Evagro o
Pôntico
SOBRE
OS
PENSAMENTOS
Tradução do grego
Paul GÉHIN,
Claire GUILLAUMONT,
Antoine GUILLAUMONT
Tradução do francês
Tito Kehl
M M I X
A todos os mestres,
para retribuir e para transmitir.
INTRODUÇÃO
A DOUTRINA
1.
NATUREZA DO
TEXTO
Como
muitos outros livros de Evagro, em especial o Praktikos, o Gnostikos, o
Kephalaia Gnostica, etc., o tratado Sobre os pensamentos é formado por
aquilo que Evagro denomina kephalaia;
este termo figura no próprio título do tratado, em grande parte da tradição
manuscrita; o próprio Evagro o emprega no presente tratado, quando ele se
refere ao kephalaion 17 (correspondente
ao capítulo 24, #4-5). Na falta de melhor, traduzimos kephalaion por “capítulo”, mas este termo não deve ser tomado no
sentido que lhe damos atualmente. Diferentemente de uma obra moderna, os kephalaia não fazem parte de um discurso
contínuo; cada kephalaion é autônomo,
formando um todo em si mesmo e consagrado a um único objeto. Os kephalaia aqui são de tamanho bastante
variável: o mais longo (25) tem um desenvolvimento de 56 linhas; os mais curtos
(38-40; 42-43) têm menos de dez linhas; o mais comum é terem de 15 a 30 linhas.
Às vezes diversos capítulos referentes a um mesmo tema seguem-se e parecem
agrupados; é o que acontece com os capítulos 27, 28 e 29 sobre os sonhos e
visões noturnos; uma fórmula de transição, no início do capítulo 27, introduz o
assunto. Mas, habitualmente, cada capítulo é independente daqueles que o
precedem ou seguem, o que é frisado pela ausência – salvo raras exceções – de
partículas de ligação no início dos capítulos. Ao contrário, encontramos às
vezes kephalaia formados, em parte
(26) ou inteiramente (31), de outros kephalaia
independentes reunidos aqui de modo mais ou menos artificial pelo emprego de
partículas de ligação.
Em
outras obras formadas por kephalaia, estes, embora independentes uns dos
outros, vêm organizados segundo certos temas, de tal forma que o conjunto pode
apresentar algum ordenamento das matérias. NO presente tratado não discernimos
nada disto; à exceção do capítulo 1 que pode ser considerado como servindo de
introdução e de alguns capítulos curtos no final (38-40; 42-43), que fazem as
vezes de conclusão, nenhum plano ou ordenamento transparece no corpo do
tratado. Quanto à ordem dos capítulos e mesma à sua divisão, existem
importantes divergências na tradição manuscrita, e o texto apresentado aqui está
baseado em algumas opções. Esta desordem tem sua origem nas vicissitudes da
tradição manuscrita, bem como no próprio estado em que Evagro legou o texto,
sem te-lo revisado, ao que parece. Daí a necessidade que encontramos, para a
exposição da doutrina, em si mesma muito coerente, de reagrupar alguns textos
que estavam dispersos no corpo do tratado.
2. SÍNTESE DOUTRINAL
O
tratado Sobre os pensamentos apresenta uma ligação estreita com o Tratado prático: este dirigia-se ao
“prático” (praktikos) e o ensinava como chegar, por meio da “prática” (praktiké),
aos umbrais da impassibilidade. O presente tratado está endereçado mais
especificamente àquele que, tendo franqueado o portal da impassibilidade,
tornou-se um “gnóstico” (gnostikos), alcançou a ciência espiritual ou
“gnose”, e intenta elevar-se, através dos diferentes graus da contemplação, até
a “oração pura” e a visão da luz divina. Assim, para o gnóstico, a prática, ou
seja a luta pela impassibilidade, deve prosseguir, pois a impassibilidade
comporta vários níveis e, para progredir na ciência, ele deve progredir na
impassibilidade, desde o início desta (ou “pequena impassibilidade”, capítulo
15) até a “maior e primeira impassibilidade” (capítulo 10). Por conseguinte, o
combate contra os demônios e os pensamentos que estes sugerem, que é a essência
da prática, continua na vida gnóstica; mas o gnóstico não tem que combater
apenas os demônios que se opõem à prática, atacando a “parte passional da
alma”, mas também aqueles que flagelam a parte racional e são adversários da
contemplação, conforme a distinção que é feita no capítulo 84 do Tratado
prático.
Esta
distinção é retomada, em outros termos, no presente tratado. No capítulo 18,
Evagro distingue entre os demônios que nos atacam enquanto animais que somos e
aqueles que nos atacam enquanto homens, seres providos de razão. Estes últimos
são os que se agarram ao nosso intelecto, instrumento da ciência. Os primeiros
fazem agir contra a sua natureza as partes concupiscente e irascível, cujo
conjunto forma aquilo que o Praktikos denomina “a parte passional da
alma”, parte que temos em comum com os animais. Sobre a parte concupiscente
agem especialmente o demônio da gula que sabe recorrer a truques para quebrar a
abstinência já bem adquirida pelo gnóstico (35) e, mais violento, o da
fornicação que não hesita em impor ao espírito daquele que já triunfou sobre
seus maus pensamentos a visão de cenas eróticas, chegando mesmo a atacar a
carne, fazendo-a ceder a um “abrasamento animal”; mas estas tentações, assegura
Evagro, não duram muito, expulsas por meio de uma prece intensa, da ascese e da
contemplação (16). Bem mais temíveis e duráveis são, para o gnóstico, aqueles
que colocam em ebulição sua parte irascível; dela provém aquele que é um dos
principais obstáculos à oração pura: “Se alguém quiser obter a oração pura
(...) que domine sua irascibilidade e vigie os pensamentos que ela engendra, ou
seja, aqueles que têm sua origem na suspeita, no ódio e no rancor, que mais do
que tudo cegam o intelecto...” (5, 16, 32). Como no Gnostikos, (cap. 8),
Evagro repreende aqueles que “acendem sua irascibilidade” processando seus
irmãos sob o pretexto de que os bens a que eles renunciaram devem ser
distribuídos aos pobres (32); é a prova de uma renúncia imperfeita (5).
Mas,
sobretudo, os demônios contra os quais deve lutar o gnóstico são aqueles que, atacando-o em sua
condição de homem, flagelam seu intelecto e se opõem ao progresso na via da
contemplação; estes demônios são principalmente os da vanglória e do orgulho
(18). Estão expostos à vanglória aqueles que adquiriram “um começo de
impassibilidade” (15); ela nasce das próprias práticas ascéticas, das
renúncias, das esmolas, do jejum, quando são cumpridos com o desejo de dar
espetáculo aos homens e disto tirar alguma glória (3, 30); o demônio da
vanglória aproveita-se do fracasso dos outros demônios, depois do que ele lhes
reabre as portas da alma (14). O pensamento da vanglória é, dentre todos os
pensamentos, aquele que dispõe de mais matéria: “ele abarca quase toda a terra
habitada e abre a porta para todos os demônios” (14); é provavelmente o demônio
da vanglória que Evagro chama de “vagabundo”, que se aproxima dos irmãos
sobretudo no início da aurora e “conduz o intelecto de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de
casa em casa, aonde o monge faz muitos reencontros, caindo, seja sob o demônio
da fornicação, seja sob o da cólera ou o da tristeza (9). Os pensamentos
persistentes de vanglória entregam aos poucos a alma ao demônio “que torna a
alma insensível”, o qual faz com que ela não mais considere o pecado como
pecado, não creia mais no castigo nem no
julgamento eternos, que permaneça insensível aos argumentos tirados da
Escritura e à reprovação dos irmãos
(11). Do pensamento da vanglória nasce o do orgulho (14), vício supremo que
“provoca a perda do espírito” (21, 26),
Como
pode o gnóstico lutar contra esses demônios e contra os pensamentos inspirados
por eles, de modo a escapar ao desastre
final a que conduz o orgulho e, ao contrário, continuar progredindo na
ciência até alcançar a oração pura?
Evagro
sugere ao monge que se torna gnóstico os mesmos conselhos que lhe dava quando
este se dedicava à vida prática; ele aconselha inclusive que o gnóstico não
deve se preocupar com o que comer ou vestir, virtude da despreocupação que ele
recomendava aos iniciantes em seu Bases
da vida monástica. Assim como o prático, o gnóstico combaterá os maus
pensamentos vindos da parte concupiscente de sua alma por meio de exercícios
ascéticos, como o jejum, a vigília e o sono sobre leito duro; ele domará sua
parte irascível, mais rebelde nele, pela longanimidade, a ausência de rancor,
as esmolas (3), mas também pela salmódia e, sobretudo, fazendo crescer em si a
virtude da mansidão (27); com efeito, “quase nenhuma virtude é tão temida pelos
demônios quanto a mansidão” (13). O gnóstico que adquiriu um certo domínio
sobre suas paixões tem outros meios para lutar contra os demônios; assim ele
poderá utilizar, com a condição de que tenha suficiente domínio, sua parte
irascível contra os ataques brutais do demônio da fornicação (16). Do mesmo
modo ele pode fazer bom
Uso
dos pensamentos da tristeza para destruir os dos outros demônios, com a
condição de utilizá-los de forma “homeopática”, como se usa o veneno das
víboras, tomado em pequenas doses, para destruir o veneno de outros animais
(12).
Sobretudo,
o gnóstico possui, para combater os demônios, a ciência que ele adquiriu graças
a ter alcançado a impassibilidade. Daqui para frente ele já não combate, como o
fazia o prático, “à noite”, mas ele contempla “as razões da guerra” e
“reconhece facilmente as manobras dos inimigos” (Pr., 83). Agora ele sabe como os demônios introduzem nele seus
pensamentos, o que lhe permite triunfar com mais facilidade. Eles o fazem
utilizando aquilo que Evagro denomina noémata,
termo que designa a “representação”, a imagem, semelhante à marca que os
objetos percebidos pelos sentidos deixam no intelecto (25). Estas
representações estão no princípio do conhecimento, que é para Evagro, segundo a
tradição estóico-aristotélica, de origem sensível. Elas são dadas ao homem, em
sua condição presente (em que ele está ligado a um corpo) para que, a partir
delas, ele possa elevar-se a uma ciência mais alta, até a ciência do próprio
Deus. Deus confiou-as a nós como um rebanho a um pastor, e nos deu a parte
concupiscente da alma para que as amemos e a parte irascível para que as
defendamos contra os “lobos”, ou seja, contra as representações enviadas pelos
demônios (17).
De
fato, é utilizando as representações de objetos sensíveis que os demônios agem
sobre a alma e introduzem nela seus maus pensamentos (2; 24), tentando desviar
suas partes concupiscente e irascível de sua função natural para fazê-las
servir ao seu próprio fim, que consiste em impedir o homem de alcançar a
ciência. Essas representações vindas dos sentidos são conservadas na memória,
de onde elas podem ser chamadas seja pelo intelecto, seja pelos próprios
demônios (2), e se o objeto foi percebido com paixão, sua representação mantém,
mesmo chamada pela memória, um caráter passional. Com o monge a quem Evagro se
dirige e que é, por seu estado, um solitário, um “anacoreta” – portanto, em
princípio, afastado dos “objetos” que atingem os sentidos[1] –
os demônios utilizam, sobretudo as representações conservadas na memória; em pleno
deserto, o encontro, mais ou menos recente, com um irmão, pode estar na origem
de uma representação passional persistente, como no caso do monge que guardava
rancor de outro cujo rosto não cessava de obcecá-lo durante a prece (37); mesmo
na solidão da cela, o monge não está ao abrigo das más representações; assim,
quando ele está aplicado na leitura das Escrituras, os demônios sabem utilizar
o próprio texto sagrado para sugerir seus maus pensamentos (33). Mas no
solitário, as representações são feitas principalmente das lembranças
apaixonadas que alimentam e amplificam as divagações da imaginação, às quais a
solidão, dia e noite, dá livre curso.
Como
podem os demônios agir sobre a memória e nela buscar as representações? Sem
dúvida, por intermédio das paixões, supõe Evagro (4). Mas como podem eles
conhecer as paixões que estão na alma e as representações conservadas na
memória? Com efeito, Evagro assegura que somente Deus é “cardiognóstico”, ou
seja, somente ele conhece o que está dentro do coração dos homens; mas os
demônios podem conhecê-lo observando os sinais exteriores, gestos ou palavras,
no que eles são muito hábeis (37). Do mesmo modo eles não podem agir sobre
nosso espírito senão passando pelo nosso corpo. Evagro descreve de maneira
muito precisa e bastante curiosa, a partir daquilo que ele próprio observou,
como alguns demônios fazem adormecer aqueles que lêem tocando suas pálpebras e,
fazendo-os bocejar, insinuam-se no interior de sua boca (33); da mesma forma, o
demônio da tristeza, agindo sobre a pupila, cria um obstáculo à oração evocando
a imagem de um pecado há tempos cometido (36). Dentre essas representações com
as quais nos tentam os demônios está a de nosso próprio corpo, que está no
campo de nossos sentidos com exceção do rosto; por meio desta representação nós
nos vemos indo e vindo e, quando se apresenta a figura de outra pessoa,
estendendo a mão para dar ou receber; e é assim que, quando surge a tentação,
nos imaginamos nos irritando contra um irmão ou fornicando com uma mulher (25).
Se o monge se abandona a isto, essas imagens se sucedem em seu espírito,
sugeridas por vários demônios que se seguem ao primeiro; assim, vítima do
demônio da avareza, ele se vê inicialmente, em imaginação, encarregado da
gestão do dispensário dos pobres e, para tanto, recolhendo grandes somas de
dinheiro; logo sobrevêm as imagens da vanglória: ele se vê cercado da estima de
muitos e promovido, não sem algumas contestações que o irritam, à prelazia;
surgem então visões provocadas pelo orgulho, visões aterradoras, feitas de
relâmpagos ininterruptos, de aparições de dragões alados na cela, visões que
levam o monge à perda do espírito e à loucura (21). A este mal estão
especialmente sujeitos os que se retiram para a solidão, longe dos irmãos,
porém ainda susceptíveis aos golpes da cólera, da tristeza ou do orgulho (23).
A
essas imagens do dia acrescentam-se as imaginações noturnas, chamadas de fantasiai; os demônios sabem provocar
naquele que dorme e cujas partes concupiscente e irascível não estão ainda
suficientemente purificadas, imaginações que despertam nele as paixões; para
tanto, eles sacodem a memória, liberando representações que esta guardava à
parte; às vezes eles se utilizam de percepções que chegam aos sentidos do
adormecido, como por exemplo o ruído do vento (28), como fazem com o barulho
das ondas para os navegantes (4). Assim eles provocam sonhos terrificantes, e o
monge adormecido se vê presa de áspides aladas, cercado por animais ferozes
carnívoros, estrangulado por serpentes ou atirado do alto de montanhas
elevadas; às vezes ele vê os demônios se transformarem em mulheres com atitudes
indecentes e provocantes (27). Quando não conseguem sacudir assim as partes
concupiscente e irascível, os demônios provocam sonhos de vanglória: o monge se
enxerga vestido com o manto de pastor e apascentando um rebanho, representação
simbólica da dignidade da qual ele se crê investido; revestido com a prelazia,
talvez do dom da cura, ele vê afluir para si, de todos os países, pessoas
trazendo presentes. Às vezes, ao contrário, são as visões da tristeza, de
infelicidades ocorridas a seus próximos ou de perigos que o ameaçam: ele se vê,
por exemplo, caindo de altas escadas, símbolo de seu naufrágio na vida
monástica (28). Às vezes estas imaginações da noite prosseguem durante o dia
(27); com efeito, os demônios sabem combinar as representações do dia com as
imaginações da noite, pois a parte passional da alma é mais facilmente excitada
durante o dia quando foi perturbada por visões na noite precedente; ou,
inversamente, eles procuram humilhar com visões noturnas aqueles que foram
perturbados no dia anterior.
Como
pode o gnóstico combater esses demônios e os pensamentos que eles sugerem e por
que meios poderá ele triunfar?
É
preciso, em primeiro lugar, identificar o demônio autor da tentação que se
apresenta. O gnóstico o identificará a partir da natureza da representação que
a acompanha; se for a imagem de alguém que o ofendeu ou irritou que se
apresenta ao seu espírito, é o sinal de que é o demônio da cólera que o está
tentando; e o mesmo ocorrerá com relação aos outros pensamentos (2).
Identificado o demônio, como expulsar a representação de que ele se serviu para
tentar introduzir seus pensamentos? Evagro coloca em princípio que nosso
espírito não pode receber ao mesmo tempo as representações de dois objetos
diferentes e que portanto ele não pode ser tentado por dois demônios
simultaneamente. O procedimento a que recorrerá o gnóstico consistirá, por
conseguinte, em expulsar a representação intrometida de um mau pensamento
provocando a vinda de uma outra representação (24).
Ser-lhe-á
também possível expulsar o mau pensamento por meio de um bom pensamento, pois
se os maus pensamentos “cortam” os bons, inversamente os bons pensamentos podem
cortar os maus (17). Se, com efeito, em suas obras, Evagro fala sobretudo dos
maus pensamentos – a tal ponto que, sob sua pena, a palavra “pensamento”
empregada sem qualificativo, designa por si só quase sempre, os maus
pensamentos – nem por isso deixa de ser claro para ele que existem também os
bons pensamentos, cuja origem e cuja natureza são precisamente definidas neste
tratado Sobre os pensamentos, melhor do que em qualquer outro. No
capítulo 8 Evagro distingue, além dos “pensamentos demoníacos”, ou seja maus,
os “pensamentos humanos”, constituídos de representações simples desprovidas de
paixão, e os “pensamentos angélicos”, que perscrutam a natureza das coisas
criadas e as suas “razões”; são estes que acompanham a contemplação espiritual.
Levando mais longe sua análise, Evagro distingue, no capítulo 31, dentre os
pensamentos humanos aqueles que são bons e os que são maus: os bons são, de um
lado, aqueles que provêm de nossa natureza, que é boa como tudo o que Deus
criou – estes pensamentos são os mesmos que fazem com que também os pagãos amem
seus filhos e honrem seus pais – e, de outro, aqueles que provêm de nossa
vontade, quando esta, segundo a clássica comparação da balança, “inclina-se
pelo melhor”; maus são os pensamentos que vêm de nossa vontade quando ela “se
inclina pelo pior”. Assim diz Evagro que “ao pensamento demoníaco opõem-se três
pensamentos que o cortam quando ele se demora no espírito” (31): o pensamento
angélico e os dois pensamentos humanos bons.
Para
cortar os pensamentos diabólicos, os mais eficazes são evidentemente os
pensamentos angélicos. São estes que, na contemplação (theoria)
espiritual em que deve progredir o gnóstico, formam o que Evagro chama de “as
contemplações” (theorêmata); à sua ação juntam-se os “sonhos angélicos”
que, à noite, visitam os que são puros e impassíveis (4); contrariamente aos
sonhos demoníacos, “eles trazem uma grande calma à alma, uma alegria inefável”
e, durante o dia, “a supressão dos pensamentos passionais, a prece pura e até
algumas razões dos seres, que começam a aparecer sob a ação do Senhor e que
revelam a sabedoria do Senhor” (28). Os bons pensamentos e as contemplações que
o gnóstico assim adquiriu são semelhantes às pedras que Davi tirou de sua bolsa
de pastor para abater Golias, imagem do demônio. Eles dizem respeito aos anjos
e aos demônios, ao modo como eles nos visitam e agem sobre nós, ao modo como
Lúcifer, em especial, decaído de seu estado original, tenta arrastar a todos os
outros seres em sua queda. Estas considerações “ferem gravemente o demônio e
colocam em fuga todo o seu acampamento”. O gnóstico poderá então enfrentar o
demônio “mano a mano” e agir como Davi que cortou a cabeça de Golias com a
própria espada deste (19).
O
gnóstico pode, realmente, triunfar sobre o demônio utilizando as mesmas armas
deste, ou seja, os próprios maus pensamentos. Ele o fará por meio da análise,
decompondo o pensamento em seus diversos elementos: assim, “ao longo da sua
investigação, o pensamento, reabsorvido em seu próprio exame, será destruído, e
o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito terá sido elevado aos
cumes por meio desta ciência” (19).
Esta
análise, que é um procedimento altamente intelectual, ao alcance apenas do
gnóstico já bastante avançado na impassibilidade e na ciência, está
fundamentada sobre a observação, que pode ser feita tanto no momento mesmo da
tentação, seja após um curto período, como o demonstra Evagro ao descrever a
conduta a se manter diante do demônio que ele chama de “vagabundo”: não lhe
dizer nada no próprio instante, mas observar o modo como ele procura arrastar o
intelecto em todas as suas divagações; ele se retirará então por si mesmo,
“pois ele não admite ser visto enquanto faz das suas”; Evagro aconselha a
deixá-lo agir assim inclusive nos dias que se seguem, de maneira a “conhecer em
detalhe todas as suas maquinações”, após o que se pode colocá-lo em fuga
“desmascarando-o com uma simples palavra”. Como isto pode ser difícil de
executar no próprio instante da tentação, Evagro aconselha ao gnóstico
remeter-se à memória de tudo o que se passou, no dia seguinte, a fim de poder
mostrar ao demônio, quando este se apresentar novamente, que ele viu e
compreendeu todo seu jogo; deste modo desmascarado, o demônio fugirá
envergonhado (9).
Ao
longo de toda essa luta contra os demônios deve crescer no gnóstico a aversão
que ele deve sentir em relação a estes: se necessário, o “médico das almas”,
Jesus Cristo, que já o assistiu durante todo seu percurso ascético, utilizará o
“abandono espiritual”, abandono fingido e provisório, com o fim de estimulá-lo
e conduzi-lo à “aversão perfeita” em relação aos demônios, só experimentada por
aquele que “não peca nem em ato nem em pensamento”, e que é “o sinal da maior e
mais primordial impassibilidade”, acesso à mais alta ciência (10; 3).
É
no capítulo 40 que Evagro trata mais especificamente da contemplação espiritual
e dos seus diferentes graus, aos quais chega paulatinamente o gnóstico. Ela
procede também por “representações” (noèmata), mas aqui surge uma
distinção fundamental: Evagro distingue entre as representações que deixam uma
marca no intelecto e as que não deixam (41); as que deixam uma marca são, como
vimos, aquelas que procedem da percepção, por intermédio dos sentidos do corpo,
de um objeto corporal; mas quando o gnóstico se eleva à contemplação de sua
“razão” – seu logos, termo que designa aquilo que é a um tempo sua razão
de ser e seu princípio explicativo – a representação não possui marca nem
figura ; e quando intelecto passa à contemplação das naturezas incorpóreas,
quer se trate destas em si ou de suas “razões”, as representações também não
deixarão nem marca nem figura nele; a bem dizer, só podemos falar em
“representações” (noèmata) aqui por pura analogia; trata-se, na
realidade, de “contemplações” (theorèmata); os theorèmata, termo
empregado por Evagro geralmente no plural, correspondem, na contemplação (theoria)
espiritual, àquilo que são os noèmata
para o conhecimento sensível. Com mais razão ainda, quando se trata da
ciência de Deus, na expressão to noema tou Theou (41), o termo noema,
empregado de maneira analógica, não significa mais a “representação”, mas a
idéia, o conceito, ou melhor, o pensamento, a lembrança de Deus, ê mnème tot
Theou, como diz Evagro em um contexto análogo em Discípulos, 61; com
efeito, este estado não poderia implicar nenhuma vacuidade de espírito. Ao
progredir na ciência, elevando-se de contemplação em contemplação, o intelecto
chega, num momento privilegiado, à “oração pura”: ele vê então a si próprio
como “lugar de Deus”, “semelhante à safira e à cor do céu”, conforme o relato
da teofania do Sinai em Êxodo, XXIV, 10-11[2],
passagem na qual a Septuaginta
substituiu o “Deus” do texto hebraico pelo “lugar de Deus”(39). Esta visão é
caracterizada por uma luz, que é a própria luz de Deus (15), luz que de certo
modo é refletida pelo intelecto e da qual Evagro diz paradoxalmente que “modela
o lugar de Deus” (40). Nesta visão, o intelecto deve não apenas estar
desprovido de toda e qualquer representação de objetos sensíveis, mas deve
ainda elevar-se acima da contemplação espiritual das naturezas criadas, tanto
das corpóreas como das incorpóreas (40).
O
tratado Sobre os pensamentos termina com aquilo que constitui o cume da
vida espiritual, ele que havia iniciado com a lembrança dos exercícios da vida
prática; desta forma ele retraça, malgrado o aspecto desordenado da matéria que
o constitui, todo o itinerário espiritual da alma desde sua condição presente
até seu término, a visão da luz divina.
3. AS FONTES DA DOUTRINA
A
primeira fonte da matéria exposta neste tratado provém evidentemente da
observação psicológica, fundamentada sobre a experiência do próprio Evagro e
dos monges em meios aos quais ele levou a vida monástica nas Kellia. Suas
análises, de uma perspicácia notável, concernem assim aos fatos da vida
psíquica diretamente observados. Mas o fim a que Evagro se propõe não se resume
apenas a descrever estes fatos, estes “maus pensamentos” ou “pensamentos
demoníacos” cuja análise ocupa um grande espaço do tratado; ele quer
principalmente alertar, mostrar, desmontar o mecanismo, de maneira a ensinar
como fazê-lo fracassar: a obra não é somente descritiva, mas essencialmente
terapêutica. Para tanto, sublinha Evagro, ele esforçou-se em seguir, de modo
indutivo, como procedimento, a ciência profana, a teoria dos fatos observados e
descritos, de tal maneira que o leitor possa verificar a partir de sua própria
experiência o que é dito, “sobretudo, especifica ele, se for inteligente e
tiver experiência na vida monástica” (25).
Para
tal, Evagro utiliza as fontes da cultura escolástica que ele recebeu em que se
misturavam elementos vindos principalmente do estoicismo e do aristotelismo.
Uma noção fundamental é expressa pelo termo nòema
que, emprestado a Aristóteles, aparece 47 vezes neste tratado, e que
traduzimos, depois de muita hesitação, por “representação[3]”.
O que Evagro denomina noèma, para
designar a imagem provocada pela percepção de um objeto sensível corresponde
exatamente àquilo que os estóicos chamam de fantasia,
termo que costuma ser traduzido por “representação”; a linguagem que Evagro
utiliza para designar a marca deixada (tipoun)
pela imagem no intelecto é, também ela, emprestada aos estóicos, inspirada em
uma comparação habitual entre eles conforme o testemunho de Diógenes Laércio,
em Vidas, VII, 46: “Eles [os estóicos]
dizem que a representação (fantasia)
é uma marca (tipoosis) na alma; este
termo é tomado da marca feita por um anel na cera.[4]”
Esta comparação é, em si, banal: nós a encontramos em Platão[5], a
propósito da memória, e em Aristóteles[6];
mas o uso que Evagro faz dela é o mesmo dos estóicos, quando ele afirma que “o
intelecto não tem a faculdade de receber ao mesmo tempo a representação de dois
objetos sensíveis”(24). Esta tese é a mesma de Cleanto; mas ela era discutida
entre os discípulos de Zenon; ela foi rejeitada por Chrysipo precisamente
porque, pensava ele, se é verdade que a cera não pode receber ao mesmo tempo e
no mesmo lugar diversas marcas, uma representação pode, ao contrário, ser
acompanhada de uma segunda sem que esta a faça desaparecer, assim como a
memória pode reter a representação de muitos objetos sem que a representação de
um objeto expulse a de um outro. Esta era uma questão controversa; o que Evagro
afirma, retomando a opinião de Cleanto, está conforme à opinião que, de seu
lado, expunha Aristóteles em seu tratado Sobre a sensação e os sensíveis,
segundo a qual não é possível receber simultaneamente duas sensações por um
único sentido, e mesmo por dois.
Podemos
nos perguntar por que Evagro preferiu o termo aristotélico noema ao estóico fantasia.
De fato, em virtude do princípio segundo o qual todo conhecimento é de origem
sensível, o noema aristotélico tem
como origem a imagem produzida pela percepção de um objeto sensível, imagem
normalmente chamada de fantasia; mas
o noema é distinto desta imagem
porque esta, recebida pelo intelecto, é elaborada por ele, “conceitualizada” de
certo modo – daí o sentido de “conceito” que o termo recebe habitualmente.
Podemos pensar que foi esta relação estreita que a imagem tem com o intelecto (nous) que determinou a Evagro adotar o
termo noema ao estóico fantasia.
Uma
tendência análoga aparece entre os próprios estóicos. Segundo Diógenes Laércio,
os estóicos distinguiam entre as fantasiai
que se produzem nos seres racionais, de um lado, e as que têm os animais
desprovidos de razão; estas últimas não têm um nome próprio, mas as primeiras
são chamadas de “intelecções racionais”, logikai
noéseis; distinção análoga é reportada por Aécio: “Quando uma imagem chega
a uma alma racional, ela é chamada de ennoema,
nome tomado do intelecto (nous)”,
enquanto que as que se produzem entre os animais não passam de imagens. A esta
distinção corresponde uma outra já reportada pelo mesmo Diógenes, feita não
mais segundo o sujeito que recebe a representação, homem ou animal, mas segundo
o objeto e o órgão por meio do qual, em razão de sua natureza, o objeto é
percebido: “Dentre as representações, uma são sensíveis, outras não; as que são
sensíveis são as que são recebidas por um ou mais órgãos dos sentidos, as não
sensíveis aquelas que o são pela inteligência, com as dos incorpóreos e das
outras coisas recebidas pela razão”. Esta nova distinção permite compreender
aquela que faz Evagro no capítulo 41, aparentemente em contradição com a
própria definição que ele havia dado de noema
como “marca”, entre as representações que deixam uma marca e as que não deixam
uma marca no intelecto. Esta contradição não deixa de evocar a dificuldade de
Aristóteles em definir a relação entre a imagem do objeto sensível, fantasia, e o próprio noema: tendo colocado em princípio,
contra Platão, que todo conhecimento é de origem sensível, mesmo o dos
inteligíveis, ele se pergunta em que medida pode haver imagens no conhecimento
dos inteligíveis: os conceitos (noemata),
afirma ele, não são imagens, “embora não sejam desprovidos de imagens[7]”.
Os
estóicos distinguiam, além disso, entre a representação que resultava da
percepção imediata de objetos sensíveis, fantasia,
e, de outro lado, a imagem, chamada de fantasma,
de um objeto que não está presente, mas que é simplesmente chamado pela
memória, ou a de um objeto irreal, como as que se produzem nos sonhos. Sobre
este ponto, a terminologia de Evagro é mais próxima da de Aristóteles, que
chamava a imaginação de fantasia,
termo que Evagro emprega no plural para designar as “imaginações” que sobrevêm
notadamente durante o sono (4; 27; 28); o mesmo termo serve, por outro lado,
para designar as imagens dos objetos conservados pela memória (2; 14). Com
efeito, Evagro não distingue claramente a memória e a imaginação que
Aristóteles considerava como provenientes da mesma porção da alma[8].
Como Evagro, Aristóteles já havia notado o papel exercido pelas paixões, em
particular a cólera, sobre as imagens do sonho e as alucinações, como, por
exemplo, as aparições de animais sobre as paredes.
As
representações (noemata) servem de
suporte e de veículo para os “pensamentos” (logismoi);
é assim que os demônios introduzem na alma seus pensamentos por meio da
representação de objetos sensíveis (2). No emprego que faz, seguindo Orígenes,
do termo logismos, tomado no mais das
vezes no sentido de mau pensamento ou pensamento demoníaco, Evagro não é mais
dependente da tradição filosófica helênica, para a qual o termo logismos não podia ter senão uma carga
semântica favorável, mas ele utiliza uma concepção tradicional judaica,
expressa pela palavra hebraica yêsér,
que designa, na maior parte das vezes, a má tendência existente no homem. Ora,
no presente tratado, se os maus pensamentos são o principal assunto tratado,
Evagro não deixa de afirmar também, como vimos, que existem no homem os bons
pensamentos; isto é conforme à doutrina judaica referente a yêsér, pois, se existe no homem um mau yêsér que o induz às más ações, Deus
colocou nele também um bom yêsér, uma
boa tendência que o induz ao bem. Assim, o “pensamento” (logismos) não é em Evagro o mesmo da tradição helênica, um produto
do intelecto; ele pode agir sobre ele por intermédio das representações, mas
lhe é estranho; no homem, ele provém do exterior, seja dos anjos, seja dos demônios,
ou de sua natureza criada boa por Deus, ou de sua vontade que pode ser
distorcida para o mal (31).
Paul Géhin
Claire
Guillaumont
Antoine
Guillaumont
SOBRE
OS
PENSAMENTOS
1
Os três
pensamentos fundamentais
Dentre os demônios que se opõem à prática[9],
os primeiros a se apresentar ao combate são aqueles encarregados dos apetites
da gula, os que nos sugerem a avareza e os que nos estimulam a procurar a
glória humana[10].
Todos os outros caminham atrás destes, recolhendo aqueles que eles feriram. Com
efeito, não é possível cair nas mãos do espírito da fornicação, sem antes haver
sucumbido à gula[11];
não é possível deter a parte irascível se não a combatermos por via dos alimentos,
das riquezas e da glória[12];
não é possível fugir do demônio da tristeza se nos sentirmos privados de tudo
isto ou se não os pudermos adquirir[13];
tampouco escaparemos do orgulho, o primeiro broto do diabo, se não banirmos “a
avareza, raiz de todos os males”[14],
porque, como disse o sábio Salomão, “a pobreza torna humilde o homem”[15].
Em poucas palavras, não é possível que alguém sucumba ao demônio, sem antes ter
sido ferido pelos assaltantes da primeira fileira (protostátai)[16].
É por isso que foram estes os três pensamentos que o diabo outrora apresentou
ao Salvador, convidando-o primeiramente a transformar as pedras em pães,
prometendo-lhe em seguida o mundo inteiro se ele se prosternasse para adorá-lo,
e em terceiro lugar dizendo-lhe que, se ele o obedecesse, ele seria glorificado
por não sofrer dano algum de tal queda. Mostrando-se superior a estas
tentações, Nosso Senhor ordenou ao diabo que se retirasse[17];
com isto ele nos ensina que não é possível afastar o diabo sem antes desprezar
estes três pensamentos[18].
2
As
representações sensíveis e a memória a serviço dos
pensamentos
Todos os pensamentos demoníacos introduzem na alma representações de
objetos sensíveis[19]:
impressionado[20]
com eles, o intelecto carrega[21]
em si as formas destes objetos; e assim é conforme o próprio objeto que ele
pode reconhecer o demônio que se aproximou[22].
Por exemplo, se em meu espírito forma-se o rosto de alguém que me fez mal ou
que me desonrou, é a prova de que o pensamento do rancor e do ressentimento me
fez uma visita; ou ainda, se sobrevierem lembranças de riquezas ou de glória, é
evidente que será a partir destes objetos que poderá ser reconhecido aquele que
nos atormenta. O mesmo acontece com relação aos outros pensamentos: partindo
dos objetos você descobrirá quem está presente e faz essas sugestões. Não quero
com isto dizer que todas as lembranças de tais objetos venham dos demônios –
pois o próprio intelecto, por ser movido pelo homem, possui a faculdade natural
de lembrar as imagens do que existe – mas apenas aquelas que forçam contra a
natureza[23]
as partes irascíveis e concupiscentes. De fato, é por causa da perturbação
destas potências que o intelecto comete em espírito o adultério e a violência[24],
tornando-se incapaz de receber a imagem de Deus que lhe impôs sua lei[25],
se é verdade que esta claridade se manifesta à faculdade diretora [da alma] no
momento da prece com a supressão de todas as demais representações ligadas aos
objetos[26].
3
A luta
contra os pensamentos: cuidados contra a vanglória
O homem não pode desembaraçar-se das lembranças apaixonadas senão
tomando cuidado com suas partes concupiscente e irascível, esgotando a primeira
por meio dos jejuns, das vigílias e do sono sobre leitos duros, aprisionando a
segunda através da longanimidade, da ausência de ressentimentos e das esmolas.
Com efeito, é a partir destas duas paixões que se formam quase[27]
todos os pensamentos demoníacos que precipitam o intelecto “na ruína e na
perdição”[28].
Ora, é impossível a alguém triunfar sobre estas paixões se não
desdenhar completamente as comidas, as riquezas e a glória, e até seu próprio
corpo[29],
por causa daqueles que tantas vezes tentam inflá-lo. É assim absolutamente
necessário imitar alguém que está em perigo no mar e que atira a carga pela
amurada, devido à violência dos ventos e às ondas desenfreadas[30].
Mas vigiem para não atirar a carga pela amurada diante dos homens, fazendo-lhes
espetáculos; pois já receberam a paga, e um outro naufrágio, mais temível que o
primeiro, seguir-se-á, com o demônio da vanglória insuflando o vento contrário[31].
É por isso que Nosso Senhor, nos Evangelhos, instrui nestes termos o piloto,
que é o intelecto: “Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens,
para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso
Pai que está no céu[32]”;
e ainda: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de
pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em
verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa[33]”;
e ele diz também: “Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os
hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que
jejuam. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa[34].”
Mas é o médico das almas[35]
que devemos observar aqui: assim como pela esmola ele cura a parte irascível,
pela prece purifica o intelecto, e pelo jejum extenua a parte concupiscente;
desta maneira, “o homem novo renova-se à imagem de seu Criador[36]”,
e nele, graças à santa impassibilidade, “não existe mais homem nem mulher”,
nele “não existe mais grego ou judeu, nem circuncisos ou incircuncisos, nem
bárbaro, nem cita, nem escravo, nem homem livre, mas somente o Cristo, que será
tudo em todos.[37]”
4
O papel da memória nos sonhos
É preciso procurar como, nas imaginações do adormecer, os demônios
deixam uma marca e uma figura em nossa faculdade diretora[38].
Pois estas coisas, parece, produzem-se no intelecto, seja por intermédio dos
olhos quando ele vê, seja pelo ouvido quando escuta, seja por um sentido
qualquer, ou então pela memória[39],
que deixa marcas na faculdade diretora, não por meio do corpo, mas colocando em
movimento aquilo que ela obteve por intermédio do corpo. Pois bem, parece-me
que é colocando em movimento a memória que os demônios deixam marcas na
faculdade diretora, visto que o organismo se mantém inativo durante o sono. Mas
vejamos agora como eles colocam em movimento a memória: não seria por
intermédio das paixões? Sim, evidentemente, porque aqueles que são puros e
impassíveis não experimentam nada disso[40].
Entretanto existe também um movimento simples da memória, provocado por nós ou
pelas santas potências, graças ao qual, durante nosso sono, possamos
reencontrar os santos, conversarmos e comermos com eles[41].
Para tanto é preciso lembrar que as imagens que a alma recebe por meio do corpo
são postas em movimento pela memória, sem o corpo; a prova disto está no fato
de que freqüentemente experimentamos essas coisas mesmo dormindo, enquanto o
corpo está em repouso. Assim como é possível lembrarmo-nos da água quer
estejamos ou não com sede, podemos lembrar do ouro com ou sem cupidez, e do
mesmo modo qualquer outra coisa. Que o intelecto encontre tais ou tais
variedades de imagens será o indício do trabalho pernicioso daqueles lá. E é preciso
ainda saber o seguinte: os demônios servem-se também de objetos exteriores para
produzir uma imagem, como por exemplo o ruído das ondas para um navegador[42].
5
O domínio
da irascibilidade
Quando arrastada contra sua natureza, nossa irascibilidade fornece uma
enorme ajuda aos demônios para que atinjam seu objetivo, e se presta toda útil
às suas odiosas maquinações. É por isso que, dia e noite, nenhum deles deixa um
instante de perturbá-la; e quando eles a vêem enlaçada com a doçura,
apressam-se a encontrar justos pretextos para separá-la o mais depressa
possível, a fim de que, colocando-se em prontidão[43],
ela sirva aos seus pensamentos ferozes. Também é preciso não provocá-la sob
nenhum pretexto, justo ou injusto, e não atirar um funesto punhal contra os
autores das sugestões. Conheço muitos que agem assim freqüentemente e se
inflamam mais do que o necessário pelas razões mais fúteis. Em função de que,
diga-me, “você se atira tão depressa numa discussão[44]”,
se é verdade que você desprezou alimentos, riquezas e glória? E porque você
alimenta seu cão[45],
se faz profissão de nada possuir? Se ele late e ataca as pessoas, é evidente
que você possui alguns bens no interior, que ele deve guardar. De minha parte,
estou convencido de que um tal homem está longe da oração pura, sabendo que a
irascibilidade é um flagelo para esta oração. E é de espantar que ele esqueça
assim os santos, como David que clama: “Põe fim à tua cólera e renuncie à
irascibilidade[46]”,
como o Eclesiastes que proclama: “Afasta a cólera de teu coração e a malícia da
tua carne[47]”,
e como o Apóstolo, que prescreve “erguer as mãos em todo lugar sem cóleras nem
disputas[48]”.
Porque não nos instruirmos pelo antigo costume dos homens, que consistia em
expulsar da casa os cachorros no momento da oração? Isto significa em termos
velados que a irascibilidade não deve estar presente entre aqueles que oram.
Vejam ainda: “A cólera dos dragões é seu vinho”; ora, assim os Nazireus
abstinham-se de vinho[49].
Acrescento que um sábio pagão declarou que a vesícula biliar e a parte lombar
não eram comestíveis pelos deuses[50],
sem saber, penso eu, o que dizia. Para mim, são símbolos, a primeira da cólera
e a segunda da concupiscência irrazoável[51].
6
A virtude da
despreocupação
Quanto ao fato de que não devemos nos preocupar com as vestes nem com a
alimentação, penso que é supérfluo escrever a respeito, porque o próprio
Salvador, nos Evangelhos, profere esta proibição: “Não vos preocupeis consigo
mesmos, com o que comereis ou bebereis, ou o que vestireis[52]”.
Pois é isto o que fazem os pagãos[53]
e os descrentes que rejeitam a providência do Mestre e renegam o Criador, mas
esta atitude é inteiramente estranha aos cristãos, uma vez que eles crêem que
mesmo “os dois pardais que se vendem um centavo” estão sob a administração dos
santos anjos[54].
Entretanto os demônios têm também o hábito de enviar os pensamentos impuros da
preocupação, para que Jesus se afaste devido à multidão[55]
de representações que ocupam o lugar do espírito e para que sua palavra se
torne estéril, sufocada pelos espinhos[56]
da preocupação. Portanto, depois de nos havermos desembaraçado dos pensamentos
que provêm das preocupações, “coloquemos nossas preocupações no Senhor[57]”,
contentando-nos com o que temos no presente[58];
e, adotando um modo de vida e vestimentas pobres, desnudemos em pleno dia os
autores da vanglória. Se alguém pensa faltar à decência pela pobreza de suas
vestes, que ele considere São Paulo que “no frio e na nudez[59]”
alcançou a coroa da justiça[60].
E como o Apóstolo chamou de teatro[61]
e de estádio[62] o
mundo em que vivemos, vejamos se é possível, vestido com os pensamentos da
preocupação, correr “pelo prêmio do chamado do alto trazido por Cristo[63]”
ou lutar contra “os principados, as potestades e as dominações destas trevas[64]”.
Da minha parte não sei nada disto, uma vez que fui instruído pelo que se passa
na realidade sensível: nela, com efeito, nosso lutador se verá atrapalhado por
sua túnica e será facilmente batido. É o que acontecerá também com o intelecto,
sob os efeitos dos pensamentos preocupados, se é verdadeira a palavra que diz
que o intelecto é firmemente ligado ao seu tesouro: “Aonde estiver seu tesouro,
ali estará seu coração.[65]”
7
Como os
pensamentos cortam uns aos outros
Dentre os pensamentos, há os que cortam e há os que são cortados: os
maus cortam os bons e são cortados por eles. Sendo assim, o Espírito Santo
permanece atento ao pensamento que primeiro foi colocado, e é a partir dele que
ele nos condena ou aprova. O que quero dizer é o seguinte: eu tenho um
pensamento de hospitalidade e o tenho por causa do Senhor, mas ele é cortado
quando o tentador chega e sugere que eu seja hospitaleiro pela glória que isto
traz[66].
Outro exemplo: eu tenho um pensamento de hospitalidade tendo em vista
mostrar-me aos homens, mas ele também é cortado, quando se introduz um
pensamento melhor que orienta minha virtude para o Senhor constrangendo-me a
não agir assim em função dos homens. Se assim, por nossos atos, a partir daí
permanecermos com nossos primeiros pensamentos, ainda que postos à prova pelos
segundos, receberemos a paga pelos pensamentos colocados antes, porque, por
sermos homens, e por lutarmos contra os demônios, não termos a força para
guardar incólume um pensamento reto nem, inversamente, para mantermos um maus
pensamento sem tentação, por termos em nós as sementes da virtude[67].
Mas se um dos pensamentos que cortam se prolonga, ele se instala no lugar do
que foi cortado, e será segundo este segundo pensamento que daí em diante o
homem receberá o impulso que o fará agir.
8
Três tipos de pensamentos: angélicos,
humanos e demoníacos
Após uma longa observação, aprendemos a conhecer a diferença que existe
entre os pensamentos angélicos, os pensamentos humanos e aqueles que provêm dos
demônios. Os dos anjos, para começar, perscrutam a natureza das coisas e buscam
suas razões espirituais. Por exemplo: porque o ouro foi criado, porque ele é
terroso e está disseminado nas profundezas do solo, e porque ele não é
descoberto sem muito esforço e pena; e como, uma vez descoberto, ele é lavado
na água, colocado no fogo, e assim posto nas mãos dos artesãos que farão o
candelabro da Tenda, o queimador de perfumes, o incensório, as taças[68]
nas quais, pela graça de nosso Salvador, já não é um rei da Babilônia que bebe[69],
mas Cleófas, que traz um coração ardente destes mistérios[70].
O pensamento demoníaco não sabe nem quer saber de nada disto[71],
mas sugere sem a menor vergonha a simples aquisição do ouro sensível e prediz o
desfrute e a glória que resultarão disto. Quanto ao pensamento humano, ele
tanto visa a aquisição quanto perscruta o simbolismo do ouro, mas introduz no
espírito apenas a forma simples do ouro, fora de qualquer paixão de cupidez. O
mesmo vale para outros objetos, exercendo-se mentalmente a mesma regra[72].
9
O demônio
“vagabundo”
Existe um demônio a que chamamos de “vagabundo[73]”
e que se aproxima dos irmãos sobretudo nos começos da aurora[74];
ele passeia o intelecto de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em
casa; este é levado assim a simples encontros, depois chega aos conhecidos,
tagarela longamente, e deste modo arruina, no contato destes encontros, seu
próprio estado, distanciando-se insensivelmente da ciência de Deus e da
virtude, esquecendo-se até de sua profissão. É preciso assim que o anacoreta observe
este demônio[75]:
de onde ele parte e aonde ele chega, pois não é ao acaso nem aventureiramente
que ele cumpre este longo circuito, mas é com a intenção de arruinar o estado
do anacoreta[76]
que ele age desta maneira, para que o intelecto, inflamado por tudo isso e
embevecido por esses encontros, caia rapidamente sob o demônio da fornicação,
ou sob o da cólera, ou da tristeza, que mais do que todos prejudicam a clareza
de seu estado. Mas nós, que temos como objetivo conhecer exatamente a
engenhosidade deste demônio, não lhe dirigimos a palavra em seguida nem lhe
revelamos o que se passa: como ele produz os encontros em pensamento e de que
modo ele arrasta insensivelmente o intelecto à morte, pois ele fugirá para
longe: ele não admite ser visto enquanto faz estas coisas; e assim não
saberemos nada daquilo que nos propomos a aprender. Mas deixemo-lo, dia após
dia, chegar até o fim do seu jogo, para que, depois de termos aprendido a
conhecer em detalhe suas maquinações, o coloquemos em fuga, desmascarando-o com
uma palavra. Mas, como acontece de no momento da tentação o intelecto achar-se
confundido e não conseguir perceber com precisão o que se passa, eis o que você
deve fazer após a retirada do demônio: sente-se e rememore para si mesmo os
eventos que aconteceram, de onde você partiu e aonde você chegou, em que ponto
você foi tomado pelo espírito de fornicação, ou de cólera, ou de tristeza, e
como, ainda, aconteceu o que aconteceu; observe estes detalhes e entregue-os à
memória, a fim de poder desmascará-lo quando ele se aproximar; revele a ele o
lugar secreto que ele guarda, e também que você não o seguirá mais até ali. Se
você quiser enlouquece-lo de furor, desmascare-o assim que ele se apresente e,
numa palavra, denuncie o primeiro lugar por onde ele entrou, e o segundo, e o
terceiro: como ele não suporta a humilhação, isto será especialmente penoso
para ele. A fuga do pensamento para longe de você será a prova de que você lhe
dirigiu a palavra correta, pois é impossível a este demônio permanecer depois
de ter sido abertamente desmascarado. À retirada deste demônio sucede um sono
pesado, uma espécie de morte[77]
acompanhada de um grande esfriamento das pálpebras e bocejos sem fim, costas
pesadas e inchadas: todos fenômenos que, graças a uma intensa prece, o Espírito
Santo dissipará.
10
A perfeita
aversão aos demônios
A aversão que apresentamos aos demônios contribui de modo especial para
a nossa salvação e favorece a prática da virtude; mas não temos a força para
nutri-la em nós como uma espécie de bom embrião, porque os espíritos amigos do
prazer a destróem e convidam a alma a voltar à sua amizade habitual; a esta
amizade – ou melhor, esta gangrena dificilmente curável – o médico das almas
cura com a solidão moral[78]:
de fato, ele permite[79]
que nós padeçamos certo terror com isto noite e dia, para que a alma retorne
depressa à aversão primitiva, aprendendo com Davi a dizer ao Senhor: “Eu os
odeio com uma aversão perfeita, eles se tornaram inimigos para mim.[80]”
Pois ele odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em
ato nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade[81].
11
O demônio da
insensibilidade
Quanto ao demônio que torna a alma insensível[82],
preciso falar dele? Pois, de minha parte, temo até escrever a seu respeito:
como a alma sai de seu próprio estado quando ele chega e rejeita o temor a Deus
e a piedade; ela deixa de considerar o pecado como pecado, não mais estima a
transgressão como transgressão; o castigo e o julgamento eternos são lembrados
por ela como simples palavras e a alma “se ri”, realmente, “do cismo que
abrasará tudo[83]”.
Ela se diz temente a Deus, mas ignora o que ele prescreve; você arranha o peito[84]
enquanto ela se volta para o pecado, mas ela permanece insensível; você argumenta
a partir das Escrituras[85],
e ela permanece insensível; você lhe expõe a culpa que vem dos homens, e ela
não se dá conta da vergonha que ela causa entre os irmãos; esta alma está
privada de inteligência, como um porco com os olhos vendados que destrói seu
chiqueiro. Este demônio é atraído por persistentes pensamentos de vanglória; é
dele que foi dito: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma criatura se
salvaria[86]”.
E com efeito ele se encontra entre aqueles que raramente visitam os irmãos, e a
razão é evidente: diante do sofrimento de outros que são acossados por doenças,
ou que vegetam nas prisões, ou sucumbem a uma morte súbita, este demônio se põe
em fuga, pois a alma é pouco a pouco penetrada pela compunção e acede à
compaixão quando a cegueira provocada por este demônio se dissipa. Tudo isto
nos falta, por causa do deserto e porque os doentes são raros entre nós. Foi
principalmente este demônio que o Senhor quis por em fuga nos Evangelhos,
quando ele prescreveu ver os doentes e visitar os que estão na prisão: “Eu
estava doente, disse ele, e vocês vieram me visitar, estava preso e vieram até
mim[87]”.
Mas é preciso também saber o seguinte: se um dos anacoretas que caiu diante
deste demônio não concebeu pensamentos de fornicação, ou não deixou sua casa
sob os efeitos da acídia[88],
é porque este homem recebeu a castidade e a perseverança[89]
vindas do céu; bem-aventurado é ele por possuir uma tal impassibilidade! Quanto
aos que fazem votos de piedade e escolhem habitar com os seculares, que se
acautelem contra este demônio. Quanto a mim, eu ruborizo diante dos homens só
de falar dele ou de escrever daqui para frente a seu respeito.
12
O demônio da
tristeza
Todos os demônios ensinam a alma a gostar do prazer: apenas o demônio
da tristeza não quer fazê-lo, e ele chega até a destruir os pensamentos dos
outros que estão ali, destroçando e secando todo o prazer da alma por meio da
tristeza[90],
se é verdade que “os ossos do homem triste secam[91]”.
E se ele combate moderadamente, ele torna o anacoreta experiente, pois o
convence a não se aproximar dos bens deste mundo e a evitar todo prazer; mas se
ele se implanta daí para frente, ele engendra pensamentos que aconselham a alma
a evadir-se, ou que a obrigam a fugir para longe. É o que o santo Jó sofreu e
meditou, quando foi atormentado por este demônio: “Se eu pudesse, disse ele,
dar a mão a mim mesmo, ou ao menos pedir a um outro que o fizesse por mim![92]”[93]
Este demônio é simbolizado pela víbora, este animal cuja substância natural,
ministrada em dose suportável ao homem, destrói o veneno dos outros animais,
mas se tomado em estado puro destrói o próprio ser vivo. É a este demônio que
Paulo entregou o pecador de Corinto[94];
é por isso que ele se apressou a escrever novamente aos Coríntios estas
palavras: “Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba por
demasiada tristeza.[95]”
Mas ele sabia que este espírito que aflige os homens pode também trazer-lhes um
bom arrependimento: é a razão pela qual são João Batista chamava aos que são
picados por este demônio e se refugiam junto a Deus de “raça de víboras”,
dizendo-lhes: “Ao ver, porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao
seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera
vindoura? Dai, pois, frutos de verdadeira penitência. Não digais dentro de vós:
Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar
destas pedras filhos a Abraão.[96]”
Mas todo homem que, a exemplo de Abraão[97],
deixou sua terra e sua família, este se torna mais forte do que este demônio.
13
A aquisição da
doçura
Quem dominou a irascibilidade dominou os demônios, mas quem é escravo
deles é totalmente estranho à vida monástica e está fora dos caminhos de nosso
Salvador, pois o próprio Senhor disse “ensinar o caminho aos mansos[98]”.
Assim o intelecto dos anacoretas se torna difícil de capturar, quando foge
pelas planícies da doçura. Pois quase nenhum virtude é tão temida pelos
demônios como a doçura; é ela que o grande Moisés possuía, ele que foi chamado
de “o mais doce dos homens[99]”[100];
e o santo Davi declarou ser digno da lembrança de Deus, ao dizer: “Lembre-se de
Davi e de toda a sua doçura[101].”[102]
Por outro lado, o próprio Salvador nos ordenou sermos imitadores desta doçura,
quando ele disse: “Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu
sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas[103].”
E se alguém se abstém de comidas e bebidas, mas excita sua parte irascível com
maus pensamentos, este se parece com um barco que se faz ao largo tendo um
demônio como piloto. Assim é preciso vigiar, tanto quanto possível, o cão que
mora em nós e ensiná-lo a não atacar senão os lobos e a não devorar as ovelhas,
mostrando toda a doçura para com todos os homens[104].
14
O pensamento
da vanglória
Único dentre os pensamentos, o da vanglória possui muita matéria[105];
ele abarca quase toda a terra habitada e abre as portas a todos os demônios,
como o faria um reles traidor para uma cidade. Ele também humilha
particularmente o intelecto do anacoreta, enchendo-o com uma multitude de
palavras e de objetos e corrompendo suas orações, graças às quais ele se
esforça por curar todas as feridas de sua alma. É este pensamento que faz
crescer todos os demônios que haviam sido destruídos[106],
e é graças a ele que eles todos encontram um acesso para as almas, tornando
realmente o “novo estado pior do que o primeiro[107]”.
Deste pensamento nasce também o do orgulho[108],
que precipitou dos céus sobre a terra “o selo da semelhança e a coroa da beleza[109]”. “Vamos! Deixemos sem tardança este lugar[110]”,
de medo que abandonemos nossa vida a outros e nossa existência a pessoas sem
piedade[111].
Este demônio é afugentado por uma prece intensa e pela recusa em fazer ou dizer
voluntariamente qualquer coisa que possa contribuir para a glória maldita.
15
O começo da
impassibilidade e vanglória
Quando o intelecto dos anacoretas adquiriu um início de
impassibilidade, então ele adquire o cavalo da vanglória e rapidamente desfila
pelas cidades, locupletando-se com os elogios, vinho puro trazido pela glória[112].
Por um desígnio providencial, o espírito da fornicação que vem ao seu encontro
e que o encerra em alguma porcaria[113]
o ensina a não deixar seu leito antes de haver recuperado a saúde perfeita[114],
e a não imitar os doentes indisciplinados que, mesmo carregando em si as
seqüelas da doença, metem-se em caminhadas e banhos inoportunos e têm recaídas.
É por isso que, permanecendo sentados, estejamos mais atentos a nós mesmos;
assim, progredindo na virtude, seremos difíceis de sermos arrastados pelo mal[115];
renovando-nos na ciência, receberemos por outro lado uma abundância de
contemplações variadas[116];
e também elevando-nos pela prece, receberemos uma visão mais clara da luz de
nosso Salvador[117].
16
A
engenhosidade dos demônios: o exemplo do demônio
da fornicação
Não posso escrever sobre todas as maquinações dos demônios e tenho
vergonha de enumerar seus estratagemas, temendo pelos meus leitores eventuais
mais simplórios[118].
Escutem no entanto como é a engenhosidade do demônio da fornicação. Quando
alguém adquiriu a impassibilidade da parte concupiscente e fez com que os
pensamentos vergonhosos sejam doravante um pouco esfriados, este demônio
introduz homens e mulheres que se divertem juntos, e torna o anacoreta espectador
de ações e atitudes condenáveis[119].
Mas esta tentação não é das que mais duram, pois uma oração intensa e um regime
estrito unido às vigílias e ao exercício das contemplações espirituais a
expulsam “como uma nuvem sem água[120]”.
Às vezes, ele ataca a carne e faz o anacoreta ceder a um abrasamento animal[121].
O maligno demônio inventa ainda mil outros estratagemas que não precisamos
publicar e confiar à escrita. Contra tais pensamentos é extremamente eficaz a
efervescência da parte irascível dirigida contra o demônio, parte que ele teme
mais do que tudo quando ela é perturbada a propósito de pensamentos e destrói
suas representações[122].
É isto que significa: “Encolerize-se e não peque mais.[123]”
Aplicado à alma, é um remédio útil nas tentações. Mas o demônio da cólera
também sabe imitar este outro: ele também inventa parentes, amigos e conhecidos
maltratados por celerados, e induz a parte irascível do anacoreta contra
aqueles que lhe aparecem em pensamento; é preciso estar atento a isto e
arrancar rapidamente do intelecto tais imagens, de medo que, ligando-se a elas,
ele não se torne na hora da prece um “tição fumegante”[124].
Os irascíveis são vítimas destas tentações, pois estão acima de tudo sujeitos
às inflamações da cólera; eles estão longe da prece pura e da ciência de Cristo
nosso Salvador.
17
Necessidade de evitar as boas representações
As representações deste século foram confiadas pelo Senhor ao homem
como ovelhas a um bom pastor[125],
pois foi dito: “Ele deu ao mundo o seu
coração[126]”; para ajudá-lo, ele acrescentou-lhe
a parte irascível e a parte concupiscente, a fim de que pela primeira ele
afugente as representações que são os lobos, e pela segunda ele cuide das
ovelhas[127],
ainda que as chuvas e os ventos se abatam sobre ele. Ele lhe deu também “um
pasto”, para que as ovelhas possam pastar, “um lugar de verdes pastagens e uma
fonte de águas refrescantes[128]”,
“uma harpa e uma cítara[129]”,
“um bastão e um cajado[130]”,
para que ele retire do rebanho alimento e vestes para que ele “pise as
forrações nas montanhas[131]”,
pois foi dito: “Quem apascenta um rebanho e não se alimenta de seu leite?[132]”
É preciso assim que o anacoreta guarde noite e dia este pequeno rebanho, de
medo que uma das representações se torne presa das bestas selvagens[133]
ou caia nas mãos de algum ladrão[134],
e se qualquer coisa semelhante acontecer neste “valezinho florido”, ele deve
sem tardança arrancá-la “da goela do leão e do urso[135]”.
A representação concernente a um irmão se torna presa dos animais selvagens, se
a fazemos pastar em nós com antipatia; a que concerne à mulher, se a nutrimos
com concupiscência vergonhosa; a do ouro e da prata, se ela for guardada com
cupidez; e as representações dos santos carismas, se a fizermos passear no
espírito em companhia da vanglória[136].
O mesmo acontecerá com as outras representações, quando se tornam vítimas das
paixões. O anacoreta não deve apenas vigiá-las de dia, mas ainda guardá-las à
noite velando, pois ele pode também perder seu bem em imaginações condenáveis e
más[137].
É o que disse o santo Jacó: “Não lhe apresentei os animais despedaçados, mas eu
os compensava com os meus. Você me pedia contas do que era roubado de dia e de
noite. De dia, eu era devorado pelo calor, e de noite pelo frio, e não
conseguia pegar no sono.[138]”
Mas se, sob o efeito da fadiga, nos sobrevier uma certa acídia, refugiemo-nos
por um momento sobre o rochedo da ciência[139],
tomemos nossa harpa e toquemos com as virtudes as cordas da ciência[140];
depois voltemos a apascentar nossa ovelhas ao pé do monte Sinai, a fim de que o
Deus de nossos pais nos chame, a nós também, do interior do arbusto[141]
e nos faça, a nós também, a graça de conhecer as razões “dos sinais e dos
prodígios[142]”.
18
Duas categorias de demônios
Dentre os demônios impuros, alguns tentam o homem enquanto homem,
enquanto outros perturbam o homem enquanto animal não dotado de razão[143].
Quando são os primeiros que nos visitam, eles jogam em nós representações de
vanglória, de orgulho, de inveja ou de maledicência, todas coisas que não
atingem os seres desprovidos de razão. Quando são os segundos que se aproximam,
eles arrastam nossa irascibilidade e nossa concupiscência num movimento
contrário à sua natureza; pois temos estas partes passionais em comum com os
animais sem razão, embora dissimuladas por nossa natureza racional. É por isso
que o Espírito Santo diz àqueles que sucumbem aos pensamentos humanos: “Eu
declaro: «Embora vocês sejam deuses, e todos filhos do Altíssimo, vocês
morrerão como qualquer homem. Vocês, príncipes, cairão como qualquer outro[144]».
Aos que são arrastados num movimento animal, que diz ele? “Não seja como o
cavalo ou o jumento, que não compreendem nem rédea nem freio: deve-se avançar
para domá-los, sem o que eles não se aproximarão de você[145].”
Se é verdade que “a alma pecadora morrerá[146]”,
é evidente que os homens que morrem como homens serão enterrados por homens[147],
enquanto que os que morrem ou tombam como animais serão devorados por abutres
ou corvos[148],
cujos filhos tanto “invocam o Senhor[149]”
como “refestelam-se no sangue[150]”.
“Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça![151]”
19
Dois modos de lutar contra os demônios
Quando um dos inimigos o visitar para feri-lo e você quiser, como está
escrito, “voltar contra seu coração sua própria espada[152]”,
aja da seguinte maneira. Divida em você o pensamento que ele enviou: o que é
ele? De quantos elementos se compõe e dentre estes qual o que mais atormenta o
intelecto[153]?
Eis o que quero dizer: admitamos que ele tenha enviado a você um pensamento de
avareza; divida-o assim: o intelecto que o acolheu, a representação do ouro, o
ouro em si e a paixão da avareza; pergunte a si mesmo qual destes elementos é
um pecado. É o intelecto? Mas como? Ele é a imagem de Deus. Não seria a
representação do ouro? Que homem sensato ousaria dize-lo? Não seria o próprio
ouro o pecado? Mas com que finalidade ele foi criado? Segue-se daí que é o
quarto elemento a causa do pecado, o que não é nem um objeto subsistindo
essencialmente, nem a representação de um objeto e muito menos o intelecto
incorpóreo, mas um prazer inimigo do homem, engendrado pelo livre arbítrio[154],
que constrange o intelecto a fazer um mau uso das criaturas de Deus[155]:
é este prazer que a lei de Deus está encarregada de circuncidar[156].
No decurso de sua investigação, o pensamento, reabsorvido no seu próprio exame,
será destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito terá
sido erguido nas alturas por esta ciência. Se você quiser utilizar a espada do
inimigo, mas antes quiser abate-lo com sua funda, lance, você também, uma pedra
tirada de seu saco de pastor[157]
e faça o exame a seguir[158]:
como os anjos e os demônios visitam nosso mundo, mas nós não visitamos seus
mundos, porque não podemos nem unir os anjos a Deus nem tornar os demônios mais
impuros[159];
como Lúcifer, que se levanta antes da aurora, caiu sobre a terra[160]
e como ele “considera o mar como um vidro de perfume e o Tártaro do abismo como
um prisioneiro e faz ferver o abismo como uma caldeira[161]”,
perturbando todos os seres com sua malícia e tentando dominar a todos[162].
A contemplação dessas coisas fere gravemente o demônio e derrota todo seu
acampamento. Mas isto só acontece aos que atingiram um certo grau de pureza[163]
e que começam a entrever as razões do seres[164].
Quanto aos impuros, eles ignoram a contemplação dessas coisas, e ainda que eles
as aprendam de outros e as repitam como um encantamento[165],
eles não se farão ouvir, devido à espessa poeira e ao tumulto provocado pelas
paixões nesta guerra. É preciso necessariamente que o acampamento dos
estrangeiros esteja em calma, para que Golias saia sozinho ao encontro do nosso
Davi[166].
Utilizemos do mesmo modo tanto a análise como esta forma de guerra em relação a
todos os pensamentos impuros.
20
Duas
explicações para uma vitória rápida sobre os pensamentos
Quando certos pensamentos impuros são postos em fuga rapidamente,
busquemos a causa[167]:
de onde ele veio? Será devido à raridade do objeto, pelo fato de ser difícil
encontrar a matéria necessária[168],
ou devido à impassibilidade presente em nós, que o inimigo nada pode fazer? Por
exemplo: se um anacoreta que é atormentado por um demônio põe na cabeça que lhe
será confiado o governo espiritual da capital[169],
é evidente que ele não imaginará esta idéia por muito tempo, e a razão disto é
fácil de ver a partir do que já dissemos[170].
Mas se se tratar de qualquer cidade ou aldeia[171],
e se ele ainda estiver na mesma disposição de espírito, feliz ele será por sua
impassibilidade! Da mesma maneira, para os outros pensamentos, podemos
encontrar um método semelhante a este que acabamos de experimentar. É
necessário, para nosso ardor e nossa força, conhecer estas coisas, a fim de que
saibamos se atravessamos o Jordão e estamos próximos da cidade das palmeiras[172]
ou se continuamos a viver no deserto, expostos aos ataques dos estrangeiros[173].
21
Ao demônio da
avareza seguem-se os da
vanglória e do orgulho
O demônio da avareza parece-me particularmente contraditório e muito
hábil em enganar: encurralado pela suprema renúncia, ele finge ser econômico e
amigo dos pobres[174];
ele acolhe generosamente os hóspedes que não são tão pobres assim, envia
auxílio a outros que são abandonados, visita as prisões da cidade[175],
resgata os que foram postos à venda; ele não larga as mulheres ricas e lhes
indica aqueles que devem ser bem tratados; aos que possuem uma bolsa rica ele
exorta a que a abandonem. E assim, após haver pouco a pouco enganado a alma,
ele a encerra em pensamentos de avareza e a entrega ao demônio da vanglória[176].
Este último introduz uma multidão de pessoas que louvam o Senhor por tal
administração e, insensivelmente, introduz também algumas pessoas que começam a
falar entre si de uma prelazia; a seguir ele prediz a morte do prelado e
acrescenta que o homem não escapará [de ganhar a prelazia] depois de todo o bem
que fez. Assim, o infeliz intelecto, ligado nestes pensamentos, rechaça os que
não aceitaram a idéia e apressa-se a cumular de presentes os que aceitaram,
louvando-lhes o bom senso; aos que se revoltam, ele envia a lei e pede aos
juizes que sejam banidos da cidade. Agora que estes pensamentos vão e vêm nele,
eis que surge o demônio do orgulho[177]
que encena ininterruptos clarões no espaço da cela e envia dragões alados[178]
até finalmente provocar a perda do espírito[179].
Quanto a nós, depois de termos pedido em nossas orações a desaparição desses
pensamentos, vivamos na pobreza rendendo graças: pois “nós evidentemente não
trouxemos nada a este mundo e dele nada levaremos; uma vez que temos alimentos
e vestes, contentemo-nos com isto[180]”,
lembrando-nos de Paulo, que disse que “a avareza é a raiz de todos os males[181]”.
22
Efeito
desastroso da persistência dos maus
pensamentos
Todos os pensamentos impuros que persistem em nós por causa das paixões
fazem o intelecto decair “até a ruína e a perdição[182]”.
Pois assim como a representação do pão persiste no esfomeado por causa da fome
e a representação da sede persiste no sedento por causa da sede, também as
representações de riquezas e bens persistem devido à cupidez, e as
representações das comidas e dos pensamentos condenáveis engendrados pelos
alimentos persistem devido às paixões[183].
A mesma evidência se impõe no que tange aos pensamentos da vanglória e a outras
representações. Não é possível que um intelecto inchado por tais representações
se apresente diante de Deus e cinja-se da coroa da justiça[184].
É por ser puxado em todas as direções por esses pensamentos que este intelecto
triplamente desafortunado, nos Evangelhos, recusa a refeição da ciência de Deus[185];
e ainda, aquele cujas mãos e pés foram amarrados e que foi atirado às trevas
exteriores, vestia uma roupa tecida com pensamentos: o que o convidara declarou
que ele era indigno de tais bodas[186],
pois a veste nupcial é a impassibilidade da alma racional[187]
que renunciou às ambições do mundo[188].
A razão pela qual as persistentes representações de objetos sensíveis destróem
a ciência será apresentada nos Capítulos
sobre a oração.
23
Condições
requeridas para abraçar a vida de
anacoreta
Que nenhum anacoreta abrace a vida anacorética com cólera, orgulho ou
tristeza, nem fuja dos irmãos quando estiver atormentado por tais pensamentos[189].
Pois sob o golpe de tais paixões podem produzir-se até acessos de loucura[190],
quando o coração passa de uma representação a outra, e desta a uma terceira,
daí a uma quarta até cair num abismo de esquecimento. Conhecemos muitos irmãos
que foram vítimas deste naufrágio, e a quem os outros, a custa de lágrimas e
orações, reconduziram a uma vida humana. Mas alguns, que chegaram a um
esquecimento irreversível, não tiveram mais a força para retomar o estado
inicial, e até este dia, pobres que somos, temos sob nossos olhos os naufrágios
de nossos irmãos[191].
Esta afecção, na maior parte das vezes, provém dos pensamentos de orgulho.
Quando alguém abraça a vida anacorética neste estado, primeiro ele vê o espaço
da cela todo em fogo e à noite relâmpagos que brilham sobre as paredes, depois
ouve vozes de pessoas que perseguem umas às outras, carros atrelados figurados
no ar[192],
a casa cheia de Etíopes[193]
e de tumulto; e, no auge do enfraquecimento intelectual, ele mergulha na
loucura, torna-se exaltado[194]
e, aterrorizado, esquece seu estado de homem. Eis porque é preciso abraçar a
vida anacorética com o máximo de humildade e doçura, encorajando a alma deste
homem[195]
com palavras espirituais, dizendo-lhe as palavras do santo Davi: “Bendiga, ó
alma minha, o Senhor e não esqueça todas as suas recompensas: ele é benevolente
com as suas iniqüidades, ele cura todas as doenças, ele resgata sua vida da
corrupção, ele a coroa de piedade e de misericórdias.[196]”
Este é o tipo de propósito que é preciso ter, como a mãe que numa festa procura
a todo instante por seu filho, de medo que um malfeitor o pegue e o leve; e,
sobretudo, por meio de uma prece intensa, convide constantemente a alma a se
voltar para o Senhor.
24
Impossibilidade
de receber simultaneamente dois
pensamentos
Os demônios não nos tentam todos ao mesmo tempo[197]
nem nos enviam seus pensamentos ao mesmo tempo, pois por natureza o intelecto
não tem a faculdade de receber ao mesmo tempo a representação de dois objetos
sensíveis[198].
De fato, dissemos no Capítulo 17 que nenhum pensamento impuro surge em nós sem
um objeto sensível. Se, devido à sua grande rapidez de movimento, nosso
intelecto liga os pensamentos uns aos outros, não devemos por isto crer que
eles se formam todos ao mesmo tempo. O torno do oleiro faz algo parecido[199]:
ele une um ao outro dois blocos fixados em extremidades diametralmente opostas
do torno, e isto devido à grande velocidade do seu deslocamento. Você pode
também visualizar em si o rosto do seu pai e verificar se um outro rosto
aparece enquanto aquele permanece ou se o segundo rosto se forma quando o
primeiro desaparece. Se fosse possível receber ao mesmo tempo a representação
do ouro e a representação da pessoa que nos humilhou, cairíamos necessariamente
no mesmo momento ante o demônio da avareza e o do rancor, o que é impossível,
pois, como eu disse, o intelecto não pode receber no mesmo instante a
representação do ouro e a de quem nos humilhou. É preciso portanto, no momento
das tentações, tentar fazer o intelecto passar de um pensamento impuro para uma
outra representação e desta a uma terceira[200],
e assim escapar a este enganador contramestre[201].
Se o intelecto não se desloca e não abandona o objeto, ele submerge pela
paixão; então ele se arrisca a se encaminhar para o pecado em ato. Este
intelecto tem realmente necessidade de muita purificação, vigílias e orações.
25
A
representação de nosso próprio corpo: seu papel nos maus pensamentos
Todos os homens que contemplaram a partir dos objetos algumas das
realidades presentes em suas naturezas também produziram suas provas a partir
daquilo que haviam contemplado[202].
Minha prova, na maior parte dos casos, é o coração do meu leitor, sobretudo se
ele for inteligente e tiver a experiência da vida monástica. Digo isto por causa
do objeto de contemplação natural que nos é proposto agora e que será
confirmado pelo leitor a partir daquilo que se acha dentro dele próprio. É
preciso começar por dizer de que modo o intelecto por natureza recebe as
representações de todos os objetos sensíveis e uma impressão em conformidade
com eles, por intermédio do instrumento que é o nosso corpo[203].
Qualquer que seja a forma do objeto assim será também, necessariamente, a
imagem recebida pelo intelecto: por isso as representações dos objetos são chamadas
de cópias[204],
porque conservam a mesma forma que eles. E assim como o intelecto recebe
representações de todos os objetos sensíveis, ele recebe também aquelas de seu
próprio organismo – pois este também está no campo de atuação dos sentidos –
com exceção do rosto, bem entendido, de que ele não pode fazer nenhuma
representação, porque jamais o viu. É portanto com esta figura que o intelecto
faz tudo interiormente, que ele se senta e caminha, dá e recebe em pensamento.
Ele faz e diz o que bem quer, graças à rapidez das representações: num instante
ele retém a figura de seu próprio corpo e estende a mão para receber algo que
lhe é dado, no seguinte ele desfaz esta figura e reveste rapidamente a forma do
próximo, como se ele lhe desse algo de suas próprias mãos. Sem formas como
essas, o intelecto nada poderia fazer, porque ele é incorpóreo e incapaz de
qualquer movimento semelhante. É preciso portanto que o anacoreta vigie seu
intelecto no momento das tentações, pois ele irá, uma vez que o demônio estives
presente, revestir-se da figura de seu próprio corpo e interiormente engajar-se
numa disputa com um irmão ou na união
com uma mulher. É este homem que Cristo nos Evangelhos chegou a denominar
adúltero, porque ele cometia adultério em seu coração com a mulher de seu
próximo[205].
Ora, sem esta figura, o intelecto jamais cometeria adultério, porque ele é
incorpóreo e não pode aproximar-se de um objeto sensível sem representações
deste tipo: aí está a falta. Então esteja atento a si mesmo e observe como o
intelecto reveste a forma do seu próprio corpo sem o rosto, enquanto que ao
contrário ele modela o interiormente o próximo por inteiro, porque é assim,
inteiro, que ele o viu antes[206].
Mas é impossível observar isto durante as tentações, e ver como isto surge e
acontece tão depressa em pensamento, a menos que o Senhor repreenda os ventos e
os mares, restabeleça a calma completa e conduza o navegante até a terra para a
qual ele se voltava[207].
É preciso assim que o anacoreta esteja atento a si mesmo, de modo que “não haja
palavra escondida em seu coração que seja ímpia[208]”,
pois o intelecto sempre irá, no momento das tentações, quando se apresentar o
demônio, revestir-se da figura de seu próprio corpo. Levados por esta
contemplação, nós também expusemos a natureza do pensamento impuro. O
pensamento demoníaco é com efeito uma imagem do homem sensível constituída
interiormente, imagem inacabada, com a qual o intelecto que é levado pelas
paixões fala ou age em segredo, de modo ímpio, dirigindo-se aos simulacros que
ele vai formando sucessivamente.
26
Como adquirir
a ciência do discernimento
Se um anacoreta quer receber do Senhor a ciência do discernimento[209],
que primeiro ele cumpra de bom coração os mandamentos que estão ao seu alcance,
sem nada omitir, e assim, no momento da prece, “que ele peça” a ciência “a Deus
que dá a todos simplesmente e sem recriminar; que ele peça sem hesitar” e sem
se deixar atingir pelas ondas da incredulidade, “e ela lhe será dada[210]”.
Pois não é possível receber a ciência de coisas mais numerosas se negligenciamos as que são
conhecidas, como se, cometendo numerosas transgressões, não tivéssemos que dar
conta de mais numerosos pecados[211].
E é uma felicidade estar a serviço da ciência do Senhor, pois é realmente
perigoso não fazer o que ela prescreve, enquanto que é uma alegria cumprir tudo
o que ela ensina. Com efeito o intelecto divaga quando está apaixonado e se
torna difícil de segurar quando visita as matérias produtoras do prazer. Mas
ele cessa de errar quando se torna impassível e reencontra os incorpóreos que
preenchem seus desejos intelectuais[212].
Ademais, não é possível adquirir a ciência sem operar a primeira, a segunda e a
terceira renúncias: a primeira renúncia é o abandono voluntário das coisas do
mundo em vista da ciência de Deus; a segunda, a rejeição ao mal, que vem a
seguir pela graça de Cristo nosso Salvador e pelo zelo do homem[213];
a terceira renúncia é a separação pelo desconhecimento daquilo que se manifesta
naturalmente aos homens na proporção de seu estado.
27
Os sonhos
provenientes da perturbação da parte
passional da alma
Eis como os anacoretas são tentados durante o dia pelos demônios e caem
ante os mais variados pensamentos; mas também à noite, durante o sono, eles
combatem áspides voadoras, são cercados por bestas selvagens carnívoras,
enlaçados por serpentes e precipitados do alto de montanhas elevadas[214].
Acontece até que mesmo depois de acordados eles se vejam ainda cercados pelas
mesmas bestas selvagens e vejam sua cela cheia de fumaça e fogo. Quando eles não se deixam
levar por estas imaginações nem caem no desânimo, eis que vêem os demônios se
transformarem em mulheres que se entregam de modo indecente e tentam atirá-los
em jogos condenáveis[215].
Tudo isto os demônios concebem com o intuito de perturbar a parte irascível ou
a concupiscente, a fim de fazer a guerra aos anacoretas[216].
Pois a parte irascível é logo tentada no dia seguinte quando ela foi perturbada
na noite precedente, e a concupiscente acolhe facilmente os pensamentos de
fornicação quando ela foi previamente sacudida pelas imaginações do sonho. Eles
trazem estas imaginações, seja abrindo à força, como eu disse, um caminho para
o dia seguinte, seja com o intuito de humilhar ao máximo durante a noite
aqueles que já foram perturbados no dia anterior[217].
E são sobretudo os coléricos e os irascíveis dentre os irmãos que caem diante
destas visões tenebrosas, e os que se enchem de pão e de água que caem diante
das imaginações vergonhosas[218].
Pois bem! É preciso que os anacoretas vigiem e rezem não cair em tentação[219],
que eles vigiem o coração com toda a vigilância[220],
acalmando a parte irascível com a doçura e os salmos, e extenuando a parte
concupiscente pela fome e a sede. A benevolência e a misericórdia são
particularmente adequadas contra tais imaginações, e é isto que ensina
claramente o sábio Salomão nos Provérbios: “Você descansará sem medo; e quando
deitar, seu sono será tranqüilo. Você não se assustará com o terror imprevisto,
nem com a desgraça que cai sobre os injustos. Porque Javé ficará do seu lado e
impedirá que seu pé caia na armadilha. Se lhe for possível não negue um favor a
quem precisa. Não diga a seu próximo: «Vá embora. Passe depois, que eu lhe
darei amanhã», quando você tem a coisa na mão.[221]”
28
Os sonhos de vanglória e de tristeza
Quando os demônios não conseguem perturbar à noite a parte irascível ou
a concupiscente, então eles inventam sonhos de vanglória[222]
e fazem a alma mergulhar num abismo de pensamentos. Eis em poucas palavras os
tipos de sonhos que eles provocam. Muitas vezes nos vemos reprimindo os
demônios ou curando certas afecções corporais, ou então, envoltos num manto de
pastor, nos vemos apascentando um pequeno rebanho. Ao acordarmos recebemos logo
a imagem da prelazia e passamos o dia a refletir sobre o que ela comporta; ou
então, como se o carisma da cura nos houvesse sido fado, antevemos os milagres
que se produzirão e as pessoas que serão curadas, as honrarias trazidas pelos
irmãos e os presentes enviados por pessoas do exterior, tanto do Egito quanto
de outras terras que vêm a nós, trazidos por nosso renome[223].
Muitas vezes estes pensamentos atiram o anacoreta numa tristeza inconsolável,
mostrando-lhes seus próximos que estão doentes ou correndo perigo por terra e
por mar. Pode acontecer que eles prevejam em sonhos os próprios irmãos
naufragarem na vida monástica, precipitando-se de altas escadas sobre as quais
eles subiram, ou tornando-se cegos, tateando as paredes. Eles fazem ainda toda
espécie de prodígios, servindo-se do ruído dos ventos para fazer surgir
demônios ou animais selvagens, ou contando casos para deixar passar a horas das
sinaxes[224].
Não devemos prestar-lhes atenção, mas desmascará-los comum pensamento vigilante
quando eles agem assim para enganar e iludir as almas. Os sonhos angélicos[225]
não têm nada de parecido com isto: eles trazem uma grande calma à alma, uma
alegria inefável[226],
a supressão dos pensamentos apaixonados durante o dia, a prece pura e até
algumas razões dos seres, que começam a aparecer[227]
sob a ação do Senhor e assim revelam a sabedoria do Senhor.
29
Os sonhos como modos de diagnosticar o estado
da alma
Se um anacoreta não se perturba no decurso das imaginações do sonho
pelas visões aterradoras ou obscenas, mas fica colérico contra as mulheres que
o abordam sem pudor e se esfregam nele, e se ainda ele apalpa os corpos
femininos para curá-los – pois até isto os demônios fazem ver – sem que ele se
inflame, mas chegue até a ensinar a algumas delas preceitos de castidade,
bem-aventurado seja ele por possuir uma tal impassibilidade! Pois a alma que,
com a ajuda de Deus, desempenhou bem a prática e libertou-se do corpo, chega a
esta região da ciência aonde as asas da impassibilidade a fazem repousar[228];
daí, ele receberá também as asas da santa Pomba; ela alçará seu vôo através da
contemplação de todos os séculos e repousará[229]
na ciência da Trindade adorável[230].
30
Os pensamentos que são obstáculos às boas
ações e os que as pervertem
Dentre os pensamentos impuros,
uns se vêem no próprio caminho da virtude, outros à beira do caminho. Todos
aqueles que impedem o cumprimento dos mandamentos de Deus ficam à margem do
caminho; ao contrário, todos aqueles que não aconselham sua desobediência, mas
que sugerem que, quando obedecidos, o são para serem vistos pelos homens, estes
se colocam no meio do caminho: eles corrompem nossa intenção e o modo como se
deve cumprir os mandamentos[231].
Assim é preciso que aquele que pratica um mandamento o faça pelo Senhor, e que
o cumpra com alegria, pois foi dito: “Que aquele que exerce a misericórdia o
faça com alegria[232]”.
Pois que vantagem existem em nos despojarmos do pensamento da cupidez pelo da
benemerência, ou da gula pelo da
abstinência, se for para revesti-los de outros pensamentos de vanglória ou de
recriminações? De todo modo, no momento da oração, eu sofrerei por causa disto
aquilo que me chegou com aqueles primeiros pensamentos: a perda da luz que
envolve (perilampein) o intelecto no momento da prece. É a respeito
destes pensamentos que o bem-aventurado Davi escreveu: “Sobre o caminho pelo
qual eu avançava, eles esconderam armadilhas[233]”;
ou então: “Eles estenderam cordas como armadilhas para meus pés; eles puseram
pedras de tropeço tocando o caminho[234]”.
A palavra “tocando” me parece significar “ao lado do caminho[235]”.
31
Os diferentes tipos de pensamentos e os que
lhes são opostos
Ao pensamento demoníaco[236]
opõem-se três pensamentos que o cortam quando ele se demora no espírito: o
pensamento angélico, o que vem de nossa vontade quando ela tende para o bem, e
o que é dado pela natureza humana, sob cujo impulso até os pagãos amam seus
filhos e honram seus pais[237].
Ao bom pensamento opõem-se apenas dois pensamentos: o pensamento demoníaco e
aquele que vem de nossa vontade quando ela se inclina para o mal. Mas da natureza não sai nenhum mau
pensamento, pois não fomos criados maus em princípio, se é verdade que o Senhor
semeou uma boa semente em seu campo[238].
Com efeito, não é porque somos susceptíveis a alguma coisa que a teremos
necessariamente em nós como potência, pois, podendo não sermos, nem por isso
temos em nós a potência do não-ser, se é verdade que as potências são
qualidades[239]
e o não-ser não é uma qualidade. Pois houve um tempo em que o mal não existia e
haverá um tempo em que ele não existirá mais [mas não houve um tempo em que a
virtude não existia e não haverá um tempo em que ela não venha a existir], pois
as sementes da virtude são indestrutíveis. Temos como prova o rico dos
Evangelhos, que foi condenado ao Hades e pediu piedade para os seus irmãos[240].
Ora, a piedade constitui a mais bela semente da virtude.
32
Pondo-se em guarda contra os processos que excitam a irascibilidade
Se alguém deseja obter a oração pura e apresentar a Deus um intelecto
isento de pensamentos, que domine sua irascibilidade e vigie os pensamentos que ela engendra, ou
seja os que têm como origem a suspeita, a raiva e o rancor[241],
os quais, mais do que tudo, cegam o intelecto e destróem seu estado celeste[242].
É o que nos aconselha São Paulo, ao ordenar-nos “erguer ao Senhor mãos santas
sem cólera nem disputas[243]”.
Mas um mau hábito persiste entre aqueles que vivem na renúncia: freqüentemente
eles discutem em processos contra seus próximos para obter riquezas ou bens que
deveriam ser distribuídos entre os pobres. Estas pessoas, em nossa opinião, são
joguete dos demônios e tornam para si mesmos ainda mais estreito o caminho da
vida monástica, pois eles acendem sua irascibilidade com as riquezas e por
outro lado eles aplicam-se em extinguir as riquezas, como alguém que cravasse
um estilete nos olhos para neles aplicar um colírio[244].
Nosso Senhor nos prescreveu vender nossos bens e dar tudo aos pobres[245],
mas sem discussões nem processos. Pois “é preciso que o servo do Senhor não
dispute[246]”,
mas àquele que quiser processá-lo por sua túnica[247],
deve ainda dar o manto, é ao que lhe bater na face direita, ele deve oferecer a
esquerda. Assim ele deve esforçar-se, não para obter as riquezas, mas para não
morrer sucumbindo aos pensamentos de rancor, se é verdade que “os caminhos do
rancor levam à morte[248]”,
segundo o sábio Salomão. Por outro lado, todo homem que retém estas riquezas
deve saber que apoderou-se do alimento e das vestes dos cegos, dos alcoólatras
e dos leprosos e que ele prestará contas disto ao Senhor no dia do Juízo.
33
Ação dos demônios sobre os que lêem
Existem certos demônios impuros que se mantêm sempre sentados ao lado
daqueles que lêem e tentam se apoderar de seu intelecto, às vezes tomando como
pretexto as próprias divinas Escrituras[249]
para chegar aos maus pensamentos. Eles chegam a provocar bocejos além do
habitual e provocam um sono pesado bem diferente do sono costumeiro[250].
Alguns irmãos imaginaram que se tratasse do efeito de uma misteriosa reação
natural. De minha parte eu observei muitas vezes este fenômeno, e eis o que
entendi: eles tocam as pálpebras e toda a cabeça e a esfriam com seu próprio
corpo, pois os corpos dos demônios são muito frios e parecidos com o gelo[251].
Também sentimos nossa cabeça como se fosse aspirada por uma ventosa[252],
com um rangido. Eles agem assim para atrair para si o calor contido dentro do
crânio, e então as pálpebras, afrouxadas pelo frio e a umidade, escorregam
sobre as pupilas dos olhos. Muitas vezes, apalpando, senti minhas pálpebras
imóveis como gelo, e o rosto inteiro sem vida e arrepiado. No entanto o sono
natural geralmente aquece o corpo e torna florescente o rosto das pessoas
saudáveis, como aprendemos com a própria experiência. Eles, ao contrário,
provocam bocejos contrários à natureza e prolongados, e eles se fazem menores
para tocar o interior da boca. Eu jamais consegui entender este fenômeno,
embora o tenha experimentado algumas vezes, mas eu ouvi o santo Macário[253]
falar dele e dar como prova que aqueles que bocejam devem persignar-se à boca,
segundo uma antiga e misteriosa tradição[254].
Tudo isto nos acontece porque não somos suficientemente vigilantes e atentos à
leitura e esquecemos que estamos a ler as palavras santas do Deus vivo.
34
A sucessão dos demônios
Como também entre os demônios existem sucessões[255],
quando o primeiro enfraquece no combate e não consegue mais colocar em
movimento a paixão que lhe é cara, nós os observamos e eis o que descobrimos.
Quando os pensamentos de uma dada paixão se tornam raros por um bom período de
tempo e subitamente esta paixão ferve e se põe em movimento, sem que tenhamos
dado motivo para isto por nossa negligência, então sabemos que um demônio mais
temível do que o primeiro o sucedeu[256]
e que, ocupando agora o lugar do que fugiu, ele o preenche com sua própria
mentira[257].
Mas, de seu lado, ele compreende nossa alma submetendo-a a uma guerra muito
mais violenta do que de hábito e descartando de um golpe os pensamentos da
vigília e da ante-vigília, sem que intervenha nisto nenhum pensamento do
exterior. Quando o intelecto perceber isto, que ele fuja para o Senhor; que,
depois de receber o elmo da salvação[258]
e a couraça da justiça[259],
depois de tirar o gládio do espírito[260]
e levantar o escudo da fé[261],
ele levante os olhos cheios de lágrimas para o seu céu interior, dizendo:
“Senhor” Cristo, “o poder que me salva[262],
incline para mim seu ouvido, apresse-se em me libertar; torne-se para mim um
Deus protetor e um lugar de refúgio para me salvar[263]”.
Sobretudo, que ele afie sua espada[264]
com jejuns e vigílias, pois, durante sete dias inteiros, ele estará nas lidas
do combate e exposto aos puxões inflamados do maligno[265];
depois do sétimo dia, ele saberá que este está se tornando aos poucos
semelhantes àquele que ele sucedeu e que ele estará, por um ano inteiro, mais
ferido do que ameaçador, até a chegada de seu sucessor, se é verdade que,
segundo Jó, “durante um tempo determinado, nós caímos sob seus golpes e nossa
casa é saqueada pelos ímpios[266]”.
35
A tentação de uma ascese excessiva
Quando depois de numerosos e freqüentes combates o demônio da gula não
tem força para destruir a abstinência bem fincada em nós, então ele empurra o
intelecto a desejar uma ascese ainda mais estrita[267];
depois ele apresenta ao intelecto também os companheiros de Daniel, sua vida
pobre de então e os cereais[268];
ele evoca outros anacoretas e que venceram todo o tempo ou que começaram a
fazê-lo, e ele o força a imitá-los, para que, seguindo uma abstinência
desmesurada[269],
ele não atinja sequer a que está à sua altura, pois o corpo não é capaz devido
à sua fraqueza: na realidade [este demônio] abençoa em palavras e amaldiçoa em
seu coração[270];
em minha opinião, não é bom obedecê-lo, nem que nos abstenhamos de pão, de
azeite e de água[271].
Pois este regime é excelente, os irmãos já o experimentaram, sem chegar à
saciedade, uma vez ao dia[272].
Eu ficaria espantado, com efeito, que saciado de pão e de água alguém possa
receber a coroa da impassibilidade[273];
chamo de impassibilidade não aquela que impede os pecados em ato – isto eu
chamo de abstinência – mas a que prende interiormente os pensamentos
apaixonados, que são Paulo denominou a circuncisão espiritual do Judeu
invisível[274].
Os que se desencorajarem com minha proposta, lembrem-se do Apóstolo, vaso de
eleição[275],
que “com fome e sede[276]”
cumpriu seu curso[277].
O demônio da acídia também imita este demônio: ele sugere ao asceta rígido um
retiro absoluto e o convida a rivalizar com João Batista e com Antônio, o
primeiro anacoreta, a fim de que, não suportando este retiro prolongado e
inumano, ele fuja vergonhosamente, abandonando o lugar[278]:
o demônio poderá então vangloriar-se, dizendo: “Eu prevaleci contra ele[279]”.
36
A matéria dos pensamentos
Os pensamentos impuros recebem,
para crescer, numerosos materiais e estendem-se a uma multitude de objetos. De
fato, eles atravessam em espírito a extensão dos mares e não recuam diante de
longas viagens, tão forte é o ardor da paixão. Mas os que já foram um pouco
purificados são muito mais contidos do que os primeiros, pois eles não podem,
devido à fraqueza da paixão, estender-se a uma multitude de objetos. Eis porque
eles são arrastados num movimento contrário à natureza; segundo sábio Salomão,
“eles vagueiam pelas ruas[280]”
e amassam o barro para sua criminosa fabricação de tijolos, porque não recebem
mais a palha[281].
É preciso, portanto, guardar o coração[282]
com toda a vigilância a fim de escapar como uma gazela às redes e como o
pássaro ao alçapão[283].
Pois é mais fácil purificar uma alma impura do que devolver a saúde a uma alma
purificada que foi novamente ferida; o demônio da tristeza não o permite, mas
se agarra constantemente às pupilas dos olhos apresentando a imagem do pecado
no momento da oração[284].
37
Os demônios não são “cardiognósticos”
Os demônios não conhecem nossos corações, como acreditam alguns homens,
pois somente o Senhor é “cardiognóstico[285]”,
ele “que conhece o intelecto dos homens[286]”
e que “confeccionou sozinho seus corações[287]”.
É a partir de uma palavra proferida ou dos movimentos correspondentes do corpo
que eles reconhecem a maior parte das representações presentes no coração[288].
Eu queria expor isto claramente, mas nosso santo padre[289]
impediu-me, dizendo que não era conveniente publicar tais coisas e fazê-las
cair nos ouvidos dos profanos, pois é dito que aquele que tem comércio com uma
mulher durante suas regras é, segundo a lei, culpado[290].
Foi-me permitido apenas dizer que por tais sinais eles reconhecem o que está
oculto no coração e que é daí que eles tomam pé para nos atacar. Muitas vezes,
portanto, ao maldizermos certas pessoas, provamos nossa falta de caridade para
com elas; é porque caímos diante do demônio do rancor e concebemos contra elas
maus pensamentos, dos quais ignorávamos a existência em nós. Assim é com razão
que o Espírito Santo nos dirige esta censura: “Sentado, você fala contra seu
irmão e coloca uma pedra de tropeço contra o filho de sua mãe[291]”;
você abre as portas aos pensamentos de rancor[292]
e perturba o intelecto no momento da oração, imaginando constantemente o rosto
do seu inimigo e desafiando-o. Pois, necessariamente, aquilo que o intelecto vê
quando ele ora merece também ser reconhecido como deus[293].
Fujamos portanto, meus irmãos, da doença da maledicência, jamais nos lembremos
de alguém com maus pensamentos, nem desviemos o olhar quando nos mencionam o
próximo, pois os demônios malignos perscrutam todos os nossos gestos e não
deixam nada do que nos concerne sem exame: posição sentado, posição deitado, em
pé, palavras, caminhar, olhar; eles observam tudo, colocam tudo na balança,
meditam todo o dia em suas peças contra nós, a fim de enganar [lit.: caluniar] o pobre intelecto no momento
da oração e extinguir sua bem-aventurada luz[294].
Veja o que diz são Paulo a Tito: “Em seu ensinamento, a incorruptibilidade, uma
palavra sã, irreprochável, a fim de que o adversário fique confuso por não ter
nada de mal a dizer de nós[295]”.
O bem-aventurado Davi faz também esta oração: “Livrai-me do erro que me fazem
os homens[296]”,
e ele chega até a chamar de homens aos demônios, por causa do caráter racional
de sua natureza[297];
também o Salvador, nos Evangelhos, chamou de homem ao inimigo que havia semeado
em nós a erva daninha da malícia por sobre o bom grão[298].
38
Dois tipos de morte e ressurreição
A natureza racional levada à morte pela malícia é ressuscitada por
Cristo pela contemplação de todos os séculos; a alma que morreu a morte de
Cristo é ressuscitada pelo Pai pelo conhecimento dele próprio. É o que é dito
pelo Apóstolo: “Se morremos com Cristo, cremos que viveremos também com ele[299]”.
39
A visão do “lugar de Deus”
Quando o intelecto se despojar do velho homem e tiver se revestido
daquele que nasce pela graça[300],
então será seu próprio estado que ele irá ver no momento da oração, semelhante
à safira e à cor do céu; é o estado que a Escritura denomina de “lugar de Deus”
e que foi visto pelos antigos sobre o monte Sinai[301].
40
Despojamentos sucessivos
O intelecto[302]
não poderá ver nele o lugar de Deus[303],
se não se elevar acima de todas [as representações] ligadas aos objetos[304];
ele não irá se elevar se não se despojar das paixões que o mantém ligado[305]
por meio das representações aos objetos sensíveis. E as paixões, ele as deixará
pelas virtudes, os pensamentos simples[306]
pela contemplação espiritual; e esta, por sua vez, ele deixará que lhe aparecer
esta luz que, no momento da prece, modela o lugar de Deus.
41
As representações que produzem uma marca e as que não produzem marcas
Dentre as representações, algumas produzem uma marca e uma figura em
nossa faculdade diretora, outras fornecem apenas um conhecimento, sem impor ao
intelecto nem marca nem figura[307].
Assim o versículo “No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus[308]”
coloca no coração uma representação, sem no entanto lhe impor uma figura ou uma
marca. As palavras “tendo tomado o pão[309]”
dão uma figura ao intelecto, e a expressão “partiu-o” fornece uma marca ao intelecto.
O versículo “Eu vi o Senhor sentado sobre um trono elevado e sublime[310]”
fornece uma marca ao intelecto, exceto o trecho “Eu vi o Senhor[311]”;
o texto parece fornecer uma marca ao intelecto, mas o significado não, pois
[Isaías] viu com olhar profético a natureza racional elevada pela prática
receber em si a ciência de Deus. Deus, com efeito, é dito assentar-se aonde é
conhecido; é por isso que o intelecto puro é chamado de trono de Deus[312],
mas também é chamado de “trono da infâmia, a mulher”, ou seja a alma, “que
odeia a justiça[313]”,
sendo a malícia e a ignorância a infâmia da alma. Por conseguinte, a
representação de Deus não se encontrará entre as representações que fornecem
uma marca ao intelecto, mas entre as que não fornecem. Do mesmo modo é preciso
que aquele que ora se separe totalmente das representações que dão uma marca ao
intelecto[314].
Você deverá investigar também se para os incorpóreos e suas razões vale o mesmo
que para os corpóreos e suas razões, e se o intelecto será impressionado de uma
maneira quando vir um intelecto e disposto de outro quando vir sua razão de
ser. Com isto aprendemos de que modo a ciência espiritual afasta o intelecto
das representações que lhe dão uma marca e o apresenta a Deus isento de marcas,
pois a representação de Deus não faz parte das representações que marcam o
intelecto – Deus não é um corpo – mas das que não marcam. Ainda mais: dentre as
contemplações que não impõem marcas ao intelecto, umas designam a substância
dos incorpóreos, outras suas razões. Não acontece com eles o mesmo que com os
corpos: pois quanto aos corpos, uns impõem uma marca ao intelecto, outros não,
mas aqui nenhuma das duas representações impõe uma marca ao intelecto.
42
Os olhos da alma
Os pensamentos demoníacos cegam o olho esquerdo da alma, aquele que
capta a contemplação dos seres; as representações que impõem uma marca e uma
figura à nossa faculdade diretora perturbam o olho direito, aquele que, no
momento da prece[315],
contempla a bem-aventurada luz da santa Trindade; é por este olho que a Esposa
conquistou o coração do Esposo no Cântico dos Cânticos[316].
43
Exortação final
Você que aspira à prece pura[317]
vigie sua irascibilidade e você que ama a continência domine seu ventre; não dê
pão ao seu estômago até a saciedade e racione a água; vigie durante a oração e
afaste de você o rancor; que as palavras do Espírito Santo não o abandonem e
bata às portas da Escritura tendo as virtudes como mãos. Então levantar-se-á
para você a impassibilidade do coração e você verá na oração seu intelecto
semelhante a um astro.
Apêndice 1
Dentre os demônios que se opõem à prática, existem três assaltantes de
primeira linha, aos quais segue todo o destacamento dos estrangeiros: são os
primeiros a se apresentar ao combate e convidam as almas ao mal por meio de
pensamentos impuros: são os encarregados dos apetites da gula, os que nos
sugerem a avareza e os que nos empurram a procurar a glória entre os homens.
Apêndice 2
Dentre os demônios que se opõem à prática, os que são encarregados dos
apetites do ventre, os que nos sugerem a avareza e os que nos convidam à glória
dos homens apresentam-se primeiro ao combate e por meio de pensamentos impuros
convidam ao mal as almas dos homens.
Apêndice 3
Os demônios armam-se com más ações; uma vez armados, eles tratam
rudemente aqueles que os armaram.
[1] O
termo pragmata pode designar tanto
pessoas como coisas; trata-se sempre de “objetos” da percepção sensível.
[2] “Javé
disse a Moisés: “Suba até mim com Aarão, Nadab, Abiú e setenta anciãos de
Israel, e adorem de longe. Só Moisés se aproximará de Javé; os outros não se
aproximarão, nem o povo subirá com ele’. Moisés desceu e contou ao povo tudo o
que Javé lhe havia dito e todas as leis. O povo respondeu unânime: ‘Faremos
tudo o que Javé disse’. Moisés colocou por escrito todas as palavras de Javé.
Depois levantou-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha e doze
estelas para as doze tribos de Israel. Em seguida, mandou alguns jovens de
Israel oferecer holocaustos e imolar novilhos a Javé como sacrifício de
comunhão. Moisés pegou a metade do sangue e colocou em bacias; a outra metade
do sangue, ele a derramou sobre o altar. Pegou o livro da aliança e o leu para
o povo. Eles disseram: ‘Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos’. Moisés
pegou o sangue e o espalhou sobre o povo, dizendo: ‘Este é o sangue da aliança
que Javé faz com vocês através de todas essas cláusulas’. Moisés, Aarão, Nadab,
Abiú e os setenta anciãos subiram. Eles viram o Deus de Israel: sob os pés
dele, havia uma espécie de pavimento de safira, tão pura como o próprio céu. E
Deus não estendeu a mão contra os notáveis de Israel; eles contemplaram a Deus
e depois comeram e beberam.”
[3] Dentre
outras traduções dadas ao termo, destacamos ainda “noção” (adotada por J. Tricot)
e “conceito” (adotada por M. Fattal).
[4] Compare-se,
em outro contexto, com o título do tratado sufi A sabedoria dos profetas (Fuçuç al-Hikam), em que o termo fuçuç significa literalmente “o engaste
das sabedorias”. Esta expressão antes resume simbolicamente o livro do que
define seu conteúdo, e não pode ser entendida a menos que se conheça
previamente o simbolismo de que se trata: al-façç
– singular de fuçuç – é o engaste que
prende uma pedra preciosa ou o selo (al-khatam)
de um anel; como “sabedorias” (al-hikam)
devemos entender os aspectos da Sabedoria divina. Os “engastes” que prendem as
pedras preciosas da Sabedoria (al-hikmah)
eterna, são as “formas” espirituais dos diferentes profetas, suas respectivas
naturezas, a um tempo humanas e espirituais, que veiculam este ou aquele
aspecto do Conhecimento divino. O caráter incorrputível da pedra preciosa
corresponde à natureza imutável da Sabedoria. A metáfora do engaste que segura a pedra preciosa da Sabedoria e lhe
esposa o talhe, diz respeito à natureza humana de um profeta enquanto
recipiente da Sabedoria divina; entretanto, este aspecto do simbolismo, que
corresponde à aparência humana das coisas, acha-se compensado e como que
expandido pela fórmula que Ibn‘Arabi adota para os títulos das diversas partes
de seu livro: “o engaste da Sabedoria divina no Verbo Adâmico”, “o engaste da
Sabedoria da Inspiração divina no Verbo de Seth”, “o engaste da Sabedoria da
Transcendência no Verbo de Noé”, etc. Segundo estas expressões, o engaste, ou
seja a forma individual do profeta, está por sua vez contido no verbo (al-kalimah), que é a realidade essencial
e divina deste mesmo profeta; com efeito, por sua identificação “ativa” com a
Sabedoria divina, todo profeta é uma determinação imediata do Verbo eterno, que
é o “enunciado” primordial de Deus. São os “verbos” que contém os “engastes”,
pois é o individual que está contido no universal e não inversamente, apesar
das aparências humanas. Todo profeta, enquanto homem perfeito, “contém” assim a
si mesmo, porque ele “contém” a Sabedoria divina e porque, sob o aspecto da
realidade interior e supra-individual, ele “é” esta Sabedoria; ora, esta por
sua vez contém a humanidade perfeita do Homem-Deus, e é este aspecto das coisas
que corresponde à realidade ontológica, sem anular entretanto a “realidade”
aparente do ponto de vista humano. Enfim, não devemos esquecer que a humanidade
dos profetas que, por definição, é perfeita e “fora de série”, reflete em sua
particularidade – o “engaste” que tal ou qual forma possui – um dado aspecto ou
Nome divino, o que equivale a dizer que o profeta se identifica em última
análise com este Nome, que “abre o caminho” para a Essência divina
indiferenciada. (N.T.)
[9] A cada etapa da
vida espiritual encontramos uma categoria particular de demônios; os que são
evocados com mais freqüência são, como aqui, os que se opõem à praktikè: “Dentre os demônios, alguns se
opõem à prática dos mandamentos, outros às intelecções da natureza e outros aos
logoi que concernem à divindade,
porque também a ciência de nossa salvação é constituída destas três coisas” (Képhalaya gnostica).
[10] Encontraremos a
trilogia “alimentos, riquezas e glória” nos capítulos 3, 5 e 22. A mesma
doutrina dos três vícios fundamentais aparece nas Cartas: “Alguém adquire a caridade que despreza o alimento, a
riqueza e a glória do mundo, e com isto renega seu corpo por amor à ciência de
Deus. Como pode o homem ser paciente para com quem o feriu no rosto, se amar a
glória ou se amar seu corpo que foi maltratado? Como não se vingará, disputando
com que tomou seus bens, se ainda estiver sujeito à paixão pelos alimentos e
pela riqueza?” Compare-se com Discípulos,
82 (*): “Domine a gula, a cupidez e a vanglória, e você não mais se irritará
nem se entristecerá jamais.”
(*) Coletânea de ensinamentos de Evagro, recolhidos
fielmente por seus discípulos.
[11] Sobre a ligação
entre a gula e a fornicação ou luxúria, ver por exemplo Oito espíritos, 4: “A gula é a mãe da luxúria” e 5: “Aquele que
enche o ventre e pretende ser casto é semelhante a quem afirma deter a ação do
fogo na palha”; trata-se de um ensinamento tradicional.
[12] Cf. Cartas, 39: “O que nos irritará se
desprezarmos os alimentos, as riquezas e a glória?” e Discípulos, 97: “Não é possível encolerizar-se por outra coisa que
não os bens, os alimentos, a vanglória ou qualquer de seus assemelhados”; sua Antirrética é dirigida contra a alma que
tenta não suprimir as causas da cólera, que são os alimentos e as vestes, os
bens e a glória passageira.
[13] A tristeza nasce
no mais das vezes de uma frustração (stéresis).
[14]
1 Timóteo,
VI, 6-10: “Eles supõem que a piedade é fonte de lucro. De fato, a piedade é grande
fonte de lucro, mas para quem sabe se contentar. Pois não trouxemos nada para o
mundo, e dele nada podemos levar. Se temos o que comer e com que nos vestir,
fiquemos contentes com isto. Aqueles, porém, que querem tornar-se ricos, caem
na armadilha da tentação e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que
fazem os homens afundarem na ruína e perdição. Porque a raiz de todos os males
é o amor ao dinheiro. Por causa desta ânsia de dinheiro, alguns se afastaram da
fé e afligem a si mesmos com muitos tormentos.”
[16] Os protostátai são os oficiais que arrastam
o resto da tropa para o combate. Aos três vícios fundamentais que são a gula, a
avareza e a vanglória Evagro associa neste capítulo a luxúria, a cólera, a
tristeza e o orgulho; temos assim sete dos “oito pensamentos gerais”
contemplados na Prática, 6; falta
apenas a acídia.
[17] Mesma exegese
das três tentações de Cristo nas Cartas,
6: “O maligno serviu-se destas paixões e apresentou a Jesus Nosso Deus três
tentações: tanto o convidou a que transformasse as pedras em pães, como lhe
prometeu dar-lhe o mundo inteiro; e ainda lhe explicou a partir do testemunho
das palavras espirituais que ele era digno de ser servido pelos anjos”, e 9: “É
a partir destas [três paixões] que Satã produziu as três tentações mencionadas
no Evangelho e que ele apresentou a Nosso Senhor; mas, mostrando-se superior a
elas, este ordenou a Satã que se retirasse”.
Cf. Mateus, IV, 1-11: “Então o
Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou
durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, sentiu fome. Então, o
tentador se aproximou e disse a Jesus: ‘Se tu és Filho de Deus, manda que essas
pedras se tornem pães!’ Mas Jesus respondeu: ‘A Escritura diz: ‘Não só de pão vive
o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.’ Então o diabo o levou à
Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: ‘Se tu és
Filho de Deus, joga-te para baixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos
seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em
nenhuma pedra.’ Jesus respondeu-lhe: ‘A Escritura também diz: ‘Não tente o
Senhor seu Deus.’ O diabo tornou a levar Jesus, agora para um monte muito alto.
Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e suas riquezas. E lhe disse: ‘Eu te darei
tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar.’ Jesus disse-lhe:
‘Vá embora, Satanás, porque a Escritura diz: ‘Você adorará ao Senhor seu Deus e
somente a ele servirá’. Então o diabo o deixou. E os anjos de Deus se
aproximaram e serviram a Jesus.”
[18] A doutrina dos
três vícios fundamentais (gula, avareza, vanglória) dos quais dependem todos os
demais, tornou-se tradicional entre os autores bizantinos: João Clímaco, Máximo
o Confessor e Gregório o Sinaíta.
[19] “O pensamento
demoníaco é uma representação do objeto sensível que arrasta num movimento
contra a natureza a parte irascível ou a concupiscente.” (Muyldermans, Evagriana Syriaca, pg. 37)
[20] Termo de origem
estóica.
[21] O verbo periférein
caracteriza o movimento do intelecto, que imita o movimento circular dos astros
[22] “Numerosas são as paixões que se escondem em
nós e que desconhecemos; mas elas são desmascaradas quando se apresentam as
matérias.” (Discípulos, 72)
[24] Estas palavras
em grego formam paronomase (*): a
primeira envia à concupiscência e a segunda à irascibilidade.
(*) Figura de retórica que aproxima palavras
foneticamente semelhantes.
[25] O Deus
legislador que dá o decálogo dos Mandamentos, que proíbe o adultério e o
assassinato. A expressão “imagem (fantasia) de Deus”, espantosa à primeira
vista, explica-se pelo contexto, onde se trata de imagens que a memória possui:
a imagem do Deus que fornece a Lei, dada pela Escritura, faz parte delas.
[26] Expressões semelhantes em Cartas, 58: Deus, que é a Causa e o Pai dos inteligíveis, “aparece
ao coração com a supressão de todas as representações ligadas aos objetos” e
61: “A fé perfeita é adquirida pela supressão de todas as intelecções dos
objetos corporais”. A prece pura exige não somente a rejeição dos pensamentos
apaixonados, mas ainda de todas as representações que provêm do mundo sensível.
[27] Este advérbio, freqüente em Evagro, deixa entender
que alguns pensamentos têm outra origem do que o thymos e a epithymia que
constituem propriamente falando a parte passional da alma. Compare-se com o
início do capítulo 28: “Quando os demônios não podem perturbar à noite as
partes irascíveis ou concupiscentes, eles inventam sonhos de vanglória.” Sobre
este problema, ver Discípulos, 130:
“Se a vanglória provém da parte concupiscente, ela é a última das suas
produções” e 177, aonde se liga a acídia, a vanglória e o orgulho à parte
racional do homem.
[29] Encontramos esta
exigência no primeiro capítulo ao encontro dos três vícios principais; mas
aqui, como no paralelo em Cartas, 60,
Evagro acrescenta o desprezo ao corpo. Com efeito, o amor ao corpo é constitutivo
da filáucia que Evagro designa em Skemmata,
53, como o primeiro de todos os pensamentos. É preciso assim acrescentar um
novo nível à análise da gênese dos pensamentos. É o que Teodoro de Edessa, na
sentença 65 de sua Centúria, resume
com perfeição: “O inimigo temível, a filáucia, tem ares de tirano, e depois
dele os três e os cinco vêm carregar nosso espírito.” Note-se, por outro lado,
que Evagro tem uma idéia positiva do corpo: ele apenas deve ser mantido no
lugar que lhe convém.
[30] A luta contra as
paixões é assimilada à descarga a que são obrigados os marinheiros nas
tempestades mais violentas: eles atiram pela amurada a carga e às vezes até a
equipagem. Evagro lembra aqui duas tempestades reportadas nas Escrituras: a que
afundou o barco que transportava Jonas para Tarsis e a que sofreu o barco que
levava Paulo prisioneiro a Roma, ao largo de Creta. Cf. Atos, XXVII, 17-19: “Sem poder resistir à ventania, o navio foi
arrebatado e deixamo-nos arrastar. Impelidos rapidamente para uma pequena ilha
chamada Cauda, conseguimos, com muito esforço, recolher o batel. Içaram-no e,
depois, como meio de segurança, cingiram o navio com cabos. Então, temendo
encalhar em Sirte, arriaram as velas e entregaram-se à mercê dos ventos. No dia
seguinte, sendo a tempestade ainda mais violenta, atiraram fora a carga. No
terceiro dia, atiramos para fora com as nossas próprias mãos os acessórios do
navio.” Cf. Jonas, I, 4-5: “O Senhor,
porém, fez vir sobre o mar um vento impetuoso e levantou no mar uma tempestade
tão grande que a embarcação ameaçava despedaçar-se. Aterrorizados, os
marinheiros puseram-se a invocar cada qual o seu deus, e atiraram no mar a
carga do navio para aliviarem-no.”
[31] A vanglória é o
vício que ataca particularmente os virtuosos; ver Praktiké, 13, Oito Espíritos,
15 e Cartas, 51.
[32] Mateus, VI,
1-4 ”Prestem atenção! Não pratiquem a justiça de vocês diante dos homens, só
para serem elogiados por eles. Fazendo assim, vocês não terão a recompensa do
Pai de vocês que está no céu. Por isso, quando você der esmola, não mande tocar
trombeta na frente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para
serem elogiados pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a
recompensa. Ao contrário, quando você der esmola, que a sua esquerda não saiba
o que a sua direita faz, para que a sua esmola fique escondida; e seu Pai, que
vê o escondido, recompensará você.”
[33] Mateus,
VI, 5-6: “Quando vocês rezarem, não sejam como os hipócritas, que gostam de
rezar em pé nas sinagogas e nas esquinas, para serem vistos pelos homens. Eu
garanto a vocês: eles já receberam a recompensa. Ao contrário, quando você rezar, entre no seu
quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; e o seu Pai, que vê o
escondido, recompensará você.”
[34] Mateus, VI,
16.-17 : “Quando vocês jejuarem, não fiquem de rosto triste, como os
hipócritas. Eles desfiguram o rosto para que os homens vejam que estão
jejuando. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa. 17 Quando você
jejuar, perfume a cabeça e lave o rosto, 18 para que os homens não vejam que
você está jejuando, mas somente seu Pai, que vê o escondido; e seu Pai, que vê
o escondido, recompensará você.”
[35] Sobre o Cristo
médico de almas, veja-se também Cartas,
42, 51, 55, 57 e 60; compare-se com o que é dito em Cartas, 57: “Quando seu filho está doente, o pai chama pelo médico;
da mesma forma, Deus enviou dos céus o médico das almas para que, com seus
cuidados, resgate os homens da malícia para a virtude e da ignorância para a
ciência de Deus”.
[36] Colossenses, III, 5-10: “ Façam morrer
aquilo que em vocês pertence à terra: fornicação, impureza, paixão, desejos
maus e a cobiça de possuir, que é uma idolatria. Isso é o que atrai a ira de
Deus sobre os rebeldes. Outrora, também vocês eram assim, quando viviam entre
eles. Agora, porém, abandonem tudo isso: ira, raiva, maldade, maledicência e
palavras obscenas, que saem da boca de vocês.
Não mintam uns aos outros. De fato, vocês foram despojados do homem
velho e de suas ações, e se revestiram do homem novo que, através do conhecimento,
vai se renovando à imagem do seu Criador.”
[37] A constituição do “homem novo” coloca fim a todas as
distinções, em particular a dos nomes, e estabelece a unidade. Cf. Colossenses, III, 11: “E aí já não há grego nem
judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre,
mas apenas Cristo, que é tudo em todos.”
[38] O início deste
capítulo trata do mecanismo dos sonhos. As “imaginações” do sono (fantasiai) correspondem às
representações (noemata) que o
intelecto recebe durante o dia por intermédio dos sentidos, sendo tanto uns
como outros utilizados pelos demônios.
[39] No início de Skemmata, 17, Evagro acrescenta o
temperamento: “Existem quatro modos pelos quais o intelecto recebe as
representações: o primeiro é pelos olhos, o segundo pelo ouvido, o terceiro
pela memória, o quarto pelo temperamento...”
[40] A ausência de
sonhos passionais é o signo da impassibilidade, conforme Praktiké, 56: “As provas da impassibilidade, nós as reconhecemos,
de dia pelos pensamentos, à noite, pelos sonhos.”
[41] Assim como
existem três tipos de pensamentos diurnos, existem três tipos de sonhos:
demoníacos, humanos e angélicos. Sobre os sonhos provocados pelos anjos,
veja-se o final do capítulo 28.
[42] Evagro admite
que nem todas as impressões do sono provêm da memória. Os órgãos dos sentidos
podem permanecer ativos e introduzir as fantasias no espírito daquele que
dorme. Compare-se com o que diz Aristóteles: “Acontece às vezes que pessoas
percebam de certo modo durante o sono ruídos e luzes, sabores e contatos, mas
fracamente, como de longe” (Parva
naturalia, 462a)
[43] O thymos está
sempre pronto para inflamar-se na primeira ocasião.
[44] Cf. Provérbios, XXV, 8: “O que teus olhos
viram, não o descubras com precipitação numa contenda, pois, no final das
contas, que farás tu quando o outro te houver confundido?”
[45] A respeito da comparação da irascibilidade com um cão,
ver adiante capítulo 13. Bem dirigido, o cão é útil na luta contra os demônios
e seus maus pensamentos; sobre o bom uso da irascibilidade, ou do funcionamento
normal desta parte da alma, ver capítulos 16 e 17.
[46] “Em silêncio,
abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele. Não invejes o que prospera em
suas empresas, e leva a bom termo seus maus desígnios. Guarda-te da ira, depõe
o furor, não te exasperes, que será um mal, porque os maus serão exterminados,
mas os que esperam no Senhor possuirão a terra.” (Salmos, XXXVI, 7-9)
[47] “Jovem,
rejubila-te na tua adolescência, e, enquanto ainda és jovem, entrega teu
coração à alegria. Anda nos caminhos de teu coração e segundo os olhares de
teus olhos, mas fica sabendo que de tudo isso Deus te fará prestar conta.
Exclui a tristeza de teu coração, poupa o sofrimento a teu corpo, porque a
juventude e a adolescência são vaidade.”
(Eclesiastes, XI, 9-10)
[48] “Quero, pois, que os homens orem em todo lugar,
levantando as mãos puras, superando todo ódio e ressentimento.” (1 Timóteo, II, 8)
[49] A interpretação
simbólica da abstinência de vinho entre os nazireus se faz com base num
aproximação com o Deuteronômio: “Suas
videiras são das plantações de Sodoma e dos terrenos de Gomorra; suas uvas são
venenosas, seus cachos, amargosos. O seu vinho é veneno de serpente, o mais
terrível veneno de cobra!” (Dt. 32,
33). Cf. KG V, 44: “Se a cólera dos
dragões vem do vinho e os nazireus abstém-se do vinho, é porque eles receberam
a ordem de não possuírem cólera.”
[50] O sábio pagão
mencionado é na realidade o autor cômico Menandro, que nos versos 451 a 453 do Atrabiliário faz dizer seu herói Cnémon:
“Mas eles consagram aos deuses o lombo e a vesícula, partes não comestíveis, e
engolem todo o resto.” Evagro deve ter conhecido este texto através de Clemente
de Alexandria (Stromatta, VII, 31, 1)
que o cita numa passagem consagrada aos sacrifícios.
[51] Quanto à
associação da cólera com a bile, ver por exemplo Plutarco, Moralia, 141; a associação dos rins à concupiscência é tradicional,
donde o simbolismo da cintura (Praktiké,
Prólogo).
[52] “Portanto, eis
que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por
vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo
não é mais que as vestes?” (Mateus,
VI, 25)
[53] “Não vos
aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? São
os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que
necessitais de tudo isso.” (Mateus,
VI, 31-32)
[54] “Não se vendem
dois passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de
vosso Pai.” (Mateus, X, 2)
[55] “O que havia
sido curado, porém, não sabia quem era, porque Jesus se havia retirado da
multidão que estava naquele lugar.” (João,
V, 1)
[56] “O terreno que
recebeu a semente entre os espinhos representa aquele que ouviu bem a palavra,
mas nele os cuidados do mundo e a sedução das riquezas a sufocam e a tornam
infrutífera.” (Mateus, XIII, 22)
[57] “Depõe no Senhor
os teus cuidados, porque ele será teu sustentáculo; não permitirá jamais que
vacile o justo.” (Salmo LIV, 23);
“Confiai-lhe todas as vossas preocupações, porque ele tem cuidado de vós.” (1 Pedro,
V, 7)
[58] “Vivei sem
avareza. Contentai-vos com o que tendes, pois Deus mesmo disse: Não te deixarei
nem desampararei (Dt 31,6).” (Hebreus,
XIII, 5)
[59] “Cinco vezes
recebi dos judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com
varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no
abismo. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores,
perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na
cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos!
Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns,
frio e nudez!” (2 Coríntios, XI,
24-27)
[60] “Resta-me agora
receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não
somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua aparição.” (2 Timóteo, IV, 8)
[61] “Porque, ao que parece, Deus nos tem posto a nós, apóstolos, na última
classe dos homens, por assim dizer sentenciados à morte, visto que fomos
entregues em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens.” (1 Coríntios, IV, 9)
[62]
“Nas corridas de
um estádio, todos correm, mas bem sabeis que um só recebe o prêmio. Correi,
pois, de tal maneira que o consigais.” (1 Coríntios,
IX, 24)
[63] “Prescindindo do
passado e atirando-me ao que resta para a frente, persigo o alvo, rumo ao
prêmio celeste, ao qual Deus nos chama, em Jesus Cristo.” (1 Filipenses, III, 13-14)
[64] “Pois não é
contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e
potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças
espirituais do mal (espalhadas) nos ares.” (1 Efésios, VI, 12)
[65] “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a
ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam. Ajuntai para vós
tesouros no céu, onde não os consomem nem as traças nem a ferrugem, e os
ladrões não furtam nem roubam. Porque onde está o teu tesouro, lá também está
teu coração.” (Mateus, V, 18-21)
Evagro tem aqui em vista os tesouros terrestres evocados no versículo 19, e não
o tesouro espiritual do versículo 20.
[66] Esta armadilha é
usada pelos demônios contra os gnósticos, e consiste em dissimular um mau
pensamento sob a forma de um bom pensamento. Cf. Salmo CXXXIX, 5-6: “Javé, defende-me das mãos do injusto, guarda-me
do homem violento. Eles planejam tropeços para os meus passos. Os soberbos me
preparam armadilhas, os perversos me estendem uma rede e me colocam ciladas no
caminho.”
[67] As sementes da
virtude colocadas em nós pelo Criador são indestrutíveis; esta é uma idéia
essencial da metafísica de Evagro, sobre a qual ele insiste em várias ocasiões.
[68] “Faça pratos, bandejas, jarras e copos para as
libações: tudo de ouro puro. E coloque para sempre sobre a mesa, diante de mim,
os pães oferecidos a Deus. Faça um candelabro de ouro puro; ele será todo
cinzelado: pedestal, haste, cálices, botões e flores formarão com ele uma só
peça.” (Êxodo, XXV, 29-31)
[69] “O rei Baltazar
fez um grande banquete para mil altos funcionários seus e ele se pôs a beber
vinho na presença desses mil. Tocado pelo vinho, Baltazar mandou trazer os
cálices de ouro e prata, que seu pai Nabucodonosor havia tirado do Templo de
Jerusalém, para neles beberem o rei, os altos funcionários, suas mulheres e
concubinas. Trouxeram os cálices de ouro tirados do Templo de Jerusalém; então
o rei, os altos funcionários, mulheres e concubinas começaram a beber nesses
cálices. Bebiam vinho e louvavam seus deuses de ouro, prata, bronze, ferro,
madeira e pedra.” (Daniel, V, 1-4)
[70] “Nesse mesmo
dia, dois discípulos iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze
quilômetros de Jerusalém. Conversavam a respeito de tudo o que tinha
acontecido. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou, e
começou a caminhar com eles. Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e
não o reconheceram. Então Jesus perguntou: «O que é que vocês andam conversando
pelo caminho? (...) Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez
de conta que ia mais adiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: «Fica
conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando.» Então Jesus entrou para ficar
com eles. Sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu
e deu a eles. Nisso os olhos dos discípulos se abriram, e eles reconheceram
Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles. Então um disse ao outro: «Não
estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho, e nos
explicava as Escrituras?” (Lucas, XXIV, 13-17, 18-32)
[71] Através do
simbolismo do ouro, devemos ler a aventura dos intelectos que foram dispersos
depois da queda pelos diversos mundos e unidos a almas e corpos, e que
reencontram na prática das virtudes a pureza que os liberta do império do diabo
(“o rei da Babilônia”) e os torna aptos a receber a ciência.
[72] Esta tripla
distinção é retomada em Discípulos,
140: “Pensamento humano é aquele que é impassível, como o que temos pelas
crianças; demoníaco, o que é apaixonado; o que nos ensina a captar o sentido
espiritual da Escritura é angélico, assim com aquele que, na prática, nos
ensina a nos desembaraçarmos dos maus pensamentos e acolher os que são
louváveis.”
[73] Evagro refere-se
a uma denominação que provavelmente estava em uso no meio monástico, como ele o
faz em Praktiké, 12 a respeito do
demônio da acídia, “também chamado de demônio do meio-dia”. A palavra grega planos deve ser tomada não no sentido de
“enganador” ou “sedutor”, que ela tem normalmente quando se trata dos demônios
na Escritura (p.e. 1 Timóteo IV, 1 e
1 João IV, 6), na Vida de Antônio (94, 2) e no próprio Evagro (Prece, 94), mas no sentido primeiro de “errante”, “vagabundo”.
Sobre esta denominação, comparar com Cassiano, Conf. VII, 32 (SC 42, pg.
273-274) que fala de certos demônios quos
etiam Planos vulgus apellat, com a mesma referência ao uso comum empregado
por Evagro; mas Cassiano chama assim aos demônios que se mantém nos caminhos,
riem-se dos passantes e tentam enganá-los. Ele nota entretanto que alguns
dentre eles aderem-se, à noite, aos que dormem e dedicam-se a íncubos sobre
eles. Também Orígenes trata do demônio “viajante” (rodoiporos, cf. 2 Samuel,
XII, 4). Como mostra a seqüência, o demônio é aqui chamado de “vagabundo”
porque ele leva o intelecto a vagabundear; sobre a vagabundagem do intelecto,
ver Praktiké, 15 Exortação I, 3, KG I, 85
e o capítulo 26 adiante. Isto é fácil para o demônio, na medida em que o
intelecto é movido sem esforço.
[74] Ou seja, na
segunda parte da noite, antes de levantar-se para a sinaxe (reunião para a
celebração eucarística ou para orações comunitárias) noturna. A análise de
Evagro é provavelmente fundamentada em uma experiência comum, a dos sonhos que
acompanham o sono chamado de “paradoxal”.
[75] Terapêutica
fundamentada na observação, proveniente da técnica militar.
[76] “O desejo dos
passeios e a procura pelas casas dos outros reviram o estado da alma e destróem
seu zelo.” (Evagro, Vierge, 26)
[77] Literalmente,
“estado de morte”.
[78] Cristo, médico
de almas, dispõe de remédios adaptados a cada situação. No caso presente, ele
aplica o remédio da solidão moral: ele se retira e deixa que o demônio envie
alucinações e pesadelos. Esta forma de solidão moral é analisada em Gnostique, 28 (“quem experimentou o mal
odeia-o”), em que são mencionadas cinco causas da solidão moral; ela se acha
também em Máximo o Confessor.
[79] Os demônios não
podem agir sem a permissão de Deus, cf. Cartas, 28: “Não é [este mesmo demônio]
que pediu a nosso Senhor a tropa de porcos (cf. Mateus, VIII, 31) e que antes pedira a Jó seus bens (cf. Jó, I, 12)? Se ele não tem o poder de se
aproximar dos porcos e dos asnos sem a permissão do doador (cf. Jó, I, 30-32)
como teria ele poder sobre a imagem de Deus?”
[80] “Ah! meu Deus, se matasse o injusto! Se os assassinos
se apartassem de mim! Eles falam de ti com ironia, e em vão se rebelam contra
ti! Não odiaria eu aqueles que te odeiam? Não detestaria eu aqueles que se
rebelam contra ti? Eu os odeio com ódio implacável! Eu os tenho por meus
inimigos! Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração! Prova-me, e conhece os
meus sentimentos! Vê se não ando por um caminho fatal, e conduze-me pelo
caminho eterno.” (Salmos, CXXXVIII,
22.)
[81] Sobre esta
“perfeita aversão” em relação aos demônios, veja-se Comentário, 12 ao Salmo
CXXXVIII, 22: “Se aquele que odeia perfeitamente o Maligno abstém-se de todo o
mal, aquele que de alguma forma participa de sua malícia não odeia
perfeitamente o Maligno”; o Comentário
quater ao Salmo IX, 26, evoca do
mesmo modo estas duas formas de repulsa, a imperfeita e a perfeita. A repulsa
perfeita em relação ao demônio é o sinal da impassibilidade mais elevada, no
mesmo nível do amor a Deus. No capítulo 35, Evagro distingue entre duas formas
de impassibilidade: uma imperfeita, que impede os pecados em ato e uma outra
perfeita que “circuncida o espírito dos pensamentos apaixonados”.
[82] Trata-se da
insensibilidade espiritual, que não distingue mais o bem do mal e causa
incredulidade em relação às verdades da fé. Existe uma incompatibilidade entre
a sensibilidade em relação às realidades espirituais e a vanglória, cf. Praktiké, 32.
[83] Jó, XLI, 21 [N.T.: referência não encontrada]
[84] “O publicano, porém, mantendo-se à distância, não
ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus,
tem piedade de mim, que sou pecador!” (Lucas,
XVIII, 13)
[85] “Passaram por
Anfípolis e Apolônia e chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de
judeus. Paulo dirigiu-se a eles, segundo o seu costume, e por três sábados
disputou com eles. Explicava e demonstrava, à base das Escrituras, que era
necessário que Cristo padecesse e ressurgisse dos mortos.” (Atos, XVII, 2)
[86] “Se aqueles dias
não fossem abreviados, criatura alguma escaparia; mas por causa dos escolhidos,
aqueles dias serão abreviados.” (Mateus,
XXIV, 22)
[87] “Quando o Filho do Homem vier na sua glória,
acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos
os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros,
assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. colocará as ovelhas à sua direita, e os
cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:
‘Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que
meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e
vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era
estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu
estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me
visitar’. Então os justos lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com
fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos
como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi
que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?’ Então o Rei lhes responderá:
‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de
meus irmãos, foi a mim que o fizeram.’ Depois o Rei dirá aos que estiverem à
sua esquerda: ‘Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado
para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de
comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês
não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava
doente e na prisão, e vocês não me foram visitar’. Também estes responderão:
‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou
sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?’ Então o Rei responderá a esses:
‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses
pequeninos, foi a mim que não o fizeram’. Portanto, estes irão para o castigo
eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mateus, XXV, 36).
O
exercício da caridade remedia esta insensibilidade tornando-nos sensíveis à
miséria dos outros. Comparar KG IV,
85: “Os demônios tomam de assalto a alma quando as paixões se multiplicam e
eles tornam o homem insensível extinguindo o poder dos seus órgãos dos
sentidos, de medo que, desde que ele encontre um dos objetos próximos, este
faça o intelecto subir como de um poço raso.”
[88] O demônio da acídia faz de tudo para que “o monge
abandone sua cela e fuja do campo” (Praktiké,
12)
[89] A perseverança é
a virtude que permite resistir à acídia e manter-se na cela.
[90] Cf. Skemmata, 51: “Todo pensamento é seguido
de prazer, salvo os pensamentos de tristeza” e 61: “Dentre os pensamentos, os
de tristeza são os únicos que destróem todos os demais”. Ver também Discípulos, 69: “Somente o pensamento da
tristeza não comporta prazer.”
[91] “Coração alegre,
bom remédio; um espírito abatido seca os ossos.” (Provérbios, XVII, 22)
[92] “Mas poderá aquele que cai não estender a mão, poderá
não pedir socorro aquele que perece?” (Jó,
XXX, 24)
[93] Evagro distingue
dois graus de tristeza. Somente a tristeza moderada pode ser positiva e
fortalecer o monge. Excessiva, a tristeza engendra a tentação do suicídio
[94] “Ouve-se dizer
constantemente que se comete, em vosso meio, a luxúria, e uma luxúria tão grave
que não se costuma encontrar nem mesmo entre os pagãos: há entre vós quem vive
com a mulher de seu pai!... E continuais cheios de orgulho, em vez de
manifestardes tristeza, para que seja tirado dentre vós o que cometeu tal ação!
Pois eu, em verdade, ainda que distante corporalmente, mas presente em
espírito, já julguei, como se estivesse presente, aquele que assim se
comportou. Em nome do Senhor Jesus -, reunidos vós e o meu espírito, com o
poder de nosso Senhor Jesus -, seja esse homem entregue a Satanás, para
mortificação do seu corpo, a fim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor
Jesus. “ (I Coríntios, V, 3-5)
[95] “Se alguém
causou tristeza, não me contristou a mim, mas de certo modo - para não exagerar
- a todos vós. Basta a esse homem o castigo que a maioria dentre vós lhe
infligiu. Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba por
demasiada tristeza. Peço-vos que tenhais caridade para com ele. Quando vos
escrevi, a minha intenção era submeter-vos à prova para ver se éreis totalmente
obedientes.” (II Coríntios, II, 5-9)
[96] Mateus, III, 7-9.
[97] Abraão é o protótipo do monge que “deixou sua terra e
seus pais” (Genesis XII, 1) para
ganhar o deserto.
[98] “O Senhor é bom
e reto, por isso reconduz os extraviados ao caminho reto. Dirige os humildes na
justiça, e lhes ensina a sua via.” (Salmos,
XXIV, 8-9)
[99] “Ora, Moisés
era um homem muito paciente, o mais paciente da terra.” (Números, XII, 3)
[100] Moisés é
apresentado como exemplo de mansidão nas Cartas
27, 36, 41 e 56: “Diga-me porque a Escritura, quando quer louvar Moisés, deixa
de lado todos os milagres que ele fez, e lembra apenas sua mansidão?”
[101] “Cântico das
peregrinações. Senhor, lembrai-vos de Davi e de sua grande piedade...” (Salmos, CXXXI, 1)
[102] Cf. Cartas, 56: “Foi lembrando-se desta
virtude que Davi invocou a Deus: “Lembre-se, Senhor, de Davi e de toda sua
doçura” não [lembrando-se] de que seus joelhos fraquejaram por causa do jejum e
que sua carne estava enferma por falta de azeite (cf. Salmo CVIII, 24), nem porque velando ele se tornara como um pardal
solitário sobre o telhado (Salmo CI,
8); mas ele disse: Lembre-se, Senhor, de Davi e de toda a sua doçura”.
[103] Mateus, XI, 29. Cf. Cartas, 56 “Imitemos portanto esta doçura, a fim de que aquele que
disse: ‘Aprendam comigo que sou doce e humilde de coração’ nos ensine seus
caminhos e nos salve”.
[104] “Lembre a eles
que devem ser submissos aos magistrados e autoridades, que devem obedecer e
estar prontos para toda boa obra; não devem difamar a ninguém, nem andar
brigando, mas sejam pacíficos e atenciosos no trato com todos.
Também
nós, antigamente, éramos insensatos, desobedientes, extraviados, escravos de
todo tipo de paixões e prazeres, vivendo na perversidade e na inveja, dignos de
ódio e odiando-nos uns aos outros. Mas a bondade e o amor de Deus, nosso
Salvador, se manifestaram. Ele nos salvou, não por causa dos atos justos que
tivéssemos praticado, mas porque fomos lavados por sua misericórdia através do
poder regenerador e renovador do Espírito Santo. Deus derramou abundantemente o
Espírito sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, para que,
justificados por sua graça, nós nos tornássemos herdeiros da esperança da vida
eterna.” (Tito, III, 1-7)
[105] O capítulo 4 da Skemmata classifica os pensamentos
segundo sua maior ou menor abundância de matéria: “Dentre os pensamentos,
alguns são sem matéria, outros têm pouca matéria, outros ainda muita matéria:
sem matéria, aqueles que provêm do primeiro orgulho, pouca matéria, os que
provêm da fornicação, muita matéria, aqueles que provêm da vanglória”. Cf. Skemmata, 47: “Dentre os pensamentos,
alguns tiram sua matéria do exterior, como os da fornicação do corpo.” Ver
também Discípulos, 33 (“o orgulho não
possui matéria”), 69 (“o pensamento de orgulho é sem matéria”), 161 (“a
irascibilidade tem muita matéria”). A vanglória é comparada em Cartas, 51 a um cardo que pica de todos os
lados: “Tudo lhe serve, cilício ou vestimentas de seda, palavra ou silêncio,
saciedade ou privação, retiro ou encontro”.
[106] Cf. Skemmata, 57: “Os pensamentos de
vanglória e de orgulho são os únicos a sobreviver após a derrota de todos os
outros pensamentos.” A vanglória importuna sobretudo os virtuosos.
[107] “Quando o
espírito impuro sai de um homem, ei-lo errante por lugares áridos à procura de
um repouso que não acha. Diz ele, então: Voltarei para a casa donde saí. E,
voltando, encontra-a vazia, limpa e enfeitada. Vai, então, buscar sete outros
espíritos piores que ele, e entram nessa casa e se estabelecem aí; e o último
estado daquele homem torna-se pior que o primeiro. Tal será a sorte desta
geração perversa.” (Mateus, XII, 45)
“Com efeito, se aqueles que renunciaram às corrupções do mundo pelo
conhecimento de Jesus Cristo nosso Senhor e Salvador nelas se deixam de novo
enredar e vencer, seu último estado torna-se pior do que o primeiro.” (II Pedro, II, 20)
[108] Sobre a ligação
entre a vanglória e o orgulho, ver Praktiké,
13 e Oito pensamentos, 17: “A luz de
um relâmpago faz prever o ruído do trovão, e o orgulho é anunciado pela
vanglória”.
[109] “A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos:
filho do homem, entoa um cântico fúnebre sobre o rei de Tiro, e dize-lhe: Eis o
que diz o Senhor Javé: Eras um selo de perfeição, cheio de sabedoria, de uma
beleza acabada.” (Ezequiel, XXVIII,
12)
[110] Provérbios, IX, 18. [N.T.: referência não encontrada]
[111] “Afasta dela teu
caminho, não te aproximes da porta de sua casa, para que não seja entregue a
outros tua fortuna e tua vida a um homem cruel; para que estranhos não se
fartem de teus haveres e o fruto de teu trabalho não passe para a casa alheia;
para que não gemas no fim, quando forem consumidas tuas carnes e teu corpo e
tiveres que dizer: Por que odiei a disciplina, e meu coração desdenhou a
correção?” (Provérbios, V, 8-12)
[112] Sobre a tentação
da vanglória à qual estão sujeitos os virtuosos, ver Praktiké, 13: “O pensamento da vanglória é um pensamento muito sutil
que se dissimula facilmente entre os virtuosos, desejando publicar suas lutas e
perseguindo as glórias que vêm dos homens.”
[113] A vanglória atira
o monge ao demônio da fornicação, cf. Praktiké,
13. A queda do monge que abandona sua cela para ir às casas de tolerância da
cidade (as porcarias) tem um valor no mínimo pedagógico. Tudo isto lembra a
história do monge Heron contada por Paládio: foi também por um desígnio
providencial que Heron foi a Alexandria e aí freqüentou os prostíbulos. Existe
aí talvez uma reminiscência do episódio da Odisséia
em que a feiticeira Circe transforma em porcos os companheiros de Ulisses e os
tranca no chiqueiro.
[114] A impassibilidade
é definida como a saúde da alma, sendo a paixão uma doença.
[115] Primeira etapa da
vida espiritual, a prática. Uma vez que “o movimento é causa de malícia”, a
prática permite encontrar um estado excelente, estável e durável que não é
outra coisa do que a virtude da impassibilidade.
[116] Segunda etapa, a
contemplação natural: colocada sob o signo da multiplicidade, esta é
freqüentemente classificada como polipoikilos.
[117] Última etapa, a
ciência de Deus. O termo epopteuein é
emprestado do vocabulário dos mistérios. Passa-se do modo catártico (pequenos
mistérios) ao modo epóptico (iniciação aos grandes mistérios). Orígenes designa
pelo termo epóptico a última etapa do progresso espiritual, que é habitualmente
chamada de teologia. O final do capítulo é repetido em Discípulos, 78: “Progredindo na prática, o intelecto possui
representações de objetos sensíveis que se fazem leves; progredindo na ciência,
ele receberá objetos de contemplação variados; progredindo na oração, ele verá
sua própria luz tornar-se mais brilhante e radiante.”
[118] Evagro é
reticente ao expor por escrito certas experiências, tentações sexuais ou
blasfêmias, que os gnósticos conhecem, mas cujo relato poderia escandalizar os
que são menos avançados. Ver também Ant.
II, 65: “Contra o pensamento que me ameaça e me diz: Você vai suportar males
indizíveis por causa dos demônios, males que eu não quero descreve em um livro,
a fim de não abater o zelo dos que lutam, não
lançar confusão entre os que se retiraram do mundo, e também para não
escandalizar os homens desprevenidos que estão no mundo, pois verdadeiramente
eu vi muitas coisas impossíveis de descrever, operadas pelos demônios, que
poucos homens poderiam contar...”
[119] Compare-se com as
aparições reportadas na vida de Santo Antônio.
[120] “Esses fazem
escândalos nos vossos ágapes. Banqueteiam-se convosco despudoradamente e se
saciam a si mesmos. São nuvens sem água, que os ventos levam! Árvores de fim de
outono, sem fruto, duas vezes mortas, desarraigadas!” (Judas, I, 12)
[121] Os demônios podem
agir diretamente sobre o corpo tocando-o. O verbo usado por Evagro refere-se à
ação de forçar com uma alavanca.
[122] Sobre o bom uso
da parte irascível, ver Praktiké, 24.
Sobre a definição de cólera, id., 11.
[123] Salmo IV, 5.
Em outra parte, Evagro explicita assim o sentido do versículo: “Ele exorta a
que não demos nosso assentimento à representação e a não passar à ação fazendo
prevalecer a cólera.”
[124] “Diga a ele:
Tenha cuidado, mas fique calmo! Não tenha medo nem vacile o seu coração por
causa desses dois tições fumegantes, isto é, por causa da raiva de Rason de
Aram e do filho de Romelias” (Is.,
VII, 4)
[125] “Eu garanto a vocês: aquele que não entra pela porta no
curral das ovelhas, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Mas aquele
que entra pela porta, é o pastor das ovelhas. O porteiro abre a porta para ele,
e as ovelhas ouvem a sua voz; ele chama cada uma de suas ovelhas pelo nome e as
conduz para fora. Depois de fazer sair todas as suas ovelhas, ele caminha na
frente delas; e as ovelhas o seguem porque conhecem a sua voz. Elas nunca vão
seguir um estranho; ao contrário, vão fugir dele, porque elas não conhecem a
voz dos estranhos.» Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o
que Jesus queria dizer. Jesus continuou dizendo: «Eu garanto a vocês: eu sou a
porta das ovelhas. Todos os que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes,
mas as ovelhas não os ouviram. Eu sou a porta. Quem entra por mim, será salvo.
Entrará, e sairá, e encontrará pastagem. O ladrão só vem para roubar, matar e
destruir. Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância. Eu sou o bom
pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor
a quem pertencem, e as ovelhas não são suas, quando vê o lobo chegar, abandona
as ovelhas e sai correndo. Então o lobo ataca e dispersa as ovelhas. O
mercenário foge porque trabalha só por dinheiro, e não se importa com as
ovelhas. Eu sou o bom pastor: conheço
minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o
Pai. Eu dou a vida pelas ovelhas. Tenho também outras ovelhas que não são deste
curral. Também a elas eu devo conduzir; elas ouvirão a minha voz, e haverá um
só rebanho e um só pastor. O Pai me ama, porque eu dou a minha vida para
retomá-la de novo. Ninguém tira a minha vida; eu a dou livremente. Tenho poder
de dar a vida e tenho poder de retomá-la. Esse é o mandamento que recebi do meu
Pai.” (João X, 1-18.)
[126] “Que proveito o trabalhador tira de sua fadiga? Observei
a tarefa que Deus entregou aos homens, para com ela se ocuparem: tudo o que ele
fez é apropriado para cada tempo. Também colocou o senso da eternidade no
coração do homem, mas sem que o homem possa compreender a obra que Deus realiza
do começo até o fim. Então compreendi que não existe para o homem nada melhor
do que se alegrar e agir bem durante a vida.” (Eclesiastes., III, 9-12).
[127] O thymos e a epithymia atuam como auxiliares do
intelecto quando exercem sua função natural (cf. Pr., 24 e 86; K.G., IV,
73; Disc. 96): “A irascibilidade nos
foi dada para que nos levantemos em cólera contra os demônios, e a
concupiscência para que amemos a virtude e a verdade...” Este thymos que coloca em fuga as
representações que são os lobos nos conduz À comparação deste com um cão de
guarda (cap. 5 e 13).
[130] Salmo XXII, 4. Nas Scholias aos Salmos aparece a
interpretação simbólica da maior parte dos elementos mencionados aqui: as
pastagens e a água (schol 1 ad Ps.
22, 1-2); a harpa e a cítara (scholias
5 ad Ps. 56, 9 e ad Ps. 107, 3; tb. K.G. VI, 46 e 48); o bastão e o cajado (schol. 3 ad Ps. 22, 4).
[131] Provérbios.
XXVII, 25. Cf. Schol. 341 ad Prov. 27, 25: As “forrações das
montanhas” são “as ciências das santas potências que convêm ao estado
irracional (i.e. animal) das almas, pois as Escrituras costumam chamar de
'montanhas' aos santos.”
[132] 1 Coríntios,
IX, 7.
[133] “Jacó ficou furioso e começou a discutir com Labão: «Que
crime cometi e qual é a minha falta para você me perseguir? Você revirou todas
as minhas coisas: encontrou, por acaso, alguma coisa sua? Coloque-a aqui,
diante de minha gente e sua gente, e que eles julguem entre nós dois. Veja bem!
Estou há vinte anos com você, suas ovelhas e cabras não abortaram e eu não comi
os cordeiros do seu rebanho. Não lhe
apresentei os animais despedaçados, mas eu os compensava com os meus. Você me
pedia contas do que era roubado de dia e de noite. De dia, eu era devorado pelo
calor, e de noite pelo frio, e não conseguia pegar no sono. Já estou há vinte
anos em sua casa: servi a você catorze anos por suas duas filhas, seis anos por
seu rebanho, e dez vezes você mudou o meu salário. Se o Deus do meu pai, o Deus
de Abraão, o Terrível Deus de Isaac, não estivesse comigo, você me teria
mandado embora de mãos vazias. Mas Deus viu minha aflição e minha fadiga, e na
noite passada me fez justiça.” (Gênesis,
XXXI, 36-42)
[134] Lucas., X, 30.
[135] “Davi disse a Saul: «Ninguém deve ficar desanimado. Este
seu servo irá lutar com o tal filisteu!» Saul respondeu a Davi: «Você não pode
lutar com o filisteu! Você é apenas um rapaz! Ele é guerreiro desde a
juventude!» Davi replicou: «Seu servo é pastor das ovelhas de meu pai. Se chega
um leão ou urso e agarra uma ovelha do rebanho, eu vou atrás, o ataco e arranco
a ovelha de sua goela; se ele me ataca, eu o agarro pela juba e o mato a
pauladas. Seu servo é capaz de matar leões e ursos. Pois bem: esse filisteu
incircunciso, que desafiou o exército do Deus vivo, será como um deles». E Davi
acrescentou: «Javé me livrou das garras do leão e do urso. Ele me livrará
também das mãos desse filisteu». Então Saul lhe disse: «Vá. E que Javé esteja
com você!» Saul vestiu Davi com sua própria armadura, colocou-lhe na cabeça um
capacete de bronze, revestiu-o com a sua couraça, e pôs a espada na cintura
dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou andar, pois nunca tinha usado nada
disso. Então falou a Saul: «Não consigo nem andar com essas coisas. Não estou
acostumado». Tirou tudo, pegou o cajado, escolheu cinco pedras bem lisas no
riacho e as colocou no seu bornal. Depois pegou a funda e foi ao encontro do
filisteu.” (1 Samuel., XVII, 32-40)
[136] Note-se que Evagro utiliza aqui quatro verbos relativos
ao pastoreio.
[137] Ou seja, nos sonhos: para Evagro, as fantasiai designam normalmente as
imagens dos sonhos.
[139] Evagro não é adepto da ascese forçada e desumana. Ele
sabe que devemos nos servir de pausas na luta contra os demônios. O reconforto
e o prazer da ciência vêm depois das fadigas e das penas da prática (Pr., 90); mas o conselho de Evagro só se
refere àqueles que já experimentaram a ciência.
[140] A harpa (saltério) que é o instrumento tradicional dos pastores,
desde Davi, já foi evocada mais acima. As cordas são vibradas com o auxílio de
uma palheta.
[141] Moisés estava pastoreando o rebanho do seu sogro Jetro,
sacerdote de Madiã. Levou as ovelhas além do deserto e chegou ao Horeb, a
montanha de Deus. O anjo de Javé apareceu a Moisés numa chama de fogo do meio
de uma sarça. Moisés prestou atenção: a sarça ardia no fogo, mas não se
consumia. Então Moisés pensou: «Vou chegar mais perto e ver essa coisa
estranha: por que será que a sarça não se consome?» Javé viu Moisés que se
aproximava para olhar. E do meio da sarça Deus o chamou: «Moisés, Moisés!» Ele
respondeu: «Aqui estou». Deus disse: «Não se aproxime. Tire as sandálias dos
pés, porque o lugar onde você está pisando é um lugar sagrado». E continuou:
«Eu sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus
de Jacó». Então Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus.” (Êxodo. III, 1-6)
[142] “Javé disse a Moisés e Aarão: «Se o Faraó pedir que vocês
façam algum prodígio, você dirá a Aarão que pegue a vara de você e a jogue
diante do Faraó; e ela se transformará em cobra.” (Êxodo, VII, 9); “Javé disse a Moisés: «O Faraó não fará caso de
vocês. Assim os meus prodígios se multiplicarão no Egito». Moisés e Aarão
fizeram todos esses prodígios diante do Faraó. Javé, porém, endureceu o coração
do Faraó. E este não deixou que os filhos de Israel partissem do seu país.” (Êxodo, XI, 9-10. As alusões
escriturárias precedentes nos levam aos pastores Davi e Jacó. Agora é de Moisés
que se trata, Moisés que apascenta os rebanhos de seu sogro Jetro aos pés do
Sinai (sobre o lugar que ocupa o Sinai na mística de Evagro, ver cap. 39). Na
interpretação simbólica subjacente, Evagro estabelece uma relação de
causalidade entre a vigilância paciente de Moisés e as revelações com que ele
será gratificado por parte de Deus. Quanto ao final, cf. Schol 14 ad Ps., 104,
26-17: “Moisés e Aarão eram os únicos da conhecer as razões dos “sinais e dos
prodígios”.
[143] Cf. Skemmata, 40: “Dentre os pensamentos,
alguns nos chegam enquanto animais, outros enquanto homens. Enquanto animais
são todos os que provêm da concupiscência e da irascibilidade; enquanto homens,
todos os que provêm da tristeza, da vanglória e do orgulho; os da acídia são
mistos, chegam-nos tanto enquanto animais como enquanto humanos.
[144] Salmo LXXXI, 6-7.
[145] Salmo XXXI, 9.
[146] “Recebi a seguinte mensagem de Javé: «Que sentido tem para vocês este ditado que
se repete na terra de Israel: ‘Os pais comeram uva verde, e a boca dos filhos
ficou amarrada’? Juro por minha vida - oráculo do Senhor Javé - que vocês não
vão repetir mais esse ditado em Israel. Todas as vidas são minhas, tanto a vida
do pai como a vida do filho. O indivíduo que pecar, esse é que deverá morrer.
Se o indivíduo é justo e pratica o direito e a justiça; se não come nos montes,
adorando os ídolos imundos da casa de Israel; se não desonra a mulher do seu
próximo, nem procura mulher menstruada; se é um indivíduo que não explora
ninguém, mas devolve o penhor de uma dívida; que não rouba de ninguém, mas dá o
seu pão a quem tem fome e veste quem não tem roupa; que não empresta com usura,
nem cobra juros; que evita praticar a injustiça e procura fazer um julgamento
justo entre as pessoas; o indivíduo que age de acordo com os meus estatutos, que
guarda as minhas normas, praticando corretamente a verdade, esse indivíduo é
justo, e certamente permanecerá vivo - oráculo do Senhor Javé.” (Ezequiel, XVIII, 1-9) “Mas vocês ainda perguntam: ‘Por que é que o
filho não levará o castigo pelo pecado do seu pai?’ Ora, o filho praticou o
direito e a justiça, guardou os meus estatutos e os colocou em prática. Por
isso, ele permanecerá vivo. O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O
filho nunca será responsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo
pecado do filho. O justo receberá a justiça que merece e o injusto pagará por
sua injustiça.” (Ezequiel, XVIII,
19-20)
[147] “Vendo grandes multidões ao seu redor, Jesus mandou
passar para a outra margem. Então um doutor da Lei se aproximou e disse: ‘Mestre,
eu te seguirei aonde quer que fores.’ Mas Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm
tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a
cabeça’. Outro, que era discípulo, disse a Jesus: ‘Senhor, deixa primeiro que
eu vá sepultar meu pai’. Mas Jesus lhe respondeu: ‘Siga-me, e deixe que os
mortos sepultem seus próprios mortos’.” (Mateus,
VIII, 22)
[148] Através do
simbolismo dos homens, dos corvos e dos abutres Evagro deixa entender os vários
castigos que aguardam o pecador após a morte. Cf. o simbolismo dos corvos e das
águias em schol. 294 ad Prov., XXX, 17 e 3 ad Ps. CXLVI, 9, bem como nas sentenças
16 e 18 do Comentário dos Provérbios
numéricos (SC 340, pg. 489).
[149] Salmo CXLVI, 9.
[150] “Será pela sabedoria que você tem, que o falcão levanta
vôo, estendendo as asas para o sul? Por acaso é com sua ordem que a águia
levanta vôo e constrói seu ninho nas alturas? Ela mora nos rochedos, e aí
pernoita numa fortaleza de rocha inatingível. Do alto ela espia a sua presa;
seus olhos a enxergam de longe. Seus filhotes bebem o sangue, e onde há
cadáveres ela aí está.” ( Jó, XXXIX,
30)
[151] Mateus, XI, 15; XIII, 9.
[152] “Os injustos desembainham a espada e retesam o arco para
matar o pobre e o indigente, para assassinar o homem reto; mas a espada lhes
atravessará o coração, e seus arcos se quebrarão.” (Salmo XXXVI, 15)
[153] Este capítulo
propõe dois meios de lutar contra os demônios: o primeiro é a análise, cf. díele e diaíresis. Compare-se com os métodos preconizados por Marco
Aurélio, Pensamentos XI, 2, para
chegar a desprezar as coisas que podem produzir um certo prazer: “Se se
trata de uma ária melodiosa, basta que a decomponhamos em suas notas e, para
cada uma delas, verificar se é impossível resistir a ela; você não ousaria
reconhecê-lo. Para a dança, utilizemos um método análogo para cada movimento ou
figura, e a mesma coisa para o pancrácio. Resumidamente, salvo para a virtude e
tudo o que se liga a ela, não nos esqueçamos de penetrar no fundo das coisas a
fim de, por meio desta análise, as desdenharmos” (Trad. A . I. Trannoy, Les
Belles Lettres, pg. 123-124).
[154] Cf. Discípulos, CXVIII: “Se as
representações dos objetos são um mal, quem dispõe o intelecto deste modo é
responsável (aítios); se os objetos
fossem um mal, seria seu próprio criador o responsável. Mas evidentemente nem
as representações nem os objetos são males. O mal é o movimento do livre
arbítrio para o pior.” Tb. Discípulos,
CLXV: “O mal não é nem o intelecto, nem o objeto, nem a representação do
objeto, mas a paixão ligada à representação. Sou eu o responsável por sua
existência, porque sou eu também o responsável pela sua desaparição.”
[155] Noção estóica do
bom e do mau uso, freqüentemente usada por Evagro: K.G. III, 59; Pr. 88; Sk. 15; Ep. 54 e 54; schol. 337 ad Prov. XXVII, 13; 1 ad Ps., XV, 2; 16 ad Eccl. III, 10-13; Disc. 36,96,99 e
129.
[156] Sobre a circuncisão espiritual, ver adiante cap. 35 e K.G. IV, 12: “A circuncisão inteligível
é a rejeição voluntária das paixões, feita em vista da ciência de Deus.”
[157] “Enquanto o filisteu se aprumava e se aproximava de Davi
pouco a pouco, Davi correu depressa para se posicionar e enfrentar o filisteu.
Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na
testa do filisteu. A pedra afundou na testa do filisteu, que caiu de bruços no
chão. Assim Davi foi mais forte que o filisteu, apenas com uma funda e uma
pedra: sem espada na mão, feriu e matou o filisteu. Davi correu, parou diante
do filisteu, pegou a espada dele, a desembainhou e com ela acabou de matá-lo,
cortando-lhe a cabeça.” (1 Samuel
XVII, 48-51)
[158] O primeiro método
consiste em combater o demônio utilizando suas próprias armas, ou seja os maus
pensamentos, como Davi cortou a cabeça de Golias com a própria espada deste. O
segundo método consiste em combater o demônio com bons pensamentos provenientes
da contemplação natural.
[159] Esta frase
acha-se literalmente em K.G. III, 78
e em Cartas, 57. Por ocupar um mundo
intermediário, o homem não tem a possibilidade de entrever os mundos angélico e
demoníaco, nem a faculdade de intervir sobre o estado espiritual dos seres que
os habitam.
[160] “Como é que você
caiu do céu, estrela da manhã, filho da aurora? Como é que você foi jogado por
terra, agressor das nações?” (Isaías
XIV, 12)
[161] “Veja! Diante dele, toda segurança é apenas ilusão, pois
basta alguém vê-lo para ficar com medo. Ninguém é tão corajoso para provocá-lo.
Quem poderia enfrentá-lo cara a cara? Quem jamais se atreveu a desafiá-lo, e
saiu ileso? Ninguém debaixo de todo o céu. Não deixarei de descrever os membros
dele, nem sua força incomparável. Quem abriu sua couraça e penetrou por sua
dupla armadura? Quem abriu as duas portas de sua boca, rodeadas de dentes
terríveis? Suas costas são fileiras de escudos, ligados com lacre de pedra; são
tão unidos uns com os outros, que nem ar passa entre eles; cada um é tão ligado
com o outro, que ficam travados e não se podem separar. Seus espirros lançam
faíscas, e seus olhos são como a cor rosa da aurora. De sua boca irrompem
tochas acesas e saltam centelhas de fogo. De suas narinas jorra fumaça, como de
caldeira acesa e fervente. Seu bafo queima como brasa, e sua boca lança chamas.
Em seu pescoço reside a força, e diante dele dança o terror. Os músculos do seu
corpo são compactos, são sólidos e imóveis. Seu coração é duro como rocha e
sólido como pedra de moinho. Quando ele se ergue, os heróis tremem e fogem
apavorados. A espada que o atinge não penetra, nem a lança, nem o dardo, nem o
arpão. Para ele o ferro é como palha, e o bronze como madeira podre. A flecha
não o afugenta, e as pedras da funda se transformam em palha para ele. A maça é
para ele como estopa, e ele zomba dos dardos que assobiam. Seu ventre, coberto
de escamas pontudas, é uma grade de ferro que se arrasta sobre o lodo. Ele faz
ferver o fundo do mar como caldeira, e a água fumegar como vasilha quente cheia
de ungüentos. Atrás de si deixa uma esteira brilhante, e a água parece
cabeleira branca. Na terra ninguém se iguala a ele, pois foi criado para não
ter medo. Ele se confronta com os seres mais altivos, e é o rei das feras
soberbas.” ( Jó XLI, 1-26)
[162] Contemplação
referente à queda de Satanás identificado com o anjo portador da luz e ao Leviatã de Jó.
[163] A mesma idéia é expressa em Pr. 83: “O intelecto, enquanto guerreia contra as paixões, não
contemplará as razões da guerra, pios parece-se com alguém que luta à noite;
mas quando tiver adquirido a impassibilidade, ele reconhecerá facilmente as
manobras do inimigo.”
[164] Cf. Pr. 53:
“aqueles que percebem numa certa medida a contemplação dos seres.”
[165] O verbo katepadein
costuma ser empregado a propósito de Davi cujos salmos encantaram Saul (1 Samuel XVI, 14-23). Quanto a este
emprego, ver Pr. 27 e Gregório de
Nazianze, Discurso 9 (SC 405, pg. 304, 20-21). Aqui, Evagro
quer dizer apenas que o impuro repete as fórmulas da contemplação natural sem
compreender-lhes o significado, como o mágico que ignora o sentido das fórmulas
que emprega. Da mesma maneira, os demônios podem dizer a verdade repetindo
coisas ouvidas cujo sentido eles não entendem.
[166] “Os filisteus reuniram suas tropas para a guerra e se
concentraram em Soco de Judá, e acamparam em Efes-Domim, entre Soco e Azeca.
Saul e os israelitas se reuniram e acamparam no vale do Terebinto, e se puseram
em ordem de batalha contra os filisteus. Os filisteus se colocaram na encosta
da montanha, enquanto os israelitas ficaram na encosta de outra montanha, de
modo que havia entre eles um vale. Saiu então do exército filisteu um guerreiro
enorme chamado Golias, de Gat, com quase três metros de altura.” (1 Samuel XVII, 1-4).
[167] Como no capítulo
anterior, notar o caráter intelectual da ascese. Trata-se do critério de
impassibilidade: o monge deve saber aonde se encontra em relação à
impassibilidade.
[168] Sobre as matérias
constitutivas dos pensamentos, ver cap. 14; sobre a falta de objetos, cap. 36.
[169] Constantinopla,
onde o monge pensa que irá ser feito bispo.
[170] Remete ao que foi
dito no início do capítulo: “devido à raridade do objeto, pelo fato de ser
difícil encontrar a matéria necessária”. Nesta tentação, o pensamento da
vanglória não consegue perseverar, dado o inverossímil da situação.
[171] Aqui é ainda a tentação do episcopado; em outros casos é
a prelazia que é invocada: cap. 21 e 28; Pr.,
13; Ant., VII, 3, 8, 26, 40.
[172] Então Moisés subiu das estepes de Moab ao monte Nebo, ao
pico do Fasga, que fica na frente de Jericó. E Javé lhe mostrou toda a terra:
desde Galaad até Dã, todo o Neftali, a terra de Efraim e Manassés, toda a terra
de Judá até o mar Mediterrâneo, o Negueb, o distrito da planície de Jericó,
cidade das palmeiras, até Segor. E Javé falou a Moisés: “Essa é a terra que
prometi a Abraão, Isaac e Jacó, quando eu disse: ‘Eu a darei à sua
descendência’. Eu estou lhe mostrando essa terra, mas você não atravessará até
ela”. (Deuteronômio, XXXIV, 3-5)
[173] Cf. Antirrhétikos: “Se tivermos fé em Cristo
e guardarmos os mandamentos, atravessaremos o Jordão e chegaremos à cidade das
palmeiras”, ou seja Jericó; a expressão provém da exegese que faz Evagro,
seguindo Orígenes, do relato bíblico que vai da saída do Egito à conquista do
país de Canaã, relato que simboliza as diferentes etapas da vida espiritual;
comparar com K.G. VI, 49, onde o
deserto, especificamente, designa a prática. Os “estrangeiros”, literalmente
“alófilos”, nome pelo qual a Septuaginta
designa os Filistinos (cf. K.G. V, 30
e 68), representam os demônios.
[174] O monge vê-se
investido na função de “xenódoco”, ou seja, encarregado perante o bispo da
administração do hospital da cidade e de prover as necessidades de todos os que
precisam; Paládio (H.L. 1) descreve a
atividade de Isidoro que preencheu este cargo junto a Teófilo, bispo de
Alexandria; este funcionário recebia as doações feitas pelos ricos e podia
assim dispor de muito dinheiro. Comparar com Cartas, 16: o demônio da avareza leva o monge a freqüentar os
ricos, a pedir-lhes dinheiro para os pobres que solicitam. Comparar com Bases, 4: “Vigie para não possuir
dinheiro para distribuir aos pobres, pois este é mais um ardil do Maligno, que
conduz à vanglória e lança o intelecto naquilo que causa agitação.”
[175] Sobre a visita
aos que estão na prisão, ver cap. 11, lembrando o preceito evangélico.
[176] O demônio da
vanglória pode introduzir os mesmos pensamentos que a avareza, conforme Ant. VII, 10: “Contra os pensamentos de
vanglória que obnubilam o espírito com pensamentos de toda espécie, seja
fazendo-o administrador dos bens de Deus, seja estabelecendo-o como intendente
sobre seus irmãos.” Sobre a ligação entre a avareza e a vanglória, ver também Ant., III, 32: “Contra o pensamento da
avareza que pede à riqueza o conforto e a glória.”
[177] O demônio da
vanglória entrega o monge ao demônio do orgulho; ver cap. 14.
[178] Sobre as visões
aterradoras devidas ao demônio do orgulho, comparar com Monges, 62: “Não entregue seu coração ao orgulho (...) pois então os
inimigos no ar o aterrorizarão e noites terríveis se apresentarão a você”;
também em Oito pensamentos, 17: “Não
entregue sua alma ao orgulho se não quiser ver imagens aterradoras.”
[179] Ver passagem
paralela em Praktikos, 14.
[180] 1 Timóteo, VI, 7-8.
[181] “Porque
a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por causa dessa ânsia de
dinheiro, alguns se afastaram da fé e afligem a si mesmos com muitos
tormentos.” (1 Timóteo, VI, 10)
[182] “Aqueles, porém, que querem tornar-se ricos, caem na
armadilha da tentação e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que fazem
os homens afundarem na ruína e perdição.” (1 Timóteo, VI, 9)
[183] Texto paralelo em
Cartas, 39; ver também schol. 2 ad Ps. CXLV, 7: “Os objetos retêm o
intelecto por meio de pensamentos apaixonados, assim como a água [retém] o
sedento pela sede, e o pão [retém] o faminto pela fome.”
[184] “Quanto a mim,
meu sangue está para ser derramado em libação, e chegou o tempo da minha
partida. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora
só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele
Dia; e não somente para mim, mas para todos os que tiverem esperado com amor a
sua manifestação.” (2 Timóteo, IV, 8)
[185] “O Reino do Céu é
como um rei que preparou a festa de casamento do seu filho. E mandou seus
empregados chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram ir. O rei
mandou outros empregados, dizendo: ‘Falem aos convidados que eu já preparei o
banquete, os bois e animais gordos já foram abatidos, e tudo está pronto. Que
venham para a festa’. Mas os convidados não deram a menor atenção; um foi para
o seu campo, outro foi fazer os seus negócios, e outros agarraram os
empregados, bateram neles, e os mataram. Indignado, o rei mandou suas tropas,
que mataram aqueles assassinos, e puseram fogo na cidade deles.” (Mateus, XXII, 2-7).
[186] “Quando o rei
entrou para ver os convidados, observou aí alguém que não estava usando o traje
de festa. E lhe perguntou: ‘Amigo, como foi que você entrou aqui sem o traje de
festa?’ Mas o homem nada respondeu. Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrem
os pés e as mãos desse homem, e o joguem fora na escuridão. Aí haverá choro e
ranger de dentes’. Porque muitos são chamados, e poucos são escolhidos.” (Mateus, XXII, 11-14).
[187] Virtudes e
impassibilidade são as vestes que permitem tomar parte nas bodas da ciência;
cf. schol. 4 ad Ps. 136.
[188] Cf. Tito, II, 11-14: “A graça de Deus se
manifestou para a salvação de todos os homens. Essa graça nos ensina a
abandonar a impiedade e as paixões mundanas, para vivermos neste mundo com
autodomínio, justiça e piedade, aguardando a bendita esperança, isto é, a
manifestação da glória de Jesus Cristo, nosso grande Deus e Salvador.” Comparar
com Skemmata, 11: “A educação é a
renúncia (‘arnésis) à impiedade e à
cobiça do mundo” e 25: “A morada [de Deus] é o intelecto luminoso que renunciou
às cobiças do mundo...”
[189] Tanto no meio monástico das Kellia como em Sceta, os
monges podiam levar um modo de vida mais ou menos solitário. Evagro parece
pouco favorável a uma grande anacorese porque esta suporia, a seus olhos, uma
grande impassibilidade: “A anacorese é doce depois da eliminação das paixões” (Pr., 36), mas antes disto ela é
perigosa, pois se torna uma tentação dos demônios que, “quando a parte
irascível de nossa alma acha-se profundamente perturbada (...) nos sugerem que
a a anacorese é bela, para nos impedir de dar fim ao que causara nossa
tristeza” (Pr., 22). Ver também Euloge
5 (1100 D). K.G. VI, 41 e Monges 8: “A anacorese com caridade
purifica o coração; a anacorese com ódio o perturba.”
[190] Evagro emprega
aqui e mais adiante a palavra ekstasis,
no sentido que ela possui habitualmente em Aristóteles e nos escritos médicos,
correspondente ao primeiro dos quatro princípios que Fílon distingue, o “furor
delirante que provoca a loucura” (Quis
rerum div. 249). Mais precisamente o termo designa o fato de sair de sua katástasis, de seu “estado primeiro” ou
de seu “estado de homem”; cf. acima cap. 11. O termo designa uma decadência,
como o próprio Evagro define em 39
Sentenças, 9: “O ekstasis é a
recaída da alma racional no mal depois da virtude e da ciência de Deus.” (PG 40, 1265B)
[191] Evagro parece aludir aqui a dois monges mencionados por
Paládio (HL 25 e 26) e que ele
próprio certamente conheceu: Valens e Heron, ambos vítimas do próprio orgulho.
Em HL 47 vemos Evagro, Paládio e
Albanius consultar Pafnúcio apelidado Céphalas para “aprender as causas que
fazem os irmãos faltar, decair ou naufragar na [prática da] vida virtuosa.”
[192] Sobre as visões aterradoras, veja-se acima, cap. 21.
Compare-se com as visões noturnas provocadas sobretudo pelo demônio da tristeza
em Ant. IV, 62 (relâmpagos pelas
paredes); também com as visões terrificantes provocadas pelo demônios na Vida de Antônio, 9.
[193] Os demônios
aparecem sob a figura de Etíopes, cf. Ant.
IV, 34: “demônios que bruscamente espiam do alto dos ares como Etíopes”
(siríaco: Indianos); o termo designa as populações negras dos países situados
ao sul do Egito, a começar pelos Núbios. Os monges do Egito figuravam os
demônios sob o aspecto de Etíopes, na maior parte das vezes assustadores, às
vezes lascivos ou maliciosos. Cf. Vida de
Antônio, 6.
[194] Meteoros; cf
Pr., 13: “O pensamento da vanglória (...) faz o monge imaginar demônios
gritando, mulheres curadas, uma multidão que toca seu manto; ele prediz mesmo
que logo o monge se tornará sacerdote, e faz surgir à sua porta pessoas que vêm
buscá-lo; se ele se recusar, levá-lo-ão amarrado. Tendo-o exaltado (meteoros)assim por meio de esperanças
vãs, ele se vai e abandona o monge às tentações, seja do demônio do orgulho,
seja do da tristeza, que introduz nele outros pensamentos, contrários às suas
esperanças.”
[195] Ou seja, daquele que abraçou tão imprudentemente a vida
anacorética.
[196] Salmo CII,
2-4.
[197] A idéia que os
demônios seguem-se uns aos outros, cada qual entregando a alma ao seguinte,
sendo que às vezes existe até incompatibilidade entre eles, foi muitas vezes
expressa no Praktikos; quanto à
sucessão, capítulos 13, 14 e 50; quanto à incompatibilidade, capítulos 31, 45 e
58.
[198] Esta afirmação
resulta da concepção, de origem estóica, da representação dos objetos comparada
à marca feita por um timbre na cera.
[199] Evagro conhecia o
trabalho dos oleiros; o uso do torno é ainda hoje muito comum no Egito. A
comparação com o torno do oleiro é um tema literário bastante comum, cf. Jeremias, XVIII, 2-7: “Palavra que Javé
dirigiu a Jeremias: «Levante-se e desça até a casa do oleiro; aí eu comunicarei
minha palavra a você». Desci até a casa do oleiro e o encontrei fazendo um objeto
no torno. O objeto que ele estava fazendo se deformou, mas ele aproveitou o
barro e fez outro objeto, conforme lhe pareceu melhor. Então veio a mim a
palavra de Javé: Por acaso será que não posso fazer com vocês, ó casa de
Israel, da mesma forma como agiu esse oleiro? - oráculo de Javé. Como barro nas
mãos do oleiro assim estão vocês em minhas mãos, ó casa de Israel.”
[200] O método consiste
em expulsar um mau pensamento por uma nova representação que pode ser boa ou
má. Em Pr. 58, Evagro aconselha a
expulsar um mau pensamento por um pensamento de outro demônio, como quem “tapa
um buraco com outro”, segundo uma expressão que se tornou proverbial; trata-se
no caso de utilizar as incompatibilidades entre os demônios.
[201] Alusão aos
capatazes sob cuja autoridade os hebreus trabalhavam no Egito, cf. Exodo, V, 6: “Nesse mesmo dia, o Faraó
deu ordem aos capatazes e inspetores, dizendo: Não dêem ao povo palha para
fazer tijolos, como vocês faziam antes. Que eles próprios providenciem a palha.
E mais: exijam deles a mesma quantia de tijolos que faziam antes. Não diminuam
nada, porque eles são preguiçosos e por isso andam clamando: ‘Vamos sacrificar
ao nosso Deus’. Carreguem esses homens com mais trabalho, para que fiquem
ocupados e não dêem atenção a palavras mentirosas.”
[202] A mesma expressão
encontra-se em K.G. I, 32,
referindo-se à ciência profana: “Os homens que viram algumas coisas daquilo que
está nas naturezas”. Trata-se dos logoi,
“razões”, que fornecem a explicação daquilo que observamos e que a ciência
“exterior” pode descobrir com seus próprios meios, donde vem sua possibilidade
de erro (cf. Gnostikos, 4). A
verificação daquilo que ela afirma haver descoberto pode ser feita pela
experiência comum. Da mesma forma a explicação que Evagro dá dos fatos da vida
poderá ser verificada por aqueles que tiveram a experiência e que são capazes
de compreendê-la.
[203] A expressão organikon soma remonta a Aristóteles, Da alma 412b, célebre passagem na qual a
alma é definida como entelecheia e proote
somatos fisikou organikou.
[204] Sobre as
representações como cópias dos objetos, ver Aristóteles, Da interpretação 16 onde os estados de alma estão presentes como ‘omoiômata dos objetos, à diferença dos
sons e das palavras que, por serem próprias a certos grupos humanos, não são imitações
da realidade, mas símbolos, ou seja sinais puramente convencionais.
[205] “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não cometam adultério’.
Eu, porém, lhes digo: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la,
já cometeu adultério com ela no coração.” (Mateus,
V, 27-28)
[206] Insistência na
noção de que temos uma representação parcial de nosso próprio corpo, idéia já
expressa mais acima, enquanto que temos uma representação completa dos outros.
[207] “Então Jesus entrou
na barca, e seus discípulos o acompanharam. E eis que houve grande agitação no
mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas. Jesus, porém, estava
dormindo. Os discípulos se aproximaram e o acordaram, dizendo: «Senhor,
salva-nos, porque estamos afundando!» Jesus respondeu: «Por que vocês têm medo,
homens de pouca fé?» E, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar, e tudo ficou
calmo. Os homens ficaram admirados e disseram: «Quem é esse homem, a quem até o
vento e o mar obedecem?” (Mateus,
VIII, 23-27). – Sobre a necessidade da calma para a observação dos fenômenos,
ver cap. 19 acima e Pr. 23.
[208] Deuteronômio, XV, 9. [referência não encontrada]
[209] Cf. o que Paládio
diz de Evagro: “Tendo purificado seu intelecto no mais alto grau, ele foi
considerado digno do dom da ciência, da sabedoria e do discernimento dos
espíritos.”
[210] “Se alguém de vós
necessita de sabedoria, peça-a a Deus - que a todos dá liberalmente, com
simplicidade e sem recriminação - e ser-lhe-á dada. Mas peça-a com fé, sem
nenhuma vacilação, porque o homem que vacila assemelha-se à onda do mar,
levantada pelo vento e agitada de um lado para o outro.” (Tiago, I, 5-6)
[211] Condenação da
excessiva pretensão, cf. Discípulos
133; por analogia, condenação da presunção de fazer um voto que não será
possível cumprir, schol. 36 ad. Eccl. V, 3-4.
[212] Sobre a divagação
do intelecto, ver cap. 9 (o demônio vagabundo).
[213] “Javé me tratou segundo a minha justiça, e me retribuiu
conforme a pureza de minhas mãos, porque observei os caminhos de Javé, e não me
rebelei contra o meu Deus.” (Salmo XVII, 21).
Cf. schol. 12 ad Ps. XVII, 21: “A limpeza das mãos e a
impassibilidade da alma que resultam da graça de Deus e do zelo do homem.”
[214] Sobre
os sonhos aterradores que provêm da parte irascível, cf. Praktikos, 54:
“Quando, por outro lado, eles perturbam a parte irascível, forçando-nos a
seguir caminhos escarpados, fazendo surgir homens armados, feras venenosas ou
carnívoras, e ficamos então terrificados diante desses caminhos, e, perseguidos
pelas feras e pelos homens, fugimos, então cuidemos da parte irascível, e,
invocando Cristo em nossas vigílias, busquemos recursos nos remédios já
mencionados.”
[215] Sobre os sonhos lascivos que provêm da parte
concupiscente, cf. Praktikos, 54: “Quando, nas imaginações do sono, os
demônios, atacando a parte concupiscente, nos fazem ver reuniões de amigos,
banquetes de família, coros de mulheres e outros espetáculos do tipo geradores
de prazer, e se acolhemos essas imagens distraidamente, é porque nestas partes
estamos doentes e a paixão aí é forte.”
[216] Estes
sonhos são a prova de que estas partes da alma estão ainda doentes e não
alcançaram a impassibilidade.
[217]
Existe uma real continuidade afetiva entre a vigília e o sonho. Por meio dos
sonhos os demônios tanto preparam o terreno para o dia seguinte como terminam o
que haviam começado durante o dia anterior. Cf. Praktikos, 21: “Que o
sol não se deite sobre a sua irritação, de medo que os demônios, surgindo na
noite, aterrorizem a alma e tornem o intelecto menos apto ao combate na manhã
seguinte.” e Discípulos, 131: “Você recebe uma imagem, seja a partir de
um pensamento da vigília, seja para que [os demônios] tornem o intelecto fácil
de submeter no dia seguinte”.
[218] Cf. Monges,
102: “Pese seu pão na balança e meça a água que você bebe, e o o espírito da
fornicação fugirá para longe de você.”
[219]
“Então Jesus foi com eles a um lugar chamado Getsêmani. E disse aos discípulos:
‘Sentem-se aqui, enquanto eu vou até ali para rezar.’ Jesus levou consigo Pedro
e os dois filhos de Zebedeu, e começou a ficar triste e angustiado. Então disse
a eles: ‘Minha alma está numa tristeza de morte. Fiquem aqui e vigiem comigo.’
Jesus foi um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto por terra, e rezou:
‘Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. Contudo, não seja feito
como eu quero, e sim como tu queres.’ Voltando para junto dos discípulos, Jesus
encontrou-os dormindo. Disse a Pedro: ‘Como assim? Vocês não puderam vigiar nem
sequer uma hora comigo? Vigiem e rezem, para não caírem na tentação, porque o
espírito está pronto, mas a carne é fraca’.” (Mateus, XXVI, 36-41)
[220]
“Acima de tudo, guarde o seu coração, porque dele brota a vida.” (Provérbios,
IV, 23). Esta fórmula foi muito popular nos meios monásticos antigos, tema
constante da “guarda do coração”.
[221] Provérbios,
III, 24-28.
[222] A
vanglória é independente das partes irascível e concupiscente da alma.
[223] Sobre
os sonhos provocados pelo demônio da vanglória, cf. Ant. VII, 26:
“Contra o demônio da vanglória que, durante os sonhos noturnos, me torna pastor
de um pequeno rebanho e que, durante o dia, explica-me o sonho dizendo: ‘Você
será prelado e os que vêm buscá-lo logo chegarão’.”
[224]
Trata-se do ofício noturno que o monge recitava na solidão de sua cela até a
meia-noite.
[225] Os
sonhos angélicos opõem-se aos sonhos demoníacos, cf. Monges, 52: “Os
sonhos angélicos alegram o coração, enquanto que os demoníacos o perturbam”; Oito
pensamentos, 10: “O irascível tem sonhos perturbadores (...) [mas] aquele
que é paciente tem visões nas quais encontra os santos anjos; aquele que perdoa
dedica-se Às razões espirituais e, à noite, recebe a solução dos mistérios.”
[226] “Por
isso, vocês devem alegrar-se, mesmo que agora, se necessário, fiquem tristes
por um pouco de tempo, devido às várias provações. Desse modo, a fé que vocês têm será provada
como o ouro que passa pelo fogo. O ouro vai desaparecer, mas a fé que vocês
têm, e que vale muito mais, não se perderá, até o dia da revelação de Jesus
Cristo. Então, por essa fé, vocês receberão louvor, glória e honra. Vocês nunca
viram Jesus e, apesar disso, o amam; não o vêem, mas acreditam. E por isso
sentem alegria extraordinária e gloriosa, porque alcançam a meta da fé, que é a
salvação de vocês.” (1 Pedro I, 6-9)
[227] A
menção da contemplação natural a partir da prece pura, cume da vida espiritual,
é surpreendente, pois marca um retorno a uma situação anterior.
[228] Este
texto evoca a primeira etapa da vida espiritual, etapa prática que leva à
impassibilidade.
[229] “Meu
coração se contorce dentro de mim, e sobre mim caem terrores mortais; medo e
tremor me invadem, e um calafrio me envolve. Então eu penso: «Quem me dera ter
asas de pomba para eu sair voando e pousar... Sim, eu fugiria para longe e
pernoitaria no deserto. Encontraria logo um refúgio contra o vento da calúnia,
contra o furacão que devora, Senhor, contra a torrente da língua deles.” (Salmo
LIV, 5-10)
[230] Aqui
o texto apresenta a etapa propriamente contemplativa cujo termo é a ciência da
Trindade. CF. schol. 2 ad Ps. LIV, 7: “A contemplação dos corpos
e dos incorpóreos são as asas da santa pomba, graças às quais o intelecto se
eleva e repousa na ciência da Santíssima Trindade.” A santa pomba faz
referência à pomba que pousou sobre a cabeça de Cristo no momento do seu
batismo: “Depois de ser batizado, Jesus logo saiu da água. Então o céu se abriu,
e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e pousando sobre ele. E do
céu veio uma voz, dizendo: «Este é o meu Filho amado, que muito me agrada..” (Mateus,
III, 16-17); para Evagro, ela representa, seja o Verbo (Skemmata, 5),
seja o Espírito Santo (schol 1 ad Ps. LVI, 2). Encontramos aqui o
tema platônico das asas da alma (Fedro, 246-249), muito popular na
literatura cristã antiga.
[231] O
desenvolvimento do tema do segundo tipo de pensamentos impuros lembra a conversa entre Pafnúcio
Céphalas, Evagro, Albanius e Paládio (H.L. 47), na qual se distingue a
intenção da modalidade da ação: “...de fato, a intenção peca, quando surge por
um mau objetivo; mas também peca a ação, quando é feita de modo perverso e não
como se deve. Tb. Discípulos, 81: “É preciso, em primeiro lugar,
conceber o bem, em segundo fazê-lo, em terceiro fazê-lo para o Senhor, em
quarto fazê-lo com alegria, em quinto fazê-lo porque receberemos a paga do
Senhor.”
[232] “Mas temos dons diferentes, conforme a graça
concedida a cada um de nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de
acordo com a fé; se tem o dom do serviço, que o exerça servindo; se do ensino,
que ensine; se é de aconselhar, aconselhe; se é de distribuir donativos, faça-o
com simplicidade; se é de presidir à comunidade, faça-o com zelo; se é de
exercer misericórdia, faça-o com alegria.” (Romanos, XII, 8)
[233] “Tu,
porém, conheces o meu caminho, e foi no caminho por onde eu ando que eles me
prepararam uma armadilha. “ (Salmo CXLI, 4) Evagro interpreta assim este
texto na schol 1 ad Ps. CXLI, 4: “Nossos inimigos [os demônios]
colocam armadilhas para nossas virtudes (...): quando se trata da esmola, nos
tentam a fazê-la, não por Deus, mas para sermos vistos; quando se trata do
jejum, para que o façamos por causa dos homens...”
[234] “Javé, defende-me das mãos do injusto,
guarda-me do homem violento. Eles planejam tropeços para os meus passos. Os
soberbos me preparam armadilhas, os perversos me estendem uma rede e me colocam
ciladas no caminho.” (Salmo CXXXIX, 6).
[235] Glosa
gramatical que encontramos freqüentemente em Evagro, em especial nas Scholias
aos Salmos. Evagro interpreta corretamente o termo èchomena, comum
na Septuaginta como tradução dos termos hebraicos beyad, leyad
e outros, “ao lado de”; esta citação se refere aos pensamentos que estão “à
beira do caminho”, enquanto que a do Salmo CXLI referem-se aos que estão
“no caminho”.
[236] Este
capítulo é formado por uma sucessão de képhalaia que têm em outras
partes existências independentes. O início encontra-se em Cartas, 18, da
qual forma a primeira parte. Há um resumo em Skemmata, 46: “Aos bons
pensamentos opõem-se dois pensamentos, os demoníacos e os que provêm de uma má
vontade. Aos maus pensamentos opõem-se três pensamentos, o angélico, o que
provém de uma vontade reta e o que é fornecido pelas sementes naturais”.
[237] Cf. Discípulos,
149: “...é de fato graças a estas sementes que temos confiança em alguns, que
cuidamos e manifestamos a doçura, que somos pacientes, por exemplo com um pai
ou um irmão, que nos abstemos de relações sexuais com uma mãe ou uma irmã...” e
148: “...nisto [apiedar-se de um doente] ele ainda é pagão, porque é movido a
partir das sementes naturais.”
[238]
“Jesus contou outra parábola à multidão: «O Reino do Céu é como um homem que
semeou boa semente no seu campo. Uma noite, quando todos dormiam, veio o
inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e foi embora. Quando o trigo
cresceu, e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio. Os
empregados foram procurar o dono, e lhe disseram: ‘Senhor, não semeaste boa
semente no teu campo? Donde veio então o joio?’ O dono respondeu: ‘Foi algum
inimigo que fez isso’. Os empregados lhe perguntaram: ‘Queres que arranquemos o
joio?’ O dono respondeu: ‘Não. Pode acontecer que, arrancando o joio, vocês
arranquem também o trigo. Deixem crescer
um e outro até à colheita. E no tempo da colheita direi aos ceifadores:
arranquem primeiro o joio, e o amarrem em feixes para ser queimado. Depois
recolham o trigo no meu celeiro’.” (Mateus, XIII, 24-30) Este texto
sugere a antiga idéia estóica das sementes naturais, que encontramos na
expressão “sementes da virtude”. A natureza humana não é má originalmente: o
mal é uma semente ruim semeada pelo diabo por cima do bom grão original.
[239] A
potência (dynamis) é uma das quatro espécies de qualidades
aristotélicas.
[240] “Havia
um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e dava banquete todos os
dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estava caído à porta do
rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E ainda
vinham os cachorros lamber-lhe as feridas. Aconteceu que o pobre morreu, e os
anjos o levaram para junto de Abraão. Morreu também o rico, e foi enterrado. No
inferno, em meio aos tormentos, o rico levantou os olhos, e viu de longe
Abraão, com Lázaro a seu lado. Então o rico gritou: ‘Pai Abraão, tem piedade de
mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque
este fogo me atormenta’. Mas Abraão respondeu: ‘Lembre-se, filho: você recebeu
seus bens durante a vida, enquanto Lázaro recebeu males. Agora, porém, ele
encontra consolo aqui, e você é atormentado. Além disso, há um grande abismo
entre nós: por mais que alguém desejasse, nunca poderia passar daqui para junto
de vocês, nem os daí poderiam atravessar até nós’. O rico insistiu: ‘Pai, eu te
suplico, manda Lázaro à casa de meu pai,
porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não acabem
também eles vindo para este lugar de tormento’. Mas Abraão respondeu: ‘Eles têm
Moisés e os profetas: que os escutem!’ O rico insistiu: ‘Não, pai Abraão! Se um
dos mortos for até eles, eles vão se converter’. Mas Abraão lhe disse: ‘Se eles
não escutam a Moisés e aos profetas, mesmo que um dos mortos ressuscite, eles
não ficarão convencidos’.” (Lucas XVI, 19-31)
[241] Cf. Discípulos,
63: “Aquele que não tem raiva de ninguém e que não recebe pensamentos de
suspeita.”
[242] No
momento da oração, o estado do intelecto é considerado “semelhante à cor
celeste” (Skemmata, 4).
[243] “Antes
de tudo, recomendo que façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças em
favor de todos os homens, pelos reis e por todos os que têm autoridade, a fim
de que levemos uma vida calma e serena, com toda a piedade e dignidade. Isso é
bom e agradável diante de Deus nosso Salvador. Ele quer que todos os homens
sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e um só
mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem que se entregou para
resgatar a todos. Esse é o testemunho dado nos tempos estabelecidos por Deus, e
para o qual eu fui designado pregador e apóstolo - digo a verdade, não minto -,
doutor das nações na fé e na verdade. Quero, portanto, que os homens orem em
todo lugar, erguendo mãos limpas, sem ira e sem discussões.” (1 Timóteo II, 8)
[244]
Literalmente, “com um ágrafo”, talvez alusão ao gesto de Édipo. Cf. Gnostikos,
5: “aquele que se deixa facilmente levar pela cólera é como alguém que crava
nos olhos uma ponta de ferro.”
[245] “Um
jovem se aproximou, e disse a Jesus: «Mestre, que devo fazer de bom para
possuir a vida eterna?» Jesus respondeu: «Por que você me pergunta sobre o que
é bom? Um só é o bom. Se você quer entrar para a vida, guarde os mandamentos.»
O homem perguntou: «Quais mandamentos?» Jesus respondeu: «Não mate; não cometa
adultério; não roube; não levante falso testemunho; honre seu pai e sua mãe; e
ame seu próximo como a si mesmo.» O jovem disse a Jesus: «Tenho observado todas
essas coisas. O que é que ainda me falta fazer?» Jesus respondeu: «Se você quer
ser perfeito, vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres, e você terá
um tesouro no céu. Depois venha, e siga-me.» Quando ouviu isso, o jovem foi
embora cheio de tristeza, porque era muito rico.” (Mateus, XIX, 16-22)
[246] “Fuja
das paixões da juventude; siga a justiça e a fé, o amor e a paz com aqueles que
invocam de coração puro o nome do Senhor. Evite questões bobas e não
educativas. Você sabe que elas provocam brigas. Um servo do Senhor não deve ser
briguento, mas manso para com todos, competente no ensino, paciente nas ofensas
sofridas. É com suavidade que você deve educar os opositores, esperando que
Deus dará a eles não só a conversão, para conhecerem a verdade, mas também o
retorno ao bom senso, libertando-os do laço do diabo, que os conservava presos
para lhe fazerem a vontade.” (2 Timóteo II, 24)
[247]
“Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém,
lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém
lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um
processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga
você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe
pedir, e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado.” (Mateus, V,
38-42)
[248] “A
vida se encontra no caminho da justiça; o caminho da injustiça conduz para a
morte.” (Provérbios, XII, 28)
[249] Cf. Ant.,
II, 50: “demônios da fornicação que encontram para si argumentos nas Escrituras
e no que ali está escrito.”
[250] Do
mesmo modo, o monge que é presa do demônio da acídia, durante a leitura “boceja
muito e se deixa facilmente cair no sono” (Oito espíritos, 14).
[251] Cf;
K.G., VI, 25: “Quando os demônios não conseguem colocar em movimento os
pensamentos no gnóstico, então, apoderando-se de seus olhos e esfriando-os,
eles o levam a um sono muito pesado, pois os corpos dos demônios são frios e
parecidos com o gelo”. Em K.G., I, 168 Evagro afirma que os demônios
também se aproximam dos homens “pelas narinas”; em muitas ocasiões ele nota a
ação exercida pelos demônios sobre o corpo ou sobre certas partes do corpo, em
especial no gnóstico, em quem eles não podem mais agir através dos pensamentos.
[252]
Também se trata de ventosas em Ant., IV, 36: os demônios causam
queimaduras sobre o corpo deixando marcas redondas semelhantes às provocadas pelas
ventosas. Evagro acrescenta ter visto este fenômeno com seus olhos, expressando
seu espanto.
[253]
Durante um ofício noturno, Macário o Alexandrino viu demônios pressionando os
olhos de alguns com seus dedos, fazendo-os dormir, ou colocando o dedo em suas
bocas, fazendo-os bocejar.
[254] Na Vida
de Antônio encontramos numerosos exemplos do uso apotropaico do sinal da
cruz.
[255] Conhecer
a sucessão dos demônios vem da ciência do discernimento dos espíritos. No
capítulo 24, é dada uma explicação puramente psicológica para esta sucessão,
baseada no fato de que o intelecto não consegue receber simultaneamente as
representações de dois objetos diferentes, representações que são usadas pelos
demônios para suscitar os maus pensamentos.
[256] Cf. Discípulos,
142: “Se você permanecer firme em seu posto e as paixões dobrarem de
intensidade, é porque um demônio mais forte sucedeu ao anterior.”
[257] Cf. Praktikos,
45: “Os demônios traiçoeiros fazem vir ao seu auxílio demônios ainda mais
astutos do que eles, e eles brigam entre si por suas disposições; eles só estão
de acordo numa coisa, que é a perda da alma.” Tb. 59: “Quanto mais a alma
progride, mais fortes são os antagonistas que se sucedem contra ela.”
[258]
“Ademais, fortaleçam-se no Senhor e na força do seu poder. Vistam a armadura de
Deus para poderem resistir às manobras do diabo. A nossa luta, de fato, não é
contra homens de carne e osso, mas contra os principados e as autoridades,
contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que
habitam as regiões celestes. Por isso, vistam a armadura de Deus para que, no
dia mau, vocês possam resistir e permanecer firmes, superando todas as provas.
Estejam, portanto, bem firmes: cingidos com o cinturão da verdade, vestidos com
a couraça da justiça, os pés calçados com o zelo para propagar o evangelho da
paz; tenham sempre na mão o escudo da fé, e assim poderão apagar as flechas
inflamadas do Maligno. Coloquem o capacete da salvação e peguem a espada do
Espírito, que é a Palavra de Deus. Rezem incessantemente no Espírito, com
orações e súplicas de todo tipo, e façam vigílias, intercedendo, sem cansaço,
por todos os cristãos. Rezem também por mim: que a Palavra seja colocada na
minha boca, para anunciar ousadamente o mistério do Evangelho, do qual sou
embaixador aprisionado. Que eu possa anunciá-lo com ousadia, como é meu dever.”
(Efésios, VI, 17)
[267] Cf. Praktikos,
40: “Eles tumultuam as coisas contra nós para que nos desviemos do que deve ser
feito, e nos constrangem a fazer o que não se deve. É assim que eles impedem os
doentes de dar graças por seus sofrimentos, e de suportar pacientemente os que
os servem; em revanche, eles os exortam, embora fracos, a praticar a
abstinência e, por exaustos que estejam, a salmodiar em pé.” Tb. Ant. I, 37: “contra o pensamento vão
[inspirado pelo demônio da gula] que nos persuade a adotar um gênero de vida
mais rigoroso do que o necessário...”
[268] “Daniel
resolveu que não iria contaminar-se com as comidas e o vinho da mesa real.
Pediu ao chefe dos eunucos permissão para não aceitar essas comidas. O Senhor
fez com que Daniel ganhasse a simpatia do chefe dos eunucos. Este lhe disse:
«Tenho medo do rei, o meu senhor, que determinou pessoalmente o que vocês devem
comer e beber. Se ele perceber que os rostos de vocês estão mais pálidos que
dos outros moços da mesma idade, vocês acabarão me fazendo culpado de um crime
de morte aos olhos do rei». Daniel disse ao funcionário, a quem o chefe dos
eunucos havia confiado Daniel, Ananias, Misael e Azarias: «Faça uma experiência
conosco: durante dez dias vocês nos darão de comer só vegetais e só água para
beber. Depois, você compara a nossa aparência com a dos outros moços que comem
da mesa do rei. Então faça conosco o que achar melhor». O funcionário aceitou a
proposta e fez a experiência por dez dias. No final dos dez dias, estavam com
boa aparência e corpo mais saudável que todos os moços que comiam da mesa do
rei. Então o funcionário tirou definitivamente a comida e o vinho da mesa dos
moços e passou a dar-lhes somente vegetais. Aos quatro rapazes Deus concedeu o
conhecimento e a compreensão de toda a literatura e também sabedoria. A Daniel
especialmente, deu o dom de interpretar visões e sonhos.” (Daniel I, 8-17)
[269] Cf. Praktikos, 15: “. Tudo isso no momento e
na medida conveniente; pois o que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que
dura pouco é mais nocivo do que útil.” Tb. 28: “Eis o que dizia nosso mestre
santo e prático: é preciso que o monge esteja sempre pronto, como se ele fosse
morrer amanhã, e, inversamente, que ele use seu corpo como se tivesse que viver
com ele por inúmeros anos. Isto, com efeito, dizia ele, afasta os pensamentos
da acídia e torna o monge mais zeloso e, por outro lado, mantém seu corpo em
boa saúde, e mantém sempre constante sua abstinência.”
[270] Cf. Salmo LXI, 5: “Eles só pensam em me
derrubar da minha posição, e sentem prazer em mentir: com a boca eles elogiam,
mas por dentro amaldiçoam.”
[271] Estas
três coisas constituíam a base da alimentação dos monges das Kellia, como também dos de Sceta. Em Discípulos, 183, menciona-se outro
grupo: “O monge deve ter sempre este pensamento no espírito: receber um pouco
de pão, água e sono, e nada mais; isto basta para viver.”
[272] A
refeição ocorria uma vez por dia, geralmente na nona hora; esta regra só era
quebrada em caso de doença ou por hospitalidade.
[273] Cf. Ant., Prol.: “Eu ficarei espantado que
alguém consiga manter a guerra inteligível e ser coroado com a coroa da
justiça, saciando-se de pão e água.”
[274] “A circuncisão é útil quando você pratica a
Lei; mas, se você desobedece à Lei, é como se não estivesse circuncidado. Se um
pagão não circuncidado observa os preceitos da Lei, não será tido como
circuncidado, ainda que não o seja? E o pagão que cumpre a Lei, embora não
circuncidado fisicamente, julgará você que desobedece à Lei, embora você tenha
a Lei escrita e a circuncisão. De fato, aquilo que faz o judeu não é o que se
vê, nem é a marca visível na carne que faz a circuncisão. Pelo contrário, o que
faz o judeu é aquilo que está escondido, e circuncisão é a do coração; e isso
vem do espírito e não da letra da Lei. Tal homem recebe aprovação, não dos
homens, mas de Deus.” (Romanos,
25-29)
[275] “Em
Damasco havia um discípulo chamado Ananias. O Senhor o chamou numa visão:
«Ananias!» E Ananias respondeu: «Aqui estou, Senhor!» E o Senhor disse:
«Prepare-se, e vá até a rua que se chama rua Direita e procure, na casa de
Judas, um homem chamado Saulo, apelidado Saulo de Tarso. Ele está rezando e
acaba de ter uma visão. De fato, ele viu um homem chamado Ananias impondo-lhe
as mãos para que recuperasse a vista.» Ananias respondeu: «Senhor, já ouvi
muita gente falar desse homem e do mal que ele fez aos teus fiéis em Jerusalém.
E aqui em Damasco ele tem plenos poderes, que recebeu dos chefes dos
sacerdotes, para prender todos os que invocam o teu nome.» Mas o Senhor disse a
Ananias: «Vá, porque esse homem é um instrumento que eu escolhi para anunciar o
meu nome aos pagãos, aos reis e ao povo de Israel. Eu vou mostrar a Saulo
quanto ele deve sofrer por causa do meu nome.» Então Ananias saiu, entrou na
casa e impôs as mãos sobre Saulo, dizendo: «Saulo, meu irmão, o Senhor Jesus,
que lhe apareceu quando você vinha pelo caminho, me mandou aqui para que você
recupere a vista e fique cheio do Espírito Santo.» Imediatamente caiu dos olhos
de Saulo alguma coisa parecida com escamas, e ele recuperou a vista. Em seguida
Saulo se levantou e foi batizado. Logo depois comeu e ficou forte como antes.”
(Atos, IX, 15)
[276]
“Repito: que ninguém me considere louco, ou
então: que me suportem como louco, a fim de que também eu possa me gabar um
pouco. O que vou dizer, não o direi conforme o Senhor, mas como louco, certo de
que tenho motivos para me gabar. Visto que muitos se gabam de seus títulos
humanos, também eu vou me gabar. Vocês, assim tão sensatos, suportam de boa
vontade os loucos. E suportam que os escravizem, que os devorem, que os
despojem, que os tratem com soberba, que os esbofeteiem. Digo isto para a
vergonha de vocês: até parece que nós é que somos fracos... Aquilo que outros
têm a ousadia de apresentar - falo como louco - eu também tenho. São hebreus?
Eu também. São israelitas? Eu também. São descendentes de Abraão? Eu também.
São ministros de Cristo? Falo como louco: eu o sou muito mais. Muito mais pelas
fadigas; muito mais pelas prisões; infinitamente mais pelos açoites;
freqüentemente em perigo de morte; dos judeus recebi cinco vezes os quarenta
golpes menos um. Fui flagelado três vezes; uma vez fui apedrejado; três vezes
naufraguei; passei um dia e uma noite em alto mar. Fiz muitas viagens. Sofri
perigos nos rios, perigos por parte dos ladrões, perigos por parte dos meus
irmãos de raça, perigos por parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no
deserto, perigos no mar, perigos por parte dos falsos irmãos. Mais ainda: morto
de cansaço, muitas noites sem dormir, fome e sede, muitos jejuns, com frio e
sem agasalho. E isso para não contar o resto: a minha preocupação cotidiana, a
atenção que tenho por todas as igrejas. Quem fraqueja, sem que eu também me
sinta fraco? Quem cai, sem que eu me sinta com febre? Se é preciso gabar-se, é
de minha fraqueza que vou me gabar.” (2 Coríntios,
XI, 27)
[277] “Quanto
a mim, meu sangue está para ser derramado em libação, e chegou o tempo da minha
partida. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora
só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele
Dia; e não somente para mim, mas para todos os que tiverem esperado com amor a
sua manifestação.” (2 Timóteo, IV,
6-8)
[278]
Cf. Praktikos,
12: “... assim, como foi dito, [o demônio da acídia] assesta todas as suas
baterias para que o monge abandone sua cela e fuja da cancha.”
[279] “Javé, até quando me esquecerás? Para sempre?
Até quando esconderás de mim a tua face? Até quando terei sofrimento dentro de
mim, e tristeza no coração, dia e noite? Até quando meu inimigo vai triunfar?
Atenção, Javé, meu Deus! Responde-me! Ilumina meus olhos, para que eu não
adormeça na morte. Que meu inimigo não diga: ‘Eu o venci!’ E meus opressores
não exultem com meu fracasso. Quanto a mim, eu confio no teu amor! Meu coração
exulta com a tua salvação. Vou cantar a Javé por todo o bem que ele me fez!” (Salmo XII)
[280] Cf. Provérbios, VII: “Meu filho, conserve as minhas palavras e guarde os meus
preceitos. Observe os meus preceitos, e você terá a vida. Guarde a minha
instrução como a pupila dos seus olhos. Amarre-a nos dedos e a escreva na tábua
do coração. Diga à sabedoria: «Você é minha irmã». Trate a inteligência como
amiga, para que ela o proteja da mulher estrangeira, e da estranha que seduz
com a palavra. Eu estava na janela de minha casa observando por trás das
grades. Vi alguns rapazes ingênuos, e notei que um deles não tinha juízo. Ele
passava pela rua, perto da esquina, e se dirigia para a casa da estrangeira. Já
caía a noite de lua nova. Uma mulher foi ao encontro dele, vestida como
prostituta e cheia de malícia. Era ousada e insolente, e seus pés não paravam em casa: ora estava na rua, ora na praça,
espreitando em cada esquina. Então ela agarrou e beijou o rapaz. Depois lhe
falou descaradamente: «Preparei um sacrifício de comunhão, porque hoje estou
cumprindo uma promessa. Por isso saí para encontrar você. Estava ansiosa por
vê-lo e acabei encontrando você. Cobri a cama com colchas e estendi lençóis do
Egito. Perfumei o quarto com mirra, aloés e cinamomo. Venha, vamos nos
embriagar com carícias até de manhã. Vamos nos saciar com amores, porque o meu
marido está fazendo uma longa viagem e não está em casa. Ele levou a bolsa com
dinheiro, e não voltará até a lua cheia». Com tantas palavras, ela o apanhou e
o atraiu com lábios enganadores. O infeliz correu atrás dela, como boi para o
matadouro, como animal preso no laço, até uma flecha o atingir no lado. Foi
como pássaro que voa para a arapuca, sem saber que vai perder a vida. Agora,
meu filho, escute. Preste atenção no que vou dizer. Que o seu coração não se
extravie para o caminho da estrangeira e que você não se perca nas trilhas
dela. Ela já assassinou muita gente, e suas vítimas foram numerosas. A casa
dela é um caminho para o túmulo, uma descida para o reino da morte.” A
expressão fica mais clara na schol.
92 ad Prov. VII, 12: “Aqueles que
“vagueiam pelos lugares” têm pensamentos de adultério, fornicação e roubo; os
que “vagueiam pelas ruas” fazem movimentos contra a natureza: eles buscam o
leito dos homens e recebem as imagens de algumas coisas proibidas”. A mesma
distinção é feita em Ant., II, 58: “Contra os pensamentos que nos levam aos
lugares públicos ou que nos forçam a vaguear pelas ruas.”
[281] Êxodo, V,
7-12: “Nesse mesmo dia, o Faraó deu ordem aos capatazes e inspetores, dizendo:
Não dêem ao povo palha para fazer tijolos, como vocês faziam antes. Que eles
próprios providenciem a palha. E mais: exijam deles a mesma quantia de tijolos
que faziam antes. Não diminuam nada, porque eles são preguiçosos e por isso
andam clamando: ‘Vamos sacrificar ao nosso Deus’. Carreguem esses homens com mais
trabalho, para que fiquem ocupados e não dêem atenção a palavras mentirosas.”
Cf. Ant., II, 46, onde Evagro
acrescenta uma alteração no texto do Êxodo: “Contra o demônio da fornicação que
constrange Israel a juntar a palha e sapé ao invés de trigo.”
[282] Cf. Provérbios, IV, 20-27: “Meu filho, esteja atento às minhas palavras e dê
ouvidos aos meus conselhos. Nunca os perca de vista e guarde-os no seu coração.
Pois eles são vida para quem os encontra e saúde para o seu corpo. Acima de
tudo, guarde o seu coração, porque dele brota a vida. Afaste-se da boca
enganosa e fique longe dos lábios falsos. Que seus olhos olhem para a frente e
seu olhar se dirija para diante. Fique atento às trilhas onde você coloca os
pés, e que todos os seus caminhos sejam firmes. Não se desvie nem para a
direita, nem para a esquerda, e afaste do mal os seus passos.”
[283] Cf. Provérbios, VI, 1-5: “Meu filho, se você
foi fiador do seu próximo, e fez acordo com algum estrangeiro; se você se
comprometeu, dando sua palavra, e ficou preso pelo que disse, você caiu em
poder do seu próximo. Para se livrar, faça o seguinte, meu filho: Vá, insista e
incomode o seu próximo. Não durma, nem descanse. Liberte-se, como a cerva da
armadilha ou o passarinho da arapuca.”
[284] Cf. Ant. IV, 55: “Contra o espírito
enganador que se dirige à minha alma e tenta atirá-la na tristeza...” Tb. Discípulos, 49: “...se o pecado foi
consumado, aquilo que serviu de intermediário desaparece, e não resta mais do
que a imagem do pecado no intelecto da alma.”
[285]
“Nesses dias, aí estava reunido um grupo de mais ou menos cento e vinte
pessoas. Pedro levantou-se no meio dos irmãos e falou: “Irmãos, era preciso que
se cumprisse aquilo que o Espírito Santo, por meio de Davi, tinha anunciado na
Escritura a respeito de Judas, que se tornou o guia daqueles que prenderam
Jesus. Judas era um do nosso grupo e participava do nosso serviço. Ele comprou
um terreno com o salário da sua iniqüidade; depois caiu de ponta cabeça,
arrebentou-se e suas entranhas se esparramaram. A notícia chegou a todos os
habitantes de Jerusalém que deram àquele terreno o nome de Hacéldama, que quer
dizer campo de sangue, conforme a sua língua. Pois no livro dos Salmos está
escrito: ‘Que sua moradia fique deserta e ninguém habite nela.’ E ainda: ‘Que
outro ocupe o seu cargo.’ Há outros homens que nos acompanharam durante todo o
tempo em que o Senhor vivia no meio de nós, desde o batismo de João até o dia
em que foi levado ao céu. “Agora, é preciso que um deles se junte a nós para
testemunhar a ressurreição.” Então eles apresentaram dois homens: José, chamado
Bársabas e apelidado o Justo, e também Matias. Em seguida fizeram esta oração:
“Senhor, tu conheces o coração de todos.
Mostra-nos qual destes dois tu escolheste para ocupar, no serviço do
apostolado, o lugar que Judas abandonou para seguir o seu destino.” Então
tiraram a sorte entre os dois. E a sorte caiu em Matias, que foi juntado ao
número dos onze apóstolos.” (Atos, I,
15-26) “Então os apóstolos e os anciãos se reuniram para tratar desse assunto.
Depois de longa discussão, Pedro levantou-se e falou: «Irmãos, vocês sabem que,
desde os primeiros dias, Deus me escolheu no meio de vocês, para que os pagãos
ouvissem de minha boca a palavra da Boa Notícia e acreditassem. Ora, Deus, que conhece os corações, testemunhou
a favor deles, dando-lhes o Espírito Santo como deu a nós. E não fez nenhuma
distinção entre nós e eles, purificando o coração deles mediante a fé. Então,
por que vocês agora tentam a Deus, querendo impor aos discípulos um jugo que
nem nossos pais nem nós mesmos tivemos força para suportar? Ao contrário, é
pela graça do Senhor Jesus que cremos ser salvos, exatamente como eles.” (Atos, XV, 6-11).
[286] Jó, VII, 20.
[287]
Somente Deus é “cardiognóstico”, ele conhece os corações porque os criou. Cf. schol. 10 ad Ps. XXXII, 15: “Quem construiu sozinho, somente este conhece;
assim, somente Deus pode ser chamado de cardiognóstico”. Cf. Salmo XXXII, 15: “Do céu Javé contempla
e vê todos os homens. De sua morada ele observa todos os habitantes da terra:
ele formou o coração de cada um, e discerne todos os seus atos.”
[288] Sobre
o modo como os demônios chegam a conhecer os corações pela observação, cf. Praktikos, 47; também schol.4 ad. Prov. LV, 7: “É observando o que fazemos que eles se instruem, pois os
demônios não são cardiognósticos.”
[289]
Provavelmente Macário o Alexandrino, citado no capítulo 33.
[290] Cf. Levítico, XV, 19-24. A razão alegada por Macário seria que
“publicar tais coisas” equivaleria e ter comércio com seres impuros, donde a
alusão, surpreendente à primeira vista, ao Levítico.
[292] Cf. Praktikos, 11: “Ela [a cólera] torna a
alma furiosa ao longo de todo o dia, mas é sobretudo no momento da oração que
ela se apodera do intelecto, mostrando-lhe o rosto daquele que a contristou.”
[293] Sobre
o perigo que representa tomar por Deus certas imagens que aparecem durante a
prece, ver Or., 73: o monge que ora
verdadeiramente e não é mais açoitado por paixões carnais e impuras, “supõe ser
divina a aparição produzida nele pelo demônio.”
[294] Sobre
a luz do intelecto que se manifesta na ausência de toda e qualquer paixão no
momento da prece, cf. Praktikos, 64
(quando o intelecto “começa a ver sua própria luz”) e Gnostikos, 45 (aqueles que, “no momento da oração, contemplam a
própria luz do intelecto que os ilumina”). Esta luz é, na realidade, a luz
divina que ilumina o intelecto, de tal maneira
que este se vê luminoso.
[295] “Quanto
a você, ensine o que é conforme à sã doutrina. Que os velhos sejam sóbrios,
respeitáveis, sensatos, fortes na fé, no amor e na paciência. As mulheres
idosas também devem comportar-se como convém a pessoas sensatas: não sejam
caluniadoras, nem escravas de bebida excessiva; pelo contrário, sejam capazes
de dar bons conselhos, de modo que as recém-casadas aprendam com elas a amar
seus maridos e filhos, a ser ajuizadas, castas, boas donas-de-casa, submissas a
seus esposos, amáveis, a fim de que a palavra de Deus não seja difamada.
Aconselhe igualmente os jovens, para que em tudo tenham bom senso. E você mesmo
seja exemplo de boa conduta, sincero e sério em seu ensino, expressando-se numa
linguagem digna e irrepreensível, para que o adversário nada tenha a dizer
contra nós e fique envergonhado. Os servos devem ser em tudo obedientes a seus
senhores, dando-lhes motivo de alegria; não devem ser teimosos, nem roubar;
pelo contrário, devem dar provas de inteira fidelidade, para em tudo honrar a
doutrina de Deus, nosso Salvador. A graça de Deus se manifestou para a salvação
de todos os homens. Essa graça nos
ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas, para vivermos neste mundo
com autodomínio, justiça e piedade, aguardando a bendita esperança, isto é, a
manifestação da glória de Jesus Cristo, nosso grande Deus e Salvador. Ele se
entregou a si mesmo por nós, para nos resgatar de toda iniqüidade e para
purificar um povo que lhe pertence, e que seja zeloso nas boas obras. Diga-lhes
todas essas coisas. Exorte-os e repreenda-os com toda a autoridade. Que ninguém
o despreze.” (Tito, II, 8)
[296]
“Javé, é tempo de agir: eles violaram a tua vontade. É por isso que eu amo os
teus mandamentos, mais que ao ouro, e ouro refinado. É por isso que aprecio os
teus preceitos e odeio o caminho da mentira. Teus testemunhos são maravilhas,
por isso eu os guardo. A descoberta das tuas palavras ilumina, e traz discernimento
aos simples. Abro a boca e aspiro, ansiando por teus mandamentos. Volta-te para
mim, tem piedade de mim: é a justiça para os que amam o teu nome. Firma os meus
passos com a tua promessa e não deixes que mal nenhum me domine. Resgata-me da
opressão do homem, e observarei os teus preceitos.” (Salmo
CXVIII, 134.)
[297] Interpretar
os termos bíblicos “homem” e “homens” como o diabo e os demônios é justificado
por Evagro, em primeiro lugar por que não existe diferença de natureza entre
homens e demônios, sendo ambos de natureza racional, e, em segundo lugar, porque o próprio Salvador
utilizou-se desta regra de interpretação em sua exegese da parábola do semeador
(cf. Mateus, XIII, 18-23). Esta
regra, aliás, vale igualmente para a parábola seguinte, a do bom grão e do
joio. Compare-se com a schol 22 ad Prov. II, 2: “Pois agora ele chama
“homem” ao diabo, porque foi um homem mau que semeou o joio por sobre [o bom
grão]” e schol 1 ad Ps. CXVII, 6: “A Escritura chama de
“homem” ao diabo, porque foi um homem inimigo quem semeou o joio por sobre [o
bom grão].” Hesíquio o Sinaíta parece lembrar-se disso quando escreve que “os
famosos Padres gnósticos, em alguns de seus escritos, chamaram de homens aos
demônios, devido à sua parte racional”.
[298] “O
Reino do Céu é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Uma noite,
quando todos dormiam, veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e foi
embora. Quando o trigo cresceu, e as espigas começaram a se formar, apareceu
também o joio. Os empregados foram procurar o dono, e lhe disseram: ‘Senhor,
não semeaste boa semente no teu campo? Donde veio então o joio?’ O dono
respondeu: ‘Foi algum inimigo que fez isso’. Os empregados lhe perguntaram:
‘Queres que arranquemos o joio?’ O dono respondeu: ‘Não. Pode acontecer que,
arrancando o joio, vocês arranquem também o trigo. Deixem crescer um e outro
até à colheita. E no tempo da colheita direi aos ceifadores: arranquem primeiro
o joio, e o amarrem em feixes para ser queimado. Depois recolham o trigo no meu
celeiro’.” (Mateus, XIII, 25)
[299] Romanos, VI, 8. Este capítulo evoca dois
graus de contemplação (contemplação dos séculos e contemplação de Deus) e os
dois tempos na economia da salvação: o primeiro confiado ao Cristo, o segundo
pertencente ao Pai. A distinção entre os dois tipos de morte consiste em que a
primeira é vergonhosa, por ser a morte espiritual causada pela queda e pelo
pecado, e a segunda é louvável, por ser a morte com Cristo, a morte para o
pecado.
[300] “Façam
morrer aquilo que em vocês pertence à terra: fornicação, impureza, paixão,
desejos maus e a cobiça de possuir, que é uma idolatria. Isso é o que atrai a
ira de Deus sobre os rebeldes. Outrora, também vocês eram assim, quando viviam
entre eles. Agora, porém, abandonem tudo isso: ira, raiva, maldade, maledicência
e palavras obscenas, que saem da boca de vocês. Não mintam uns aos outros. De
fato, vocês foram despojados do homem velho e de suas ações, e se revestiram do
homem novo que, através do conhecimento, vai se renovando à imagem do seu
Criador. E aí já não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso,
estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em
todos. Como escolhidos de Deus, santos e amados, vistam-se de sentimentos de
compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência. Suportem-se uns aos outros
e se perdoem mutuamente, sempre que tiverem queixa contra alguém. Cada um
perdoe o outro, do mesmo modo que o Senhor perdoou vocês. E acima de tudo,
vistam-se com o amor, que é o laço da perfeição. Que a paz de Cristo reine no
coração de vocês. Para essa paz vocês foram chamados, como membros de um mesmo
corpo. Sejam também agradecidos. Que a palavra de Cristo permaneça em vocês com
toda a sua riqueza, de modo que possam instruir-se e aconselhar-se mutuamente
com toda a sabedoria. Inspirados pela graça, cantem a Deus, de todo o coração,
salmos, hinos e cânticos espirituais. E tudo o que vocês fizerem através de
palavras ou ações, o façam em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus Pai por
meio dele.” (Colossenses III, 9-10); “Vocês devem deixar de viver como viviam
antes, como homem velho que se corrompe com paixões enganadoras. É preciso que
vocês se renovem pela transformação espiritual da inteligência, e se revistam
do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade que vem da
verdade.” (Efésios IV, 22-24)
[301] Êxodo, XXIV, 10-11. Este texto é
utilizado em Skemmata 2: “Se alguém quiser ver o estado de seu intelecto, que
se separe de todas as representações e então o verá semelhante à safira ou à
cor do céu...” A expressão “lugar de Deus” substituiu na Septuaginta a expressão “Deus de Israel” do texto hebraico. Para
Evagro, a expressão designa o próprio intelecto, cf. schol. 5 ad Ps. LXVII,
6-7 e schol 1-2 ad Ps. LXXV, 3: “Lugar de Deus é a alma pura; moradia de Deus é o
intelecto contemplativo.” Cf. Skemmata,
25: “Do santo Davi nós aprendemos claramente o que é o ‘lugar de Deus’; com
efeito, diz ele, ‘seu lugar é na paz e sua morada em Sião (Salmo LXXV, 3).
Portanto o lugar de Deus é a alma racional e sua moradia o intelecto luminoso
que renunciou aos desejos do mundo e aprendeu a observar do alto as razões
[daquilo que está sobre] a terra.”
[302] Este
capítulo resume a ascensão do intelecto desde a representação dos objetos
sensíveis até a contemplação espiritual por meio da impassibilidade e, ao
final, a visão de Deus; encontramos o mesmo sumário doutrinal em Skemmata 20: “O intelecto, enquanto está
na prática, permanece nas representações deste mundo; quando alcança a ciência,
vive na contemplação e, quando se acha na oração, ele vive no informal, aquilo
a que chamamos de lugar de Deus.”
[304] Ou
seja, as representações que têm uma origem sensível.
[305] Sobre
esta ligação apaixonada aos objetos, ver schol
1 ad Ps I, 1: “O desejo dos ímpios é
o pensamento apaixonado que liga o intelecto aos objetos sensíveis” ou schol. 2 ad Ps. CXLV, 7: “Não são os objetos que ligam o intelecto, nem suas
representações, mas as representações apaixonadas dos objetos”. Também Discípulos, 74: “Quando o intelecto
demora-se numa representação de um objeto sensível, certamente é porque ele
experimenta uma paixão por este objeto” e 39: “É impossível que o intelecto se
demore em um objeto se ele não tiver paixão por ele,”
[306] Os
pensamentos simples são aqueles que foram chamados no capítulo 8 de pensamentos
humanos, aqueles que são inteiramente desprovidos de qualquer elemento
passional.
[307] Cf. Skemmata 16, parte II: “...pelos olhos,
o intelecto recebe apenas representações que fornecem uma forma; pelos ouvidos,
tanto representações dotadas de forma como não dotadas de forma, porque a
palavra tanto designa os objetos sensíveis como os inteligíveis; a memória e o
temperamento acompanham o ouvido, pois como ele os dois podem fornecer ou não
uma forma ao intelecto.”
[308] João, I, 1.
[309] “Enquanto
comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, o partiu, distribuiu
aos discípulos, e disse: «Tomem e comam, isto é o meu corpo.» Em seguida, tomou
um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo: «Bebam dele todos, pois isto é o
meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos, para
remissão dos pecados. Eu lhes digo: de hoje em diante não beberei desse fruto
da videira, até o dia em que, com vocês, beberei o vinho novo no reino do meu
Pai’.” (Mateus, XXVI, 26.)
[310] “No
ano que morreu o rei Ozias, eu vi o Senhor sentado num trono alto e elevado. A
barra do seu manto enchia o Templo. De pé, acima dele, estavam serafins, cada
um com seis asas: com duas cobriam o rosto, com duas cobriam os pés, e com duas
voavam. Eles clamavam uns para os outros: ‘Santo, Santo, Santo é Javé dos
exércitos, a sua glória enche toda a terra’.” (Isaías, VI, 1)
[312] Cf. schol. 300 ad Prov. XXV, 5: “...ele mantém estritamente na justiça seu próprio
intelecto, que é chamado de ‘trono’ de Deus. Com efeito, a sabedoria, a ciência
e a justiça – e Cristo é tudo isto – não se assentam sobre nenhum outro lugar
senão sobre a natureza racional”; também schol
10 ad Ps. CXXXI, 12: “O trono de Deus
é a natureza racional”.
[313] Provérbios,
XI, 16.
[314] Cf. schol. 1 ad Ps. CXL, 2: “Só existe uma forma de oração, a conversa do
intelecto com Deus, que mantém o intelecto sem marcas; chamo de intelecto sem
marcas aquele que não imagina nada de corpóreo durante a prece; de fato, somente
os nomes e as palavras que significam algo sensível provocam marcas e imprimem
formas no intelecto, mas é preciso que o intelecto que reza esteja
absolutamente livre das coisas sensíveis, e a representação de Deus mantém
necessariamente o intelecto sem marcas, pois ele [Deus] não é um corpo.” Também
Cartas, 39: “Estas representações de
objetos sensíveis são representações que necessariamente fornecem uma impressão
ou uma imagem ao nosso intelecto, pois os objetos que elas representam são
também dotados desta qualidade. Mas não é possível receber a ciência de Deus ao
mesmo tempo que estas representações, porque aquela ciência não mostra nenhum
dos objetos deste mundo: Deus não possui um corpo que tenha cor e grandeza. É
preciso assim que o intelecto que vai receber a ciência de Deus se separe de
todas as representações ligadas aos objetos”. A necessidade daquele que reza de
se separar das representações é afirmada igualmente em Or., 66: “Não figure em si mesmo a divindade quando você orar e não
deixe seu intelecto ser impressionado por alguma forma, mas vá imaterial ao
imaterial e você compreenderá.; em Or.,
58, 68, 70: “A prece é a supressão das representações”; também em Skemmata, 26: “A prece é um estado do
intelecto destruidor de todas as representações terrestres”, ou seja de toda
representação de objetos sensíveis.
[315] Cf. Or., 72: “Quando o intelecto ora de
forma pura e verdadeira, então os demônios já não o abordam pela esquerda, mas
pela direita; eles lhe representam uma espécie de glória de Deus, uma imagem
feita de coisas próximas aos sentidos.”
[316] “Você
roubou meu coração, minha irmã, noiva minha, você roubou meu coração com um só
de seus olhares, uma volta dos colares.” (Cântico
dos cânticos, IV, 9)
[317] Este
capítulo de conclusão resume sob a forma de breves sentenças a doutrina do
tratado: domínio das partes passionais da alma, aquisição das virtudes, leitura
das Santas Escrituras, impassibilidade, visão da luz divina.