Evagro o Pôntico: Sobre os Pensamentos


 


 


 


 


 


 

Evagro o Pôntico


 SOBRE 

OS

PENSAMENTOS 


Tradução do grego

Paul GÉHIN,

Claire GUILLAUMONT,

Antoine GUILLAUMONT

Tradução do francês

Tito Kehl



M M I X




  

A todos os mestres,
para retribuir e para transmitir.





AMARRA TEU BARQUINHO AO NAVIO DE TEUS PAIS 





INTRODUÇÃO

A DOUTRINA






1.     NATUREZA DO TEXTO





Como muitos outros livros de Evagro, em especial o Praktikos, o Gnostikos, o Kephalaia Gnostica, etc., o tratado Sobre os pensamentos é formado por aquilo que Evagro denomina kephalaia; este termo figura no próprio título do tratado, em grande parte da tradição manuscrita; o próprio Evagro o emprega no presente tratado, quando ele se refere ao kephalaion 17 (correspondente ao capítulo 24, #4-5). Na falta de melhor, traduzimos kephalaion por “capítulo”, mas este termo não deve ser tomado no sentido que lhe damos atualmente. Diferentemente de uma obra moderna, os kephalaia não fazem parte de um discurso contínuo; cada kephalaion é autônomo, formando um todo em si mesmo e consagrado a um único objeto. Os kephalaia aqui são de tamanho bastante variável: o mais longo (25) tem um desenvolvimento de 56 linhas; os mais curtos (38-40; 42-43) têm menos de dez linhas; o mais comum é terem de 15 a 30 linhas. Às vezes diversos capítulos referentes a um mesmo tema seguem-se e parecem agrupados; é o que acontece com os capítulos 27, 28 e 29 sobre os sonhos e visões noturnos; uma fórmula de transição, no início do capítulo 27, introduz o assunto. Mas, habitualmente, cada capítulo é independente daqueles que o precedem ou seguem, o que é frisado pela ausência – salvo raras exceções – de partículas de ligação no início dos capítulos. Ao contrário, encontramos às vezes kephalaia formados, em parte (26) ou inteiramente (31), de outros kephalaia independentes reunidos aqui de modo mais ou menos artificial pelo emprego de partículas de ligação.

Em outras obras formadas por kephalaia, estes, embora independentes uns dos outros, vêm organizados segundo certos temas, de tal forma que o conjunto pode apresentar algum ordenamento das matérias. NO presente tratado não discernimos nada disto; à exceção do capítulo 1 que pode ser considerado como servindo de introdução e de alguns capítulos curtos no final (38-40; 42-43), que fazem as vezes de conclusão, nenhum plano ou ordenamento transparece no corpo do tratado. Quanto à ordem dos capítulos e mesma à sua divisão, existem importantes divergências na tradição manuscrita, e o texto apresentado aqui está baseado em algumas opções. Esta desordem tem sua origem nas vicissitudes da tradição manuscrita, bem como no próprio estado em que Evagro legou o texto, sem te-lo revisado, ao que parece. Daí a necessidade que encontramos, para a exposição da doutrina, em si mesma muito coerente, de reagrupar alguns textos que estavam dispersos no corpo do tratado.





2.     SÍNTESE DOUTRINAL





O tratado Sobre os pensamentos apresenta uma ligação estreita com o  Tratado prático: este dirigia-se ao “prático” (praktikos) e o ensinava como chegar, por meio da “prática” (praktiké), aos umbrais da impassibilidade. O presente tratado está endereçado mais especificamente àquele que, tendo franqueado o portal da impassibilidade, tornou-se um “gnóstico” (gnostikos), alcançou a ciência espiritual ou “gnose”, e intenta elevar-se, através dos diferentes graus da contemplação, até a “oração pura” e a visão da luz divina. Assim, para o gnóstico, a prática, ou seja a luta pela impassibilidade, deve prosseguir, pois a impassibilidade comporta vários níveis e, para progredir na ciência, ele deve progredir na impassibilidade, desde o início desta (ou “pequena impassibilidade”, capítulo 15) até a “maior e primeira impassibilidade” (capítulo 10). Por conseguinte, o combate contra os demônios e os pensamentos que estes sugerem, que é a essência da prática, continua na vida gnóstica; mas o gnóstico não tem que combater apenas os demônios que se opõem à prática, atacando a “parte passional da alma”, mas também aqueles que flagelam a parte racional e são adversários da contemplação, conforme a distinção que é feita no capítulo 84 do Tratado prático.



Esta distinção é retomada, em outros termos, no presente tratado. No capítulo 18, Evagro distingue entre os demônios que nos atacam enquanto animais que somos e aqueles que nos atacam enquanto homens, seres providos de razão. Estes últimos são os que se agarram ao nosso intelecto, instrumento da ciência. Os primeiros fazem agir contra a sua natureza as partes concupiscente e irascível, cujo conjunto forma aquilo que o Praktikos denomina “a parte passional da alma”, parte que temos em comum com os animais. Sobre a parte concupiscente agem especialmente o demônio da gula que sabe recorrer a truques para quebrar a abstinência já bem adquirida pelo gnóstico (35) e, mais violento, o da fornicação que não hesita em impor ao espírito daquele que já triunfou sobre seus maus pensamentos a visão de cenas eróticas, chegando mesmo a atacar a carne, fazendo-a ceder a um “abrasamento animal”; mas estas tentações, assegura Evagro, não duram muito, expulsas por meio de uma prece intensa, da ascese e da contemplação (16). Bem mais temíveis e duráveis são, para o gnóstico, aqueles que colocam em ebulição sua parte irascível; dela provém aquele que é um dos principais obstáculos à oração pura: “Se alguém quiser obter a oração pura (...) que domine sua irascibilidade e vigie os pensamentos que ela engendra, ou seja, aqueles que têm sua origem na suspeita, no ódio e no rancor, que mais do que tudo cegam o intelecto...” (5, 16, 32). Como no Gnostikos, (cap. 8), Evagro repreende aqueles que “acendem sua irascibilidade” processando seus irmãos sob o pretexto de que os bens a que eles renunciaram devem ser distribuídos aos pobres (32); é a prova de uma renúncia imperfeita (5).

Mas, sobretudo, os demônios contra os quais deve lutar o  gnóstico são aqueles que, atacando-o em sua condição de homem, flagelam seu intelecto e se opõem ao progresso na via da contemplação; estes demônios são principalmente os da vanglória e do orgulho (18). Estão expostos à vanglória aqueles que adquiriram “um começo de impassibilidade” (15); ela nasce das próprias práticas ascéticas, das renúncias, das esmolas, do jejum, quando são cumpridos com o desejo de dar espetáculo aos homens e disto tirar alguma glória (3, 30); o demônio da vanglória aproveita-se do fracasso dos outros demônios, depois do que ele lhes reabre as portas da alma (14). O pensamento da vanglória é, dentre todos os pensamentos, aquele que dispõe de mais matéria: “ele abarca quase toda a terra habitada e abre a porta para todos os demônios” (14); é provavelmente o demônio da vanglória que Evagro chama de “vagabundo”, que se aproxima dos irmãos sobretudo no início da aurora e “conduz o intelecto de  cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em casa, aonde o monge faz muitos reencontros, caindo, seja sob o demônio da fornicação, seja sob o da cólera ou o da tristeza (9). Os pensamentos persistentes de vanglória entregam aos poucos a alma ao demônio “que torna a alma insensível”, o qual faz com que ela não mais considere o pecado como pecado, não creia  mais no castigo nem no julgamento eternos, que permaneça insensível aos argumentos tirados da Escritura  e à reprovação dos irmãos (11). Do pensamento da vanglória nasce o do orgulho (14), vício supremo que “provoca a perda do espírito” (21, 26),



Como pode o gnóstico lutar contra esses demônios e contra os pensamentos inspirados por eles, de modo a escapar ao desastre  final a que conduz o orgulho e, ao contrário, continuar progredindo na ciência até alcançar a oração pura?



Evagro sugere ao monge que se torna gnóstico os mesmos conselhos que lhe dava quando este se dedicava à vida prática; ele aconselha inclusive que o gnóstico não deve se preocupar com o que comer ou vestir, virtude da despreocupação que ele recomendava aos iniciantes em seu Bases da vida monástica. Assim como o prático, o gnóstico combaterá os maus pensamentos vindos da parte concupiscente de sua alma por meio de exercícios ascéticos, como o jejum, a vigília e o sono sobre leito duro; ele domará sua parte irascível, mais rebelde nele, pela longanimidade, a ausência de rancor, as esmolas (3), mas também pela salmódia e, sobretudo, fazendo crescer em si a virtude da mansidão (27); com efeito, “quase nenhuma virtude é tão temida pelos demônios quanto a mansidão” (13). O gnóstico que adquiriu um certo domínio sobre suas paixões tem outros meios para lutar contra os demônios; assim ele poderá utilizar, com a condição de que tenha suficiente domínio, sua parte irascível contra os ataques brutais do demônio da fornicação (16). Do mesmo modo ele pode fazer bom

Uso dos pensamentos da tristeza para destruir os dos outros demônios, com a condição de utilizá-los de forma “homeopática”, como se usa o veneno das víboras, tomado em pequenas doses, para destruir o veneno de outros animais (12).



Sobretudo, o gnóstico possui, para combater os demônios, a ciência que ele adquiriu graças a ter alcançado a impassibilidade. Daqui para frente ele já não combate, como o fazia o prático, “à noite”, mas ele contempla “as razões da guerra” e “reconhece facilmente as manobras dos inimigos” (Pr., 83). Agora ele sabe como os demônios introduzem nele seus pensamentos, o que lhe permite triunfar com mais facilidade. Eles o fazem utilizando aquilo que Evagro denomina noémata, termo que designa a “representação”, a imagem, semelhante à marca que os objetos percebidos pelos sentidos deixam no intelecto (25). Estas representações estão no princípio do conhecimento, que é para Evagro, segundo a tradição estóico-aristotélica, de origem sensível. Elas são dadas ao homem, em sua condição presente (em que ele está ligado a um corpo) para que, a partir delas, ele possa elevar-se a uma ciência mais alta, até a ciência do próprio Deus. Deus confiou-as a nós como um rebanho a um pastor, e nos deu a parte concupiscente da alma para que as amemos e a parte irascível para que as defendamos contra os “lobos”, ou seja, contra as representações enviadas pelos demônios (17).



De fato, é utilizando as representações de objetos sensíveis que os demônios agem sobre a alma e introduzem nela seus maus pensamentos (2; 24), tentando desviar suas partes concupiscente e irascível de sua função natural para fazê-las servir ao seu próprio fim, que consiste em impedir o homem de alcançar a ciência. Essas representações vindas dos sentidos são conservadas na memória, de onde elas podem ser chamadas seja pelo intelecto, seja pelos próprios demônios (2), e se o objeto foi percebido com paixão, sua representação mantém, mesmo chamada pela memória, um caráter passional. Com o monge a quem Evagro se dirige e que é, por seu estado, um solitário, um “anacoreta” – portanto, em princípio, afastado dos “objetos” que atingem os sentidos[1] – os demônios utilizam, sobretudo as representações conservadas na memória; em pleno deserto, o encontro, mais ou menos recente, com um irmão, pode estar na origem de uma representação passional persistente, como no caso do monge que guardava rancor de outro cujo rosto não cessava de obcecá-lo durante a prece (37); mesmo na solidão da cela, o monge não está ao abrigo das más representações; assim, quando ele está aplicado na leitura das Escrituras, os demônios sabem utilizar o próprio texto sagrado para sugerir seus maus pensamentos (33). Mas no solitário, as representações são feitas principalmente das lembranças apaixonadas que alimentam e amplificam as divagações da imaginação, às quais a solidão, dia e noite, dá livre curso.



Como podem os demônios agir sobre a memória e nela buscar as representações? Sem dúvida, por intermédio das paixões, supõe Evagro (4). Mas como podem eles conhecer as paixões que estão na alma e as representações conservadas na memória? Com efeito, Evagro assegura que somente Deus é “cardiognóstico”, ou seja, somente ele conhece o que está dentro do coração dos homens; mas os demônios podem conhecê-lo observando os sinais exteriores, gestos ou palavras, no que eles são muito hábeis (37). Do mesmo modo eles não podem agir sobre nosso espírito senão passando pelo nosso corpo. Evagro descreve de maneira muito precisa e bastante curiosa, a partir daquilo que ele próprio observou, como alguns demônios fazem adormecer aqueles que lêem tocando suas pálpebras e, fazendo-os bocejar, insinuam-se no interior de sua boca (33); da mesma forma, o demônio da tristeza, agindo sobre a pupila, cria um obstáculo à oração evocando a imagem de um pecado há tempos cometido (36). Dentre essas representações com as quais nos tentam os demônios está a de nosso próprio corpo, que está no campo de nossos sentidos com exceção do rosto; por meio desta representação nós nos vemos indo e vindo e, quando se apresenta a figura de outra pessoa, estendendo a mão para dar ou receber; e é assim que, quando surge a tentação, nos imaginamos nos irritando contra um irmão ou fornicando com uma mulher (25). Se o monge se abandona a isto, essas imagens se sucedem em seu espírito, sugeridas por vários demônios que se seguem ao primeiro; assim, vítima do demônio da avareza, ele se vê inicialmente, em imaginação, encarregado da gestão do dispensário dos pobres e, para tanto, recolhendo grandes somas de dinheiro; logo sobrevêm as imagens da vanglória: ele se vê cercado da estima de muitos e promovido, não sem algumas contestações que o irritam, à prelazia; surgem então visões provocadas pelo orgulho, visões aterradoras, feitas de relâmpagos ininterruptos, de aparições de dragões alados na cela, visões que levam o monge à perda do espírito e à loucura (21). A este mal estão especialmente sujeitos os que se retiram para a solidão, longe dos irmãos, porém ainda susceptíveis aos golpes da cólera, da tristeza ou do orgulho (23).



A essas imagens do dia acrescentam-se as imaginações noturnas, chamadas de fantasiai; os demônios sabem provocar naquele que dorme e cujas partes concupiscente e irascível não estão ainda suficientemente purificadas, imaginações que despertam nele as paixões; para tanto, eles sacodem a memória, liberando representações que esta guardava à parte; às vezes eles se utilizam de percepções que chegam aos sentidos do adormecido, como por exemplo o ruído do vento (28), como fazem com o barulho das ondas para os navegantes (4). Assim eles provocam sonhos terrificantes, e o monge adormecido se vê presa de áspides aladas, cercado por animais ferozes carnívoros, estrangulado por serpentes ou atirado do alto de montanhas elevadas; às vezes ele vê os demônios se transformarem em mulheres com atitudes indecentes e provocantes (27). Quando não conseguem sacudir assim as partes concupiscente e irascível, os demônios provocam sonhos de vanglória: o monge se enxerga vestido com o manto de pastor e apascentando um rebanho, representação simbólica da dignidade da qual ele se crê investido; revestido com a prelazia, talvez do dom da cura, ele vê afluir para si, de todos os países, pessoas trazendo presentes. Às vezes, ao contrário, são as visões da tristeza, de infelicidades ocorridas a seus próximos ou de perigos que o ameaçam: ele se vê, por exemplo, caindo de altas escadas, símbolo de seu naufrágio na vida monástica (28). Às vezes estas imaginações da noite prosseguem durante o dia (27); com efeito, os demônios sabem combinar as representações do dia com as imaginações da noite, pois a parte passional da alma é mais facilmente excitada durante o dia quando foi perturbada por visões na noite precedente; ou, inversamente, eles procuram humilhar com visões noturnas aqueles que foram perturbados no dia anterior.



Como pode o gnóstico combater esses demônios e os pensamentos que eles sugerem e por que meios poderá ele triunfar?



É preciso, em primeiro lugar, identificar o demônio autor da tentação que se apresenta. O gnóstico o identificará a partir da natureza da representação que a acompanha; se for a imagem de alguém que o ofendeu ou irritou que se apresenta ao seu espírito, é o sinal de que é o demônio da cólera que o está tentando; e o mesmo ocorrerá com relação aos outros pensamentos (2). Identificado o demônio, como expulsar a representação de que ele se serviu para tentar introduzir seus pensamentos? Evagro coloca em princípio que nosso espírito não pode receber ao mesmo tempo as representações de dois objetos diferentes e que portanto ele não pode ser tentado por dois demônios simultaneamente. O procedimento a que recorrerá o gnóstico consistirá, por conseguinte, em expulsar a representação intrometida de um mau pensamento provocando a vinda de uma outra representação (24).



Ser-lhe-á também possível expulsar o mau pensamento por meio de um bom pensamento, pois se os maus pensamentos “cortam” os bons, inversamente os bons pensamentos podem cortar os maus (17). Se, com efeito, em suas obras, Evagro fala sobretudo dos maus pensamentos – a tal ponto que, sob sua pena, a palavra “pensamento” empregada sem qualificativo, designa por si só quase sempre, os maus pensamentos – nem por isso deixa de ser claro para ele que existem também os bons pensamentos, cuja origem e cuja natureza são precisamente definidas neste tratado Sobre os pensamentos, melhor do que em qualquer outro. No capítulo 8 Evagro distingue, além dos “pensamentos demoníacos”, ou seja maus, os “pensamentos humanos”, constituídos de representações simples desprovidas de paixão, e os “pensamentos angélicos”, que perscrutam a natureza das coisas criadas e as suas “razões”; são estes que acompanham a contemplação espiritual. Levando mais longe sua análise, Evagro distingue, no capítulo 31, dentre os pensamentos humanos aqueles que são bons e os que são maus: os bons são, de um lado, aqueles que provêm de nossa natureza, que é boa como tudo o que Deus criou – estes pensamentos são os mesmos que fazem com que também os pagãos amem seus filhos e honrem seus pais – e, de outro, aqueles que provêm de nossa vontade, quando esta, segundo a clássica comparação da balança, “inclina-se pelo melhor”; maus são os pensamentos que vêm de nossa vontade quando ela “se inclina pelo pior”. Assim diz Evagro que “ao pensamento demoníaco opõem-se três pensamentos que o cortam quando ele se demora no espírito” (31): o pensamento angélico e os dois pensamentos humanos bons.



Para cortar os pensamentos diabólicos, os mais eficazes são evidentemente os pensamentos angélicos. São estes que, na contemplação (theoria) espiritual em que deve progredir o gnóstico, formam o que Evagro chama de “as contemplações” (theorêmata); à sua ação juntam-se os “sonhos angélicos” que, à noite, visitam os que são puros e impassíveis (4); contrariamente aos sonhos demoníacos, “eles trazem uma grande calma à alma, uma alegria inefável” e, durante o dia, “a supressão dos pensamentos passionais, a prece pura e até algumas razões dos seres, que começam a aparecer sob a ação do Senhor e que revelam a sabedoria do Senhor” (28). Os bons pensamentos e as contemplações que o gnóstico assim adquiriu são semelhantes às pedras que Davi tirou de sua bolsa de pastor para abater Golias, imagem do demônio. Eles dizem respeito aos anjos e aos demônios, ao modo como eles nos visitam e agem sobre nós, ao modo como Lúcifer, em especial, decaído de seu estado original, tenta arrastar a todos os outros seres em sua queda. Estas considerações “ferem gravemente o demônio e colocam em fuga todo o seu acampamento”. O gnóstico poderá então enfrentar o demônio “mano a mano” e agir como Davi que cortou a cabeça de Golias com a própria espada deste (19).



O gnóstico pode, realmente, triunfar sobre o demônio utilizando as mesmas armas deste, ou seja, os próprios maus pensamentos. Ele o fará por meio da análise, decompondo o pensamento em seus diversos elementos: assim, “ao longo da sua investigação, o pensamento, reabsorvido em seu próprio exame, será destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito terá sido elevado aos cumes por meio desta ciência” (19).



Esta análise, que é um procedimento altamente intelectual, ao alcance apenas do gnóstico já bastante avançado na impassibilidade e na ciência, está fundamentada sobre a observação, que pode ser feita tanto no momento mesmo da tentação, seja após um curto período, como o demonstra Evagro ao descrever a conduta a se manter diante do demônio que ele chama de “vagabundo”: não lhe dizer nada no próprio instante, mas observar o modo como ele procura arrastar o intelecto em todas as suas divagações; ele se retirará então por si mesmo, “pois ele não admite ser visto enquanto faz das suas”; Evagro aconselha a deixá-lo agir assim inclusive nos dias que se seguem, de maneira a “conhecer em detalhe todas as suas maquinações”, após o que se pode colocá-lo em fuga “desmascarando-o com uma simples palavra”. Como isto pode ser difícil de executar no próprio instante da tentação, Evagro aconselha ao gnóstico remeter-se à memória de tudo o que se passou, no dia seguinte, a fim de poder mostrar ao demônio, quando este se apresentar novamente, que ele viu e compreendeu todo seu jogo; deste modo desmascarado, o demônio fugirá envergonhado (9).



Ao longo de toda essa luta contra os demônios deve crescer no gnóstico a aversão que ele deve sentir em relação a estes: se necessário, o “médico das almas”, Jesus Cristo, que já o assistiu durante todo seu percurso ascético, utilizará o “abandono espiritual”, abandono fingido e provisório, com o fim de estimulá-lo e conduzi-lo à “aversão perfeita” em relação aos demônios, só experimentada por aquele que “não peca nem em ato nem em pensamento”, e que é “o sinal da maior e mais primordial impassibilidade”, acesso à mais alta ciência (10; 3).



É no capítulo 40 que Evagro trata mais especificamente da contemplação espiritual e dos seus diferentes graus, aos quais chega paulatinamente o gnóstico. Ela procede também por “representações” (noèmata), mas aqui surge uma distinção fundamental: Evagro distingue entre as representações que deixam uma marca no intelecto e as que não deixam (41); as que deixam uma marca são, como vimos, aquelas que procedem da percepção, por intermédio dos sentidos do corpo, de um objeto corporal; mas quando o gnóstico se eleva à contemplação de sua “razão” – seu logos, termo que designa aquilo que é a um tempo sua razão de ser e seu princípio explicativo – a representação não possui marca nem figura ; e quando intelecto passa à contemplação das naturezas incorpóreas, quer se trate destas em si ou de suas “razões”, as representações também não deixarão nem marca nem figura nele; a bem dizer, só podemos falar em “representações” (noèmata) aqui por pura analogia; trata-se, na realidade, de “contemplações” (theorèmata); os theorèmata, termo empregado por Evagro geralmente no plural, correspondem, na contemplação (theoria) espiritual, àquilo que são os noèmata  para o conhecimento sensível. Com mais razão ainda, quando se trata da ciência de Deus, na expressão to noema tou Theou (41), o termo noema, empregado de maneira analógica, não significa mais a “representação”, mas a idéia, o conceito, ou melhor, o pensamento, a lembrança de Deus, ê mnème tot Theou, como diz Evagro em um contexto análogo em Discípulos, 61; com efeito, este estado não poderia implicar nenhuma vacuidade de espírito. Ao progredir na ciência, elevando-se de contemplação em contemplação, o intelecto chega, num momento privilegiado, à “oração pura”: ele vê então a si próprio como “lugar de Deus”, “semelhante à safira e à cor do céu”, conforme o relato da teofania do Sinai em Êxodo, XXIV, 10-11[2], passagem na qual a Septuaginta substituiu o “Deus” do texto hebraico pelo “lugar de Deus”(39). Esta visão é caracterizada por uma luz, que é a própria luz de Deus (15), luz que de certo modo é refletida pelo intelecto e da qual Evagro diz paradoxalmente que “modela o lugar de Deus” (40). Nesta visão, o intelecto deve não apenas estar desprovido de toda e qualquer representação de objetos sensíveis, mas deve ainda elevar-se acima da contemplação espiritual das naturezas criadas, tanto das corpóreas como das incorpóreas (40).



O tratado Sobre os pensamentos termina com aquilo que constitui o cume da vida espiritual, ele que havia iniciado com a lembrança dos exercícios da vida prática; desta forma ele retraça, malgrado o aspecto desordenado da matéria que o constitui, todo o itinerário espiritual da alma desde sua condição presente até seu término, a visão da luz divina.







3.     AS FONTES DA DOUTRINA





A primeira fonte da matéria exposta neste tratado provém evidentemente da observação psicológica, fundamentada sobre a experiência do próprio Evagro e dos monges em meios aos quais ele levou a vida monástica nas Kellia. Suas análises, de uma perspicácia notável, concernem assim aos fatos da vida psíquica diretamente observados. Mas o fim a que Evagro se propõe não se resume apenas a descrever estes fatos, estes “maus pensamentos” ou “pensamentos demoníacos” cuja análise ocupa um grande espaço do tratado; ele quer principalmente alertar, mostrar, desmontar o mecanismo, de maneira a ensinar como fazê-lo fracassar: a obra não é somente descritiva, mas essencialmente terapêutica. Para tanto, sublinha Evagro, ele esforçou-se em seguir, de modo indutivo, como procedimento, a ciência profana, a teoria dos fatos observados e descritos, de tal maneira que o leitor possa verificar a partir de sua própria experiência o que é dito, “sobretudo, especifica ele, se for inteligente e tiver experiência na vida monástica” (25).



Para tal, Evagro utiliza as fontes da cultura escolástica que ele recebeu em que se misturavam elementos vindos principalmente do estoicismo e do aristotelismo. Uma noção fundamental é expressa pelo termo nòema que, emprestado a Aristóteles, aparece 47 vezes neste tratado, e que traduzimos, depois de muita hesitação, por “representação[3]”. O que Evagro denomina noèma, para designar a imagem provocada pela percepção de um objeto sensível corresponde exatamente àquilo que os estóicos chamam de fantasia, termo que costuma ser traduzido por “representação”; a linguagem que Evagro utiliza para designar a marca deixada (tipoun) pela imagem no intelecto é, também ela, emprestada aos estóicos, inspirada em uma comparação habitual entre eles conforme o testemunho de Diógenes Laércio, em Vidas, VII, 46: “Eles [os estóicos] dizem que a representação (fantasia) é uma marca (tipoosis) na alma; este termo é tomado da marca feita por um anel na cera.[4]” Esta comparação é, em si, banal: nós a encontramos em Platão[5], a propósito da memória, e em Aristóteles[6]; mas o uso que Evagro faz dela é o mesmo dos estóicos, quando ele afirma que “o intelecto não tem a faculdade de receber ao mesmo tempo a representação de dois objetos sensíveis”(24). Esta tese é a mesma de Cleanto; mas ela era discutida entre os discípulos de Zenon; ela foi rejeitada por Chrysipo precisamente porque, pensava ele, se é verdade que a cera não pode receber ao mesmo tempo e no mesmo lugar diversas marcas, uma representação pode, ao contrário, ser acompanhada de uma segunda sem que esta a faça desaparecer, assim como a memória pode reter a representação de muitos objetos sem que a representação de um objeto expulse a de um outro. Esta era uma questão controversa; o que Evagro afirma, retomando a opinião de Cleanto, está conforme à opinião que, de seu lado, expunha Aristóteles em seu tratado Sobre a sensação e os sensíveis, segundo a qual não é possível receber simultaneamente duas sensações por um único sentido, e mesmo por dois.



Podemos nos perguntar por que Evagro preferiu o termo aristotélico noema ao estóico fantasia. De fato, em virtude do princípio segundo o qual todo conhecimento é de origem sensível, o noema aristotélico tem como origem a imagem produzida pela percepção de um objeto sensível, imagem normalmente chamada de fantasia; mas o noema é distinto desta imagem porque esta, recebida pelo intelecto, é elaborada por ele, “conceitualizada” de certo modo – daí o sentido de “conceito” que o termo recebe habitualmente. Podemos pensar que foi esta relação estreita que a imagem tem com o intelecto (nous) que determinou a Evagro adotar o termo noema ao estóico fantasia.



Uma tendência análoga aparece entre os próprios estóicos. Segundo Diógenes Laércio, os estóicos distinguiam entre as fantasiai que se produzem nos seres racionais, de um lado, e as que têm os animais desprovidos de razão; estas últimas não têm um nome próprio, mas as primeiras são chamadas de “intelecções racionais”, logikai noéseis; distinção análoga é reportada por Aécio: “Quando uma imagem chega a uma alma racional, ela é chamada de ennoema, nome tomado do intelecto (nous)”, enquanto que as que se produzem entre os animais não passam de imagens. A esta distinção corresponde uma outra já reportada pelo mesmo Diógenes, feita não mais segundo o sujeito que recebe a representação, homem ou animal, mas segundo o objeto e o órgão por meio do qual, em razão de sua natureza, o objeto é percebido: “Dentre as representações, uma são sensíveis, outras não; as que são sensíveis são as que são recebidas por um ou mais órgãos dos sentidos, as não sensíveis aquelas que o são pela inteligência, com as dos incorpóreos e das outras coisas recebidas pela razão”. Esta nova distinção permite compreender aquela que faz Evagro no capítulo 41, aparentemente em contradição com a própria definição que ele havia dado de noema como “marca”, entre as representações que deixam uma marca e as que não deixam uma marca no intelecto. Esta contradição não deixa de evocar a dificuldade de Aristóteles em definir a relação entre a imagem do objeto sensível, fantasia, e o próprio noema: tendo colocado em princípio, contra Platão, que todo conhecimento é de origem sensível, mesmo o dos inteligíveis, ele se pergunta em que medida pode haver imagens no conhecimento dos inteligíveis: os conceitos (noemata), afirma ele, não são imagens, “embora não sejam desprovidos de imagens[7]”.



Os estóicos distinguiam, além disso, entre a representação que resultava da percepção imediata de objetos sensíveis, fantasia, e, de outro lado, a imagem, chamada de fantasma, de um objeto que não está presente, mas que é simplesmente chamado pela memória, ou a de um objeto irreal, como as que se produzem nos sonhos. Sobre este ponto, a terminologia de Evagro é mais próxima da de Aristóteles, que chamava a imaginação de fantasia, termo que Evagro emprega no plural para designar as “imaginações” que sobrevêm notadamente durante o sono (4; 27; 28); o mesmo termo serve, por outro lado, para designar as imagens dos objetos conservados pela memória (2; 14). Com efeito, Evagro não distingue claramente a memória e a imaginação que Aristóteles considerava como provenientes da mesma porção da alma[8]. Como Evagro, Aristóteles já havia notado o papel exercido pelas paixões, em particular a cólera, sobre as imagens do sonho e as alucinações, como, por exemplo, as aparições de animais sobre as paredes.



As representações (noemata) servem de suporte e de veículo para os “pensamentos” (logismoi); é assim que os demônios introduzem na alma seus pensamentos por meio da representação de objetos sensíveis (2). No emprego que faz, seguindo Orígenes, do termo logismos, tomado no mais das vezes no sentido de mau pensamento ou pensamento demoníaco, Evagro não é mais dependente da tradição filosófica helênica, para a qual o termo logismos não podia ter senão uma carga semântica favorável, mas ele utiliza uma concepção tradicional judaica, expressa pela palavra hebraica yêsér, que designa, na maior parte das vezes, a má tendência existente no homem. Ora, no presente tratado, se os maus pensamentos são o principal assunto tratado, Evagro não deixa de afirmar também, como vimos, que existem no homem os bons pensamentos; isto é conforme à doutrina judaica referente a yêsér, pois, se existe no homem um mau yêsér que o induz às más ações, Deus colocou nele também um bom yêsér, uma boa tendência que o induz ao bem. Assim, o “pensamento” (logismos) não é em Evagro o mesmo da tradição helênica, um produto do intelecto; ele pode agir sobre ele por intermédio das representações, mas lhe é estranho; no homem, ele provém do exterior, seja dos anjos, seja dos demônios, ou de sua natureza criada boa por Deus, ou de sua vontade que pode ser distorcida para o mal (31).



Paul Géhin
Claire Guillaumont
Antoine Guillaumont




  

SOBRE

OS

PENSAMENTOS





1

Os três pensamentos fundamentais




Dentre os demônios que se opõem à prática[9], os primeiros a se apresentar ao combate são aqueles encarregados dos apetites da gula, os que nos sugerem a avareza e os que nos estimulam a procurar a glória humana[10]. Todos os outros caminham atrás destes, recolhendo aqueles que eles feriram. Com efeito, não é possível cair nas mãos do espírito da fornicação, sem antes haver sucumbido à gula[11]; não é possível deter a parte irascível se não a combatermos por via dos alimentos, das riquezas e da glória[12]; não é possível fugir do demônio da tristeza se nos sentirmos privados de tudo isto ou se não os pudermos adquirir[13]; tampouco escaparemos do orgulho, o primeiro broto do diabo, se não banirmos “a avareza, raiz de todos os males”[14], porque, como disse o sábio Salomão, “a pobreza torna humilde o homem”[15]. Em poucas palavras, não é possível que alguém sucumba ao demônio, sem antes ter sido ferido pelos assaltantes da primeira fileira (protostátai)[16]. É por isso que foram estes os três pensamentos que o diabo outrora apresentou ao Salvador, convidando-o primeiramente a transformar as pedras em pães, prometendo-lhe em seguida o mundo inteiro se ele se prosternasse para adorá-lo, e em terceiro lugar dizendo-lhe que, se ele o obedecesse, ele seria glorificado por não sofrer dano algum de tal queda. Mostrando-se superior a estas tentações, Nosso Senhor ordenou ao diabo que se retirasse[17]; com isto ele nos ensina que não é possível afastar o diabo sem antes desprezar estes três pensamentos[18].



2

As representações sensíveis e a memória a serviço dos pensamentos




Todos os pensamentos demoníacos introduzem na alma representações de objetos sensíveis[19]: impressionado[20] com eles, o intelecto carrega[21] em si as formas destes objetos; e assim é conforme o próprio objeto que ele pode reconhecer o demônio que se aproximou[22]. Por exemplo, se em meu espírito forma-se o rosto de alguém que me fez mal ou que me desonrou, é a prova de que o pensamento do rancor e do ressentimento me fez uma visita; ou ainda, se sobrevierem lembranças de riquezas ou de glória, é evidente que será a partir destes objetos que poderá ser reconhecido aquele que nos atormenta. O mesmo acontece com relação aos outros pensamentos: partindo dos objetos você descobrirá quem está presente e faz essas sugestões. Não quero com isto dizer que todas as lembranças de tais objetos venham dos demônios – pois o próprio intelecto, por ser movido pelo homem, possui a faculdade natural de lembrar as imagens do que existe – mas apenas aquelas que forçam contra a natureza[23] as partes irascíveis e concupiscentes. De fato, é por causa da perturbação destas potências que o intelecto comete em espírito o adultério e a violência[24], tornando-se incapaz de receber a imagem de Deus que lhe impôs sua lei[25], se é verdade que esta claridade se manifesta à faculdade diretora [da alma] no momento da prece com a supressão de todas as demais representações ligadas aos objetos[26].



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A luta contra os pensamentos:  cuidados contra a vanglória




O homem não pode desembaraçar-se das lembranças apaixonadas senão tomando cuidado com suas partes concupiscente e irascível, esgotando a primeira por meio dos jejuns, das vigílias e do sono sobre leitos duros, aprisionando a segunda através da longanimidade, da ausência de ressentimentos e das esmolas. Com efeito, é a partir destas duas paixões que se formam quase[27] todos os pensamentos demoníacos que precipitam o intelecto “na ruína e na perdição”[28].

Ora, é impossível a alguém triunfar sobre estas paixões se não desdenhar completamente as comidas, as riquezas e a glória, e até seu próprio corpo[29], por causa daqueles que tantas vezes tentam inflá-lo. É assim absolutamente necessário imitar alguém que está em perigo no mar e que atira a carga pela amurada, devido à violência dos ventos e às ondas desenfreadas[30]. Mas vigiem para não atirar a carga pela amurada diante dos homens, fazendo-lhes espetáculos; pois já receberam a paga, e um outro naufrágio, mais temível que o primeiro, seguir-se-á, com o demônio da vanglória insuflando o vento contrário[31]. É por isso que Nosso Senhor, nos Evangelhos, instrui nestes termos o piloto, que é o intelecto: “Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu[32]”; e ainda: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa[33]”; e ele diz também: “Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que jejuam. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa[34].” Mas é o médico das almas[35] que devemos observar aqui: assim como pela esmola ele cura a parte irascível, pela prece purifica o intelecto, e pelo jejum extenua a parte concupiscente; desta maneira, “o homem novo renova-se à imagem de seu Criador[36]”, e nele, graças à santa impassibilidade, “não existe mais homem nem mulher”, nele “não existe mais grego ou judeu, nem circuncisos ou incircuncisos, nem bárbaro, nem cita, nem escravo, nem homem livre, mas somente o Cristo, que será tudo em todos.[37]

4

O papel da memória nos sonhos





É preciso procurar como, nas imaginações do adormecer, os demônios deixam uma marca e uma figura em nossa faculdade diretora[38]. Pois estas coisas, parece, produzem-se no intelecto, seja por intermédio dos olhos quando ele vê, seja pelo ouvido quando escuta, seja por um sentido qualquer, ou então pela memória[39], que deixa marcas na faculdade diretora, não por meio do corpo, mas colocando em movimento aquilo que ela obteve por intermédio do corpo. Pois bem, parece-me que é colocando em movimento a memória que os demônios deixam marcas na faculdade diretora, visto que o organismo se mantém inativo durante o sono. Mas vejamos agora como eles colocam em movimento a memória: não seria por intermédio das paixões? Sim, evidentemente, porque aqueles que são puros e impassíveis não experimentam nada disso[40]. Entretanto existe também um movimento simples da memória, provocado por nós ou pelas santas potências, graças ao qual, durante nosso sono, possamos reencontrar os santos, conversarmos e comermos com eles[41]. Para tanto é preciso lembrar que as imagens que a alma recebe por meio do corpo são postas em movimento pela memória, sem o corpo; a prova disto está no fato de que freqüentemente experimentamos essas coisas mesmo dormindo, enquanto o corpo está em repouso. Assim como é possível lembrarmo-nos da água quer estejamos ou não com sede, podemos lembrar do ouro com ou sem cupidez, e do mesmo modo qualquer outra coisa. Que o intelecto encontre tais ou tais variedades de imagens será o indício do trabalho pernicioso daqueles lá. E é preciso ainda saber o seguinte: os demônios servem-se também de objetos exteriores para produzir uma imagem, como por exemplo o ruído das ondas para um navegador[42].



5

O domínio da irascibilidade




Quando arrastada contra sua natureza, nossa irascibilidade fornece uma enorme ajuda aos demônios para que atinjam seu objetivo, e se presta toda útil às suas odiosas maquinações. É por isso que, dia e noite, nenhum deles deixa um instante de perturbá-la; e quando eles a vêem enlaçada com a doçura, apressam-se a encontrar justos pretextos para separá-la o mais depressa possível, a fim de que, colocando-se em prontidão[43], ela sirva aos seus pensamentos ferozes. Também é preciso não provocá-la sob nenhum pretexto, justo ou injusto, e não atirar um funesto punhal contra os autores das sugestões. Conheço muitos que agem assim freqüentemente e se inflamam mais do que o necessário pelas razões mais fúteis. Em função de que, diga-me, “você se atira tão depressa numa discussão[44]”, se é verdade que você desprezou alimentos, riquezas e glória? E porque você alimenta seu cão[45], se faz profissão de nada possuir? Se ele late e ataca as pessoas, é evidente que você possui alguns bens no interior, que ele deve guardar. De minha parte, estou convencido de que um tal homem está longe da oração pura, sabendo que a irascibilidade é um flagelo para esta oração. E é de espantar que ele esqueça assim os santos, como David que clama: “Põe fim à tua cólera e renuncie à irascibilidade[46]”, como o Eclesiastes que proclama: “Afasta a cólera de teu coração e a malícia da tua carne[47]”, e como o Apóstolo, que prescreve “erguer as mãos em todo lugar sem cóleras nem disputas[48]”. Porque não nos instruirmos pelo antigo costume dos homens, que consistia em expulsar da casa os cachorros no momento da oração? Isto significa em termos velados que a irascibilidade não deve estar presente entre aqueles que oram. Vejam ainda: “A cólera dos dragões é seu vinho”; ora, assim os Nazireus abstinham-se de vinho[49]. Acrescento que um sábio pagão declarou que a vesícula biliar e a parte lombar não eram comestíveis pelos deuses[50], sem saber, penso eu, o que dizia. Para mim, são símbolos, a primeira da cólera e a segunda da concupiscência irrazoável[51].




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A virtude da despreocupação



Quanto ao fato de que não devemos nos preocupar com as vestes nem com a alimentação, penso que é supérfluo escrever a respeito, porque o próprio Salvador, nos Evangelhos, profere esta proibição: “Não vos preocupeis consigo mesmos, com o que comereis ou bebereis, ou o que vestireis[52]”. Pois é isto o que fazem os pagãos[53] e os descrentes que rejeitam a providência do Mestre e renegam o Criador, mas esta atitude é inteiramente estranha aos cristãos, uma vez que eles crêem que mesmo “os dois pardais que se vendem um centavo” estão sob a administração dos santos anjos[54]. Entretanto os demônios têm também o hábito de enviar os pensamentos impuros da preocupação, para que Jesus se afaste devido à multidão[55] de representações que ocupam o lugar do espírito e para que sua palavra se torne estéril, sufocada pelos espinhos[56] da preocupação. Portanto, depois de nos havermos desembaraçado dos pensamentos que provêm das preocupações, “coloquemos nossas preocupações no Senhor[57]”, contentando-nos com o que temos no presente[58]; e, adotando um modo de vida e vestimentas pobres, desnudemos em pleno dia os autores da vanglória. Se alguém pensa faltar à decência pela pobreza de suas vestes, que ele considere São Paulo que “no frio e na nudez[59]” alcançou a coroa da justiça[60]. E como o Apóstolo chamou de teatro[61] e de estádio[62] o mundo em que vivemos, vejamos se é possível, vestido com os pensamentos da preocupação, correr “pelo prêmio do chamado do alto trazido por Cristo[63]” ou lutar contra “os principados, as potestades e as dominações destas trevas[64]”. Da minha parte não sei nada disto, uma vez que fui instruído pelo que se passa na realidade sensível: nela, com efeito, nosso lutador se verá atrapalhado por sua túnica e será facilmente batido. É o que acontecerá também com o intelecto, sob os efeitos dos pensamentos preocupados, se é verdadeira a palavra que diz que o intelecto é firmemente ligado ao seu tesouro: “Aonde estiver seu tesouro, ali estará seu coração.[65]
 

7

Como os pensamentos cortam uns aos outros



Dentre os pensamentos, há os que cortam e há os que são cortados: os maus cortam os bons e são cortados por eles. Sendo assim, o Espírito Santo permanece atento ao pensamento que primeiro foi colocado, e é a partir dele que ele nos condena ou aprova. O que quero dizer é o seguinte: eu tenho um pensamento de hospitalidade e o tenho por causa do Senhor, mas ele é cortado quando o tentador chega e sugere que eu seja hospitaleiro pela glória que isto traz[66]. Outro exemplo: eu tenho um pensamento de hospitalidade tendo em vista mostrar-me aos homens, mas ele também é cortado, quando se introduz um pensamento melhor que orienta minha virtude para o Senhor constrangendo-me a não agir assim em função dos homens. Se assim, por nossos atos, a partir daí permanecermos com nossos primeiros pensamentos, ainda que postos à prova pelos segundos, receberemos a paga pelos pensamentos colocados antes, porque, por sermos homens, e por lutarmos contra os demônios, não termos a força para guardar incólume um pensamento reto nem, inversamente, para mantermos um maus pensamento sem tentação, por termos em nós as sementes da virtude[67]. Mas se um dos pensamentos que cortam se prolonga, ele se instala no lugar do que foi cortado, e será segundo este segundo pensamento que daí em diante o homem receberá o impulso que o fará agir.




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Três tipos de pensamentos: angélicos, humanos e demoníacos



Após uma longa observação, aprendemos a conhecer a diferença que existe entre os pensamentos angélicos, os pensamentos humanos e aqueles que provêm dos demônios. Os dos anjos, para começar, perscrutam a natureza das coisas e buscam suas razões espirituais. Por exemplo: porque o ouro foi criado, porque ele é terroso e está disseminado nas profundezas do solo, e porque ele não é descoberto sem muito esforço e pena; e como, uma vez descoberto, ele é lavado na água, colocado no fogo, e assim posto nas mãos dos artesãos que farão o candelabro da Tenda, o queimador de perfumes, o incensório, as taças[68] nas quais, pela graça de nosso Salvador, já não é um rei da Babilônia que bebe[69], mas Cleófas, que traz um coração ardente destes mistérios[70]. O pensamento demoníaco não sabe nem quer saber de nada disto[71], mas sugere sem a menor vergonha a simples aquisição do ouro sensível e prediz o desfrute e a glória que resultarão disto. Quanto ao pensamento humano, ele tanto visa a aquisição quanto perscruta o simbolismo do ouro, mas introduz no espírito apenas a forma simples do ouro, fora de qualquer paixão de cupidez. O mesmo vale para outros objetos, exercendo-se mentalmente a mesma regra[72].


 

9

O demônio “vagabundo”



Existe um demônio a que chamamos de “vagabundo[73]” e que se aproxima dos irmãos sobretudo nos começos da aurora[74]; ele passeia o intelecto de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em casa; este é levado assim a simples encontros, depois chega aos conhecidos, tagarela longamente, e deste modo arruina, no contato destes encontros, seu próprio estado, distanciando-se insensivelmente da ciência de Deus e da virtude, esquecendo-se até de sua profissão. É preciso assim que o anacoreta observe este demônio[75]: de onde ele parte e aonde ele chega, pois não é ao acaso nem aventureiramente que ele cumpre este longo circuito, mas é com a intenção de arruinar o estado do anacoreta[76] que ele age desta maneira, para que o intelecto, inflamado por tudo isso e embevecido por esses encontros, caia rapidamente sob o demônio da fornicação, ou sob o da cólera, ou da tristeza, que mais do que todos prejudicam a clareza de seu estado. Mas nós, que temos como objetivo conhecer exatamente a engenhosidade deste demônio, não lhe dirigimos a palavra em seguida nem lhe revelamos o que se passa: como ele produz os encontros em pensamento e de que modo ele arrasta insensivelmente o intelecto à morte, pois ele fugirá para longe: ele não admite ser visto enquanto faz estas coisas; e assim não saberemos nada daquilo que nos propomos a aprender. Mas deixemo-lo, dia após dia, chegar até o fim do seu jogo, para que, depois de termos aprendido a conhecer em detalhe suas maquinações, o coloquemos em fuga, desmascarando-o com uma palavra. Mas, como acontece de no momento da tentação o intelecto achar-se confundido e não conseguir perceber com precisão o que se passa, eis o que você deve fazer após a retirada do demônio: sente-se e rememore para si mesmo os eventos que aconteceram, de onde você partiu e aonde você chegou, em que ponto você foi tomado pelo espírito de fornicação, ou de cólera, ou de tristeza, e como, ainda, aconteceu o que aconteceu; observe estes detalhes e entregue-os à memória, a fim de poder desmascará-lo quando ele se aproximar; revele a ele o lugar secreto que ele guarda, e também que você não o seguirá mais até ali. Se você quiser enlouquece-lo de furor, desmascare-o assim que ele se apresente e, numa palavra, denuncie o primeiro lugar por onde ele entrou, e o segundo, e o terceiro: como ele não suporta a humilhação, isto será especialmente penoso para ele. A fuga do pensamento para longe de você será a prova de que você lhe dirigiu a palavra correta, pois é impossível a este demônio permanecer depois de ter sido abertamente desmascarado. À retirada deste demônio sucede um sono pesado, uma espécie de morte[77] acompanhada de um grande esfriamento das pálpebras e bocejos sem fim, costas pesadas e inchadas: todos fenômenos que, graças a uma intensa prece, o Espírito Santo dissipará.




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A perfeita aversão aos demônios



A aversão que apresentamos aos demônios contribui de modo especial para a nossa salvação e favorece a prática da virtude; mas não temos a força para nutri-la em nós como uma espécie de bom embrião, porque os espíritos amigos do prazer a destróem e convidam a alma a voltar à sua amizade habitual; a esta amizade – ou melhor, esta gangrena dificilmente curável – o médico das almas cura com a solidão moral[78]: de fato, ele permite[79] que nós padeçamos certo terror com isto noite e dia, para que a alma retorne depressa à aversão primitiva, aprendendo com Davi a dizer ao Senhor: “Eu os odeio com uma aversão perfeita, eles se tornaram inimigos para mim.[80]” Pois ele odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em ato nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade[81].





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O demônio da insensibilidade



Quanto ao demônio que torna a alma insensível[82], preciso falar dele? Pois, de minha parte, temo até escrever a seu respeito: como a alma sai de seu próprio estado quando ele chega e rejeita o temor a Deus e a piedade; ela deixa de considerar o pecado como pecado, não mais estima a transgressão como transgressão; o castigo e o julgamento eternos são lembrados por ela como simples palavras e a alma “se ri”, realmente, “do cismo que abrasará tudo[83]”. Ela se diz temente a Deus, mas ignora o que ele prescreve; você arranha o peito[84] enquanto ela se volta para o pecado, mas ela permanece insensível; você argumenta a partir das Escrituras[85], e ela permanece insensível; você lhe expõe a culpa que vem dos homens, e ela não se dá conta da vergonha que ela causa entre os irmãos; esta alma está privada de inteligência, como um porco com os olhos vendados que destrói seu chiqueiro. Este demônio é atraído por persistentes pensamentos de vanglória; é dele que foi dito: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma criatura se salvaria[86]”. E com efeito ele se encontra entre aqueles que raramente visitam os irmãos, e a razão é evidente: diante do sofrimento de outros que são acossados por doenças, ou que vegetam nas prisões, ou sucumbem a uma morte súbita, este demônio se põe em fuga, pois a alma é pouco a pouco penetrada pela compunção e acede à compaixão quando a cegueira provocada por este demônio se dissipa. Tudo isto nos falta, por causa do deserto e porque os doentes são raros entre nós. Foi principalmente este demônio que o Senhor quis por em fuga nos Evangelhos, quando ele prescreveu ver os doentes e visitar os que estão na prisão: “Eu estava doente, disse ele, e vocês vieram me visitar, estava preso e vieram até mim[87]”. Mas é preciso também saber o seguinte: se um dos anacoretas que caiu diante deste demônio não concebeu pensamentos de fornicação, ou não deixou sua casa sob os efeitos da acídia[88], é porque este homem recebeu a castidade e a perseverança[89] vindas do céu; bem-aventurado é ele por possuir uma tal impassibilidade! Quanto aos que fazem votos de piedade e escolhem habitar com os seculares, que se acautelem contra este demônio. Quanto a mim, eu ruborizo diante dos homens só de falar dele ou de escrever daqui para frente a seu respeito.





12

O demônio da tristeza



Todos os demônios ensinam a alma a gostar do prazer: apenas o demônio da tristeza não quer fazê-lo, e ele chega até a destruir os pensamentos dos outros que estão ali, destroçando e secando todo o prazer da alma por meio da tristeza[90], se é verdade que “os ossos do homem triste secam[91]”. E se ele combate moderadamente, ele torna o anacoreta experiente, pois o convence a não se aproximar dos bens deste mundo e a evitar todo prazer; mas se ele se implanta daí para frente, ele engendra pensamentos que aconselham a alma a evadir-se, ou que a obrigam a fugir para longe. É o que o santo Jó sofreu e meditou, quando foi atormentado por este demônio: “Se eu pudesse, disse ele, dar a mão a mim mesmo, ou ao menos pedir a um outro que o fizesse por mim![92][93] Este demônio é simbolizado pela víbora, este animal cuja substância natural, ministrada em dose suportável ao homem, destrói o veneno dos outros animais, mas se tomado em estado puro destrói o próprio ser vivo. É a este demônio que Paulo entregou o pecador de Corinto[94]; é por isso que ele se apressou a escrever novamente aos Coríntios estas palavras: “Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba por demasiada tristeza.[95]” Mas ele sabia que este espírito que aflige os homens pode também trazer-lhes um bom arrependimento: é a razão pela qual são João Batista chamava aos que são picados por este demônio e se refugiam junto a Deus de “raça de víboras”, dizendo-lhes: “Ao ver, porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? Dai, pois, frutos de verdadeira penitência. Não digais dentro de vós: Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar destas pedras filhos a Abraão.[96]” Mas todo homem que, a exemplo de Abraão[97], deixou sua terra e sua família, este se torna mais forte do que este demônio.



13

A aquisição da doçura



Quem dominou a irascibilidade dominou os demônios, mas quem é escravo deles é totalmente estranho à vida monástica e está fora dos caminhos de nosso Salvador, pois o próprio Senhor disse “ensinar o caminho aos mansos[98]”. Assim o intelecto dos anacoretas se torna difícil de capturar, quando foge pelas planícies da doçura. Pois quase nenhum virtude é tão temida pelos demônios como a doçura; é ela que o grande Moisés possuía, ele que foi chamado de “o mais doce dos homens[99][100]; e o santo Davi declarou ser digno da lembrança de Deus, ao dizer: “Lembre-se de Davi e de toda a sua doçura[101].”[102] Por outro lado, o próprio Salvador nos ordenou sermos imitadores desta doçura, quando ele disse: “Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas[103].” E se alguém se abstém de comidas e bebidas, mas excita sua parte irascível com maus pensamentos, este se parece com um barco que se faz ao largo tendo um demônio como piloto. Assim é preciso vigiar, tanto quanto possível, o cão que mora em nós e ensiná-lo a não atacar senão os lobos e a não devorar as ovelhas, mostrando toda a doçura para com todos os homens[104].




 

14

O pensamento da vanglória



Único dentre os pensamentos, o da vanglória possui muita matéria[105]; ele abarca quase toda a terra habitada e abre as portas a todos os demônios, como o faria um reles traidor para uma cidade. Ele também humilha particularmente o intelecto do anacoreta, enchendo-o com uma multitude de palavras e de objetos e corrompendo suas orações, graças às quais ele se esforça por curar todas as feridas de sua alma. É este pensamento que faz crescer todos os demônios que haviam sido destruídos[106], e é graças a ele que eles todos encontram um acesso para as almas, tornando realmente o “novo estado pior do que o primeiro[107]”. Deste pensamento nasce também o do orgulho[108], que precipitou dos céus sobre a terra “o selo da semelhança e a coroa da beleza[109]”.  “Vamos! Deixemos sem tardança este lugar[110]”, de medo que abandonemos nossa vida a outros e nossa existência a pessoas sem piedade[111]. Este demônio é afugentado por uma prece intensa e pela recusa em fazer ou dizer voluntariamente qualquer coisa que possa contribuir para a glória maldita.




15

O começo da impassibilidade e vanglória



Quando o intelecto dos anacoretas adquiriu um início de impassibilidade, então ele adquire o cavalo da vanglória e rapidamente desfila pelas cidades, locupletando-se com os elogios, vinho puro trazido pela glória[112]. Por um desígnio providencial, o espírito da fornicação que vem ao seu encontro e que o encerra em alguma porcaria[113] o ensina a não deixar seu leito antes de haver recuperado a saúde perfeita[114], e a não imitar os doentes indisciplinados que, mesmo carregando em si as seqüelas da doença, metem-se em caminhadas e banhos inoportunos e têm recaídas. É por isso que, permanecendo sentados, estejamos mais atentos a nós mesmos; assim, progredindo na virtude, seremos difíceis de sermos arrastados pelo mal[115]; renovando-nos na ciência, receberemos por outro lado uma abundância de contemplações variadas[116]; e também elevando-nos pela prece, receberemos uma visão mais clara da luz de nosso Salvador[117].






16

A engenhosidade dos demônios: o exemplo do demônio da fornicação



Não posso escrever sobre todas as maquinações dos demônios e tenho vergonha de enumerar seus estratagemas, temendo pelos meus leitores eventuais mais simplórios[118]. Escutem no entanto como é a engenhosidade do demônio da fornicação. Quando alguém adquiriu a impassibilidade da parte concupiscente e fez com que os pensamentos vergonhosos sejam doravante um pouco esfriados, este demônio introduz homens e mulheres que se divertem juntos, e torna o anacoreta espectador de ações e atitudes condenáveis[119]. Mas esta tentação não é das que mais duram, pois uma oração intensa e um regime estrito unido às vigílias e ao exercício das contemplações espirituais a expulsam “como uma nuvem sem água[120]”. Às vezes, ele ataca a carne e faz o anacoreta ceder a um abrasamento animal[121]. O maligno demônio inventa ainda mil outros estratagemas que não precisamos publicar e confiar à escrita. Contra tais pensamentos é extremamente eficaz a efervescência da parte irascível dirigida contra o demônio, parte que ele teme mais do que tudo quando ela é perturbada a propósito de pensamentos e destrói suas representações[122]. É isto que significa: “Encolerize-se e não peque mais.[123]” Aplicado à alma, é um remédio útil nas tentações. Mas o demônio da cólera também sabe imitar este outro: ele também inventa parentes, amigos e conhecidos maltratados por celerados, e induz a parte irascível do anacoreta contra aqueles que lhe aparecem em pensamento; é preciso estar atento a isto e arrancar rapidamente do intelecto tais imagens, de medo que, ligando-se a elas, ele não se torne na hora da prece um “tição fumegante”[124]. Os irascíveis são vítimas destas tentações, pois estão acima de tudo sujeitos às inflamações da cólera; eles estão longe da prece pura e da ciência de Cristo nosso Salvador.





17

Necessidade de evitar as boas representações



As representações deste século foram confiadas pelo Senhor ao homem como ovelhas a um bom pastor[125], pois foi dito: “Ele deu ao mundo o seu coração[126]”; para ajudá-lo, ele acrescentou-lhe a parte irascível e a parte concupiscente, a fim de que pela primeira ele afugente as representações que são os lobos, e pela segunda ele cuide das ovelhas[127], ainda que as chuvas e os ventos se abatam sobre ele. Ele lhe deu também “um pasto”, para que as ovelhas possam pastar, “um lugar de verdes pastagens e uma fonte de águas refrescantes[128]”, “uma harpa e uma cítara[129]”, “um bastão e um cajado[130]”, para que ele retire do rebanho alimento e vestes para que ele “pise as forrações nas montanhas[131]”, pois foi dito: “Quem apascenta um rebanho e não se alimenta de seu leite?[132]” É preciso assim que o anacoreta guarde noite e dia este pequeno rebanho, de medo que uma das representações se torne presa das bestas selvagens[133] ou caia nas mãos de algum ladrão[134], e se qualquer coisa semelhante acontecer neste “valezinho florido”, ele deve sem tardança arrancá-la “da goela do leão e do urso[135]”. A representação concernente a um irmão se torna presa dos animais selvagens, se a fazemos pastar em nós com antipatia; a que concerne à mulher, se a nutrimos com concupiscência vergonhosa; a do ouro e da prata, se ela for guardada com cupidez; e as representações dos santos carismas, se a fizermos passear no espírito em companhia da vanglória[136]. O mesmo acontecerá com as outras representações, quando se tornam vítimas das paixões. O anacoreta não deve apenas vigiá-las de dia, mas ainda guardá-las à noite velando, pois ele pode também perder seu bem em imaginações condenáveis e más[137]. É o que disse o santo Jacó: “Não lhe apresentei os animais despedaçados, mas eu os compensava com os meus. Você me pedia contas do que era roubado de dia e de noite. De dia, eu era devorado pelo calor, e de noite pelo frio, e não conseguia pegar no sono.[138]” Mas se, sob o efeito da fadiga, nos sobrevier uma certa acídia, refugiemo-nos por um momento sobre o rochedo da ciência[139], tomemos nossa harpa e toquemos com as virtudes as cordas da ciência[140]; depois voltemos a apascentar nossa ovelhas ao pé do monte Sinai, a fim de que o Deus de nossos pais nos chame, a nós também, do interior do arbusto[141] e nos faça, a nós também, a graça de conhecer as razões “dos sinais e dos prodígios[142]”.

18

Duas categorias de demônios



Dentre os demônios impuros, alguns tentam o homem enquanto homem, enquanto outros perturbam o homem enquanto animal não dotado de razão[143]. Quando são os primeiros que nos visitam, eles jogam em nós representações de vanglória, de orgulho, de inveja ou de maledicência, todas coisas que não atingem os seres desprovidos de razão. Quando são os segundos que se aproximam, eles arrastam nossa irascibilidade e nossa concupiscência num movimento contrário à sua natureza; pois temos estas partes passionais em comum com os animais sem razão, embora dissimuladas por nossa natureza racional. É por isso que o Espírito Santo diz àqueles que sucumbem aos pensamentos humanos: “Eu declaro: «Embora vocês sejam deuses, e todos filhos do Altíssimo, vocês morrerão como qualquer homem. Vocês, príncipes, cairão como qualquer outro[144]». Aos que são arrastados num movimento animal, que diz ele? “Não seja como o cavalo ou o jumento, que não compreendem nem rédea nem freio: deve-se avançar para domá-los, sem o que eles não se aproximarão de você[145].” Se é verdade que “a alma pecadora morrerá[146]”, é evidente que os homens que morrem como homens serão enterrados por homens[147], enquanto que os que morrem ou tombam como animais serão devorados por abutres ou corvos[148], cujos filhos tanto “invocam o Senhor[149]” como “refestelam-se no sangue[150]”. “Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça![151]

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Dois modos de lutar contra os demônios



Quando um dos inimigos o visitar para feri-lo e você quiser, como está escrito, “voltar contra seu coração sua própria espada[152]”, aja da seguinte maneira. Divida em você o pensamento que ele enviou: o que é ele? De quantos elementos se compõe e dentre estes qual o que mais atormenta o intelecto[153]? Eis o que quero dizer: admitamos que ele tenha enviado a você um pensamento de avareza; divida-o assim: o intelecto que o acolheu, a representação do ouro, o ouro em si e a paixão da avareza; pergunte a si mesmo qual destes elementos é um pecado. É o intelecto? Mas como? Ele é a imagem de Deus. Não seria a representação do ouro? Que homem sensato ousaria dize-lo? Não seria o próprio ouro o pecado? Mas com que finalidade ele foi criado? Segue-se daí que é o quarto elemento a causa do pecado, o que não é nem um objeto subsistindo essencialmente, nem a representação de um objeto e muito menos o intelecto incorpóreo, mas um prazer inimigo do homem, engendrado pelo livre arbítrio[154], que constrange o intelecto a fazer um mau uso das criaturas de Deus[155]: é este prazer que a lei de Deus está encarregada de circuncidar[156]. No decurso de sua investigação, o pensamento, reabsorvido no seu próprio exame, será destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito terá sido erguido nas alturas por esta ciência. Se você quiser utilizar a espada do inimigo, mas antes quiser abate-lo com sua funda, lance, você também, uma pedra tirada de seu saco de pastor[157] e faça o exame a seguir[158]: como os anjos e os demônios visitam nosso mundo, mas nós não visitamos seus mundos, porque não podemos nem unir os anjos a Deus nem tornar os demônios mais impuros[159]; como Lúcifer, que se levanta antes da aurora, caiu sobre a terra[160] e como ele “considera o mar como um vidro de perfume e o Tártaro do abismo como um prisioneiro e faz ferver o abismo como uma caldeira[161]”, perturbando todos os seres com sua malícia e tentando dominar a todos[162]. A contemplação dessas coisas fere gravemente o demônio e derrota todo seu acampamento. Mas isto só acontece aos que atingiram um certo grau de pureza[163] e que começam a entrever as razões do seres[164]. Quanto aos impuros, eles ignoram a contemplação dessas coisas, e ainda que eles as aprendam de outros e as repitam como um encantamento[165], eles não se farão ouvir, devido à espessa poeira e ao tumulto provocado pelas paixões nesta guerra. É preciso necessariamente que o acampamento dos estrangeiros esteja em calma, para que Golias saia sozinho ao encontro do nosso Davi[166]. Utilizemos do mesmo modo tanto a análise como esta forma de guerra em relação a todos os pensamentos impuros.


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Duas explicações para uma vitória rápida sobre os pensamentos



Quando certos pensamentos impuros são postos em fuga rapidamente, busquemos a causa[167]: de onde ele veio? Será devido à raridade do objeto, pelo fato de ser difícil encontrar a matéria necessária[168], ou devido à impassibilidade presente em nós, que o inimigo nada pode fazer? Por exemplo: se um anacoreta que é atormentado por um demônio põe na cabeça que lhe será confiado o governo espiritual da capital[169], é evidente que ele não imaginará esta idéia por muito tempo, e a razão disto é fácil de ver a partir do que já dissemos[170]. Mas se se tratar de qualquer cidade ou aldeia[171], e se ele ainda estiver na mesma disposição de espírito, feliz ele será por sua impassibilidade! Da mesma maneira, para os outros pensamentos, podemos encontrar um método semelhante a este que acabamos de experimentar. É necessário, para nosso ardor e nossa força, conhecer estas coisas, a fim de que saibamos se atravessamos o Jordão e estamos próximos da cidade das palmeiras[172] ou se continuamos a viver no deserto, expostos aos ataques dos estrangeiros[173].


 

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Ao demônio da avareza seguem-se os da vanglória e do orgulho



O demônio da avareza parece-me particularmente contraditório e muito hábil em enganar: encurralado pela suprema renúncia, ele finge ser econômico e amigo dos pobres[174]; ele acolhe generosamente os hóspedes que não são tão pobres assim, envia auxílio a outros que são abandonados, visita as prisões da cidade[175], resgata os que foram postos à venda; ele não larga as mulheres ricas e lhes indica aqueles que devem ser bem tratados; aos que possuem uma bolsa rica ele exorta a que a abandonem. E assim, após haver pouco a pouco enganado a alma, ele a encerra em pensamentos de avareza e a entrega ao demônio da vanglória[176]. Este último introduz uma multidão de pessoas que louvam o Senhor por tal administração e, insensivelmente, introduz também algumas pessoas que começam a falar entre si de uma prelazia; a seguir ele prediz a morte do prelado e acrescenta que o homem não escapará [de ganhar a prelazia] depois de todo o bem que fez. Assim, o infeliz intelecto, ligado nestes pensamentos, rechaça os que não aceitaram a idéia e apressa-se a cumular de presentes os que aceitaram, louvando-lhes o bom senso; aos que se revoltam, ele envia a lei e pede aos juizes que sejam banidos da cidade. Agora que estes pensamentos vão e vêm nele, eis que surge o demônio do orgulho[177] que encena ininterruptos clarões no espaço da cela e envia dragões alados[178] até finalmente provocar a perda do espírito[179]. Quanto a nós, depois de termos pedido em nossas orações a desaparição desses pensamentos, vivamos na pobreza rendendo graças: pois “nós evidentemente não trouxemos nada a este mundo e dele nada levaremos; uma vez que temos alimentos e vestes, contentemo-nos com isto[180]”, lembrando-nos de Paulo, que disse que “a avareza é a raiz de todos os males[181]”.


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Efeito desastroso da persistência dos maus pensamentos



Todos os pensamentos impuros que persistem em nós por causa das paixões fazem o intelecto decair “até a ruína e a perdição[182]”. Pois assim como a representação do pão persiste no esfomeado por causa da fome e a representação da sede persiste no sedento por causa da sede, também as representações de riquezas e bens persistem devido à cupidez, e as representações das comidas e dos pensamentos condenáveis engendrados pelos alimentos persistem devido às paixões[183]. A mesma evidência se impõe no que tange aos pensamentos da vanglória e a outras representações. Não é possível que um intelecto inchado por tais representações se apresente diante de Deus e cinja-se da coroa da justiça[184]. É por ser puxado em todas as direções por esses pensamentos que este intelecto triplamente desafortunado, nos Evangelhos, recusa a refeição da ciência de Deus[185]; e ainda, aquele cujas mãos e pés foram amarrados e que foi atirado às trevas exteriores, vestia uma roupa tecida com pensamentos: o que o convidara declarou que ele era indigno de tais bodas[186], pois a veste nupcial é a impassibilidade da alma racional[187] que renunciou às ambições do mundo[188]. A razão pela qual as persistentes representações de objetos sensíveis destróem a ciência será apresentada nos Capítulos sobre a oração.



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Condições requeridas para abraçar a vida de anacoreta



Que nenhum anacoreta abrace a vida anacorética com cólera, orgulho ou tristeza, nem fuja dos irmãos quando estiver atormentado por tais pensamentos[189]. Pois sob o golpe de tais paixões podem produzir-se até acessos de loucura[190], quando o coração passa de uma representação a outra, e desta a uma terceira, daí a uma quarta até cair num abismo de esquecimento. Conhecemos muitos irmãos que foram vítimas deste naufrágio, e a quem os outros, a custa de lágrimas e orações, reconduziram a uma vida humana. Mas alguns, que chegaram a um esquecimento irreversível, não tiveram mais a força para retomar o estado inicial, e até este dia, pobres que somos, temos sob nossos olhos os naufrágios de nossos irmãos[191]. Esta afecção, na maior parte das vezes, provém dos pensamentos de orgulho. Quando alguém abraça a vida anacorética neste estado, primeiro ele vê o espaço da cela todo em fogo e à noite relâmpagos que brilham sobre as paredes, depois ouve vozes de pessoas que perseguem umas às outras, carros atrelados figurados no ar[192], a casa cheia de Etíopes[193] e de tumulto; e, no auge do enfraquecimento intelectual, ele mergulha na loucura, torna-se exaltado[194] e, aterrorizado, esquece seu estado de homem. Eis porque é preciso abraçar a vida anacorética com o máximo de humildade e doçura, encorajando a alma deste homem[195] com palavras espirituais, dizendo-lhe as palavras do santo Davi: “Bendiga, ó alma minha, o Senhor e não esqueça todas as suas recompensas: ele é benevolente com as suas iniqüidades, ele cura todas as doenças, ele resgata sua vida da corrupção, ele a coroa de piedade e de misericórdias.[196]” Este é o tipo de propósito que é preciso ter, como a mãe que numa festa procura a todo instante por seu filho, de medo que um malfeitor o pegue e o leve; e, sobretudo, por meio de uma prece intensa, convide constantemente a alma a se voltar para o Senhor.

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Impossibilidade de receber simultaneamente dois pensamentos



Os demônios não nos tentam todos ao mesmo tempo[197] nem nos enviam seus pensamentos ao mesmo tempo, pois por natureza o intelecto não tem a faculdade de receber ao mesmo tempo a representação de dois objetos sensíveis[198]. De fato, dissemos no Capítulo 17 que nenhum pensamento impuro surge em nós sem um objeto sensível. Se, devido à sua grande rapidez de movimento, nosso intelecto liga os pensamentos uns aos outros, não devemos por isto crer que eles se formam todos ao mesmo tempo. O torno do oleiro faz algo parecido[199]: ele une um ao outro dois blocos fixados em extremidades diametralmente opostas do torno, e isto devido à grande velocidade do seu deslocamento. Você pode também visualizar em si o rosto do seu pai e verificar se um outro rosto aparece enquanto aquele permanece ou se o segundo rosto se forma quando o primeiro desaparece. Se fosse possível receber ao mesmo tempo a representação do ouro e a representação da pessoa que nos humilhou, cairíamos necessariamente no mesmo momento ante o demônio da avareza e o do rancor, o que é impossível, pois, como eu disse, o intelecto não pode receber no mesmo instante a representação do ouro e a de quem nos humilhou. É preciso portanto, no momento das tentações, tentar fazer o intelecto passar de um pensamento impuro para uma outra representação e desta a uma terceira[200], e assim escapar a este enganador contramestre[201]. Se o intelecto não se desloca e não abandona o objeto, ele submerge pela paixão; então ele se arrisca a se encaminhar para o pecado em ato. Este intelecto tem realmente necessidade de muita purificação, vigílias e orações.

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A representação de nosso próprio corpo: seu papel nos maus pensamentos



Todos os homens que contemplaram a partir dos objetos algumas das realidades presentes em suas naturezas também produziram suas provas a partir daquilo que haviam contemplado[202]. Minha prova, na maior parte dos casos, é o coração do meu leitor, sobretudo se ele for inteligente e tiver a experiência da vida monástica. Digo isto por causa do objeto de contemplação natural que nos é proposto agora e que será confirmado pelo leitor a partir daquilo que se acha dentro dele próprio. É preciso começar por dizer de que modo o intelecto por natureza recebe as representações de todos os objetos sensíveis e uma impressão em conformidade com eles, por intermédio do instrumento que é o nosso corpo[203]. Qualquer que seja a forma do objeto assim será também, necessariamente, a imagem recebida pelo intelecto: por isso as representações dos objetos são chamadas de cópias[204], porque conservam a mesma forma que eles. E assim como o intelecto recebe representações de todos os objetos sensíveis, ele recebe também aquelas de seu próprio organismo – pois este também está no campo de atuação dos sentidos – com exceção do rosto, bem entendido, de que ele não pode fazer nenhuma representação, porque jamais o viu. É portanto com esta figura que o intelecto faz tudo interiormente, que ele se senta e caminha, dá e recebe em pensamento. Ele faz e diz o que bem quer, graças à rapidez das representações: num instante ele retém a figura de seu próprio corpo e estende a mão para receber algo que lhe é dado, no seguinte ele desfaz esta figura e reveste rapidamente a forma do próximo, como se ele lhe desse algo de suas próprias mãos. Sem formas como essas, o intelecto nada poderia fazer, porque ele é incorpóreo e incapaz de qualquer movimento semelhante. É preciso portanto que o anacoreta vigie seu intelecto no momento das tentações, pois ele irá, uma vez que o demônio estives presente, revestir-se da figura de seu próprio corpo e interiormente engajar-se numa disputa com um irmão ou  na união com uma mulher. É este homem que Cristo nos Evangelhos chegou a denominar adúltero, porque ele cometia adultério em seu coração com a mulher de seu próximo[205]. Ora, sem esta figura, o intelecto jamais cometeria adultério, porque ele é incorpóreo e não pode aproximar-se de um objeto sensível sem representações deste tipo: aí está a falta. Então esteja atento a si mesmo e observe como o intelecto reveste a forma do seu próprio corpo sem o rosto, enquanto que ao contrário ele modela o interiormente o próximo por inteiro, porque é assim, inteiro, que ele o viu antes[206]. Mas é impossível observar isto durante as tentações, e ver como isto surge e acontece tão depressa em pensamento, a menos que o Senhor repreenda os ventos e os mares, restabeleça a calma completa e conduza o navegante até a terra para a qual ele se voltava[207]. É preciso assim que o anacoreta esteja atento a si mesmo, de modo que “não haja palavra escondida em seu coração que seja ímpia[208]”, pois o intelecto sempre irá, no momento das tentações, quando se apresentar o demônio, revestir-se da figura de seu próprio corpo. Levados por esta contemplação, nós também expusemos a natureza do pensamento impuro. O pensamento demoníaco é com efeito uma imagem do homem sensível constituída interiormente, imagem inacabada, com a qual o intelecto que é levado pelas paixões fala ou age em segredo, de modo ímpio, dirigindo-se aos simulacros que ele vai formando sucessivamente.




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Como adquirir a ciência do discernimento



Se um anacoreta quer receber do Senhor a ciência do discernimento[209], que primeiro ele cumpra de bom coração os mandamentos que estão ao seu alcance, sem nada omitir, e assim, no momento da prece, “que ele peça” a ciência “a Deus que dá a todos simplesmente e sem recriminar; que ele peça sem hesitar” e sem se deixar atingir pelas ondas da incredulidade, “e ela lhe será dada[210]”. Pois não é possível receber a ciência de coisas mais  numerosas se negligenciamos as que são conhecidas, como se, cometendo numerosas transgressões, não tivéssemos que dar conta de mais numerosos pecados[211]. E é uma felicidade estar a serviço da ciência do Senhor, pois é realmente perigoso não fazer o que ela prescreve, enquanto que é uma alegria cumprir tudo o que ela ensina. Com efeito o intelecto divaga quando está apaixonado e se torna difícil de segurar quando visita as matérias produtoras do prazer. Mas ele cessa de errar quando se torna impassível e reencontra os incorpóreos que preenchem seus desejos intelectuais[212]. Ademais, não é possível adquirir a ciência sem operar a primeira, a segunda e a terceira renúncias: a primeira renúncia é o abandono voluntário das coisas do mundo em vista da ciência de Deus; a segunda, a rejeição ao mal, que vem a seguir pela graça de Cristo nosso Salvador e pelo zelo do homem[213]; a terceira renúncia é a separação pelo desconhecimento daquilo que se manifesta naturalmente aos homens na proporção de seu estado.



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Os sonhos provenientes da perturbação da parte passional da alma



Eis como os anacoretas são tentados durante o dia pelos demônios e caem ante os mais variados pensamentos; mas também à noite, durante o sono, eles combatem áspides voadoras, são cercados por bestas selvagens carnívoras, enlaçados por serpentes e precipitados do alto de montanhas elevadas[214]. Acontece até que mesmo depois de acordados eles se vejam ainda cercados pelas mesmas bestas selvagens e vejam sua cela cheia  de fumaça e fogo. Quando eles não se deixam levar por estas imaginações nem caem no desânimo, eis que vêem os demônios se transformarem em mulheres que se entregam de modo indecente e tentam atirá-los em jogos condenáveis[215]. Tudo isto os demônios concebem com o intuito de perturbar a parte irascível ou a concupiscente, a fim de fazer a guerra aos anacoretas[216]. Pois a parte irascível é logo tentada no dia seguinte quando ela foi perturbada na noite precedente, e a concupiscente acolhe facilmente os pensamentos de fornicação quando ela foi previamente sacudida pelas imaginações do sonho. Eles trazem estas imaginações, seja abrindo à força, como eu disse, um caminho para o dia seguinte, seja com o intuito de humilhar ao máximo durante a noite aqueles que já foram perturbados no dia anterior[217]. E são sobretudo os coléricos e os irascíveis dentre os irmãos que caem diante destas visões tenebrosas, e os que se enchem de pão e de água que caem diante das imaginações vergonhosas[218]. Pois bem! É preciso que os anacoretas vigiem e rezem não cair em tentação[219], que eles vigiem o coração com toda a vigilância[220], acalmando a parte irascível com a doçura e os salmos, e extenuando a parte concupiscente pela fome e a sede. A benevolência e a misericórdia são particularmente adequadas contra tais imaginações, e é isto que ensina claramente o sábio Salomão nos Provérbios: “Você descansará sem medo; e quando deitar, seu sono será tranqüilo. Você não se assustará com o terror imprevisto, nem com a desgraça que cai sobre os injustos. Porque Javé ficará do seu lado e impedirá que seu pé caia na armadilha. Se lhe for possível não negue um favor a quem precisa. Não diga a seu próximo: «Vá embora. Passe depois, que eu lhe darei amanhã», quando você tem a coisa na mão.[221]

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Os sonhos de vanglória e de tristeza



Quando os demônios não conseguem perturbar à noite a parte irascível ou a concupiscente, então eles inventam sonhos de vanglória[222] e fazem a alma mergulhar num abismo de pensamentos. Eis em poucas palavras os tipos de sonhos que eles provocam. Muitas vezes nos vemos reprimindo os demônios ou curando certas afecções corporais, ou então, envoltos num manto de pastor, nos vemos apascentando um pequeno rebanho. Ao acordarmos recebemos logo a imagem da prelazia e passamos o dia a refletir sobre o que ela comporta; ou então, como se o carisma da cura nos houvesse sido fado, antevemos os milagres que se produzirão e as pessoas que serão curadas, as honrarias trazidas pelos irmãos e os presentes enviados por pessoas do exterior, tanto do Egito quanto de outras terras que vêm a nós, trazidos por nosso renome[223]. Muitas vezes estes pensamentos atiram o anacoreta numa tristeza inconsolável, mostrando-lhes seus próximos que estão doentes ou correndo perigo por terra e por mar. Pode acontecer que eles prevejam em sonhos os próprios irmãos naufragarem na vida monástica, precipitando-se de altas escadas sobre as quais eles subiram, ou tornando-se cegos, tateando as paredes. Eles fazem ainda toda espécie de prodígios, servindo-se do ruído dos ventos para fazer surgir demônios ou animais selvagens, ou contando casos para deixar passar a horas das sinaxes[224]. Não devemos prestar-lhes atenção, mas desmascará-los comum pensamento vigilante quando eles agem assim para enganar e iludir as almas. Os sonhos angélicos[225] não têm nada de parecido com isto: eles trazem uma grande calma à alma, uma alegria inefável[226], a supressão dos pensamentos apaixonados durante o dia, a prece pura e até algumas razões dos seres, que começam a aparecer[227] sob a ação do Senhor e assim revelam a sabedoria do Senhor.

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Os sonhos como modos de diagnosticar o estado da alma



Se um anacoreta não se perturba no decurso das imaginações do sonho pelas visões aterradoras ou obscenas, mas fica colérico contra as mulheres que o abordam sem pudor e se esfregam nele, e se ainda ele apalpa os corpos femininos para curá-los – pois até isto os demônios fazem ver – sem que ele se inflame, mas chegue até a ensinar a algumas delas preceitos de castidade, bem-aventurado seja ele por possuir uma tal impassibilidade! Pois a alma que, com a ajuda de Deus, desempenhou bem a prática e libertou-se do corpo, chega a esta região da ciência aonde as asas da impassibilidade a fazem repousar[228]; daí, ele receberá também as asas da santa Pomba; ela alçará seu vôo através da contemplação de todos os séculos e repousará[229] na ciência da Trindade adorável[230].

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Os pensamentos que são obstáculos  às boas ações e os que as pervertem



Dentre os pensamentos  impuros, uns se vêem no próprio caminho da virtude, outros à beira do caminho. Todos aqueles que impedem o cumprimento dos mandamentos de Deus ficam à margem do caminho; ao contrário, todos aqueles que não aconselham sua desobediência, mas que sugerem que, quando obedecidos, o são para serem vistos pelos homens, estes se colocam no meio do caminho: eles corrompem nossa intenção e o modo como se deve cumprir os mandamentos[231]. Assim é preciso que aquele que pratica um mandamento o faça pelo Senhor, e que o cumpra com alegria, pois foi dito: “Que aquele que exerce a misericórdia o faça com alegria[232]”. Pois que vantagem existem em nos despojarmos do pensamento da cupidez pelo da benemerência,  ou da gula pelo da abstinência, se for para revesti-los de outros pensamentos de vanglória ou de recriminações? De todo modo, no momento da oração, eu sofrerei por causa disto aquilo que me chegou com aqueles primeiros pensamentos: a perda da luz que envolve (perilampein) o intelecto no momento da prece. É a respeito destes pensamentos que o bem-aventurado Davi escreveu: “Sobre o caminho pelo qual eu avançava, eles esconderam armadilhas[233]”; ou então: “Eles estenderam cordas como armadilhas para meus pés; eles puseram pedras de tropeço tocando o caminho[234]”. A palavra “tocando” me parece significar “ao lado do caminho[235]”.

  

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Os diferentes tipos de pensamentos e os que lhes são opostos



Ao pensamento demoníaco[236] opõem-se três pensamentos que o cortam quando ele se demora no espírito: o pensamento angélico, o que vem de nossa vontade quando ela tende para o bem, e o que é dado pela natureza humana, sob cujo impulso até os pagãos amam seus filhos e honram seus pais[237]. Ao bom pensamento opõem-se apenas dois pensamentos: o pensamento demoníaco e aquele que vem de nossa vontade quando ela se inclina para  o mal. Mas da natureza não sai nenhum mau pensamento, pois não fomos criados maus em princípio, se é verdade que o Senhor semeou uma boa semente em seu campo[238]. Com efeito, não é porque somos susceptíveis a alguma coisa que a teremos necessariamente em nós como potência, pois, podendo não sermos, nem por isso temos em nós a potência do não-ser, se é verdade que as potências são qualidades[239] e o não-ser não é uma qualidade. Pois houve um tempo em que o mal não existia e haverá um tempo em que ele não existirá mais [mas não houve um tempo em que a virtude não existia e não haverá um tempo em que ela não venha a existir], pois as sementes da virtude são indestrutíveis. Temos como prova o rico dos Evangelhos, que foi condenado ao Hades e pediu piedade para os seus irmãos[240]. Ora, a piedade constitui a mais bela semente da virtude.



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Pondo-se em guarda contra os processos que excitam a irascibilidade



Se alguém deseja obter a oração pura e apresentar a Deus um intelecto isento de pensamentos, que domine sua irascibilidade  e vigie os pensamentos que ela engendra, ou seja os que têm como origem a suspeita, a raiva e o rancor[241], os quais, mais do que tudo, cegam o intelecto e destróem seu estado celeste[242]. É o que nos aconselha São Paulo, ao ordenar-nos “erguer ao Senhor mãos santas sem cólera nem disputas[243]”. Mas um mau hábito persiste entre aqueles que vivem na renúncia: freqüentemente eles discutem em processos contra seus próximos para obter riquezas ou bens que deveriam ser distribuídos entre os pobres. Estas pessoas, em nossa opinião, são joguete dos demônios e tornam para si mesmos ainda mais estreito o caminho da vida monástica, pois eles acendem sua irascibilidade com as riquezas e por outro lado eles aplicam-se em extinguir as riquezas, como alguém que cravasse um estilete nos olhos para neles aplicar um colírio[244]. Nosso Senhor nos prescreveu vender nossos bens e dar tudo aos pobres[245], mas sem discussões nem processos. Pois “é preciso que o servo do Senhor não dispute[246]”, mas àquele que quiser processá-lo por sua túnica[247], deve ainda dar o manto, é ao que lhe bater na face direita, ele deve oferecer a esquerda. Assim ele deve esforçar-se, não para obter as riquezas, mas para não morrer sucumbindo aos pensamentos de rancor, se é verdade que “os caminhos do rancor levam à morte[248]”, segundo o sábio Salomão. Por outro lado, todo homem que retém estas riquezas deve saber que apoderou-se do alimento e das vestes dos cegos, dos alcoólatras e dos leprosos e que ele prestará contas disto ao Senhor no dia do Juízo.



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Ação dos demônios sobre os que lêem



Existem certos demônios impuros que se mantêm sempre sentados ao lado daqueles que lêem e tentam se apoderar de seu intelecto, às vezes tomando como pretexto as próprias divinas Escrituras[249] para chegar aos maus pensamentos. Eles chegam a provocar bocejos além do habitual e provocam um sono pesado bem diferente do sono costumeiro[250]. Alguns irmãos imaginaram que se tratasse do efeito de uma misteriosa reação natural. De minha parte eu observei muitas vezes este fenômeno, e eis o que entendi: eles tocam as pálpebras e toda a cabeça e a esfriam com seu próprio corpo, pois os corpos dos demônios são muito frios e parecidos com o gelo[251]. Também sentimos nossa cabeça como se fosse aspirada por uma ventosa[252], com um rangido. Eles agem assim para atrair para si o calor contido dentro do crânio, e então as pálpebras, afrouxadas pelo frio e a umidade, escorregam sobre as pupilas dos olhos. Muitas vezes, apalpando, senti minhas pálpebras imóveis como gelo, e o rosto inteiro sem vida e arrepiado. No entanto o sono natural geralmente aquece o corpo e torna florescente o rosto das pessoas saudáveis, como aprendemos com a própria experiência. Eles, ao contrário, provocam bocejos contrários à natureza e prolongados, e eles se fazem menores para tocar o interior da boca. Eu jamais consegui entender este fenômeno, embora o tenha experimentado algumas vezes, mas eu ouvi o santo Macário[253] falar dele e dar como prova que aqueles que bocejam devem persignar-se à boca, segundo uma antiga e misteriosa tradição[254]. Tudo isto nos acontece porque não somos suficientemente vigilantes e atentos à leitura e esquecemos que estamos a ler as palavras santas do Deus vivo.



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A sucessão dos demônios



Como também entre os demônios existem sucessões[255], quando o primeiro enfraquece no combate e não consegue mais colocar em movimento a paixão que lhe é cara, nós os observamos e eis o que descobrimos. Quando os pensamentos de uma dada paixão se tornam raros por um bom período de tempo e subitamente esta paixão ferve e se põe em movimento, sem que tenhamos dado motivo para isto por nossa negligência, então sabemos que um demônio mais temível do que o primeiro o sucedeu[256] e que, ocupando agora o lugar do que fugiu, ele o preenche com sua própria mentira[257]. Mas, de seu lado, ele compreende nossa alma submetendo-a a uma guerra muito mais violenta do que de hábito e descartando de um golpe os pensamentos da vigília e da ante-vigília, sem que intervenha nisto nenhum pensamento do exterior. Quando o intelecto perceber isto, que ele fuja para o Senhor; que, depois de receber o elmo da salvação[258] e a couraça da justiça[259], depois de tirar o gládio do espírito[260] e levantar o escudo da fé[261], ele levante os olhos cheios de lágrimas para o seu céu interior, dizendo: “Senhor” Cristo, “o poder que me salva[262], incline para mim seu ouvido, apresse-se em me libertar; torne-se para mim um Deus protetor e um lugar de refúgio para me salvar[263]”. Sobretudo, que ele afie sua espada[264] com jejuns e vigílias, pois, durante sete dias inteiros, ele estará nas lidas do combate e exposto aos puxões inflamados do maligno[265]; depois do sétimo dia, ele saberá que este está se tornando aos poucos semelhantes àquele que ele sucedeu e que ele estará, por um ano inteiro, mais ferido do que ameaçador, até a chegada de seu sucessor, se é verdade que, segundo Jó, “durante um tempo determinado, nós caímos sob seus golpes e nossa casa é saqueada pelos ímpios[266]”.



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A tentação de uma ascese excessiva



Quando depois de numerosos e freqüentes combates o demônio da gula não tem força para destruir a abstinência bem fincada em nós, então ele empurra o intelecto a desejar uma ascese ainda mais estrita[267]; depois ele apresenta ao intelecto também os companheiros de Daniel, sua vida pobre de então e os cereais[268]; ele evoca outros anacoretas e que venceram todo o tempo ou que começaram a fazê-lo, e ele o força a imitá-los, para que, seguindo uma abstinência desmesurada[269], ele não atinja sequer a que está à sua altura, pois o corpo não é capaz devido à sua fraqueza: na realidade [este demônio] abençoa em palavras e amaldiçoa em seu coração[270]; em minha opinião, não é bom obedecê-lo, nem que nos abstenhamos de pão, de azeite e de água[271]. Pois este regime é excelente, os irmãos já o experimentaram, sem chegar à saciedade, uma vez ao dia[272]. Eu ficaria espantado, com efeito, que saciado de pão e de água alguém possa receber a coroa da impassibilidade[273]; chamo de impassibilidade não aquela que impede os pecados em ato – isto eu chamo de abstinência – mas a que prende interiormente os pensamentos apaixonados, que são Paulo denominou a circuncisão espiritual do Judeu invisível[274]. Os que se desencorajarem com minha proposta, lembrem-se do Apóstolo, vaso de eleição[275], que “com fome e sede[276]” cumpriu seu curso[277]. O demônio da acídia também imita este demônio: ele sugere ao asceta rígido um retiro absoluto e o convida a rivalizar com João Batista e com Antônio, o primeiro anacoreta, a fim de que, não suportando este retiro prolongado e inumano, ele fuja vergonhosamente, abandonando o lugar[278]: o demônio poderá então vangloriar-se, dizendo: “Eu prevaleci contra ele[279]”.

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A matéria dos pensamentos



 Os pensamentos impuros recebem, para crescer, numerosos materiais e estendem-se a uma multitude de objetos. De fato, eles atravessam em espírito a extensão dos mares e não recuam diante de longas viagens, tão forte é o ardor da paixão. Mas os que já foram um pouco purificados são muito mais contidos do que os primeiros, pois eles não podem, devido à fraqueza da paixão, estender-se a uma multitude de objetos. Eis porque eles são arrastados num movimento contrário à natureza; segundo sábio Salomão, “eles vagueiam pelas ruas[280]” e amassam o barro para sua criminosa fabricação de tijolos, porque não recebem mais a palha[281]. É preciso, portanto, guardar o coração[282] com toda a vigilância a fim de escapar como uma gazela às redes e como o pássaro ao alçapão[283]. Pois é mais fácil purificar uma alma impura do que devolver a saúde a uma alma purificada que foi novamente ferida; o demônio da tristeza não o permite, mas se agarra constantemente às pupilas dos olhos apresentando a imagem do pecado no momento da oração[284].

37

Os demônios não são “cardiognósticos”



Os demônios não conhecem nossos corações, como acreditam alguns homens, pois somente o Senhor é “cardiognóstico[285]”, ele “que conhece o intelecto dos homens[286]” e que “confeccionou sozinho seus corações[287]”. É a partir de uma palavra proferida ou dos movimentos correspondentes do corpo que eles reconhecem a maior parte das representações presentes no coração[288]. Eu queria expor isto claramente, mas nosso santo padre[289] impediu-me, dizendo que não era conveniente publicar tais coisas e fazê-las cair nos ouvidos dos profanos, pois é dito que aquele que tem comércio com uma mulher durante suas regras é, segundo a lei, culpado[290]. Foi-me permitido apenas dizer que por tais sinais eles reconhecem o que está oculto no coração e que é daí que eles tomam pé para nos atacar. Muitas vezes, portanto, ao maldizermos certas pessoas, provamos nossa falta de caridade para com elas; é porque caímos diante do demônio do rancor e concebemos contra elas maus pensamentos, dos quais ignorávamos a existência em nós. Assim é com razão que o Espírito Santo nos dirige esta censura: “Sentado, você fala contra seu irmão e coloca uma pedra de tropeço contra o filho de sua mãe[291]”; você abre as portas aos pensamentos de rancor[292] e perturba o intelecto no momento da oração, imaginando constantemente o rosto do seu inimigo e desafiando-o. Pois, necessariamente, aquilo que o intelecto vê quando ele ora merece também ser reconhecido como deus[293]. Fujamos portanto, meus irmãos, da doença da maledicência, jamais nos lembremos de alguém com maus pensamentos, nem desviemos o olhar quando nos mencionam o próximo, pois os demônios malignos perscrutam todos os nossos gestos e não deixam nada do que nos concerne sem exame: posição sentado, posição deitado, em pé, palavras, caminhar, olhar; eles observam tudo, colocam tudo na balança, meditam todo o dia em suas peças contra nós, a fim de enganar [lit.: caluniar] o pobre intelecto no momento da oração e extinguir sua bem-aventurada luz[294]. Veja o que diz são Paulo a Tito: “Em seu ensinamento, a incorruptibilidade, uma palavra sã, irreprochável, a fim de que o adversário fique confuso por não ter nada de mal a dizer de nós[295]”. O bem-aventurado Davi faz também esta oração: “Livrai-me do erro que me fazem os homens[296]”, e ele chega até a chamar de homens aos demônios, por causa do caráter racional de sua natureza[297]; também o Salvador, nos Evangelhos, chamou de homem ao inimigo que havia semeado em nós a erva daninha da malícia por sobre o bom grão[298].

38

Dois tipos de morte e ressurreição



A natureza racional levada à morte pela malícia é ressuscitada por Cristo pela contemplação de todos os séculos; a alma que morreu a morte de Cristo é ressuscitada pelo Pai pelo conhecimento dele próprio. É o que é dito pelo Apóstolo: “Se morremos com Cristo, cremos que viveremos também com ele[299]”.




39
A visão do “lugar de Deus”



Quando o intelecto se despojar do velho homem e tiver se revestido daquele que nasce pela graça[300], então será seu próprio estado que ele irá ver no momento da oração, semelhante à safira e à cor do céu; é o estado que a Escritura denomina de “lugar de Deus” e que foi visto pelos antigos sobre o monte Sinai[301].

40

Despojamentos sucessivos



O intelecto[302] não poderá ver nele o lugar de Deus[303], se não se elevar acima de todas [as representações] ligadas aos objetos[304]; ele não irá se elevar se não se despojar das paixões que o mantém ligado[305] por meio das representações aos objetos sensíveis. E as paixões, ele as deixará pelas virtudes, os pensamentos simples[306] pela contemplação espiritual; e esta, por sua vez, ele deixará que lhe aparecer esta luz que, no momento da prece, modela o lugar de Deus.

41
As representações que produzem uma marca  e as que não produzem marcas



Dentre as representações, algumas produzem uma marca e uma figura em nossa faculdade diretora, outras fornecem apenas um conhecimento, sem impor ao intelecto nem marca nem figura[307]. Assim o versículo “No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus[308]” coloca no coração uma representação, sem no entanto lhe impor uma figura ou uma marca. As palavras “tendo tomado o pão[309]” dão uma figura ao intelecto, e a expressão “partiu-o” fornece uma marca ao intelecto. O versículo “Eu vi o Senhor sentado sobre um trono elevado e sublime[310]” fornece uma marca ao intelecto, exceto o trecho “Eu vi o Senhor[311]”; o texto parece fornecer uma marca ao intelecto, mas o significado não, pois [Isaías] viu com olhar profético a natureza racional elevada pela prática receber em si a ciência de Deus. Deus, com efeito, é dito assentar-se aonde é conhecido; é por isso que o intelecto puro é chamado de trono de Deus[312], mas também é chamado de “trono da infâmia, a mulher”, ou seja a alma, “que odeia a justiça[313]”, sendo a malícia e a ignorância a infâmia da alma. Por conseguinte, a representação de Deus não se encontrará entre as representações que fornecem uma marca ao intelecto, mas entre as que não fornecem. Do mesmo modo é preciso que aquele que ora se separe totalmente das representações que dão uma marca ao intelecto[314]. Você deverá investigar também se para os incorpóreos e suas razões vale o mesmo que para os corpóreos e suas razões, e se o intelecto será impressionado de uma maneira quando vir um intelecto e disposto de outro quando vir sua razão de ser. Com isto aprendemos de que modo a ciência espiritual afasta o intelecto das representações que lhe dão uma marca e o apresenta a Deus isento de marcas, pois a representação de Deus não faz parte das representações que marcam o intelecto – Deus não é um corpo – mas das que não marcam. Ainda mais: dentre as contemplações que não impõem marcas ao intelecto, umas designam a substância dos incorpóreos, outras suas razões. Não acontece com eles o mesmo que com os corpos: pois quanto aos corpos, uns impõem uma marca ao intelecto, outros não, mas aqui nenhuma das duas representações impõe uma marca ao intelecto.

  

42

Os olhos da alma



Os pensamentos demoníacos cegam o olho esquerdo da alma, aquele que capta a contemplação dos seres; as representações que impõem uma marca e uma figura à nossa faculdade diretora perturbam o olho direito, aquele que, no momento da prece[315], contempla a bem-aventurada luz da santa Trindade; é por este olho que a Esposa conquistou o coração do Esposo no Cântico dos Cânticos[316].


 

43

Exortação final



Você que aspira à prece pura[317] vigie sua irascibilidade e você que ama a continência domine seu ventre; não dê pão ao seu estômago até a saciedade e racione a água; vigie durante a oração e afaste de você o rancor; que as palavras do Espírito Santo não o abandonem e bata às portas da Escritura tendo as virtudes como mãos. Então levantar-se-á para você a impassibilidade do coração e você verá na oração seu intelecto semelhante a um astro.

  

Apêndice 1



Dentre os demônios que se opõem à prática, existem três assaltantes de primeira linha, aos quais segue todo o destacamento dos estrangeiros: são os primeiros a se apresentar ao combate e convidam as almas ao mal por meio de pensamentos impuros: são os encarregados dos apetites da gula, os que nos sugerem a avareza e os que nos empurram a procurar a glória entre os homens.



Apêndice 2



Dentre os demônios que se opõem à prática, os que são encarregados dos apetites do ventre, os que nos sugerem a avareza e os que nos convidam à glória dos homens apresentam-se primeiro ao combate e por meio de pensamentos impuros convidam ao mal as almas dos homens.



Apêndice 3



Os demônios armam-se com más ações; uma vez armados, eles tratam rudemente aqueles que os armaram.





[1]              O termo pragmata pode designar tanto pessoas como coisas; trata-se sempre de “objetos” da percepção sensível.
[2]              “Javé disse a Moisés: “Suba até mim com Aarão, Nadab, Abiú e setenta anciãos de Israel, e adorem de longe. Só Moisés se aproximará de Javé; os outros não se aproximarão, nem o povo subirá com ele’. Moisés desceu e contou ao povo tudo o que Javé lhe havia dito e todas as leis. O povo respondeu unânime: ‘Faremos tudo o que Javé disse’. Moisés colocou por escrito todas as palavras de Javé. Depois levantou-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha e doze estelas para as doze tribos de Israel. Em seguida, mandou alguns jovens de Israel oferecer holocaustos e imolar novilhos a Javé como sacrifício de comunhão. Moisés pegou a metade do sangue e colocou em bacias; a outra metade do sangue, ele a derramou sobre o altar. Pegou o livro da aliança e o leu para o povo. Eles disseram: ‘Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos’. Moisés pegou o sangue e o espalhou sobre o povo, dizendo: ‘Este é o sangue da aliança que Javé faz com vocês através de todas essas cláusulas’. Moisés, Aarão, Nadab, Abiú e os setenta anciãos subiram. Eles viram o Deus de Israel: sob os pés dele, havia uma espécie de pavimento de safira, tão pura como o próprio céu. E Deus não estendeu a mão contra os notáveis de Israel; eles contemplaram a Deus e depois comeram e beberam.”
[3]              Dentre outras traduções dadas ao termo, destacamos ainda “noção” (adotada por J. Tricot) e “conceito” (adotada por M. Fattal).
[4]              Compare-se, em outro contexto, com o título do tratado sufi A sabedoria dos profetas (Fuçuç al-Hikam), em que o termo fuçuç significa literalmente “o engaste das sabedorias”. Esta expressão antes resume simbolicamente o livro do que define seu conteúdo, e não pode ser entendida a menos que se conheça previamente o simbolismo de que se trata: al-façç – singular de fuçuç – é o engaste que prende uma pedra preciosa ou o selo (al-khatam) de um anel; como “sabedorias” (al-hikam) devemos entender os aspectos da Sabedoria divina. Os “engastes” que prendem as pedras preciosas da Sabedoria (al-hikmah) eterna, são as “formas” espirituais dos diferentes profetas, suas respectivas naturezas, a um tempo humanas e espirituais, que veiculam este ou aquele aspecto do Conhecimento divino. O caráter incorrputível da pedra preciosa corresponde à natureza imutável da Sabedoria. A metáfora do engaste que segura a pedra preciosa da Sabedoria e lhe esposa o talhe, diz respeito à natureza humana de um profeta enquanto recipiente da Sabedoria divina; entretanto, este aspecto do simbolismo, que corresponde à aparência humana das coisas, acha-se compensado e como que expandido pela fórmula que Ibn‘Arabi adota para os títulos das diversas partes de seu livro: “o engaste da Sabedoria divina no Verbo Adâmico”, “o engaste da Sabedoria da Inspiração divina no Verbo de Seth”, “o engaste da Sabedoria da Transcendência no Verbo de Noé”, etc. Segundo estas expressões, o engaste, ou seja a forma individual do profeta, está por sua vez contido no verbo (al-kalimah), que é a realidade essencial e divina deste mesmo profeta; com efeito, por sua identificação “ativa” com a Sabedoria divina, todo profeta é uma determinação imediata do Verbo eterno, que é o “enunciado” primordial de Deus. São os “verbos” que contém os “engastes”, pois é o individual que está contido no universal e não inversamente, apesar das aparências humanas. Todo profeta, enquanto homem perfeito, “contém” assim a si mesmo, porque ele “contém” a Sabedoria divina e porque, sob o aspecto da realidade interior e supra-individual, ele “é” esta Sabedoria; ora, esta por sua vez contém a humanidade perfeita do Homem-Deus, e é este aspecto das coisas que corresponde à realidade ontológica, sem anular entretanto a “realidade” aparente do ponto de vista humano. Enfim, não devemos esquecer que a humanidade dos profetas que, por definição, é perfeita e “fora de série”, reflete em sua particularidade – o “engaste” que tal ou qual forma possui – um dado aspecto ou Nome divino, o que equivale a dizer que o profeta se identifica em última análise com este Nome, que “abre o caminho” para a Essência divina indiferenciada. (N.T.)
[5]              Teeteto, 191 d.
[6]              Da alma, II 12 424  a 16-21; Da memória, I, 450 a 30; 450 b 5.
[7]              Da alma, III, 8 432 a 8-10.
[8]              Da memória, 450 a 22-25.
[9]                A cada etapa da vida espiritual encontramos uma categoria particular de demônios; os que são evocados com mais freqüência são, como aqui, os que se opõem à praktikè: “Dentre os demônios, alguns se opõem à prática dos mandamentos, outros às intelecções da natureza e outros aos logoi que concernem à divindade, porque também a ciência de nossa salvação é constituída destas três coisas” (Képhalaya gnostica).
[10]               Encontraremos a trilogia “alimentos, riquezas e glória” nos capítulos 3, 5 e 22. A mesma doutrina dos três vícios fundamentais aparece nas Cartas: “Alguém adquire a caridade que despreza o alimento, a riqueza e a glória do mundo, e com isto renega seu corpo por amor à ciência de Deus. Como pode o homem ser paciente para com quem o feriu no rosto, se amar a glória ou se amar seu corpo que foi maltratado? Como não se vingará, disputando com que tomou seus bens, se ainda estiver sujeito à paixão pelos alimentos e pela riqueza?” Compare-se com Discípulos, 82 (*): “Domine a gula, a cupidez e a vanglória, e você não mais se irritará nem se entristecerá jamais.”
             (*) Coletânea de ensinamentos de Evagro, recolhidos fielmente por seus discípulos.
[11]               Sobre a ligação entre a gula e a fornicação ou luxúria, ver por exemplo Oito espíritos, 4: “A gula é a mãe da luxúria” e 5: “Aquele que enche o ventre e pretende ser casto é semelhante a quem afirma deter a ação do fogo na palha”; trata-se de um ensinamento tradicional.
[12]               Cf. Cartas, 39: “O que nos irritará se desprezarmos os alimentos, as riquezas e a glória?” e Discípulos, 97: “Não é possível encolerizar-se por outra coisa que não os bens, os alimentos, a vanglória ou qualquer de seus assemelhados”; sua Antirrética é dirigida contra a alma que tenta não suprimir as causas da cólera, que são os alimentos e as vestes, os bens e a glória passageira.
[13]               A tristeza nasce no mais das vezes de uma frustração (stéresis).
[14]               1 Timóteo, VI, 6-10: “Eles supõem que a piedade é fonte de lucro. De fato, a piedade é grande fonte de lucro, mas para quem sabe se contentar. Pois não trouxemos nada para o mundo, e dele nada podemos levar. Se temos o que comer e com que nos vestir, fiquemos contentes com isto. Aqueles, porém, que querem tornar-se ricos, caem na armadilha da tentação e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que fazem os homens afundarem na ruína e perdição. Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por causa desta ânsia de dinheiro, alguns se afastaram da fé e afligem a si mesmos com muitos tormentos.”
[15]                     Provérbios, X, 4.
[16]               Os protostátai são os oficiais que arrastam o resto da tropa para o combate. Aos três vícios fundamentais que são a gula, a avareza e a vanglória Evagro associa neste capítulo a luxúria, a cólera, a tristeza e o orgulho; temos assim sete dos “oito pensamentos gerais” contemplados na Prática, 6; falta apenas a acídia.
[17]               Mesma exegese das três tentações de Cristo nas Cartas, 6: “O maligno serviu-se destas paixões e apresentou a Jesus Nosso Deus três tentações: tanto o convidou a que transformasse as pedras em pães, como lhe prometeu dar-lhe o mundo inteiro; e ainda lhe explicou a partir do testemunho das palavras espirituais que ele era digno de ser servido pelos anjos”, e 9: “É a partir destas [três paixões] que Satã produziu as três tentações mencionadas no Evangelho e que ele apresentou a Nosso Senhor; mas, mostrando-se superior a elas, este ordenou a Satã que se retirasse”.  Cf. Mateus, IV, 1-11: “Então o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, sentiu fome. Então, o tentador se aproximou e disse a Jesus: ‘Se tu és Filho de Deus, manda que essas pedras se tornem pães!’ Mas Jesus respondeu: ‘A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.’ Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: ‘Se tu és Filho de Deus, joga-te para baixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra.’ Jesus respondeu-lhe: ‘A Escritura também diz: ‘Não tente o Senhor seu Deus.’ O diabo tornou a levar Jesus, agora para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e suas riquezas. E lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar.’ Jesus disse-lhe: ‘Vá embora, Satanás, porque a Escritura diz: ‘Você adorará ao Senhor seu Deus e somente a ele servirá’. Então o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e serviram a Jesus.”
[18]               A doutrina dos três vícios fundamentais (gula, avareza, vanglória) dos quais dependem todos os demais, tornou-se tradicional entre os autores bizantinos: João Clímaco, Máximo o Confessor e Gregório o Sinaíta.
[19]               “O pensamento demoníaco é uma representação do objeto sensível que arrasta num movimento contra a natureza a parte irascível ou a concupiscente.” (Muyldermans, Evagriana Syriaca, pg. 37)
[20]               Termo de origem estóica.
[21]                     O verbo periférein caracteriza o movimento do intelecto, que imita o movimento circular dos astros
[22]                     “Numerosas são as paixões que se escondem em nós e que desconhecemos; mas elas são desmascaradas quando se apresentam as matérias.” (Discípulos, 72)
[23]                     Sobre a atividade que é ou não conforme a natureza irascível e concupiscente, ver capítulo 17.
[24]               Estas palavras em grego formam paronomase (*): a primeira envia à concupiscência e a segunda à irascibilidade.
                   (*) Figura de retórica que aproxima palavras foneticamente semelhantes.
[25]               O Deus legislador que dá o decálogo dos Mandamentos, que proíbe o adultério e o assassinato. A expressão “imagem (fantasia) de Deus”, espantosa à primeira vista, explica-se pelo contexto, onde se trata de imagens que a memória possui: a imagem do Deus que fornece a Lei, dada pela Escritura, faz parte delas.
[26]                     Expressões semelhantes em Cartas, 58: Deus, que é a Causa e o Pai dos inteligíveis, “aparece ao coração com a supressão de todas as representações ligadas aos objetos” e 61: “A fé perfeita é adquirida pela supressão de todas as intelecções dos objetos corporais”. A prece pura exige não somente a rejeição dos pensamentos apaixonados, mas ainda de todas as representações que provêm do mundo sensível.
[27]                     Este advérbio, freqüente em Evagro, deixa entender que alguns pensamentos têm outra origem do que o thymos e a epithymia que constituem propriamente falando a parte passional da alma. Compare-se com o início do capítulo 28: “Quando os demônios não podem perturbar à noite as partes irascíveis ou concupiscentes, eles inventam sonhos de vanglória.” Sobre este problema, ver Discípulos, 130: “Se a vanglória provém da parte concupiscente, ela é a última das suas produções” e 177, aonde se liga a acídia, a vanglória e o orgulho à parte racional do homem.
[28]                     1 Timóteo, VI, 9. ver acima, notas do capítulo 1.
[29]               Encontramos esta exigência no primeiro capítulo ao encontro dos três vícios principais; mas aqui, como no paralelo em Cartas, 60, Evagro acrescenta o desprezo ao corpo. Com efeito, o amor ao corpo é constitutivo da filáucia que Evagro designa em Skemmata, 53, como o primeiro de todos os pensamentos. É preciso assim acrescentar um novo nível à análise da gênese dos pensamentos. É o que Teodoro de Edessa, na sentença 65 de sua Centúria, resume com perfeição: “O inimigo temível, a filáucia, tem ares de tirano, e depois dele os três e os cinco vêm carregar nosso espírito.” Note-se, por outro lado, que Evagro tem uma idéia positiva do corpo: ele apenas deve ser mantido no lugar que lhe convém.
[30]               A luta contra as paixões é assimilada à descarga a que são obrigados os marinheiros nas tempestades mais violentas: eles atiram pela amurada a carga e às vezes até a equipagem. Evagro lembra aqui duas tempestades reportadas nas Escrituras: a que afundou o barco que transportava Jonas para Tarsis e a que sofreu o barco que levava Paulo prisioneiro a Roma, ao largo de Creta. Cf. Atos, XXVII, 17-19: “Sem poder resistir à ventania, o navio foi arrebatado e deixamo-nos arrastar. Impelidos rapidamente para uma pequena ilha chamada Cauda, conseguimos, com muito esforço, recolher o batel. Içaram-no e, depois, como meio de segurança, cingiram o navio com cabos. Então, temendo encalhar em Sirte, arriaram as velas e entregaram-se à mercê dos ventos. No dia seguinte, sendo a tempestade ainda mais violenta, atiraram fora a carga. No terceiro dia, atiramos para fora com as nossas próprias mãos os acessórios do navio.” Cf. Jonas, I, 4-5: “O Senhor, porém, fez vir sobre o mar um vento impetuoso e levantou no mar uma tempestade tão grande que a embarcação ameaçava despedaçar-se. Aterrorizados, os marinheiros puseram-se a invocar cada qual o seu deus, e atiraram no mar a carga do navio para aliviarem-no.”
[31]               A vanglória é o vício que ataca particularmente os virtuosos; ver Praktiké, 13, Oito Espíritos, 15 e Cartas, 51.
[32]             Mateus, VI, 1-4 ”Prestem atenção! Não pratiquem a justiça de vocês diante dos homens, só para serem elogiados por eles. Fazendo assim, vocês não terão a recompensa do Pai de vocês que está no céu. Por isso, quando você der esmola, não mande tocar trombeta na frente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa. Ao contrário, quando você der esmola, que a sua esquerda não saiba o que a sua direita faz, para que a sua esmola fique escondida; e seu Pai, que vê o escondido, recompensará você.”
[33]                     Mateus, VI, 5-6: “Quando vocês rezarem, não sejam como os hipócritas, que gostam de rezar em pé nas sinagogas e nas esquinas, para serem vistos pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa.  Ao contrário, quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; e o seu Pai, que vê o escondido, recompensará você.”
[34]             Mateus, VI, 16.-17 : “Quando vocês jejuarem, não fiquem de rosto triste, como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto para que os homens vejam que estão jejuando. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa. 17 Quando você jejuar, perfume a cabeça e lave o rosto, 18 para que os homens não vejam que você está jejuando, mas somente seu Pai, que vê o escondido; e seu Pai, que vê o escondido, recompensará você.”
[35]               Sobre o Cristo médico de almas, veja-se também Cartas, 42, 51, 55, 57 e 60; compare-se com o que é dito em Cartas, 57: “Quando seu filho está doente, o pai chama pelo médico; da mesma forma, Deus enviou dos céus o médico das almas para que, com seus cuidados, resgate os homens da malícia para a virtude e da ignorância para a ciência de Deus”.
[36]               Colossenses, III, 5-10: “ Façam morrer aquilo que em vocês pertence à terra: fornicação, impureza, paixão, desejos maus e a cobiça de possuir, que é uma idolatria. Isso é o que atrai a ira de Deus sobre os rebeldes. Outrora, também vocês eram assim, quando viviam entre eles. Agora, porém, abandonem tudo isso: ira, raiva, maldade, maledicência e palavras obscenas, que saem da boca de vocês.  Não mintam uns aos outros. De fato, vocês foram despojados do homem velho e de suas ações, e se revestiram do homem novo que, através do conhecimento, vai se renovando à imagem do seu Criador.”
[37]             A constituição do “homem novo” coloca fim a todas as distinções, em particular a dos nomes, e estabelece a unidade. Cf. Colossenses, III, 11:E aí já não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em todos.”
[38]               O início deste capítulo trata do mecanismo dos sonhos. As “imaginações” do sono (fantasiai) correspondem às representações (noemata) que o intelecto recebe durante o dia por intermédio dos sentidos, sendo tanto uns como outros utilizados pelos demônios.
[39]               No início de Skemmata, 17, Evagro acrescenta o temperamento: “Existem quatro modos pelos quais o intelecto recebe as representações: o primeiro é pelos olhos, o segundo pelo ouvido, o terceiro pela memória, o quarto pelo temperamento...”
[40]               A ausência de sonhos passionais é o signo da impassibilidade, conforme Praktiké, 56: “As provas da impassibilidade, nós as reconhecemos, de dia pelos pensamentos, à noite, pelos sonhos.”
[41]               Assim como existem três tipos de pensamentos diurnos, existem três tipos de sonhos: demoníacos, humanos e angélicos. Sobre os sonhos provocados pelos anjos, veja-se o final do capítulo 28.
[42]               Evagro admite que nem todas as impressões do sono provêm da memória. Os órgãos dos sentidos podem permanecer ativos e introduzir as fantasias no espírito daquele que dorme. Compare-se com o que diz Aristóteles: “Acontece às vezes que pessoas percebam de certo modo durante o sono ruídos e luzes, sabores e contatos, mas fracamente, como de longe” (Parva naturalia, 462a)
[43]             O thymos está sempre pronto para inflamar-se na primeira ocasião.
[44]               Cf. Provérbios, XXV, 8: “O que teus olhos viram, não o descubras com precipitação numa contenda, pois, no final das contas, que farás tu quando o outro te houver confundido?”
[45]             A respeito da comparação da irascibilidade com um cão, ver adiante capítulo 13. Bem dirigido, o cão é útil na luta contra os demônios e seus maus pensamentos; sobre o bom uso da irascibilidade, ou do funcionamento normal desta parte da alma, ver capítulos 16 e 17.
[46]               “Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele. Não invejes o que prospera em suas empresas, e leva a bom termo seus maus desígnios. Guarda-te da ira, depõe o furor, não te exasperes, que será um mal, porque os maus serão exterminados, mas os que esperam no Senhor possuirão a terra.” (Salmos, XXXVI, 7-9)
[47]               “Jovem, rejubila-te na tua adolescência, e, enquanto ainda és jovem, entrega teu coração à alegria. Anda nos caminhos de teu coração e segundo os olhares de teus olhos, mas fica sabendo que de tudo isso Deus te fará prestar conta. Exclui a tristeza de teu coração, poupa o sofrimento a teu corpo, porque a juventude e a adolescência são vaidade.”  (Eclesiastes, XI, 9-10)
[48]             “Quero, pois, que os homens orem em todo lugar, levantando as mãos puras, superando todo ódio e ressentimento.” (1 Timóteo, II, 8)
[49]               A interpretação simbólica da abstinência de vinho entre os nazireus se faz com base num aproximação com o Deuteronômio: “Suas videiras são das plantações de Sodoma e dos terrenos de Gomorra; suas uvas são venenosas, seus cachos, amargosos. O seu vinho é veneno de serpente, o mais terrível veneno de cobra!” (Dt. 32, 33). Cf. KG V, 44: “Se a cólera dos dragões vem do vinho e os nazireus abstém-se do vinho, é porque eles receberam a ordem de não possuírem cólera.”
[50]               O sábio pagão mencionado é na realidade o autor cômico Menandro, que nos versos 451 a 453 do Atrabiliário faz dizer seu herói Cnémon: “Mas eles consagram aos deuses o lombo e a vesícula, partes não comestíveis, e engolem todo o resto.” Evagro deve ter conhecido este texto através de Clemente de Alexandria (Stromatta, VII, 31, 1) que o cita numa passagem consagrada aos sacrifícios.
[51]               Quanto à associação da cólera com a bile, ver por exemplo Plutarco, Moralia, 141; a associação dos rins à concupiscência é tradicional, donde o simbolismo da cintura (Praktiké, Prólogo).
[52]               “Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais que as vestes?” (Mateus, VI, 25)
[53]               “Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? São os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso.” (Mateus, VI, 31-32)
[54]               “Não se vendem dois passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de vosso Pai.” (Mateus, X, 2)
[55]               “O que havia sido curado, porém, não sabia quem era, porque Jesus se havia retirado da multidão que estava naquele lugar.” (João, V, 1)
[56]               “O terreno que recebeu a semente entre os espinhos representa aquele que ouviu bem a palavra, mas nele os cuidados do mundo e a sedução das riquezas a sufocam e a tornam infrutífera.” (Mateus, XIII, 22)
[57]               “Depõe no Senhor os teus cuidados, porque ele será teu sustentáculo; não permitirá jamais que vacile o justo.” (Salmo LIV, 23); “Confiai-lhe todas as vossas preocupações, porque ele tem cuidado de vós.”  (1 Pedro, V, 7)
[58]                “Vivei sem avareza. Contentai-vos com o que tendes, pois Deus mesmo disse: Não te deixarei nem desampararei (Dt 31,6).” (Hebreus, XIII, 5)
[59]                “Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez!” (2 Coríntios, XI, 24-27)
[60]                “Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua aparição.” (2 Timóteo, IV, 8)
[61]                      “Porque, ao que parece, Deus nos tem posto a nós, apóstolos, na última classe dos homens, por assim dizer sentenciados à morte, visto que fomos entregues em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens.” (1 Coríntios, IV, 9)
[62]                “Nas corridas de um estádio, todos correm, mas bem sabeis que um só recebe o prêmio. Correi, pois, de tal maneira que o consigais.” (1 Coríntios, IX, 24)
[63]               “Prescindindo do passado e atirando-me ao que resta para a frente, persigo o alvo, rumo ao prêmio celeste, ao qual Deus nos chama, em Jesus Cristo.” (1 Filipenses, III, 13-14)
[64]               “Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares.” (1 Efésios, VI, 12)
[65]             “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam. Ajuntai para vós tesouros no céu, onde não os consomem nem as traças nem a ferrugem, e os ladrões não furtam nem roubam. Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração.” (Mateus, V, 18-21) Evagro tem aqui em vista os tesouros terrestres evocados no versículo 19, e não o tesouro espiritual do versículo 20.
[66]               Esta armadilha é usada pelos demônios contra os gnósticos, e consiste em dissimular um mau pensamento sob a forma de um bom pensamento. Cf. Salmo CXXXIX, 5-6: “Javé, defende-me das mãos do injusto, guarda-me do homem violento. Eles planejam tropeços para os meus passos. Os soberbos me preparam armadilhas, os perversos me estendem uma rede e me colocam ciladas no caminho.”
[67]               As sementes da virtude colocadas em nós pelo Criador são indestrutíveis; esta é uma idéia essencial da metafísica de Evagro, sobre a qual ele insiste em várias ocasiões.
[68]             “Faça pratos, bandejas, jarras e copos para as libações: tudo de ouro puro. E coloque para sempre sobre a mesa, diante de mim, os pães oferecidos a Deus. Faça um candelabro de ouro puro; ele será todo cinzelado: pedestal, haste, cálices, botões e flores formarão com ele uma só peça.”  (Êxodo, XXV, 29-31)
[69]               “O rei Baltazar fez um grande banquete para mil altos funcionários seus e ele se pôs a beber vinho na presença desses mil. Tocado pelo vinho, Baltazar mandou trazer os cálices de ouro e prata, que seu pai Nabucodonosor havia tirado do Templo de Jerusalém, para neles beberem o rei, os altos funcionários, suas mulheres e concubinas. Trouxeram os cálices de ouro tirados do Templo de Jerusalém; então o rei, os altos funcionários, mulheres e concubinas começaram a beber nesses cálices. Bebiam vinho e louvavam seus deuses de ouro, prata, bronze, ferro, madeira e pedra.” (Daniel, V, 1-4)
[70]               “Nesse mesmo dia, dois discípulos iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém. Conversavam a respeito de tudo o que tinha acontecido. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou, e começou a caminhar com eles. Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram. Então Jesus perguntou: «O que é que vocês andam conversando pelo caminho? (...) Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais adiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: «Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando.» Então Jesus entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles. Nisso os olhos dos discípulos se abriram, e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles. Então um disse ao outro: «Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?”  (Lucas, XXIV, 13-17, 18-32)
[71]               Através do simbolismo do ouro, devemos ler a aventura dos intelectos que foram dispersos depois da queda pelos diversos mundos e unidos a almas e corpos, e que reencontram na prática das virtudes a pureza que os liberta do império do diabo (“o rei da Babilônia”) e os torna aptos a receber a ciência.
[72]               Esta tripla distinção é retomada em Discípulos, 140: “Pensamento humano é aquele que é impassível, como o que temos pelas crianças; demoníaco, o que é apaixonado; o que nos ensina a captar o sentido espiritual da Escritura é angélico, assim com aquele que, na prática, nos ensina a nos desembaraçarmos dos maus pensamentos e acolher os que são louváveis.”
[73]               Evagro refere-se a uma denominação que provavelmente estava em uso no meio monástico, como ele o faz em Praktiké, 12 a respeito do demônio da acídia, “também chamado de demônio do meio-dia”. A palavra grega planos deve ser tomada não no sentido de “enganador” ou “sedutor”, que ela tem normalmente quando se trata dos demônios na Escritura (p.e. 1 Timóteo IV, 1 e 1 João IV, 6), na Vida de Antônio (94, 2) e no próprio Evagro (Prece, 94), mas no sentido primeiro de “errante”, “vagabundo”. Sobre esta denominação, comparar com Cassiano, Conf. VII, 32 (SC 42, pg. 273-274) que fala de certos demônios quos etiam Planos vulgus apellat, com a mesma referência ao uso comum empregado por Evagro; mas Cassiano chama assim aos demônios que se mantém nos caminhos, riem-se dos passantes e tentam enganá-los. Ele nota entretanto que alguns dentre eles aderem-se, à noite, aos que dormem e dedicam-se a íncubos sobre eles. Também Orígenes trata do demônio “viajante” (rodoiporos, cf. 2 Samuel, XII, 4). Como mostra a seqüência, o demônio é aqui chamado de “vagabundo” porque ele leva o intelecto a vagabundear; sobre a vagabundagem do intelecto, ver Praktiké, 15 Exortação I, 3, KG I, 85 e o capítulo 26 adiante. Isto é fácil para o demônio, na medida em que o intelecto é movido sem esforço.
[74]               Ou seja, na segunda parte da noite, antes de levantar-se para a sinaxe (reunião para a celebração eucarística ou para orações comunitárias) noturna. A análise de Evagro é provavelmente fundamentada em uma experiência comum, a dos sonhos que acompanham o sono chamado de “paradoxal”.
[75]               Terapêutica fundamentada na observação, proveniente da técnica militar.
[76]               “O desejo dos passeios e a procura pelas casas dos outros reviram o estado da alma e destróem seu zelo.” (Evagro, Vierge, 26)
[77]               Literalmente, “estado de morte”.
[78]               Cristo, médico de almas, dispõe de remédios adaptados a cada situação. No caso presente, ele aplica o remédio da solidão moral: ele se retira e deixa que o demônio envie alucinações e pesadelos. Esta forma de solidão moral é analisada em Gnostique, 28 (“quem experimentou o mal odeia-o”), em que são mencionadas cinco causas da solidão moral; ela se acha também em Máximo o Confessor.
[79]               Os demônios não podem agir sem a permissão de Deus, cf. Cartas, 28: “Não é [este mesmo demônio] que pediu a nosso Senhor a tropa de porcos (cf. Mateus, VIII, 31) e que antes pedira a Jó seus bens (cf. , I, 12)? Se ele não tem o poder de se aproximar dos porcos e dos asnos sem a permissão do doador (cf. Jó, I, 30-32) como teria ele poder sobre a imagem de Deus?”
[80]             “Ah! meu Deus, se matasse o injusto! Se os assassinos se apartassem de mim! Eles falam de ti com ironia, e em vão se rebelam contra ti! Não odiaria eu aqueles que te odeiam? Não detestaria eu aqueles que se rebelam contra ti? Eu os odeio com ódio implacável! Eu os tenho por meus inimigos! Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração! Prova-me, e conhece os meus sentimentos! Vê se não ando por um caminho fatal, e conduze-me pelo caminho eterno.” (Salmos, CXXXVIII, 22.)
[81]               Sobre esta “perfeita aversão” em relação aos demônios, veja-se Comentário, 12 ao Salmo CXXXVIII, 22: “Se aquele que odeia perfeitamente o Maligno abstém-se de todo o mal, aquele que de alguma forma participa de sua malícia não odeia perfeitamente o Maligno”; o Comentário quater ao Salmo IX, 26, evoca do mesmo modo estas duas formas de repulsa, a imperfeita e a perfeita. A repulsa perfeita em relação ao demônio é o sinal da impassibilidade mais elevada, no mesmo nível do amor a Deus. No capítulo 35, Evagro distingue entre duas formas de impassibilidade: uma imperfeita, que impede os pecados em ato e uma outra perfeita que “circuncida o espírito dos pensamentos apaixonados”.
[82]               Trata-se da insensibilidade espiritual, que não distingue mais o bem do mal e causa incredulidade em relação às verdades da fé. Existe uma incompatibilidade entre a sensibilidade em relação às realidades espirituais e a vanglória, cf. Praktiké, 32.
[83]               , XLI, 21 [N.T.: referência não encontrada]
[84]             “O publicano, porém, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!” (Lucas, XVIII, 13)
[85]               “Passaram por Anfípolis e Apolônia e chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo dirigiu-se a eles, segundo o seu costume, e por três sábados disputou com eles. Explicava e demonstrava, à base das Escrituras, que era necessário que Cristo padecesse e ressurgisse dos mortos.” (Atos, XVII, 2)
[86]               “Se aqueles dias não fossem abreviados, criatura alguma escaparia; mas por causa dos escolhidos, aqueles dias serão abreviados.” (Mateus, XXIV, 22)
[87]             “Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.  colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar’. Então os justos lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?’ Então o Rei lhes responderá: ‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram.’ Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar’. Também estes responderão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?’ Então o Rei responderá a esses: ‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram’. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mateus, XXV, 36).
                O exercício da caridade remedia esta insensibilidade tornando-nos sensíveis à miséria dos outros. Comparar KG IV, 85: “Os demônios tomam de assalto a alma quando as paixões se multiplicam e eles tornam o homem insensível extinguindo o poder dos seus órgãos dos sentidos, de medo que, desde que ele encontre um dos objetos próximos, este faça o intelecto subir como de um poço raso.”
[88]             O demônio da acídia faz de tudo para que “o monge abandone sua cela e fuja do campo” (Praktiké, 12)
[89]               A perseverança é a virtude que permite resistir à acídia e manter-se na cela.
[90]               Cf. Skemmata, 51: “Todo pensamento é seguido de prazer, salvo os pensamentos de tristeza” e 61: “Dentre os pensamentos, os de tristeza são os únicos que destróem todos os demais”. Ver também Discípulos, 69: “Somente o pensamento da tristeza não comporta prazer.”
[91]               “Coração alegre, bom remédio; um espírito abatido seca os ossos.” (Provérbios, XVII, 22)
[92]             “Mas poderá aquele que cai não estender a mão, poderá não pedir socorro aquele que perece?” (, XXX, 24)
[93]               Evagro distingue dois graus de tristeza. Somente a tristeza moderada pode ser positiva e fortalecer o monge. Excessiva, a tristeza engendra a tentação do suicídio
[94]               “Ouve-se dizer constantemente que se comete, em vosso meio, a luxúria, e uma luxúria tão grave que não se costuma encontrar nem mesmo entre os pagãos: há entre vós quem vive com a mulher de seu pai!... E continuais cheios de orgulho, em vez de manifestardes tristeza, para que seja tirado dentre vós o que cometeu tal ação! Pois eu, em verdade, ainda que distante corporalmente, mas presente em espírito, já julguei, como se estivesse presente, aquele que assim se comportou. Em nome do Senhor Jesus -, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de nosso Senhor Jesus -, seja esse homem entregue a Satanás, para mortificação do seu corpo, a fim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor Jesus.  “ (I Coríntios, V, 3-5)
[95]               “Se alguém causou tristeza, não me contristou a mim, mas de certo modo - para não exagerar - a todos vós. Basta a esse homem o castigo que a maioria dentre vós lhe infligiu. Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba por demasiada tristeza. Peço-vos que tenhais caridade para com ele. Quando vos escrevi, a minha intenção era submeter-vos à prova para ver se éreis totalmente obedientes.”  (II Coríntios, II, 5-9)
[96]               Mateus, III, 7-9.
[97]             Abraão é o protótipo do monge que “deixou sua terra e seus pais” (Genesis XII, 1) para ganhar o deserto.
[98]               “O Senhor é bom e reto, por isso reconduz os extraviados ao caminho reto. Dirige os humildes na justiça, e lhes ensina a sua via.” (Salmos, XXIV, 8-9)
[99]                “Ora, Moisés era um homem muito paciente, o mais paciente da terra.” (Números, XII, 3)
[100]              Moisés é apresentado como exemplo de mansidão nas Cartas 27, 36, 41 e 56: “Diga-me porque a Escritura, quando quer louvar Moisés, deixa de lado todos os milagres que ele fez, e lembra apenas sua mansidão?”
[101]              “Cântico das peregrinações. Senhor, lembrai-vos de Davi e de sua grande piedade...” (Salmos, CXXXI, 1)
[102]              Cf. Cartas, 56: “Foi lembrando-se desta virtude que Davi invocou a Deus: “Lembre-se, Senhor, de Davi e de toda sua doçura” não [lembrando-se] de que seus joelhos fraquejaram por causa do jejum e que sua carne estava enferma por falta de azeite (cf. Salmo CVIII, 24), nem porque velando ele se tornara como um pardal solitário sobre o telhado (Salmo CI, 8); mas ele disse: Lembre-se, Senhor, de Davi e de toda a sua doçura”.
[103]              Mateus, XI, 29. Cf. Cartas, 56 “Imitemos portanto esta doçura, a fim de que aquele que disse: ‘Aprendam comigo que sou doce e humilde de coração’ nos ensine seus caminhos e nos salve”.
[104]              “Lembre a eles que devem ser submissos aos magistrados e autoridades, que devem obedecer e estar prontos para toda boa obra; não devem difamar a ninguém, nem andar brigando, mas sejam pacíficos e atenciosos no trato com todos.
                Também nós, antigamente, éramos insensatos, desobedientes, extraviados, escravos de todo tipo de paixões e prazeres, vivendo na perversidade e na inveja, dignos de ódio e odiando-nos uns aos outros. Mas a bondade e o amor de Deus, nosso Salvador, se manifestaram. Ele nos salvou, não por causa dos atos justos que tivéssemos praticado, mas porque fomos lavados por sua misericórdia através do poder regenerador e renovador do Espírito Santo. Deus derramou abundantemente o Espírito sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, para que, justificados por sua graça, nós nos tornássemos herdeiros da esperança da vida eterna.” (Tito, III, 1-7)
[105]              O capítulo 4 da Skemmata classifica os pensamentos segundo sua maior ou menor abundância de matéria: “Dentre os pensamentos, alguns são sem matéria, outros têm pouca matéria, outros ainda muita matéria: sem matéria, aqueles que provêm do primeiro orgulho, pouca matéria, os que provêm da fornicação, muita matéria, aqueles que provêm da vanglória”. Cf. Skemmata, 47: “Dentre os pensamentos, alguns tiram sua matéria do exterior, como os da fornicação do corpo.” Ver também Discípulos, 33 (“o orgulho não possui matéria”), 69 (“o pensamento de orgulho é sem matéria”), 161 (“a irascibilidade tem muita matéria”). A vanglória é comparada em Cartas, 51 a um cardo que pica de todos os lados: “Tudo lhe serve, cilício ou vestimentas de seda, palavra ou silêncio, saciedade ou privação, retiro ou encontro”.
[106]              Cf. Skemmata, 57: “Os pensamentos de vanglória e de orgulho são os únicos a sobreviver após a derrota de todos os outros pensamentos.” A vanglória importuna sobretudo os virtuosos.
[107]              “Quando o espírito impuro sai de um homem, ei-lo errante por lugares áridos à procura de um repouso que não acha. Diz ele, então: Voltarei para a casa donde saí. E, voltando, encontra-a vazia, limpa e enfeitada. Vai, então, buscar sete outros espíritos piores que ele, e entram nessa casa e se estabelecem aí; e o último estado daquele homem torna-se pior que o primeiro. Tal será a sorte desta geração perversa.” (Mateus, XII, 45) “Com efeito, se aqueles que renunciaram às corrupções do mundo pelo conhecimento de Jesus Cristo nosso Senhor e Salvador nelas se deixam de novo enredar e vencer, seu último estado torna-se pior do que o primeiro.” (II Pedro, II, 20)
[108]              Sobre a ligação entre a vanglória e o orgulho, ver Praktiké, 13 e Oito pensamentos, 17: “A luz de um relâmpago faz prever o ruído do trovão, e o orgulho é anunciado pela vanglória”.
[109]            “A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: filho do homem, entoa um cântico fúnebre sobre o rei de Tiro, e dize-lhe: Eis o que diz o Senhor Javé: Eras um selo de perfeição, cheio de sabedoria, de uma beleza acabada.” (Ezequiel, XXVIII, 12) 
[110]              Provérbios, IX, 18. [N.T.: referência não encontrada]
[111]              “Afasta dela teu caminho, não te aproximes da porta de sua casa, para que não seja entregue a outros tua fortuna e tua vida a um homem cruel; para que estranhos não se fartem de teus haveres e o fruto de teu trabalho não passe para a casa alheia; para que não gemas no fim, quando forem consumidas tuas carnes e teu corpo e tiveres que dizer: Por que odiei a disciplina, e meu coração desdenhou a correção?” (Provérbios, V, 8-12)
[112]              Sobre a tentação da vanglória à qual estão sujeitos os virtuosos, ver Praktiké, 13: “O pensamento da vanglória é um pensamento muito sutil que se dissimula facilmente entre os virtuosos, desejando publicar suas lutas e perseguindo as glórias que vêm dos homens.”
[113]              A vanglória atira o monge ao demônio da fornicação, cf. Praktiké, 13. A queda do monge que abandona sua cela para ir às casas de tolerância da cidade (as porcarias) tem um valor no mínimo pedagógico. Tudo isto lembra a história do monge Heron contada por Paládio: foi também por um desígnio providencial que Heron foi a Alexandria e aí freqüentou os prostíbulos. Existe aí talvez uma reminiscência do episódio da Odisséia em que a feiticeira Circe transforma em porcos os companheiros de Ulisses e os tranca no chiqueiro.
[114]              A impassibilidade é definida como a saúde da alma, sendo a paixão uma doença.
[115]              Primeira etapa da vida espiritual, a prática. Uma vez que “o movimento é causa de malícia”, a prática permite encontrar um estado excelente, estável e durável que não é outra coisa do que a virtude da impassibilidade.
[116]              Segunda etapa, a contemplação natural: colocada sob o signo da multiplicidade, esta é freqüentemente classificada como polipoikilos.
[117]              Última etapa, a ciência de Deus. O termo epopteuein é emprestado do vocabulário dos mistérios. Passa-se do modo catártico (pequenos mistérios) ao modo epóptico (iniciação aos grandes mistérios). Orígenes designa pelo termo epóptico a última etapa do progresso espiritual, que é habitualmente chamada de teologia. O final do capítulo é repetido em Discípulos, 78: “Progredindo na prática, o intelecto possui representações de objetos sensíveis que se fazem leves; progredindo na ciência, ele receberá objetos de contemplação variados; progredindo na oração, ele verá sua própria luz tornar-se mais brilhante e radiante.”
[118]              Evagro é reticente ao expor por escrito certas experiências, tentações sexuais ou blasfêmias, que os gnósticos conhecem, mas cujo relato poderia escandalizar os que são menos avançados. Ver também Ant. II, 65: “Contra o pensamento que me ameaça e me diz: Você vai suportar males indizíveis por causa dos demônios, males que eu não quero descreve em um livro, a fim de não abater o zelo dos que lutam, não  lançar confusão entre os que se retiraram do mundo, e também para não escandalizar os homens desprevenidos que estão no mundo, pois verdadeiramente eu vi muitas coisas impossíveis de descrever, operadas pelos demônios, que poucos homens poderiam contar...”
[119]              Compare-se com as aparições reportadas na vida de Santo Antônio.
[120]              “Esses fazem escândalos nos vossos ágapes. Banqueteiam-se convosco despudoradamente e se saciam a si mesmos. São nuvens sem água, que os ventos levam! Árvores de fim de outono, sem fruto, duas vezes mortas, desarraigadas!” (Judas, I, 12)
[121]              Os demônios podem agir diretamente sobre o corpo tocando-o. O verbo usado por Evagro refere-se à ação de forçar com uma alavanca.
[122]              Sobre o bom uso da parte irascível, ver Praktiké, 24. Sobre a definição de cólera, id., 11.
[123]            Salmo IV, 5. Em outra parte, Evagro explicita assim o sentido do versículo: “Ele exorta a que não demos nosso assentimento à representação e a não passar à ação fazendo prevalecer a cólera.”
[124]               “Diga a ele: Tenha cuidado, mas fique calmo! Não tenha medo nem vacile o seu coração por causa desses dois tições fumegantes, isto é, por causa da raiva de Rason de Aram e do filho de Romelias” (Is., VII, 4)
[125]            “Eu garanto a vocês: aquele que não entra pela porta no curral das ovelhas, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Mas aquele que entra pela porta, é o pastor das ovelhas. O porteiro abre a porta para ele, e as ovelhas ouvem a sua voz; ele chama cada uma de suas ovelhas pelo nome e as conduz para fora. Depois de fazer sair todas as suas ovelhas, ele caminha na frente delas; e as ovelhas o seguem porque conhecem a sua voz. Elas nunca vão seguir um estranho; ao contrário, vão fugir dele, porque elas não conhecem a voz dos estranhos.» Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o que Jesus queria dizer. Jesus continuou dizendo: «Eu garanto a vocês: eu sou a porta das ovelhas. Todos os que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os ouviram. Eu sou a porta. Quem entra por mim, será salvo. Entrará, e sairá, e encontrará pastagem. O ladrão só vem para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor a quem pertencem, e as ovelhas não são suas, quando vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e sai correndo. Então o lobo ataca e dispersa as ovelhas. O mercenário foge porque trabalha só por dinheiro, e não se importa com as ovelhas.  Eu sou o bom pastor: conheço minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou a vida pelas ovelhas. Tenho também outras ovelhas que não são deste curral. Também a elas eu devo conduzir; elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor. O Pai me ama, porque eu dou a minha vida para retomá-la de novo. Ninguém tira a minha vida; eu a dou livremente. Tenho poder de dar a vida e tenho poder de retomá-la. Esse é o mandamento que recebi do meu Pai.” (João X, 1-18.)
[126]            “Que proveito o trabalhador tira de sua fadiga? Observei a tarefa que Deus entregou aos homens, para com ela se ocuparem: tudo o que ele fez é apropriado para cada tempo. Também colocou o senso da eternidade no coração do homem, mas sem que o homem possa compreender a obra que Deus realiza do começo até o fim. Então compreendi que não existe para o homem nada melhor do que se alegrar e agir bem durante a vida.” (Eclesiastes., III, 9-12).
[127]            O thymos e a epithymia atuam como auxiliares do intelecto quando exercem sua função natural (cf. Pr., 24 e 86; K.G., IV, 73; Disc. 96): “A irascibilidade nos foi dada para que nos levantemos em cólera contra os demônios, e a concupiscência para que amemos a virtude e a verdade...” Este thymos que coloca em fuga as representações que são os lobos nos conduz À comparação deste com um cão de guarda (cap. 5 e 13).
[128]            Salmo XXIII, 2.
[129]            Salmo LVI, 9; CVII, 3.
[130]            Salmo XXII, 4. Nas Scholias aos Salmos aparece a interpretação simbólica da maior parte dos elementos mencionados aqui: as pastagens e a água (schol 1 ad Ps. 22, 1-2); a harpa e a cítara (scholias 5 ad Ps. 56, 9 e ad Ps. 107, 3; tb. K.G. VI, 46 e 48); o bastão e o cajado (schol. 3 ad Ps. 22, 4).
[131]            Provérbios. XXVII, 25. Cf. Schol. 341 ad Prov. 27, 25: As “forrações das montanhas” são “as ciências das santas potências que convêm ao estado irracional (i.e. animal) das almas, pois as Escrituras costumam chamar de 'montanhas' aos santos.”
[132]            1 Coríntios, IX, 7.
[133]            “Jacó ficou furioso e começou a discutir com Labão: «Que crime cometi e qual é a minha falta para você me perseguir? Você revirou todas as minhas coisas: encontrou, por acaso, alguma coisa sua? Coloque-a aqui, diante de minha gente e sua gente, e que eles julguem entre nós dois. Veja bem! Estou há vinte anos com você, suas ovelhas e cabras não abortaram e eu não comi os cordeiros do seu rebanho.  Não lhe apresentei os animais despedaçados, mas eu os compensava com os meus. Você me pedia contas do que era roubado de dia e de noite. De dia, eu era devorado pelo calor, e de noite pelo frio, e não conseguia pegar no sono. Já estou há vinte anos em sua casa: servi a você catorze anos por suas duas filhas, seis anos por seu rebanho, e dez vezes você mudou o meu salário. Se o Deus do meu pai, o Deus de Abraão, o Terrível Deus de Isaac, não estivesse comigo, você me teria mandado embora de mãos vazias. Mas Deus viu minha aflição e minha fadiga, e na noite passada me fez justiça.” (Gênesis, XXXI, 36-42)
[134]            Lucas., X, 30.
[135]            “Davi disse a Saul: «Ninguém deve ficar desanimado. Este seu servo irá lutar com o tal filisteu!» Saul respondeu a Davi: «Você não pode lutar com o filisteu! Você é apenas um rapaz! Ele é guerreiro desde a juventude!» Davi replicou: «Seu servo é pastor das ovelhas de meu pai. Se chega um leão ou urso e agarra uma ovelha do rebanho, eu vou atrás, o ataco e arranco a ovelha de sua goela; se ele me ataca, eu o agarro pela juba e o mato a pauladas. Seu servo é capaz de matar leões e ursos. Pois bem: esse filisteu incircunciso, que desafiou o exército do Deus vivo, será como um deles». E Davi acrescentou: «Javé me livrou das garras do leão e do urso. Ele me livrará também das mãos desse filisteu». Então Saul lhe disse: «Vá. E que Javé esteja com você!» Saul vestiu Davi com sua própria armadura, colocou-lhe na cabeça um capacete de bronze, revestiu-o com a sua couraça, e pôs a espada na cintura dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou andar, pois nunca tinha usado nada disso. Então falou a Saul: «Não consigo nem andar com essas coisas. Não estou acostumado». Tirou tudo, pegou o cajado, escolheu cinco pedras bem lisas no riacho e as colocou no seu bornal. Depois pegou a funda e foi ao encontro do filisteu.” (1 Samuel., XVII, 32-40)
[136]            Note-se que Evagro utiliza aqui quatro verbos relativos ao pastoreio.
[137]            Ou seja, nos sonhos: para Evagro, as fantasiai designam normalmente as imagens dos sonhos.
[138]            Gênesis., XXXI, 39-40.
[139]            Evagro não é adepto da ascese forçada e desumana. Ele sabe que devemos nos servir de pausas na luta contra os demônios. O reconforto e o prazer da ciência vêm depois das fadigas e das penas da prática (Pr., 90); mas o conselho de Evagro só se refere àqueles que já experimentaram a ciência.
[140]            A harpa (saltério) que é o instrumento tradicional dos pastores, desde Davi, já foi evocada mais acima. As cordas são vibradas com o auxílio de uma palheta.
[141]            Moisés estava pastoreando o rebanho do seu sogro Jetro, sacerdote de Madiã. Levou as ovelhas além do deserto e chegou ao Horeb, a montanha de Deus. O anjo de Javé apareceu a Moisés numa chama de fogo do meio de uma sarça. Moisés prestou atenção: a sarça ardia no fogo, mas não se consumia. Então Moisés pensou: «Vou chegar mais perto e ver essa coisa estranha: por que será que a sarça não se consome?» Javé viu Moisés que se aproximava para olhar. E do meio da sarça Deus o chamou: «Moisés, Moisés!» Ele respondeu: «Aqui estou». Deus disse: «Não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, porque o lugar onde você está pisando é um lugar sagrado». E continuou: «Eu sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó». Então Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus.” (Êxodo. III, 1-6)
[142]            “Javé disse a Moisés e Aarão: «Se o Faraó pedir que vocês façam algum prodígio, você dirá a Aarão que pegue a vara de você e a jogue diante do Faraó; e ela se transformará em cobra.” (Êxodo, VII, 9); “Javé disse a Moisés: «O Faraó não fará caso de vocês. Assim os meus prodígios se multiplicarão no Egito». Moisés e Aarão fizeram todos esses prodígios diante do Faraó. Javé, porém, endureceu o coração do Faraó. E este não deixou que os filhos de Israel partissem do seu país.” (Êxodo, XI, 9-10. As alusões escriturárias precedentes nos levam aos pastores Davi e Jacó. Agora é de Moisés que se trata, Moisés que apascenta os rebanhos de seu sogro Jetro aos pés do Sinai (sobre o lugar que ocupa o Sinai na mística de Evagro, ver cap. 39). Na interpretação simbólica subjacente, Evagro estabelece uma relação de causalidade entre a vigilância paciente de Moisés e as revelações com que ele será gratificado por parte de Deus. Quanto ao final, cf. Schol 14 ad Ps., 104, 26-17: “Moisés e Aarão eram os únicos da conhecer as razões dos “sinais e dos prodígios”.
[143]              Cf. Skemmata, 40: “Dentre os pensamentos, alguns nos chegam enquanto animais, outros enquanto homens. Enquanto animais são todos os que provêm da concupiscência e da irascibilidade; enquanto homens, todos os que provêm da tristeza, da vanglória e do orgulho; os da acídia são mistos, chegam-nos tanto enquanto animais como enquanto humanos.
[144]              Salmo LXXXI, 6-7.
[145]              Salmo XXXI, 9.
[146]            “Recebi a seguinte mensagem de Javé:  «Que sentido tem para vocês este ditado que se repete na terra de Israel: ‘Os pais comeram uva verde, e a boca dos filhos ficou amarrada’? Juro por minha vida - oráculo do Senhor Javé - que vocês não vão repetir mais esse ditado em Israel. Todas as vidas são minhas, tanto a vida do pai como a vida do filho. O indivíduo que pecar, esse é que deverá morrer. Se o indivíduo é justo e pratica o direito e a justiça; se não come nos montes, adorando os ídolos imundos da casa de Israel; se não desonra a mulher do seu próximo, nem procura mulher menstruada; se é um indivíduo que não explora ninguém, mas devolve o penhor de uma dívida; que não rouba de ninguém, mas dá o seu pão a quem tem fome e veste quem não tem roupa; que não empresta com usura, nem cobra juros; que evita praticar a injustiça e procura fazer um julgamento justo entre as pessoas; o indivíduo que age de acordo com os meus estatutos, que guarda as minhas normas, praticando corretamente a verdade, esse indivíduo é justo, e certamente permanecerá vivo - oráculo do Senhor Javé.” (Ezequiel, XVIII, 1-9)  “Mas vocês ainda perguntam: ‘Por que é que o filho não levará o castigo pelo pecado do seu pai?’ Ora, o filho praticou o direito e a justiça, guardou os meus estatutos e os colocou em prática. Por isso, ele permanecerá vivo. O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O filho nunca será responsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho. O justo receberá a justiça que merece e o injusto pagará por sua injustiça.” (Ezequiel, XVIII, 19-20)
[147]            “Vendo grandes multidões ao seu redor, Jesus mandou passar para a outra margem. Então um doutor da Lei se aproximou e disse: ‘Mestre, eu te seguirei aonde quer que fores.’ Mas Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’. Outro, que era discípulo, disse a Jesus: ‘Senhor, deixa primeiro que eu vá sepultar meu pai’. Mas Jesus lhe respondeu: ‘Siga-me, e deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos’.” (Mateus, VIII, 22)
[148]              Através do simbolismo dos homens, dos corvos e dos abutres Evagro deixa entender os vários castigos que aguardam o pecador após a morte. Cf. o simbolismo dos corvos e das águias em schol. 294 ad Prov., XXX, 17 e 3 ad Ps. CXLVI, 9, bem como nas sentenças 16 e 18 do Comentário dos Provérbios numéricos (SC 340, pg. 489).
[149]              Salmo CXLVI, 9.
[150]            “Será pela sabedoria que você tem, que o falcão levanta vôo, estendendo as asas para o sul? Por acaso é com sua ordem que a águia levanta vôo e constrói seu ninho nas alturas? Ela mora nos rochedos, e aí pernoita numa fortaleza de rocha inatingível. Do alto ela espia a sua presa; seus olhos a enxergam de longe. Seus filhotes bebem o sangue, e onde há cadáveres ela aí está.” ( , XXXIX, 30)
[151]              Mateus, XI, 15; XIII, 9.
[152]            “Os injustos desembainham a espada e retesam o arco para matar o pobre e o indigente, para assassinar o homem reto; mas a espada lhes atravessará o coração, e seus arcos se quebrarão.” (Salmo XXXVI, 15)
[153]              Este capítulo propõe dois meios de lutar contra os demônios: o primeiro é a análise, cf. díele e diaíresis. Compare-se com os métodos preconizados por Marco Aurélio, Pensamentos XI, 2, para chegar a desprezar as coisas que podem produzir um certo prazer:  “Se  se trata de uma ária melodiosa, basta que a decomponhamos em suas notas e, para cada uma delas, verificar se é impossível resistir a ela; você não ousaria reconhecê-lo. Para a dança, utilizemos um método análogo para cada movimento ou figura, e a mesma coisa para o pancrácio. Resumidamente, salvo para a virtude e tudo o que se liga a ela, não nos esqueçamos de penetrar no fundo das coisas a fim de, por meio desta análise, as desdenharmos” (Trad. A . I. Trannoy, Les Belles Lettres, pg. 123-124).
[154]              Cf. Discípulos, CXVIII: “Se as representações dos objetos são um mal, quem dispõe o intelecto deste modo é responsável (aítios); se os objetos fossem um mal, seria seu próprio criador o responsável. Mas evidentemente nem as representações nem os objetos são males. O mal é o movimento do livre arbítrio para o pior.” Tb. Discípulos, CLXV: “O mal não é nem o intelecto, nem o objeto, nem a representação do objeto, mas a paixão ligada à representação. Sou eu o responsável por sua existência, porque sou eu também o responsável pela sua desaparição.”
[155]              Noção estóica do bom e do mau uso, freqüentemente usada por Evagro: K.G. III, 59; Pr. 88; Sk. 15; Ep. 54 e 54; schol. 337 ad Prov. XXVII, 13; 1 ad Ps., XV, 2; 16 ad Eccl. III, 10-13; Disc. 36,96,99 e 129.
[156]            Sobre a circuncisão espiritual, ver adiante cap. 35 e K.G. IV, 12: “A circuncisão inteligível é a rejeição voluntária das paixões, feita em vista da ciência de Deus.”
[157]            “Enquanto o filisteu se aprumava e se aproximava de Davi pouco a pouco, Davi correu depressa para se posicionar e enfrentar o filisteu. Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu. A pedra afundou na testa do filisteu, que caiu de bruços no chão. Assim Davi foi mais forte que o filisteu, apenas com uma funda e uma pedra: sem espada na mão, feriu e matou o filisteu. Davi correu, parou diante do filisteu, pegou a espada dele, a desembainhou e com ela acabou de matá-lo, cortando-lhe a cabeça.” (1 Samuel XVII, 48-51)
[158]              O primeiro método consiste em combater o demônio utilizando suas próprias armas, ou seja os maus pensamentos, como Davi cortou a cabeça de Golias com a própria espada deste. O segundo método consiste em combater o demônio com bons pensamentos provenientes da contemplação natural.
[159]              Esta frase acha-se literalmente em K.G. III, 78 e em Cartas, 57. Por ocupar um mundo intermediário, o homem não tem a possibilidade de entrever os mundos angélico e demoníaco, nem a faculdade de intervir sobre o estado espiritual dos seres que os habitam.
[160]              “Como é que você caiu do céu, estrela da manhã, filho da aurora? Como é que você foi jogado por terra, agressor das nações?” (Isaías XIV, 12)
[161]            “Veja! Diante dele, toda segurança é apenas ilusão, pois basta alguém vê-lo para ficar com medo. Ninguém é tão corajoso para provocá-lo. Quem poderia enfrentá-lo cara a cara? Quem jamais se atreveu a desafiá-lo, e saiu ileso? Ninguém debaixo de todo o céu. Não deixarei de descrever os membros dele, nem sua força incomparável. Quem abriu sua couraça e penetrou por sua dupla armadura? Quem abriu as duas portas de sua boca, rodeadas de dentes terríveis? Suas costas são fileiras de escudos, ligados com lacre de pedra; são tão unidos uns com os outros, que nem ar passa entre eles; cada um é tão ligado com o outro, que ficam travados e não se podem separar. Seus espirros lançam faíscas, e seus olhos são como a cor rosa da aurora. De sua boca irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo. De suas narinas jorra fumaça, como de caldeira acesa e fervente. Seu bafo queima como brasa, e sua boca lança chamas. Em seu pescoço reside a força, e diante dele dança o terror. Os músculos do seu corpo são compactos, são sólidos e imóveis. Seu coração é duro como rocha e sólido como pedra de moinho. Quando ele se ergue, os heróis tremem e fogem apavorados. A espada que o atinge não penetra, nem a lança, nem o dardo, nem o arpão. Para ele o ferro é como palha, e o bronze como madeira podre. A flecha não o afugenta, e as pedras da funda se transformam em palha para ele. A maça é para ele como estopa, e ele zomba dos dardos que assobiam. Seu ventre, coberto de escamas pontudas, é uma grade de ferro que se arrasta sobre o lodo. Ele faz ferver o fundo do mar como caldeira, e a água fumegar como vasilha quente cheia de ungüentos. Atrás de si deixa uma esteira brilhante, e a água parece cabeleira branca. Na terra ninguém se iguala a ele, pois foi criado para não ter medo. Ele se confronta com os seres mais altivos, e é o rei das feras soberbas.” ( XLI, 1-26)
[162]              Contemplação referente à queda de Satanás identificado com o anjo portador  da luz e ao Leviatã de Jó.
[163]            A mesma idéia é expressa em Pr. 83: “O intelecto, enquanto guerreia contra as paixões, não contemplará as razões da guerra, pios parece-se com alguém que luta à noite; mas quando tiver adquirido a impassibilidade, ele reconhecerá facilmente as manobras do inimigo.”
[164]            Cf. Pr. 53: “aqueles que percebem numa certa medida a contemplação dos seres.”
[165]            O verbo katepadein costuma ser empregado a propósito de Davi cujos salmos encantaram Saul (1 Samuel XVI, 14-23). Quanto a este emprego, ver Pr. 27 e Gregório de Nazianze, Discurso 9 (SC 405, pg. 304, 20-21). Aqui, Evagro quer dizer apenas que o impuro repete as fórmulas da contemplação natural sem compreender-lhes o significado, como o mágico que ignora o sentido das fórmulas que emprega. Da mesma maneira, os demônios podem dizer a verdade repetindo coisas ouvidas cujo sentido eles não entendem.
[166]            “Os filisteus reuniram suas tropas para a guerra e se concentraram em Soco de Judá, e acamparam em Efes-Domim, entre Soco e Azeca. Saul e os israelitas se reuniram e acamparam no vale do Terebinto, e se puseram em ordem de batalha contra os filisteus. Os filisteus se colocaram na encosta da montanha, enquanto os israelitas ficaram na encosta de outra montanha, de modo que havia entre eles um vale. Saiu então do exército filisteu um guerreiro enorme chamado Golias, de Gat, com quase três metros de altura.” (1 Samuel XVII, 1-4).
[167]              Como no capítulo anterior, notar o caráter intelectual da ascese. Trata-se do critério de impassibilidade: o monge deve saber aonde se encontra em relação à impassibilidade.
[168]              Sobre as matérias constitutivas dos pensamentos, ver cap. 14; sobre a falta de objetos, cap. 36.
[169]              Constantinopla, onde o monge pensa que irá ser feito bispo.
[170]              Remete ao que foi dito no início do capítulo: “devido à raridade do objeto, pelo fato de ser difícil encontrar a matéria necessária”. Nesta tentação, o pensamento da vanglória não consegue perseverar, dado o inverossímil da situação.
[171]            Aqui é ainda a tentação do episcopado; em outros casos é a prelazia que é invocada: cap. 21 e 28; Pr., 13; Ant., VII, 3, 8, 26, 40.
[172]            Então Moisés subiu das estepes de Moab ao monte Nebo, ao pico do Fasga, que fica na frente de Jericó. E Javé lhe mostrou toda a terra: desde Galaad até Dã, todo o Neftali, a terra de Efraim e Manassés, toda a terra de Judá até o mar Mediterrâneo, o Negueb, o distrito da planície de Jericó, cidade das palmeiras, até Segor. E Javé falou a Moisés: “Essa é a terra que prometi a Abraão, Isaac e Jacó, quando eu disse: ‘Eu a darei à sua descendência’. Eu estou lhe mostrando essa terra, mas você não atravessará até ela”. (Deuteronômio, XXXIV, 3-5)
[173]              Cf. Antirrhétikos: “Se tivermos fé em Cristo e guardarmos os mandamentos, atravessaremos o Jordão e chegaremos à cidade das palmeiras”, ou seja Jericó; a expressão provém da exegese que faz Evagro, seguindo Orígenes, do relato bíblico que vai da saída do Egito à conquista do país de Canaã, relato que simboliza as diferentes etapas da vida espiritual; comparar com K.G. VI, 49, onde o deserto, especificamente, designa a prática. Os “estrangeiros”, literalmente “alófilos”, nome pelo qual a Septuaginta designa os Filistinos (cf. K.G. V, 30 e 68), representam os demônios.
[174]              O monge vê-se investido na função de “xenódoco”, ou seja, encarregado perante o bispo da administração do hospital da cidade e de prover as necessidades de todos os que precisam; Paládio (H.L. 1) descreve a atividade de Isidoro que preencheu este cargo junto a Teófilo, bispo de Alexandria; este funcionário recebia as doações feitas pelos ricos e podia assim dispor de muito dinheiro. Comparar com Cartas, 16: o demônio da avareza leva o monge a freqüentar os ricos, a pedir-lhes dinheiro para os pobres que solicitam. Comparar com Bases, 4: “Vigie para não possuir dinheiro para distribuir aos pobres, pois este é mais um ardil do Maligno, que conduz à vanglória e lança o intelecto naquilo que causa agitação.”
[175]              Sobre a visita aos que estão na prisão, ver cap. 11, lembrando o preceito evangélico.
[176]              O demônio da vanglória pode introduzir os mesmos pensamentos que a avareza, conforme Ant. VII, 10: “Contra os pensamentos de vanglória que obnubilam o espírito com pensamentos de toda espécie, seja fazendo-o administrador dos bens de Deus, seja estabelecendo-o como intendente sobre seus irmãos.” Sobre a ligação entre a avareza e a vanglória, ver também Ant., III, 32: “Contra o pensamento da avareza que pede à riqueza o conforto e a glória.”
[177]              O demônio da vanglória entrega o monge ao demônio do orgulho; ver cap. 14.
[178]              Sobre as visões aterradoras devidas ao demônio do orgulho, comparar com Monges, 62: “Não entregue seu coração ao orgulho (...) pois então os inimigos no ar o aterrorizarão e noites terríveis se apresentarão a você”; também em Oito pensamentos, 17: “Não entregue sua alma ao orgulho se não quiser ver imagens aterradoras.”
[179]              Ver passagem paralela em Praktikos, 14.
[180]              1 Timóteo, VI, 7-8.
[181]            Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por causa dessa ânsia de dinheiro, alguns se afastaram da fé e afligem a si mesmos com muitos tormentos.” (1 Timóteo, VI, 10)
[182]            “Aqueles, porém, que querem tornar-se ricos, caem na armadilha da tentação e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que fazem os homens afundarem na ruína e perdição.” (1 Timóteo, VI, 9)
[183]              Texto paralelo em Cartas, 39; ver também schol. 2 ad Ps. CXLV, 7: “Os objetos retêm o intelecto por meio de pensamentos apaixonados, assim como a água [retém] o sedento pela sede, e o pão [retém] o faminto pela fome.”
[184]              “Quanto a mim, meu sangue está para ser derramado em libação, e chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele Dia; e não somente para mim, mas para todos os que tiverem esperado com amor a sua manifestação.” (2 Timóteo, IV, 8)
[185]              “O Reino do Céu é como um rei que preparou a festa de casamento do seu filho. E mandou seus empregados chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram ir. O rei mandou outros empregados, dizendo: ‘Falem aos convidados que eu já preparei o banquete, os bois e animais gordos já foram abatidos, e tudo está pronto. Que venham para a festa’. Mas os convidados não deram a menor atenção; um foi para o seu campo, outro foi fazer os seus negócios, e outros agarraram os empregados, bateram neles, e os mataram. Indignado, o rei mandou suas tropas, que mataram aqueles assassinos, e puseram fogo na cidade deles.” (Mateus, XXII, 2-7).
[186]              “Quando o rei entrou para ver os convidados, observou aí alguém que não estava usando o traje de festa. E lhe perguntou: ‘Amigo, como foi que você entrou aqui sem o traje de festa?’ Mas o homem nada respondeu. Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrem os pés e as mãos desse homem, e o joguem fora na escuridão. Aí haverá choro e ranger de dentes’. Porque muitos são chamados, e poucos são escolhidos.” (Mateus, XXII, 11-14).
[187]              Virtudes e impassibilidade são as vestes que permitem tomar parte nas bodas da ciência; cf. schol. 4 ad Ps. 136.
[188]              Cf. Tito, II, 11-14: “A graça de Deus se manifestou para a salvação de todos os homens. Essa graça nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas, para vivermos neste mundo com autodomínio, justiça e piedade, aguardando a bendita esperança, isto é, a manifestação da glória de Jesus Cristo, nosso grande Deus e Salvador.” Comparar com Skemmata, 11: “A educação é a renúncia (‘arnésis) à impiedade e à cobiça do mundo” e 25: “A morada [de Deus] é o intelecto luminoso que renunciou às cobiças do mundo...”
[189]            Tanto no meio monástico das Kellia como em Sceta, os monges podiam levar um modo de vida mais ou menos solitário. Evagro parece pouco favorável a uma grande anacorese porque esta suporia, a seus olhos, uma grande impassibilidade: “A anacorese é doce depois da eliminação das paixões” (Pr., 36), mas antes disto ela é perigosa, pois se torna uma tentação dos demônios que, “quando a parte irascível de nossa alma acha-se profundamente perturbada (...) nos sugerem que a a anacorese é bela, para nos impedir de dar fim ao que causara nossa tristeza” (Pr., 22). Ver também Euloge 5 (1100 D). K.G. VI, 41 e Monges 8: “A anacorese com caridade purifica o coração; a anacorese com ódio o perturba.”
[190]              Evagro emprega aqui e mais adiante a palavra ekstasis, no sentido que ela possui habitualmente em Aristóteles e nos escritos médicos, correspondente ao primeiro dos quatro princípios que Fílon distingue, o “furor delirante que provoca a loucura” (Quis rerum div. 249). Mais precisamente o termo designa o fato de sair de sua katástasis, de seu “estado primeiro” ou de seu “estado de homem”; cf. acima cap. 11. O termo designa uma decadência, como o próprio Evagro define em 39 Sentenças, 9: “O ekstasis é a recaída da alma racional no mal depois da virtude e da ciência de Deus.” (PG 40, 1265B)
[191]            Evagro parece aludir aqui a dois monges mencionados por Paládio (HL 25 e 26) e que ele próprio certamente conheceu: Valens e Heron, ambos vítimas do próprio orgulho. Em HL 47 vemos Evagro, Paládio e Albanius consultar Pafnúcio apelidado Céphalas para “aprender as causas que fazem os irmãos faltar, decair ou naufragar na [prática da] vida virtuosa.”
[192]            Sobre as visões aterradoras, veja-se acima, cap. 21. Compare-se com as visões noturnas provocadas sobretudo pelo demônio da tristeza em Ant. IV, 62 (relâmpagos pelas paredes); também com as visões terrificantes provocadas pelo demônios na Vida de Antônio, 9.
[193]              Os demônios aparecem sob a figura de Etíopes, cf. Ant. IV, 34: “demônios que bruscamente espiam do alto dos ares como Etíopes” (siríaco: Indianos); o termo designa as populações negras dos países situados ao sul do Egito, a começar pelos Núbios. Os monges do Egito figuravam os demônios sob o aspecto de Etíopes, na maior parte das vezes assustadores, às vezes lascivos ou maliciosos. Cf. Vida de Antônio, 6.
[194]            Meteoros; cf Pr., 13: “O pensamento da vanglória (...) faz o monge imaginar demônios gritando, mulheres curadas, uma multidão que toca seu manto; ele prediz mesmo que logo o monge se tornará sacerdote, e faz surgir à sua porta pessoas que vêm buscá-lo; se ele se recusar, levá-lo-ão amarrado. Tendo-o exaltado (meteoros)assim por meio de esperanças vãs, ele se vai e abandona o monge às tentações, seja do demônio do orgulho, seja do da tristeza, que introduz nele outros pensamentos, contrários às suas esperanças.”
[195]            Ou seja, daquele que abraçou tão imprudentemente a vida anacorética.
[196]            Salmo CII, 2-4.
[197]              A idéia que os demônios seguem-se uns aos outros, cada qual entregando a alma ao seguinte, sendo que às vezes existe até incompatibilidade entre eles, foi muitas vezes expressa no Praktikos; quanto à sucessão, capítulos 13, 14 e 50; quanto à incompatibilidade, capítulos 31, 45 e 58.
[198]              Esta afirmação resulta da concepção, de origem estóica, da representação dos objetos comparada à marca feita por um timbre na cera.
[199]              Evagro conhecia o trabalho dos oleiros; o uso do torno é ainda hoje muito comum no Egito. A comparação com o torno do oleiro é um tema literário bastante comum, cf. Jeremias, XVIII, 2-7: “Palavra que Javé dirigiu a Jeremias: «Levante-se e desça até a casa do oleiro; aí eu comunicarei minha palavra a você». Desci até a casa do oleiro e o encontrei fazendo um objeto no torno. O objeto que ele estava fazendo se deformou, mas ele aproveitou o barro e fez outro objeto, conforme lhe pareceu melhor. Então veio a mim a palavra de Javé: Por acaso será que não posso fazer com vocês, ó casa de Israel, da mesma forma como agiu esse oleiro? - oráculo de Javé. Como barro nas mãos do oleiro assim estão vocês em minhas mãos, ó casa de Israel.”
[200]              O método consiste em expulsar um mau pensamento por uma nova representação que pode ser boa ou má. Em Pr. 58, Evagro aconselha a expulsar um mau pensamento por um pensamento de outro demônio, como quem “tapa um buraco com outro”, segundo uma expressão que se tornou proverbial; trata-se no caso de utilizar as incompatibilidades entre os demônios.
[201]              Alusão aos capatazes sob cuja autoridade os hebreus trabalhavam no Egito, cf. Exodo, V, 6: “Nesse mesmo dia, o Faraó deu ordem aos capatazes e inspetores, dizendo: Não dêem ao povo palha para fazer tijolos, como vocês faziam antes. Que eles próprios providenciem a palha. E mais: exijam deles a mesma quantia de tijolos que faziam antes. Não diminuam nada, porque eles são preguiçosos e por isso andam clamando: ‘Vamos sacrificar ao nosso Deus’. Carreguem esses homens com mais trabalho, para que fiquem ocupados e não dêem atenção a palavras mentirosas.”
[202]              A mesma expressão encontra-se em K.G. I, 32, referindo-se à ciência profana: “Os homens que viram algumas coisas daquilo que está nas naturezas”. Trata-se dos logoi, “razões”, que fornecem a explicação daquilo que observamos e que a ciência “exterior” pode descobrir com seus próprios meios, donde vem sua possibilidade de erro (cf. Gnostikos, 4). A verificação daquilo que ela afirma haver descoberto pode ser feita pela experiência comum. Da mesma forma a explicação que Evagro dá dos fatos da vida poderá ser verificada por aqueles que tiveram a experiência e que são capazes de compreendê-la.
[203]              A expressão organikon soma remonta a Aristóteles, Da alma 412b, célebre passagem na qual a alma é definida como entelecheia e proote somatos fisikou organikou.
[204]              Sobre as representações como cópias dos objetos, ver Aristóteles, Da interpretação 16 onde os estados de alma estão presentes como ‘omoiômata dos objetos, à diferença dos sons e das palavras que, por serem próprias a certos grupos humanos, não são imitações da realidade, mas símbolos, ou seja sinais puramente convencionais.
[205]            “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não cometam adultério’. Eu, porém, lhes digo: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração.” (Mateus, V, 27-28)
[206]              Insistência na noção de que temos uma representação parcial de nosso próprio corpo, idéia já expressa mais acima, enquanto que temos uma representação completa dos outros.
[207]            “Então Jesus entrou na barca, e seus discípulos o acompanharam. E eis que houve grande agitação no mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas. Jesus, porém, estava dormindo. Os discípulos se aproximaram e o acordaram, dizendo: «Senhor, salva-nos, porque estamos afundando!» Jesus respondeu: «Por que vocês têm medo, homens de pouca fé?» E, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar, e tudo ficou calmo. Os homens ficaram admirados e disseram: «Quem é esse homem, a quem até o vento e o mar obedecem?” (Mateus, VIII, 23-27). – Sobre a necessidade da calma para a observação dos fenômenos, ver cap. 19 acima e Pr. 23.
[208]              Deuteronômio, XV, 9. [referência não encontrada]
[209]              Cf. o que Paládio diz de Evagro: “Tendo purificado seu intelecto no mais alto grau, ele foi considerado digno do dom da ciência, da sabedoria e do discernimento dos espíritos.”
[210]              “Se alguém de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus - que a todos dá liberalmente, com simplicidade e sem recriminação - e ser-lhe-á dada. Mas peça-a com fé, sem nenhuma vacilação, porque o homem que vacila assemelha-se à onda do mar, levantada pelo vento e agitada de um lado para o outro.” (Tiago, I, 5-6) 
[211]              Condenação da excessiva pretensão, cf. Discípulos 133; por analogia, condenação da presunção de fazer um voto que não será possível cumprir, schol. 36 ad. Eccl. V, 3-4.
[212]              Sobre a divagação do intelecto, ver cap. 9 (o demônio vagabundo).
[213]            “Javé me tratou segundo a minha justiça, e me retribuiu conforme a pureza de minhas mãos, porque observei os caminhos de Javé, e não me rebelei contra o meu Deus.” (Salmo XVII, 21).  Cf. schol. 12 ad Ps. XVII, 21: “A limpeza das mãos e a impassibilidade da alma que resultam da graça de Deus e do zelo do homem.”
[214]            Sobre os sonhos aterradores que provêm da parte irascível, cf. Praktikos, 54: “Quando, por outro lado, eles perturbam a parte irascível, forçando-nos a seguir caminhos escarpados, fazendo surgir homens armados, feras venenosas ou carnívoras, e ficamos então terrificados diante desses caminhos, e, perseguidos pelas feras e pelos homens, fugimos, então cuidemos da parte irascível, e, invocando Cristo em nossas vigílias, busquemos recursos nos remédios já mencionados.”
[215]              Sobre os sonhos lascivos que provêm da parte concupiscente, cf. Praktikos, 54: “Quando, nas imaginações do sono, os demônios, atacando a parte concupiscente, nos fazem ver reuniões de amigos, banquetes de família, coros de mulheres e outros espetáculos do tipo geradores de prazer, e se acolhemos essas imagens distraidamente, é porque nestas partes estamos doentes e a paixão aí é forte.”
[216]            Estes sonhos são a prova de que estas partes da alma estão ainda doentes e não alcançaram a impassibilidade.
[217]            Existe uma real continuidade afetiva entre a vigília e o sonho. Por meio dos sonhos os demônios tanto preparam o terreno para o dia seguinte como terminam o que haviam começado durante o dia anterior. Cf. Praktikos, 21: “Que o sol não se deite sobre a sua irritação, de medo que os demônios, surgindo na noite, aterrorizem a alma e tornem o intelecto menos apto ao combate na manhã seguinte.” e Discípulos, 131: “Você recebe uma imagem, seja a partir de um pensamento da vigília, seja para que [os demônios] tornem o intelecto fácil de submeter no dia seguinte”.
[218]            Cf. Monges, 102: “Pese seu pão na balança e meça a água que você bebe, e o o espírito da fornicação fugirá para longe de você.”
[219]            “Então Jesus foi com eles a um lugar chamado Getsêmani. E disse aos discípulos: ‘Sentem-se aqui, enquanto eu vou até ali para rezar.’ Jesus levou consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, e começou a ficar triste e angustiado. Então disse a eles: ‘Minha alma está numa tristeza de morte. Fiquem aqui e vigiem comigo.’ Jesus foi um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto por terra, e rezou: ‘Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. Contudo, não seja feito como eu quero, e sim como tu queres.’ Voltando para junto dos discípulos, Jesus encontrou-os dormindo. Disse a Pedro: ‘Como assim? Vocês não puderam vigiar nem sequer uma hora comigo? Vigiem e rezem, para não caírem na tentação, porque o espírito está pronto, mas a carne é fraca’.” (Mateus, XXVI, 36-41)
[220]            “Acima de tudo, guarde o seu coração, porque dele brota a vida.” (Provérbios, IV, 23). Esta fórmula foi muito popular nos meios monásticos antigos, tema constante da “guarda do coração”.
[221]            Provérbios, III, 24-28.
[222]            A vanglória é independente das partes irascível e concupiscente da alma.
[223]            Sobre os sonhos provocados pelo demônio da vanglória, cf. Ant. VII, 26: “Contra o demônio da vanglória que, durante os sonhos noturnos, me torna pastor de um pequeno rebanho e que, durante o dia, explica-me o sonho dizendo: ‘Você será prelado e os que vêm buscá-lo logo chegarão’.”
[224]            Trata-se do ofício noturno que o monge recitava na solidão de sua cela até a meia-noite.
[225]            Os sonhos angélicos opõem-se aos sonhos demoníacos, cf. Monges, 52: “Os sonhos angélicos alegram o coração, enquanto que os demoníacos o perturbam”; Oito pensamentos, 10: “O irascível tem sonhos perturbadores (...) [mas] aquele que é paciente tem visões nas quais encontra os santos anjos; aquele que perdoa dedica-se Às razões espirituais e, à noite, recebe a solução dos mistérios.”
[226]            “Por isso, vocês devem alegrar-se, mesmo que agora, se necessário, fiquem tristes por um pouco de tempo, devido às várias provações.  Desse modo, a fé que vocês têm será provada como o ouro que passa pelo fogo. O ouro vai desaparecer, mas a fé que vocês têm, e que vale muito mais, não se perderá, até o dia da revelação de Jesus Cristo. Então, por essa fé, vocês receberão louvor, glória e honra. Vocês nunca viram Jesus e, apesar disso, o amam; não o vêem, mas acreditam. E por isso sentem alegria extraordinária e gloriosa, porque alcançam a meta da fé, que é a salvação de vocês.” (1 Pedro I, 6-9)
[227]            A menção da contemplação natural a partir da prece pura, cume da vida espiritual, é surpreendente, pois marca um retorno a uma situação anterior.
[228]            Este texto evoca a primeira etapa da vida espiritual, etapa prática que leva à impassibilidade.
[229]            “Meu coração se contorce dentro de mim, e sobre mim caem terrores mortais; medo e tremor me invadem, e um calafrio me envolve. Então eu penso: «Quem me dera ter asas de pomba para eu sair voando e pousar... Sim, eu fugiria para longe e pernoitaria no deserto. Encontraria logo um refúgio contra o vento da calúnia, contra o furacão que devora, Senhor, contra a torrente da língua deles.” (Salmo LIV, 5-10)
[230]            Aqui o texto apresenta a etapa propriamente contemplativa cujo termo é a ciência da Trindade. CF. schol. 2 ad Ps. LIV, 7: “A contemplação dos corpos e dos incorpóreos são as asas da santa pomba, graças às quais o intelecto se eleva e repousa na ciência da Santíssima Trindade.” A santa pomba faz referência à pomba que pousou sobre a cabeça de Cristo no momento do seu batismo: “Depois de ser batizado, Jesus logo saiu da água. Então o céu se abriu, e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e pousando sobre ele. E do céu veio uma voz, dizendo: «Este é o meu Filho amado, que muito me agrada..” (Mateus, III, 16-17); para Evagro, ela representa, seja o Verbo (Skemmata, 5), seja o Espírito Santo (schol 1 ad Ps. LVI, 2). Encontramos aqui o tema platônico das asas da alma (Fedro, 246-249), muito popular na literatura cristã antiga.
[231]            O desenvolvimento do tema do segundo tipo de pensamentos  impuros lembra a conversa entre Pafnúcio Céphalas, Evagro, Albanius e Paládio (H.L. 47), na qual se distingue a intenção da modalidade da ação: “...de fato, a intenção peca, quando surge por um mau objetivo; mas também peca a ação, quando é feita de modo perverso e não como se deve. Tb. Discípulos, 81: “É preciso, em primeiro lugar, conceber o bem, em segundo fazê-lo, em terceiro fazê-lo para o Senhor, em quarto fazê-lo com alegria, em quinto fazê-lo porque receberemos a paga do Senhor.”
[232]              “Mas temos dons diferentes, conforme a graça concedida a cada um de nós. Quem tem o dom da profecia, deve exercê-lo de acordo com a fé; se tem o dom do serviço, que o exerça servindo; se do ensino, que ensine; se é de aconselhar, aconselhe; se é de distribuir donativos, faça-o com simplicidade; se é de presidir à comunidade, faça-o com zelo; se é de exercer misericórdia, faça-o com alegria.” (Romanos, XII, 8)
[233]            “Tu, porém, conheces o meu caminho, e foi no caminho por onde eu ando que eles me prepararam uma armadilha. “ (Salmo CXLI, 4) Evagro interpreta assim este texto na schol 1 ad Ps. CXLI, 4: “Nossos inimigos [os demônios] colocam armadilhas para nossas virtudes (...): quando se trata da esmola, nos tentam a fazê-la, não por Deus, mas para sermos vistos; quando se trata do jejum, para que o façamos por causa dos homens...”
[234]              “Javé, defende-me das mãos do injusto, guarda-me do homem violento. Eles planejam tropeços para os meus passos. Os soberbos me preparam armadilhas, os perversos me estendem uma rede e me colocam ciladas no caminho.” (Salmo CXXXIX, 6).
[235]            Glosa gramatical que encontramos freqüentemente em Evagro, em especial nas Scholias aos Salmos. Evagro interpreta corretamente o termo èchomena, comum na Septuaginta como tradução dos termos hebraicos beyad, leyad e outros, “ao lado de”; esta citação se refere aos pensamentos que estão “à beira do caminho”, enquanto que a do Salmo CXLI referem-se aos que estão “no caminho”.
[236]            Este capítulo é formado por uma sucessão de képhalaia que têm em outras partes existências independentes. O início encontra-se em Cartas, 18, da qual forma a primeira parte. Há um resumo em Skemmata, 46: “Aos bons pensamentos opõem-se dois pensamentos, os demoníacos e os que provêm de uma má vontade. Aos maus pensamentos opõem-se três pensamentos, o angélico, o que provém de uma vontade reta e o que é fornecido pelas sementes naturais”.
[237]            Cf. Discípulos, 149: “...é de fato graças a estas sementes que temos confiança em alguns, que cuidamos e manifestamos a doçura, que somos pacientes, por exemplo com um pai ou um irmão, que nos abstemos de relações sexuais com uma mãe ou uma irmã...” e 148: “...nisto [apiedar-se de um doente] ele ainda é pagão, porque é movido a partir das sementes naturais.”
[238]            “Jesus contou outra parábola à multidão: «O Reino do Céu é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Uma noite, quando todos dormiam, veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e foi embora. Quando o trigo cresceu, e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio. Os empregados foram procurar o dono, e lhe disseram: ‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde veio então o joio?’ O dono respondeu: ‘Foi algum inimigo que fez isso’. Os empregados lhe perguntaram: ‘Queres que arranquemos o joio?’ O dono respondeu: ‘Não. Pode acontecer que, arrancando o joio, vocês arranquem também o trigo.  Deixem crescer um e outro até à colheita. E no tempo da colheita direi aos ceifadores: arranquem primeiro o joio, e o amarrem em feixes para ser queimado. Depois recolham o trigo no meu celeiro’.” (Mateus, XIII, 24-30) Este texto sugere a antiga idéia estóica das sementes naturais, que encontramos na expressão “sementes da virtude”. A natureza humana não é má originalmente: o mal é uma semente ruim semeada pelo diabo por cima do bom grão original.
[239]            A potência (dynamis) é uma das quatro espécies de qualidades aristotélicas.
[240]            “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e dava banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estava caído à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E ainda vinham os cachorros lamber-lhe as feridas. Aconteceu que o pobre morreu, e os anjos o levaram para junto de Abraão. Morreu também o rico, e foi enterrado. No inferno, em meio aos tormentos, o rico levantou os olhos, e viu de longe Abraão, com Lázaro a seu lado. Então o rico gritou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque este fogo me atormenta’. Mas Abraão respondeu: ‘Lembre-se, filho: você recebeu seus bens durante a vida, enquanto Lázaro recebeu males. Agora, porém, ele encontra consolo aqui, e você é atormentado. Além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, nunca poderia passar daqui para junto de vocês, nem os daí poderiam atravessar até nós’. O rico insistiu: ‘Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa de meu pai,  porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não acabem também eles vindo para este lugar de tormento’. Mas Abraão respondeu: ‘Eles têm Moisés e os profetas: que os escutem!’ O rico insistiu: ‘Não, pai Abraão! Se um dos mortos for até eles, eles vão se converter’. Mas Abraão lhe disse: ‘Se eles não escutam a Moisés e aos profetas, mesmo que um dos mortos ressuscite, eles não ficarão convencidos’.” (Lucas XVI, 19-31)
[241]            Cf. Discípulos, 63: “Aquele que não tem raiva de ninguém e que não recebe pensamentos de suspeita.”
[242]            No momento da oração, o estado do intelecto é considerado “semelhante à cor celeste” (Skemmata, 4).
[243]            “Antes de tudo, recomendo que façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças em favor de todos os homens, pelos reis e por todos os que têm autoridade, a fim de que levemos uma vida calma e serena, com toda a piedade e dignidade. Isso é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador. Ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem que se entregou para resgatar a todos. Esse é o testemunho dado nos tempos estabelecidos por Deus, e para o qual eu fui designado pregador e apóstolo - digo a verdade, não minto -, doutor das nações na fé e na verdade. Quero, portanto, que os homens orem em todo lugar, erguendo mãos limpas, sem ira e sem discussões.”  (1 Timóteo II, 8)
[244]            Literalmente, “com um ágrafo”, talvez alusão ao gesto de Édipo. Cf. Gnostikos, 5: “aquele que se deixa facilmente levar pela cólera é como alguém que crava nos olhos uma ponta de ferro.”
[245]            “Um jovem se aproximou, e disse a Jesus: «Mestre, que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?» Jesus respondeu: «Por que você me pergunta sobre o que é bom? Um só é o bom. Se você quer entrar para a vida, guarde os mandamentos.» O homem perguntou: «Quais mandamentos?» Jesus respondeu: «Não mate; não cometa adultério; não roube; não levante falso testemunho; honre seu pai e sua mãe; e ame seu próximo como a si mesmo.» O jovem disse a Jesus: «Tenho observado todas essas coisas. O que é que ainda me falta fazer?» Jesus respondeu: «Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha, e siga-me.» Quando ouviu isso, o jovem foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico.” (Mateus, XIX, 16-22)
[246]            “Fuja das paixões da juventude; siga a justiça e a fé, o amor e a paz com aqueles que invocam de coração puro o nome do Senhor. Evite questões bobas e não educativas. Você sabe que elas provocam brigas. Um servo do Senhor não deve ser briguento, mas manso para com todos, competente no ensino, paciente nas ofensas sofridas. É com suavidade que você deve educar os opositores, esperando que Deus dará a eles não só a conversão, para conhecerem a verdade, mas também o retorno ao bom senso, libertando-os do laço do diabo, que os conservava presos para lhe fazerem a vontade.” (2 Timóteo II, 24)
[247]            “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe pedir, e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado.” (Mateus, V, 38-42)
[248]            “A vida se encontra no caminho da justiça; o caminho da injustiça conduz para a morte.” (Provérbios, XII, 28)
[249]            Cf. Ant., II, 50: “demônios da fornicação que encontram para si argumentos nas Escrituras e no que ali está escrito.”
[250]            Do mesmo modo, o monge que é presa do demônio da acídia, durante a leitura “boceja muito e se deixa facilmente cair no sono” (Oito espíritos, 14).
[251]            Cf; K.G., VI, 25: “Quando os demônios não conseguem colocar em movimento os pensamentos no gnóstico, então, apoderando-se de seus olhos e esfriando-os, eles o levam a um sono muito pesado, pois os corpos dos demônios são frios e parecidos com o gelo”. Em K.G., I, 168 Evagro afirma que os demônios também se aproximam dos homens “pelas narinas”; em muitas ocasiões ele nota a ação exercida pelos demônios sobre o corpo ou sobre certas partes do corpo, em especial no gnóstico, em quem eles não podem mais agir através dos pensamentos.
[252]            Também se trata de ventosas em Ant., IV, 36: os demônios causam queimaduras sobre o corpo deixando marcas redondas semelhantes às provocadas pelas ventosas. Evagro acrescenta ter visto este fenômeno com seus olhos, expressando seu espanto.
[253]            Durante um ofício noturno, Macário o Alexandrino viu demônios pressionando os olhos de alguns com seus dedos, fazendo-os dormir, ou colocando o dedo em suas bocas, fazendo-os bocejar.
[254]            Na Vida de Antônio encontramos numerosos exemplos do uso apotropaico do sinal da cruz.
[255]            Conhecer a sucessão dos demônios vem da ciência do discernimento dos espíritos. No capítulo 24, é dada uma explicação puramente psicológica para esta sucessão, baseada no fato de que o intelecto não consegue receber simultaneamente as representações de dois objetos diferentes, representações que são usadas pelos demônios para suscitar os maus pensamentos.
[256]              Cf. Discípulos, 142: “Se você permanecer firme em seu posto e as paixões dobrarem de intensidade, é porque um demônio mais forte sucedeu ao anterior.”
[257]              Cf. Praktikos, 45: “Os demônios traiçoeiros fazem vir ao seu auxílio demônios ainda mais astutos do que eles, e eles brigam entre si por suas disposições; eles só estão de acordo numa coisa, que é a perda da alma.” Tb. 59: “Quanto mais a alma progride, mais fortes são os antagonistas que se sucedem contra ela.”
[258]            “Ademais, fortaleçam-se no Senhor e na força do seu poder. Vistam a armadura de Deus para poderem resistir às manobras do diabo. A nossa luta, de fato, não é contra homens de carne e osso, mas contra os principados e as autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que habitam as regiões celestes. Por isso, vistam a armadura de Deus para que, no dia mau, vocês possam resistir e permanecer firmes, superando todas as provas. Estejam, portanto, bem firmes: cingidos com o cinturão da verdade, vestidos com a couraça da justiça, os pés calçados com o zelo para propagar o evangelho da paz; tenham sempre na mão o escudo da fé, e assim poderão apagar as flechas inflamadas do Maligno. Coloquem o capacete da salvação e peguem a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus. Rezem incessantemente no Espírito, com orações e súplicas de todo tipo, e façam vigílias, intercedendo, sem cansaço, por todos os cristãos. Rezem também por mim: que a Palavra seja colocada na minha boca, para anunciar ousadamente o mistério do Evangelho, do qual sou embaixador aprisionado. Que eu possa anunciá-lo com ousadia, como é meu dever.” (Efésios, VI, 17)
[259]              Efésios, VI, 14.
[260]              Efésios, VI, 17.
[261]              Efésios, VI, 16.
[262]              Salmo CXXIX, 8.
[263]              Salmo XXX, 3.
[264]              Salmo VII, 13.
[265]              Efésios, VI, 16.
[266]             , XII, 15.
[267]              Cf. Praktikos, 40: “Eles tumultuam as coisas contra nós para que nos desviemos do que deve ser feito, e nos constrangem a fazer o que não se deve. É assim que eles impedem os doentes de dar graças por seus sofrimentos, e de suportar pacientemente os que os servem; em revanche, eles os exortam, embora fracos, a praticar a abstinência e, por exaustos que estejam, a salmodiar em pé.” Tb. Ant. I, 37: “contra o pensamento vão [inspirado pelo demônio da gula] que nos persuade a adotar um gênero de vida mais rigoroso do que o necessário...”
[268]            Daniel resolveu que não iria contaminar-se com as comidas e o vinho da mesa real. Pediu ao chefe dos eunucos permissão para não aceitar essas comidas. O Senhor fez com que Daniel ganhasse a simpatia do chefe dos eunucos. Este lhe disse: «Tenho medo do rei, o meu senhor, que determinou pessoalmente o que vocês devem comer e beber. Se ele perceber que os rostos de vocês estão mais pálidos que dos outros moços da mesma idade, vocês acabarão me fazendo culpado de um crime de morte aos olhos do rei». Daniel disse ao funcionário, a quem o chefe dos eunucos havia confiado Daniel, Ananias, Misael e Azarias: «Faça uma experiência conosco: durante dez dias vocês nos darão de comer só vegetais e só água para beber. Depois, você compara a nossa aparência com a dos outros moços que comem da mesa do rei. Então faça conosco o que achar melhor». O funcionário aceitou a proposta e fez a experiência por dez dias. No final dos dez dias, estavam com boa aparência e corpo mais saudável que todos os moços que comiam da mesa do rei. Então o funcionário tirou definitivamente a comida e o vinho da mesa dos moços e passou a dar-lhes somente vegetais. Aos quatro rapazes Deus concedeu o conhecimento e a compreensão de toda a literatura e também sabedoria. A Daniel especialmente, deu o dom de interpretar visões e sonhos.” (Daniel I, 8-17)
[269]            Cf. Praktikos, 15: “. Tudo isso no momento e na medida conveniente; pois o que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que dura pouco é mais nocivo do que útil.” Tb. 28: “Eis o que dizia nosso mestre santo e prático: é preciso que o monge esteja sempre pronto, como se ele fosse morrer amanhã, e, inversamente, que ele use seu corpo como se tivesse que viver com ele por inúmeros anos. Isto, com efeito, dizia ele, afasta os pensamentos da acídia e torna o monge mais zeloso e, por outro lado, mantém seu corpo em boa saúde, e mantém sempre constante sua abstinência.”
[270]            Cf. Salmo LXI, 5: “Eles só pensam em me derrubar da minha posição, e sentem prazer em mentir: com a boca eles elogiam, mas por dentro amaldiçoam.”
[271]            Estas três coisas constituíam a base da alimentação dos monges das Kellia, como também dos de Sceta. Em Discípulos, 183, menciona-se outro grupo: “O monge deve ter sempre este pensamento no espírito: receber um pouco de pão, água e sono, e nada mais; isto basta para viver.”
[272]            A refeição ocorria uma vez por dia, geralmente na nona hora; esta regra só era quebrada em caso de doença ou por hospitalidade.
[273]            Cf. Ant., Prol.: “Eu ficarei espantado que alguém consiga manter a guerra inteligível e ser coroado com a coroa da justiça, saciando-se de pão e água.”
[274]             “A circuncisão é útil quando você pratica a Lei; mas, se você desobedece à Lei, é como se não estivesse circuncidado. Se um pagão não circuncidado observa os preceitos da Lei, não será tido como circuncidado, ainda que não o seja? E o pagão que cumpre a Lei, embora não circuncidado fisicamente, julgará você que desobedece à Lei, embora você tenha a Lei escrita e a circuncisão. De fato, aquilo que faz o judeu não é o que se vê, nem é a marca visível na carne que faz a circuncisão. Pelo contrário, o que faz o judeu é aquilo que está escondido, e circuncisão é a do coração; e isso vem do espírito e não da letra da Lei. Tal homem recebe aprovação, não dos homens, mas de Deus.” (Romanos, 25-29)
[275]            Em Damasco havia um discípulo chamado Ananias. O Senhor o chamou numa visão: «Ananias!» E Ananias respondeu: «Aqui estou, Senhor!» E o Senhor disse: «Prepare-se, e vá até a rua que se chama rua Direita e procure, na casa de Judas, um homem chamado Saulo, apelidado Saulo de Tarso. Ele está rezando e acaba de ter uma visão. De fato, ele viu um homem chamado Ananias impondo-lhe as mãos para que recuperasse a vista.» Ananias respondeu: «Senhor, já ouvi muita gente falar desse homem e do mal que ele fez aos teus fiéis em Jerusalém. E aqui em Damasco ele tem plenos poderes, que recebeu dos chefes dos sacerdotes, para prender todos os que invocam o teu nome.» Mas o Senhor disse a Ananias: «Vá, porque esse homem é um instrumento que eu escolhi para anunciar o meu nome aos pagãos, aos reis e ao povo de Israel. Eu vou mostrar a Saulo quanto ele deve sofrer por causa do meu nome.» Então Ananias saiu, entrou na casa e impôs as mãos sobre Saulo, dizendo: «Saulo, meu irmão, o Senhor Jesus, que lhe apareceu quando você vinha pelo caminho, me mandou aqui para que você recupere a vista e fique cheio do Espírito Santo.» Imediatamente caiu dos olhos de Saulo alguma coisa parecida com escamas, e ele recuperou a vista. Em seguida Saulo se levantou e foi batizado. Logo depois comeu e ficou forte como antes.” (Atos, IX, 15)
[276]               “Repito: que ninguém me considere louco, ou então: que me suportem como louco, a fim de que também eu possa me gabar um pouco. O que vou dizer, não o direi conforme o Senhor, mas como louco, certo de que tenho motivos para me gabar. Visto que muitos se gabam de seus títulos humanos, também eu vou me gabar. Vocês, assim tão sensatos, suportam de boa vontade os loucos. E suportam que os escravizem, que os devorem, que os despojem, que os tratem com soberba, que os esbofeteiem. Digo isto para a vergonha de vocês: até parece que nós é que somos fracos... Aquilo que outros têm a ousadia de apresentar - falo como louco - eu também tenho. São hebreus? Eu também. São israelitas? Eu também. São descendentes de Abraão? Eu também. São ministros de Cristo? Falo como louco: eu o sou muito mais. Muito mais pelas fadigas; muito mais pelas prisões; infinitamente mais pelos açoites; freqüentemente em perigo de morte; dos judeus recebi cinco vezes os quarenta golpes menos um. Fui flagelado três vezes; uma vez fui apedrejado; três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite em alto mar. Fiz muitas viagens. Sofri perigos nos rios, perigos por parte dos ladrões, perigos por parte dos meus irmãos de raça, perigos por parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos por parte dos falsos irmãos. Mais ainda: morto de cansaço, muitas noites sem dormir, fome e sede, muitos jejuns, com frio e sem agasalho. E isso para não contar o resto: a minha preocupação cotidiana, a atenção que tenho por todas as igrejas. Quem fraqueja, sem que eu também me sinta fraco? Quem cai, sem que eu me sinta com febre? Se é preciso gabar-se, é de minha fraqueza que vou me gabar.” (2 Coríntios, XI, 27)
[277]            Quanto a mim, meu sangue está para ser derramado em libação, e chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele Dia; e não somente para mim, mas para todos os que tiverem esperado com amor a sua manifestação.” (2 Timóteo, IV, 6-8)
[278]              Cf. Praktikos, 12: “... assim, como foi dito, [o demônio da acídia] assesta todas as suas baterias para que o monge abandone sua cela e fuja da cancha.”
[279]              “Javé, até quando me esquecerás? Para sempre? Até quando esconderás de mim a tua face? Até quando terei sofrimento dentro de mim, e tristeza no coração, dia e noite? Até quando meu inimigo vai triunfar? Atenção, Javé, meu Deus! Responde-me! Ilumina meus olhos, para que eu não adormeça na morte. Que meu inimigo não diga: ‘Eu o venci!’ E meus opressores não exultem com meu fracasso. Quanto a mim, eu confio no teu amor! Meu coração exulta com a tua salvação. Vou cantar a Javé por todo o bem que ele me fez!” (Salmo XII)

[280]            Cf. Provérbios, VII:Meu filho, conserve as minhas palavras e guarde os meus preceitos. Observe os meus preceitos, e você terá a vida. Guarde a minha instrução como a pupila dos seus olhos. Amarre-a nos dedos e a escreva na tábua do coração. Diga à sabedoria: «Você é minha irmã». Trate a inteligência como amiga, para que ela o proteja da mulher estrangeira, e da estranha que seduz com a palavra. Eu estava na janela de minha casa observando por trás das grades. Vi alguns rapazes ingênuos, e notei que um deles não tinha juízo. Ele passava pela rua, perto da esquina, e se dirigia para a casa da estrangeira. Já caía a noite de lua nova. Uma mulher foi ao encontro dele, vestida como prostituta e cheia de malícia. Era ousada e insolente, e seus pés não paravam em casa: ora estava na rua, ora na praça, espreitando em cada esquina. Então ela agarrou e beijou o rapaz. Depois lhe falou descaradamente: «Preparei um sacrifício de comunhão, porque hoje estou cumprindo uma promessa. Por isso saí para encontrar você. Estava ansiosa por vê-lo e acabei encontrando você. Cobri a cama com colchas e estendi lençóis do Egito. Perfumei o quarto com mirra, aloés e cinamomo. Venha, vamos nos embriagar com carícias até de manhã. Vamos nos saciar com amores, porque o meu marido está fazendo uma longa viagem e não está em casa. Ele levou a bolsa com dinheiro, e não voltará até a lua cheia». Com tantas palavras, ela o apanhou e o atraiu com lábios enganadores. O infeliz correu atrás dela, como boi para o matadouro, como animal preso no laço, até uma flecha o atingir no lado. Foi como pássaro que voa para a arapuca, sem saber que vai perder a vida. Agora, meu filho, escute. Preste atenção no que vou dizer. Que o seu coração não se extravie para o caminho da estrangeira e que você não se perca nas trilhas dela. Ela já assassinou muita gente, e suas vítimas foram numerosas. A casa dela é um caminho para o túmulo, uma descida para o reino da morte.” A expressão fica mais clara na schol. 92 ad Prov. VII, 12: “Aqueles que “vagueiam pelos lugares” têm pensamentos de adultério, fornicação e roubo; os que “vagueiam pelas ruas” fazem movimentos contra a natureza: eles buscam o leito dos homens e recebem as imagens de algumas coisas proibidas”. A mesma distinção é feita em Ant., II, 58: “Contra os pensamentos que nos levam aos lugares públicos ou que nos forçam a vaguear pelas ruas.”
[281]            Êxodo, V, 7-12: “Nesse mesmo dia, o Faraó deu ordem aos capatazes e inspetores, dizendo: Não dêem ao povo palha para fazer tijolos, como vocês faziam antes. Que eles próprios providenciem a palha. E mais: exijam deles a mesma quantia de tijolos que faziam antes. Não diminuam nada, porque eles são preguiçosos e por isso andam clamando: ‘Vamos sacrificar ao nosso Deus’. Carreguem esses homens com mais trabalho, para que fiquem ocupados e não dêem atenção a palavras mentirosas.” Cf. Ant., II, 46, onde Evagro acrescenta uma alteração no texto do Êxodo: “Contra o demônio da fornicação que constrange Israel a juntar a palha e sapé ao invés de trigo.”
[282]            Cf. Provérbios, IV, 20-27:Meu filho, esteja atento às minhas palavras e dê ouvidos aos meus conselhos. Nunca os perca de vista e guarde-os no seu coração. Pois eles são vida para quem os encontra e saúde para o seu corpo. Acima de tudo, guarde o seu coração, porque dele brota a vida. Afaste-se da boca enganosa e fique longe dos lábios falsos. Que seus olhos olhem para a frente e seu olhar se dirija para diante. Fique atento às trilhas onde você coloca os pés, e que todos os seus caminhos sejam firmes. Não se desvie nem para a direita, nem para a esquerda, e afaste do mal os seus passos.”
[283]            Cf. Provérbios, VI, 1-5: “Meu filho, se você foi fiador do seu próximo, e fez acordo com algum estrangeiro; se você se comprometeu, dando sua palavra, e ficou preso pelo que disse, você caiu em poder do seu próximo. Para se livrar, faça o seguinte, meu filho: Vá, insista e incomode o seu próximo. Não durma, nem descanse. Liberte-se, como a cerva da armadilha ou o passarinho da arapuca.”
[284]            Cf. Ant. IV, 55: “Contra o espírito enganador que se dirige à minha alma e tenta atirá-la na tristeza...” Tb. Discípulos, 49: “...se o pecado foi consumado, aquilo que serviu de intermediário desaparece, e não resta mais do que a imagem do pecado no intelecto da alma.”
[285]            “Nesses dias, aí estava reunido um grupo de mais ou menos cento e vinte pessoas. Pedro levantou-se no meio dos irmãos e falou: “Irmãos, era preciso que se cumprisse aquilo que o Espírito Santo, por meio de Davi, tinha anunciado na Escritura a respeito de Judas, que se tornou o guia daqueles que prenderam Jesus. Judas era um do nosso grupo e participava do nosso serviço. Ele comprou um terreno com o salário da sua iniqüidade; depois caiu de ponta cabeça, arrebentou-se e suas entranhas se esparramaram. A notícia chegou a todos os habitantes de Jerusalém que deram àquele terreno o nome de Hacéldama, que quer dizer campo de sangue, conforme a sua língua. Pois no livro dos Salmos está escrito: ‘Que sua moradia fique deserta e ninguém habite nela.’ E ainda: ‘Que outro ocupe o seu cargo.’ Há outros homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor vivia no meio de nós, desde o batismo de João até o dia em que foi levado ao céu. “Agora, é preciso que um deles se junte a nós para testemunhar a ressurreição.” Então eles apresentaram dois homens: José, chamado Bársabas e apelidado o Justo, e também Matias. Em seguida fizeram esta oração: “Senhor, tu conheces o coração de todos. Mostra-nos qual destes dois tu escolheste para ocupar, no serviço do apostolado, o lugar que Judas abandonou para seguir o seu destino.” Então tiraram a sorte entre os dois. E a sorte caiu em Matias, que foi juntado ao número dos onze apóstolos.” (Atos, I, 15-26) “Então os apóstolos e os anciãos se reuniram para tratar desse assunto. Depois de longa discussão, Pedro levantou-se e falou: «Irmãos, vocês sabem que, desde os primeiros dias, Deus me escolheu no meio de vocês, para que os pagãos ouvissem de minha boca a palavra da Boa Notícia e acreditassem. Ora, Deus, que conhece os corações, testemunhou a favor deles, dando-lhes o Espírito Santo como deu a nós. E não fez nenhuma distinção entre nós e eles, purificando o coração deles mediante a fé. Então, por que vocês agora tentam a Deus, querendo impor aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós mesmos tivemos força para suportar? Ao contrário, é pela graça do Senhor Jesus que cremos ser salvos, exatamente como eles.” (Atos, XV, 6-11).
[286]            , VII, 20.
[287]            Somente Deus é “cardiognóstico”, ele conhece os corações porque os criou. Cf. schol. 10 ad Ps. XXXII, 15: “Quem construiu sozinho, somente este conhece; assim, somente Deus pode ser chamado de cardiognóstico”. Cf. Salmo XXXII, 15: “Do céu Javé contempla e vê todos os homens. De sua morada ele observa todos os habitantes da terra: ele formou o coração de cada um, e discerne todos os seus atos.”
[288]            Sobre o modo como os demônios chegam a conhecer os corações pela observação, cf. Praktikos, 47; também schol.4 ad. Prov. LV, 7: “É observando o que  fazemos que eles se instruem, pois os demônios não são cardiognósticos.”
[289]            Provavelmente Macário o Alexandrino, citado no capítulo 33.
[290]            Cf. Levítico, XV, 19-24.  A razão alegada por Macário seria que “publicar tais coisas” equivaleria e ter comércio com seres impuros, donde a alusão, surpreendente à primeira vista, ao Levítico.
[291]            Salmo XLIX, 20.
[292]            Cf. Praktikos, 11: “Ela [a cólera] torna a alma furiosa ao longo de todo o dia, mas é sobretudo no momento da oração que ela se apodera do intelecto, mostrando-lhe o rosto daquele que a contristou.”
[293]            Sobre o perigo que representa tomar por Deus certas imagens que aparecem durante a prece, ver Or., 73: o monge que ora verdadeiramente e não é mais açoitado por paixões carnais e impuras, “supõe ser divina a aparição produzida nele pelo demônio.”
[294]            Sobre a luz do intelecto que se manifesta na ausência de toda e qualquer paixão no momento da prece, cf. Praktikos, 64 (quando o intelecto “começa a ver sua própria luz”) e Gnostikos, 45 (aqueles que, “no momento da oração, contemplam a própria luz do intelecto que os ilumina”). Esta luz é, na realidade, a luz divina que ilumina o intelecto, de tal maneira  que este se vê luminoso.
[295]            Quanto a você, ensine o que é conforme à sã doutrina. Que os velhos sejam sóbrios, respeitáveis, sensatos, fortes na fé, no amor e na paciência. As mulheres idosas também devem comportar-se como convém a pessoas sensatas: não sejam caluniadoras, nem escravas de bebida excessiva; pelo contrário, sejam capazes de dar bons conselhos, de modo que as recém-casadas aprendam com elas a amar seus maridos e filhos, a ser ajuizadas, castas, boas donas-de-casa, submissas a seus esposos, amáveis, a fim de que a palavra de Deus não seja difamada. Aconselhe igualmente os jovens, para que em tudo tenham bom senso. E você mesmo seja exemplo de boa conduta, sincero e sério em seu ensino, expressando-se numa linguagem digna e irrepreensível, para que o adversário nada tenha a dizer contra nós e fique envergonhado. Os servos devem ser em tudo obedientes a seus senhores, dando-lhes motivo de alegria; não devem ser teimosos, nem roubar; pelo contrário, devem dar provas de inteira fidelidade, para em tudo honrar a doutrina de Deus, nosso Salvador. A graça de Deus se manifestou para a salvação de todos os homens.  Essa graça nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas, para vivermos neste mundo com autodomínio, justiça e piedade, aguardando a bendita esperança, isto é, a manifestação da glória de Jesus Cristo, nosso grande Deus e Salvador. Ele se entregou a si mesmo por nós, para nos resgatar de toda iniqüidade e para purificar um povo que lhe pertence, e que seja zeloso nas boas obras. Diga-lhes todas essas coisas. Exorte-os e repreenda-os com toda a autoridade. Que ninguém o despreze.” (Tito, II, 8)
[296]            “Javé, é tempo de agir: eles violaram a tua vontade. É por isso que eu amo os teus mandamentos, mais que ao ouro, e ouro refinado. É por isso que aprecio os teus preceitos e odeio o caminho da mentira. Teus testemunhos são maravilhas, por isso eu os guardo. A descoberta das tuas palavras ilumina, e traz discernimento aos simples. Abro a boca e aspiro, ansiando por teus mandamentos. Volta-te para mim, tem piedade de mim: é a justiça para os que amam o teu nome. Firma os meus passos com a tua promessa e não deixes que mal nenhum me domine. Resgata-me da opressão do homem, e observarei os teus preceitos.”  (Salmo CXVIII, 134.)
[297]            Interpretar os termos bíblicos “homem” e “homens” como o diabo e os demônios é justificado por Evagro, em primeiro lugar por que não existe diferença de natureza entre homens e demônios, sendo ambos de natureza racional, e,  em segundo lugar, porque o próprio Salvador utilizou-se desta regra de interpretação em sua exegese da parábola do semeador (cf. Mateus, XIII, 18-23). Esta regra, aliás, vale igualmente para a parábola seguinte, a do bom grão e do joio. Compare-se com a schol 22 ad Prov. II, 2: “Pois agora ele chama “homem” ao diabo, porque foi um homem mau que semeou o joio por sobre [o bom grão]” e schol 1 ad Ps. CXVII, 6: “A Escritura chama de “homem” ao diabo, porque foi um homem inimigo quem semeou o joio por sobre [o bom grão].” Hesíquio o Sinaíta parece lembrar-se disso quando escreve que “os famosos Padres gnósticos, em alguns de seus escritos, chamaram de homens aos demônios, devido à sua parte racional”.
[298]            “O Reino do Céu é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Uma noite, quando todos dormiam, veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e foi embora. Quando o trigo cresceu, e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio. Os empregados foram procurar o dono, e lhe disseram: ‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde veio então o joio?’ O dono respondeu: ‘Foi algum inimigo que fez isso’. Os empregados lhe perguntaram: ‘Queres que arranquemos o joio?’ O dono respondeu: ‘Não. Pode acontecer que, arrancando o joio, vocês arranquem também o trigo. Deixem crescer um e outro até à colheita. E no tempo da colheita direi aos ceifadores: arranquem primeiro o joio, e o amarrem em feixes para ser queimado. Depois recolham o trigo no meu celeiro’.” (Mateus, XIII, 25)
[299]            Romanos, VI, 8. Este capítulo evoca dois graus de contemplação (contemplação dos séculos e contemplação de Deus) e os dois tempos na economia da salvação: o primeiro confiado ao Cristo, o segundo pertencente ao Pai. A distinção entre os dois tipos de morte consiste em que a primeira é vergonhosa, por ser a morte espiritual causada pela queda e pelo pecado, e a segunda é louvável, por ser a morte com Cristo, a morte para o pecado.
[300]            “Façam morrer aquilo que em vocês pertence à terra: fornicação, impureza, paixão, desejos maus e a cobiça de possuir, que é uma idolatria. Isso é o que atrai a ira de Deus sobre os rebeldes. Outrora, também vocês eram assim, quando viviam entre eles. Agora, porém, abandonem tudo isso: ira, raiva, maldade, maledicência e palavras obscenas, que saem da boca de vocês. Não mintam uns aos outros. De fato, vocês foram despojados do homem velho e de suas ações, e se revestiram do homem novo que, através do conhecimento, vai se renovando à imagem do seu Criador. E aí já não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em todos. Como escolhidos de Deus, santos e amados, vistam-se de sentimentos de compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência. Suportem-se uns aos outros e se perdoem mutuamente, sempre que tiverem queixa contra alguém. Cada um perdoe o outro, do mesmo modo que o Senhor perdoou vocês. E acima de tudo, vistam-se com o amor, que é o laço da perfeição. Que a paz de Cristo reine no coração de vocês. Para essa paz vocês foram chamados, como membros de um mesmo corpo. Sejam também agradecidos. Que a palavra de Cristo permaneça em vocês com toda a sua riqueza, de modo que possam instruir-se e aconselhar-se mutuamente com toda a sabedoria. Inspirados pela graça, cantem a Deus, de todo o coração, salmos, hinos e cânticos espirituais. E tudo o que vocês fizerem através de palavras ou ações, o façam em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus Pai por meio dele.”  (Colossenses III, 9-10); “Vocês devem deixar de viver como viviam antes, como homem velho que se corrompe com paixões enganadoras. É preciso que vocês se renovem pela transformação espiritual da inteligência, e se revistam do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade que vem da verdade.” (Efésios IV, 22-24)
[301]            Êxodo, XXIV, 10-11. Este texto é utilizado em Skemmata 2: “Se alguém quiser ver o estado de seu intelecto, que se separe de todas as representações e então o verá semelhante à safira ou à cor do céu...” A expressão “lugar de Deus” substituiu na Septuaginta a expressão “Deus de Israel” do texto hebraico. Para Evagro, a expressão designa o próprio intelecto, cf. schol. 5 ad Ps. LXVII, 6-7 e schol 1-2 ad Ps. LXXV, 3: “Lugar de Deus é a alma pura; moradia de Deus é o intelecto contemplativo.” Cf. Skemmata, 25: “Do santo Davi nós aprendemos claramente o que é o ‘lugar de Deus’; com efeito, diz ele, ‘seu lugar é na paz e sua morada em Sião (Salmo LXXV, 3). Portanto o lugar de Deus é a alma racional e sua moradia o intelecto luminoso que renunciou aos desejos do mundo e aprendeu a observar do alto as razões [daquilo que está sobre] a terra.”
[302]            Este capítulo resume a ascensão do intelecto desde a representação dos objetos sensíveis até a contemplação espiritual por meio da impassibilidade e, ao final, a visão de Deus; encontramos o mesmo sumário doutrinal em Skemmata 20: “O intelecto, enquanto está na prática, permanece nas representações deste mundo; quando alcança a ciência, vive na contemplação e, quando se acha na oração, ele vive no informal, aquilo a que chamamos de lugar de Deus.”
[303]            Êxodo, XXIV, 10-11.
[304]            Ou seja, as representações que têm uma origem sensível.
[305]            Sobre esta ligação apaixonada aos objetos, ver schol 1 ad Ps I, 1: “O desejo dos ímpios é o pensamento apaixonado que liga o intelecto aos objetos sensíveis” ou schol. 2 ad Ps. CXLV, 7: “Não são os objetos que ligam o intelecto, nem suas representações, mas as representações apaixonadas dos objetos”. Também Discípulos, 74: “Quando o intelecto demora-se numa representação de um objeto sensível, certamente é porque ele experimenta uma paixão por este objeto” e 39: “É impossível que o intelecto se demore em um objeto se ele não tiver paixão por ele,”
[306]            Os pensamentos simples são aqueles que foram chamados no capítulo 8 de pensamentos humanos, aqueles que são inteiramente desprovidos de qualquer elemento passional.
[307]            Cf. Skemmata 16, parte II: “...pelos olhos, o intelecto recebe apenas representações que fornecem uma forma; pelos ouvidos, tanto representações dotadas de forma como não dotadas de forma, porque a palavra tanto designa os objetos sensíveis como os inteligíveis; a memória e o temperamento acompanham o ouvido, pois como ele os dois podem fornecer ou não uma forma ao intelecto.”
[308]            João, I, 1.
[309]            “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, o partiu, distribuiu aos discípulos, e disse: «Tomem e comam, isto é o meu corpo.» Em seguida, tomou um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo: «Bebam dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos, para remissão dos pecados. Eu lhes digo: de hoje em diante não beberei desse fruto da videira, até o dia em que, com vocês, beberei o vinho novo no reino do meu Pai’.” (Mateus, XXVI, 26.)
[310]            No ano que morreu o rei Ozias, eu vi o Senhor sentado num trono alto e elevado. A barra do seu manto enchia o Templo. De pé, acima dele, estavam serafins, cada um com seis asas: com duas cobriam o rosto, com duas cobriam os pés, e com duas voavam. Eles clamavam uns para os outros: ‘Santo, Santo, Santo é Javé dos exércitos, a sua glória enche toda a terra’.” (Isaías, VI, 1)
[311]            Pois o Senhor não pode ser representado pela visão.
[312]            Cf. schol. 300 ad Prov. XXV, 5: “...ele mantém estritamente na justiça seu próprio intelecto, que é chamado de ‘trono’ de Deus. Com efeito, a sabedoria, a ciência e a justiça – e Cristo é tudo isto – não se assentam sobre nenhum outro lugar senão sobre a natureza racional”; também schol 10 ad Ps. CXXXI, 12: “O trono de Deus é a natureza racional”.
[313]            Provérbios, XI, 16.
[314]            Cf. schol. 1 ad Ps. CXL, 2: “Só existe uma forma de oração, a conversa do intelecto com Deus, que mantém o intelecto sem marcas; chamo de intelecto sem marcas aquele que não imagina nada de corpóreo durante a prece; de fato, somente os nomes e as palavras que significam algo sensível provocam marcas e imprimem formas no intelecto, mas é preciso que o intelecto que reza esteja absolutamente livre das coisas sensíveis, e a representação de Deus mantém necessariamente o intelecto sem marcas, pois ele [Deus] não é um corpo.” Também Cartas, 39: “Estas representações de objetos sensíveis são representações que necessariamente fornecem uma impressão ou uma imagem ao nosso intelecto, pois os objetos que elas representam são também dotados desta qualidade. Mas não é possível receber a ciência de Deus ao mesmo tempo que estas representações, porque aquela ciência não mostra nenhum dos objetos deste mundo: Deus não possui um corpo que tenha cor e grandeza. É preciso assim que o intelecto que vai receber a ciência de Deus se separe de todas as representações ligadas aos objetos”. A necessidade daquele que reza de se separar das representações é afirmada igualmente em Or., 66: “Não figure em si mesmo a divindade quando você orar e não deixe seu intelecto ser impressionado por alguma forma, mas vá imaterial ao imaterial e você compreenderá.; em Or., 58, 68, 70: “A prece é a supressão das representações”; também em Skemmata, 26: “A prece é um estado do intelecto destruidor de todas as representações terrestres”, ou seja de toda representação de objetos sensíveis.
[315]            Cf. Or., 72: “Quando o intelecto ora de forma pura e verdadeira, então os demônios já não o abordam pela esquerda, mas pela direita; eles lhe representam uma espécie de glória de Deus, uma imagem feita de coisas próximas aos sentidos.”
[316]            Você roubou meu coração, minha irmã, noiva minha, você roubou meu coração com um só de seus olhares, uma volta dos colares.” (Cântico dos cânticos, IV, 9)
[317]            Este capítulo de conclusão resume sob a forma de breves sentenças a doutrina do tratado: domínio das partes passionais da alma, aquisição das virtudes, leitura das Santas Escrituras, impassibilidade, visão da luz divina.