo e sem dificuldade. Com efeito, uma vez recoberta a alma pelo esquecimento mau, pela negligência fatal e pela ignorância, a mãe e nutriz de todos os males, o infeliz intelecto, cegado, é facilmente acorrentado a tudo o que vê, pensa e escuta. Se, por exemplo, ele enxerga a beleza de uma mulher, ele é imediatamente atingido pela concupiscência da carne. E se depois disto ele rememora o que viu, escutou ou tocou com paixão ou com prazer, as lembranças gravarão nele imagens, pela impressão que aí deixam os pensamentos e a má meditação. Desta maneira elas sujam, sob a influência do espírito da prostituição, o pobre intelecto vítima da paixão.



A partir do momento em que a carne, se está cheia de saúde, de juventude, de seiva, é rapidamente levada à paixão por tais lembranças, e, estimulada pela concupiscência, faz seu trabalho, seja em sonhos, seja acordada, o homem se atira à impureza, mesmo se aparentemente ele não teve relação com uma mulher.

Tal homem pode ser considerado por muitos como casto, virgem e puro, e até mesmo tido como santo, mas para Aquele que enxerga os segredos do coração, ele é considerado impuro, debochado, adúltero. E será com toda justiça que ele será condenado neste dia, se ele não se lamentar, não tomar seu luto, não ressecar a carne pelo jejum, as vigílias e as orações constantes, e se, curando e corrigindo o intelecto com santas recordações e a meditação da palavra divina, ele não oferecer um justo arrependimento a Deus, diante de quem ele pensou e cumpriu o mal. Pois jamais morre a palavra: “Em verdade vos digo, todo homem que olhar uma mulher com desejo já cometeu adultério com ela em seu coração[153]”.  É por isso que convém, sobretudo aos jovens, se possível, jamais entreter-se com mulheres, mesmo que elas sejam consideradas santas. Se é possível igualmente viver separado dos homens, aquele que puder viver assim levará adiante um combate mais leve e sentirá mais claramente seu próprio progresso, sobretudo se for rigorosamente atento a si mesmo, se moderar suas necessidades, se se contentar em beber apenas água, e pouca, se velar muito e se consagrar à oração, dedicando-se inteiramente ao combate, esforçando-se por freqüentar pais espirituais experientes, vivendo e se deixando guiar por eles.



Pois é perigoso viver isolado, em idiorritmia, sem testemunhas, e com homens sem experiência no combate espiritual. Estes homens estão dedicados a outra espécie de combate. Pois são numerosos os embustes e as enganações ocultas do mal, e variadas as armadilhas colocadas de todos os lados pelo inimigo. Então, é preciso se esforçar e se impor viver, se possível, com homens de conhecimento, ou no mínimo de encontrá-los regularmente. Assim, mesmo que você não possua em si a lâmpada do verdadeiro conhecimento, por ser ainda uma criança e não ter atingido a perfeição da idade espiritual, se você fizer o caminho com alguém que tenha a lâmpada, você não caminhará nas trevas, você não estará exposto ao perigo das redes e armadilhas, e não cairá diante das feras espirituais que, escondidas nas pastagens das trevas, assaltam e despojam aqueles que andam no escuro, sem a lâmpada espiritual da palavra divina.



Se então, meu filho, você quiser adquirir sua própria lamparina de luz e de conhecimento espirituais, para poder avançar sem tropeços na noite profunda deste século, e obter do Senhor que ele dirija sua marcha, para possuir a firme vontade de seguir o caminho do Evangelho, segundo as palavras do profeta[154], ou  seja, de abraçar com ardente fé os preceitos evangélicos mais perfeitos, e partilhar dos sofrimentos do Senhor pelo desejo e a oração, eu vou lhe mostrar um método maravilhoso e uma via espiritual que não requer nem penas nem combates corporais, mas que pede somente as penas da alma, a atenção do intelecto, uma reflexão contínua, com o recurso da assistência do temor e do amor a Deus. Seguindo este caminho, você poderá facilmente colocar em fuga a falange dos inimigos, a exemplo do bem-aventurado Davi que, pela fé e a confiança em Deus, foi ao encontro de um gigante estrangeiro[155] e derrotou assim facilmente, junto com seu próprio povo, a multidão de inimigos.



Este é o tema fundamental de nosso discurso: imagine que existem três gigantes estrangeiros, poderosos e fortes. É sobre eles que está apoiado o poder hostil do Holofernes espiritual. E será após sua destruição e morte que todo o poder dos espíritos do mal naufragará enfim. Os que são considerados como estes três gigantes do maligno são a ignorância, a mãe de todos os males, o esquecimento, seu irmão, auxiliar e associado, e por fim a negligência, que tece dentro da alma um véu tenebroso de nuvens negras, que consolida e fortalece os dois outros, dando-lhes consistência e enraizamento e mantendo o mal na alma cada vez mais descuidada. É sob o efeito da negligência, do esquecimento e da ignorância que se fortalece e cresce aquilo que sustenta as demais paixões. Pois os três se ajudam mutuamente e não são capazes de se sustentar uns sem os outros. Eles surgem assim como a força das potências adversárias e o vigor dos príncipes do maligno. É por meio deles, de fato, que toda a armada dos espíritos do mal se insinua, se instala e se coloca para cumprir seus desígnios. Mas sem eles, nada do que mencionamos consegue se manter.



Se então você pretende obter a vitória contra as paixões de que falamos, e expulsar a falange dos estrangeiros espirituais, pela prece e com a ajuda de Deus, penetre em si mesmo, mergulhe nas profundezas de seu coração e siga as pegadas destes três poderosos gigantes do diabo, o esquecimento, a negligência e a ignorância, que sustentam os estrangeiros espirituais, e por meio dos quais as outras paixões se insinuam, agem, vivem e se fortalecem nas almas ignorantes e nos corações que amam o prazer. Estes males, que a maior parte ignora até a própria existência, e que entretanto são mais perigosos do que os outros, você os descobrirá agora por um atenção redobrada, pela aplicação de seu intelecto, pela graça do alto e pelas armas da justiça que se opõem ao mal, ou seja, a boa memória, causa de todos os bens, o conhecimento iluminado, pelo qual a alma desperta expulsa as trevas da ignorância, e por fim, pelo desejo mais nobre, o desejo de salvação que prepara e apressa a alma.



É revestido com estas armas da virtude, e com o poder do Espírito Santo, que, com todas as preces e suplicações, nobre e corajosamente, você vencerá o combate contra os três gigantes dos estrangeiros espirituais. Pela boníssima memória de Deus, considerando continuamente o que é verdadeiro, o que é nobre, o que é justo, o que é puro, tudo o que existe de bom na virtude e no louvor[156], você afastará de si o esquecimento que está no fundo de todo mal. Pelo conhecimento celeste iluminado, você anulará a ignorância perniciosa que fundamenta as trevas. Enfim, pelo desejo pleno de virtude e de beleza, você expulsará a negligência atéia que enraíza o mal na alma. Porém você não adquirirá estas três virtudes pelo esforço da pura e simples vontade, mas pelo poder de Deus e a sinergia do Espírito Santo, graças a uma forte concentração e à prece. Assim você poderá escapar aos três poderosos gigantes do maligno que mencionamos.



Com efeito, é pela graça ativa que a obriga a permanecer na alma e guardá-la atentamente, que a harmonia do verdadeiro conhecimento, da lembrança das palavras de Deus e do bom desejo apagará da alma e reduzirá a nada os traços do esquecimento, da ignorância e da negligência. A partir de então, nela reinará a graça, em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.





[1]              Cf. João XVIII, 22.
[2]              Lucas XVIII, 38.
[3]              Cf. João IX, 38.
[4]              Cf. Atos XII, 10.
[5]              Cf. 1 Samuel, XXV.
[6]              Cf. 2 Samuel, XII,
[7]              Cf. Romanos XV, 4.
[8]              Cf. Hebreus XI, 1.
[9]              Cf. 2 Coríntios XIII, 5.
[10]             CF. Salmos XIX, 8.
[11]             Cf. 1 Timóteo I, 7.
[12]             João XV, 5.
[13]               Cf. Atos XIV, 22.
[14]             Cf. Hebreus XIII, 17.
[15]             Cf. Hebreus IV, 13.
[16]             Cf. 1 Samuel XVI, 7.
[17]             Provérbios XV, 11.
[18]             Cf. 2 Coríntios XI, 6.
[19]             Cf. 2 Coríntios VIII, 1 e XIII, 7.
[20]             Cf. 1 Timóteo VI, 10.
[21]             Cf. 1 TimóteoVI, 10.
[22]             Cf. Provérbios XXX, 15-16.
[23]             Cf. 1 João II, 15.
[24]             Cf. 2 Timóteo II, 4.
[25]             Lucas XIV, 33.
[26]             Cf. Gálatas VI, 7.
[27]             Cf. Gênesis XLIX, 17.
[28]             Cf. Eclesiástico XIII, 17.
[29]             Cf, Provérbios VI, 32.
[30]             Cf. Mateus III, 7.
[31]               Mateus X, 40.
[32]             Cf. Lucas V, 19.
[33]             Cf. Isaías XIV, 22 e XXVII, 16.
[34]             Lucas XIV, 11.
[35]             Cf. Zacarias III, 2.
[36]             Cf. 1 Tessalonicenses V, 21.
[37]             Cf. Mateus VI, 13.
[38]             Salmos XXXVII, 28.
[39]             1 Timóteo III, 12.
[40]             Efésios II, 3.
[41]             Salmos XX, 5.
[42]             Provérbios XVI, 8.
[43]             Cf. Provérbios V, 10.
[44]               Cf. Eclesiastes X, 19.
[45]               Cf. Gênesis XXXVII, 3.
[46]             Salmos XXV, 9.
[47]             Cf. Lucas IX, 2.
[48]             Lucas XVII, 10.
[49]             Cf. 1 Coríntios XV, 3.
[50]             Mateus XXV, 21.
[51]             Cf. 1 Coríntios VIII, 1.
[52]             Cf. Romanos V, 8.
[53]             Cf. 2 Coríntios V, 15.
[54]             Cf. Mateus XVI, 27.
[55]             Cf. Lucas III, 11.
[56]             Cf. Lucas XIV, 33.
[57]             Gálatas V, 17.
[58]             Cf. Gálatas V, 16.
[59]             Cf. Salmos LI, 19.
[60]             Cf. Mateus XIX, 30.
[61]             Cf. Salmos LXXIII, 28.
[62]             Cf. Mateus V, 44.
[63]             Cf. Mateus XXV, 14-30.
[64]             Cf. Provérbios XVI, 8.
[65]             Salmos CV, 7.
[66]             Cf. Mateus XXIV, 20.
[67]             Jeremias XXVIII, 9.
[68]             Cf. Gálatas V, 22.
[69]             Cf. Romanos I, 17.
[70]             Cf. Hebreus XI, 1.
[71]             Talvez referência a Romanos VII, 14-20.
[72]             Cf. 1 Coríntios XII, 11.
[73]             Cf. Atos II, 3.
[74]             Cf. 1 Samuel XI, 6 e XVI, 13.
[75]             Cf. 1 Coríntios XII, 11.
[76]             Cf. Efésios IV, 30.
[77]             Cf. 1 Tessalonicenses V, 19.
[78]             Cf. Romanos VIII, 23.
[79]             Cf. Cf. Atos II, 4 ou IV, 8 ou VI, 3 etc.
[80]             Cf. Salmos LXII, 10.
[81]             Cf. Salmos XXXIX, 7.
[82]             Cf. Marcos X, 30.
[83]             Cf. Salmos XXXII, 1.
[84]             Cf. Mateus V, 22.
[85]             Cf. 1 Timóteo II, 4.
[86]             Cf. Efésios VI, 12.
[87]             Cf. Lucas XVIII, 21.
[88]             Cf. Êxodo XX, 9.
[89]             Cf. Mateus XVIII, 21.
[90]             Hebreus IV, 11.
[91]             Lucas XVII, 1.
[92]             Hebreus XI, 1.
[93]             1 Coríntios IX, 24.
[94]             2 Coríntios XIII, 5.
[95]             Cf. Mateus VI, 33.
[96]             João XV, 5.
[97]             Cf. Mateus XVI, 24 e Atos XXVIII, 20.
[98]             Cf. 1 Timóteo II, 7 e VI, 9.
[99]             Cf. Provérbios IX, 8.
[100]            Cf. Provérbios XV, 27.
[101]            Cf. Eclesiástico XXVIII, 13.
[102]            Esta frase não se encontra nos escritos apostólicos.
[103]            Cf. Salmos XXVII, 14.
[104]            Lucas V, 5.
[105]            Cf. Atos IX, 8.
[106]            Cf. Atos VI, 15.
[107]            Cf. Gênesis XXII, 1 e ss.
[108]            Mateus VI, 14.
[109]            Cf. Provérbios XXVI, 3.
[110]            Cf. Salmos XXXI, 9.
[111]            Cf. Marcos XII, 37
[112]            João XIV, 21.
[113]            Mateus VI, 34.
[114]            Cf. Hebreus III, 6.
[115]            Cf. Mateus VII, 7.
[116]            Lucas XIII, 25.
[117]            Cf. Mateus VII, 8.
[118]            Cf. Salmos I, 2; CXIX, 16, 23, 71, 112 etc.
[119]            Cf. Romanos VII, 23.
[120]            Cf. 1 Tessalonicenses II, 17.
[121]            Salmos CXVI, 3.
[122]            Salmos CIII, 10.
[123]            Cf. 2 Timóteo III, 5.
[124]            Cf. Gálatas VI, 3.
[125]            Cf. Mateus XXV, 1-12.
[126]            Cf. Gênesis IV, 5.
[127]            Idiorritmia: designa a independência irresponsável do monge que não possui outra medida senão sua própria conveniência.
[128]            Salmos CIII, 2.
[129]            Desejo: tradução de epithymia, a primeira das três partes da alma. Trata-se da tensão que gera o amor do criado pelo incriado, ou do criado por si mesmo.
[130]            Cf. 2 Coríntios V, 15.
[131]            Cf. Romanos XII, 2.
[132]            Cf. Romanos XII, 1.
[133]            Salmos CXIX, 83.
[134]            Cf. Gálatas V, 24.
[135]            Cf. Colossenses III, 5.
[136]            Cf. 2 Coríntios IV, 16.
[137]            Cf. Mateus III, 10.
[138]            Cf. Efésios I, 21.
[139]            Cf. Isaías IX, 2.
[140]            Cf. Hebreus IV, 15.
[141]            João I, 14.
[142]            2 Coríntios VIII, 9.
[143]            Cf. 1 João IV, 18.
[144]            Cf. 1 Coríntios XIII, 8.
[145]              1 João IV, 16.
[146]            Mateus XXVII, 39-40.
[147]            Mateus XXVII, 39-40.
[148]            Cf. Efésios I, 21.
[149]            Cf. Hebreus II, 6-10.
[150]            Filipenses II, 6-10.
[151]            Cf. Gênesis XVIII, 27; XLII, 6; Eclesiástico XVII, 32.
[152]            Cf. 2 Reis XIX, 26.
[153]            Mateus V, 28.
[154]            Cf. Salmo XXXVII, 23.
[155]            Cf. 1 Samuel XVII, 45.
[156]            Cf. Filipenses IV, 8.

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