5. CALIXTO
DE CONSTANTINOPLA
CAPÍTULOS SOBRE A ORAÇÃO
1. Se você quer aprender a verdade,
imite o exemplo do tocador de cítara. Ele mantém sua cabeça inclinada para
baixo, com o ouvido atento ao canto e maneja a palheta. Ao mesmo tempo em que
as cordas são vibradas umas após outras, a cítara espalha sua melodia e o
citarista exulta com esta doçura de mel.
2. Ó trabalhador da vinha, que ama
penar, que este exemplo lhe seja claro, e creia. A partir de agora, sóbrio e
vigilante como o citarista, você encontrará facilmente na profundidade do
coração aquilo que procura. Pois a alma tomada de alto a baixo pelo amor divino
não pode voltar atrás. “Minha alma, diz o divino Davi, está ligada a você”.
3. Penso que a cítara, bem-amado, é o
coração. As cordas são os sentidos. A palheta é a reflexão do intelecto. Este,
por meio da razão, anima continuamente a palheta, que é a lembrança de Deus, de
onde vem na alma um prazer inefável que reflete no intelecto puro o flamejar da
luz divina.
4. Se não fechamos os sentidos do
corpo, a água transbordante não pode correr em nós, esta água que o Senhor deu
à samaritana. Ela buscava a água sensível, mas encontrou a água da vida que
brotava dentro dela. Com efeito, assim como a terra guarda por natureza a água
e a distribui, também a terra do coração possui por natureza esta água que
jorra e corre da fonte, assim como a luz do Pai que Adão perdeu por sua
desobediência.
5. Assim como a água corre de uma fonte
inesgotável, também a água da vida, a água transbordante, brota da alma. É esta
água que residia na alma de Inácio o Teóforo e que o levou a dizer: “Não existe
em mim um fogo para amar a matéria, mas uma água que age e que fala”.
6. Esta bem-aventurada, ou melhor, três
vezes feliz sobriedade, quero dizer, a sobriedade e a vigilância intelectuais
da alma, é semelhante a uma água que jorra da profundeza do coração. A água que
se espalha da fonte enche a fonte. A que jorra do coração é por assim dizer
continuamente animada pelo Espírito e cumula de orvalho divino e de Espírito
o homem interior e incendeia o homem
exterior.
7. O intelecto purificado das coisas
exteriores, que submeteu totalmente os sentidos pela virtude ativa, permanece
imóvel como o eixo do céu. Ele contempla o centro: a profundidade do coração.
Ele dirige a cabeça e olha além. Seus raios são como relâmpagos luminosos da
reflexão que atraem das profundezas os pensamentos divinos. E ele submete todos
os sentidos do corpo.
8. Que ninguém, ao ouvir falar em
coisas proibidas, nelas toque antes do tempo, se não for iniciado nelas ou se
ainda tiver necessidade de leite. Os divinos Padres, ao ver tais homens
buscando antes da hora coisas que só vêm a seu tempo, esforçando-se por entrar
no porto da impassibilidade sem ter os meios para tanto, consideravam que este
era um gesto sem sentido, nada mais do que isto. Pois é impossível a quem não
conhece as letras estudar em um livro.
9. Aquilo que o Espírito Santo coloca
em movimento na alma que começa a combater enche de serenidade o coração que
grita: “Abba, Pai!”. Em si mesmo este movimento não possui figura nem forma.
Mas ele transfigura pelo esplendor da luz divina e dá forma naturalmente sob o
efeito do ardor do Espírito de Deus. Ele nos transforma, nos torna outros, como
só Deus, com seu poder, sabe.
10. O intelecto purificado pela
sobriedade e a vigilância se cobre facilmente de trevas, se não der as costas
totalmente às coisas exteriores pela lembrança contínua de Jesus. Mas quem uniu
a prática à contemplação e à guarda do intelecto não rejeita os ruídos. Sejam
ou não uma linguagem, ele não os descarta. A alma ferida pelo desejo de amor
que esta lhe traz segue a Cristo como a seu bem-amado.
11. Os que vivem no mundo podem até
imobilizar as paixões e a rebeldia da carne, ou mesmo se deterem pela razão,
como diz a Escritura: “Detenham-se e conhecerão”. Mas eles jamais conseguirão
apagar as paixões ou fazê-las desaparecer. Somente a vida eremítica consegue
desenraizá-las.
12. Quanto à água que jorra, primeiro
seu movimento é mais vivo, depois ele se acalma e se torna mais lento. Em seu
primeiro movimento, a água não pode se turvar facilmente, pois corre depressa.
Mesmo se se turvar um pouco, seu movimento é tal que logo ela se purifica. Mas
quando a corrente de água perde sua força e se torna mais lenta, não apenas a
água se turva, como ela se torna quase imóvel. É preciso então purificar-se
totalmente e reencontrar por assim dizer o movimento nesta renovação.
13. Para os noviços e os que vivem da
ética e da ação, o demônio se manifesta por ruídos, sejam estes uma linguagem
ou não. Mas nos que miram a contemplação, ele suscita imaginações: o espaço
parece se colorir com se fosse um efeito da luz. Às vezes ele chega a mostrar
estas imaginações na forma de fogo, para enganar, desviando-os de seu caminho,
os que combatem por Cristo.
14. Se você quer aprender como orar,
considere qual a finalidade da atenção e da prece e não engane a si próprio.
Esta finalidade, bem-amado, é a compunção contínua, a contrição do coração, o
amor ao próximo. E o contrário é evidente: são os pensamentos da
concupiscência, a maledicência, a aversão ao próximo e tudo o que se assemelha
a isso.
OUTROS CAPÍTULOS.
O PARAÍSO É UMA IMAGEM DO
HOMEM.
15. Assim como o corpo visível do homem
é uma imagem na qual transparece aquilo que é visível nele, também o Paraíso de
todas as belezas que Deus, em sua sabedoria, plantou no Éden a Oriente, é uma
imagem do homem interior que tem como terra seu próprio coração e por árvores
(estas árvores que seu intelecto criado à imagem de Deus deve plantar com toda
sua vontade) as numerosas e diferentes contemplações de Deus, os pensamentos e
especialmente as manifestações divinas. Estas contemplações comportam uma
variedade de formas e de odores espirituais. Eu acrescentarei que elas
constituem um alimento, uma alegria e, certamente, um prazer. As coisas do Éden
simbolizam aquilo que é o coração que delas se nutre naturalmente e que
encontra claramente no divino seu prazer e sua alegria.
O paraíso sensível está a leste do sol
sensível. Mas o paraíso inteligível está dentro do homem, sob a luz do conhecimento
do sol inteligível. Pois, segundo os Padres, é impossível ao coração que não
possui a luz do conhecimento ter pensamentos, visões e manifestações de Deus e
ser inteiramente preenchido pelas representações divinas, das mais simples às
mais complexas, como acontece num paraíso além do mundo.
Mas não existe paraíso sem águas. Pois
aquele que o descobriu deve enchê-lo de plantas fecundas e de frutos. No meio
do Éden vemos uma fonte que se divide em quatro correntes que regam a
superfície da terra, conforme está escrito. No homem, a fonte de água viva é o
movimento vivificante do Espírito Santo, de quem o Senhor disse: “A água que
lhe darei será para ele uma fonte de água viva”, que jorra do coração, como a
que brota maravilhosamente do Éden. Esta fonte se divide em prudência,
modéstia, justiça e coragem, as quatro correntes de onde jorram como rios as
virtudes que nos assemelham a Deus. É por isso que foi dito que logo a água, ou
seja, a energia, regou a superfície da terra, ou, se você preferir, a superfície
do coração, para o crescimento, a maturação e a colheita dos frutos eleitos das
virtudes divinas.
É uma coisa maravilhosa, doce e cheia
de graça compreender o que acontece então e que reside na fonte, a qual
representa, jorrando do meio do coração, como explicamos, o movimento e a
energia sobrenaturais do Espírito vivificante. A fonte não é da mesma natureza
das plantas nem da terra, pois estas são outra coisa. A água é suficiente para
todas as inumeráveis plantas. Ela, que é uma, as rega, as assiste sem medida,
embora elas difiram umas das outras a ponto de possuírem temperamentos opostos,
sendo umas secas, outras úmidas, outras quentes, outras frias. A fonte, como eu
disse, corre por entre toda esta variedade de plantas. Ela derrama sua água
única e simples, que é seu maior auxílio; dividindo-se em quatro correntes, ela
faz assim o que é melhor para cada planta. Ela não é da mesma natureza das
coisas que existem em nós, sejam as virtudes, o conhecimento ou a contemplação
ligada a ele. E ela também não é da mesma natureza que o coração. Ela é a
divina irradiação sobrenatural d’Aquele que criou a vida, seu movimento e sua
energia irrefreáveis. Ela é dada aos fiéis pela graça. Ela sobe continuamente
de dentro do coração e corre na direção do que está fora. Ela se divide em
quatro virtudes, como eu disse, que são as quatro virtudes que ela ampara acima
de todas. Ela é sucessivamente a mesma água para todas. Pelo Espírito ela
ampara primeiro a prudência, e através do conhecimento ajuda aos que fazem a
obra da justiça. Enfim, chamada “a que dá sabedoria” e poder, esta água revela
depois de muito tempo sua energia amparando a castidade e a coragem.
Deste amor, desta sabedoria são
testemunhos seguras Paulo e Isaías. Um diz claramente: “O amor de Deus se
derrama nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. E Isaías
conta o espírito da sabedoria dentre as sete energias do Espírito. Ora, não
apenas o Espírito ampara o amor, mas se torna um espírito de zelo face ao amor,
a ponto deste anular uma série de pecados, como está escrito. O zelo leva à
condenação, e às vezes à morte. Diz-se que Elias, o grande profeta e amigo de
Deus matou pela espada muitos sacerdotes
infames. Antes, Finéas esfaqueou o Medianita com a Israelita. E antes deles, o
próprio Moisés, o santo legislador do Antigo Testamento, por zelo e com a mão
dos homens de sua raça entregou à morte inúmeros homens. Quando se trata de
ação, o melhor é o conhecimento. E quando se trata de contemplação, o melhor é
a ignorância que ultrapassa o conhecimento. Mas é impossível que tal aconteça
convenientemente numa alma que não possui o espírito de verdade nem o espírito
do conhecimento. Tanto a alegria do coração como a tristeza que se opõe a esta
alegria são manifestamente efeitos do Espírito. Ouça a Escritura que diz: “O
fruto do Espírito é a alegria”; e: “Deus concede a alguns um espírito de
compunção”.
Em uma palavra, de acordo com os
Padres, o Espírito Santo e vivificante intervém em todas as coisas da virtude e
também nesses estados que, aparentemente, como eu disse, se opõem mutuamente e
que a Escritura chama de fogo e água, coisas totalmente contrárias, pois ele
auxilia a tudo o que, na alma, é bom e belo e ele suscita nela a energia que dá
a vida e a força. É por isso que a Escritura fala dele no singular e no plural:
o Salvador o chama de fonte e de rios. É assim que ele se divide em quatro
correntes e assume todas as virtudes. Uma alma se torna nova em tudo a partir
do momento em que a água dá a vida sobrenaturalmente à alma que está em
comunhão com o Espírito, que a transporta a tudo o que lhe convém e acontece, e
faz tudo como deve.
Assim eu penso que a pedra em que
Moisés o legislador bateu com sua vara fazendo com que jorrasse água
sobrenaturalmente como de rios, é o coração petrificado pelo endurecimento.
Quando Deus, em lugar da vara, bate oportunamente com suas palavras este
coração e o penetra com a compunção, o poder do Espírito alegremente suscitado
jorra deste coração de maneira sobrenatural como se fossem correntes de água
vivificante, e traz a tudo uma ajuda imensa. E como dizê-lo? Ela, que é uma só
e mesma água por natureza, dá a vida a todos os seres que a recebem, numerosos
e infinitos, na medida de cada um. É verdadeiramente maravilhoso que esta pedra
levada sobre um único carro pode jorrar água que daria para encher miríades de
carros até o infinito. Mas de onde lhe veio isto? De onde tirava ela tanta
água? De que fonte? Porém, maior maravilhamento deve atingir aqueles que
consideram o quanto o cálice do coração, carregado com tanta leveza por um
corpo tão ínfimo, não cessa de derramar um fluxo de miríades de espíritos e de
corpos tão infinito quanto a vida. De onde veio isto ao coração, que está além
de todo número? O Espírito, como disse Aquele que é a própria verdade, sopra
onde quer. Você ouve a sua voz, mas não sabe de onde vem nem para onde vai. E
no entanto ele sopra o tempo todo.
Assim, se recebemos de Deus tamanha
dignidade, de plantar em nós o divino à imitação de Deus, aí estará o paraíso,
claro que não o paraíso que os sentidos exteriores podem captar, mas um paraíso
inteligível, como dissemos, bem mais elevado em toda sua beatitude, e além do
entendimento de quem ainda não experimentou a dignidade sagrada. Entreguemo-nos
por inteiro, com toda a piedade, com a retidão que leva à fé, ao fundamento da
hesíquia e por intermédio dos mandamentos, a Cristo Deus na Trindade.
Perseverando deste modo numa contemplação que recolhe as visões e os
pensamentos divinos de que falamos – e eu acrescentarei as reflexões teológicas
que ela planta no coração em Deus – com toda nossa resolução roguemos por ela
como se deve para que habite em nós e faça jorrar em nossos corações seus
pensamentos mais elevados do que o mundo. O Espírito Santo, podemos dizer, são
os rios. Pois “quem crê em mim , como diz a Escritura, de seu coração brotarão
rios de água viva”. E o Apóstolo bem-amado acrescenta que ele dizia isto do
Espírito que os que nele creram deviam receber. A glória, pelos séculos dos
séculos, a ele que dá aquilo que ultrapassa a inteligência.
DO DOM ESPIRITUAL.
Veja os dons de Deus que não voltam
atrás, e as graças de Deus que nada pode superar. E regozije-se com o milagre
que chega agora divinamente, se você considerar as coisas que Deus fez a Adão,
a primeira criatura, e as coisas mais elevadas ainda que ele fará por nós a
seguir.
Ele insuflou em Adão um sopro de vida,
a graça do Espírito vivificante, e assim Adão se tornou um homem perfeito. Ele
se tornou uma alma viva, não apenas uma alma. Com efeito, a alma do homem não é
o Espírito de Deus, mas se tornou no Espírito uma alma viva. Pois o Espírito
Santo e vivificante de Deus se torna em verdade, para a alma que vive como se
deve, uma alma dotada de razão à imagem de Deus. Mas o Espírito de Deus não faz
corpo com a alma. Ora, esta caiu, perdeu a imagem de Deus e tudo o que era
preciso para a vida a uma alma racional. A bestialidade, e mesmo a ferocidade,
infelizmente a invadiu. Sem Deus, disse o Salvador, nada, absolutamente nada
podemos fazer daquilo que devemos realizar no Espírito e em Cristo. É por isso
que o homem foi criado sem falha, isto é, total. Adão não se tornou
simplesmente uma alma, mas uma alma viva. Pois Deus insuflou nele um sopro que
é a vida para as almas dotadas de razão. Portanto, o sopro de Deus insuflado em
Adão deu a este, na medida do possível, uma glória bem real. Ele oferece uma
glória semelhante a Deus a quem participar aplicando-se às coisas pela visão e
a profecia e se tornar assim verdadeiramente criador junto com Deus e um
segundo Deus pela graça, por intermédio das visões divinas e das profecias
luminosas, como quis o Criador do universo, o Criador mais do que sábio.
Mas o homem dobrou o joelho e em sua
queda submeteu-se ao grande mal da desobediência. Ora, ele caiu do Espírito
Santo vivificante que nos ilumina, não foi capaz de guardar a imensidão de
tamanha honra, foi verdadeiramente reduzido ao estado dos animais sem
inteligência, assemelhando-se a eles. E, com toda sua ignorância e
obscurecimento, ele se afastou do objetivo divino, incapaz de levantar a cabeça
nestas trevas horríveis, manifestamente privado do dom divino, do dom
sobrenatural deste sopro que Deus lhe havia insuflado.
Mas chegou o tempo das compaixões de
Deus, e Deus enviou seu Verbo para nos curar de nossa corrupção. Ora, o Verbo
traz em si o Espírito que o acompanha naturalmente, que ilumina e esclarece sua
divindade – podemos dizer: seu poder – de que falou o profeta, quando deu
graças a Deus por toda a humanidade: “Você enviou sua luz e sua verdade. Elas
me conduziram, me levaram à montanha santa, ao seu conhecimento único e
supremo, nas moradas e nas contemplações de sua glória”. É para lá que, levada
por Deus, se eleva o intelecto e é lá que ele reside. Ele está acima das coisas
visíveis, de certo modo aproximando-se do Deus Altíssimo. A partir do momento
que veio o Verbo legítimo de nosso Deus, trazendo consigo naturalmente,
enquanto santo Verbo de Deus, o santo Espírito de Deus, todos os que receberam
com fé o santo Verbo de Deus receberam imediatamente o Espírito Santo de Deus,
que acompanha sempre e indubitavelmente o Verbo. E eles não apenas o receberam
de Deus Pai face a face, como na origem o fez Adão e mais tarde os discípulos
de Cristo quando este soprou sobre eles, mas recebendo subitamente o invisível
como um sopro – ou seja, o Espírito, que lhes insuflou claramente a graça que
lhe é própria - os que participam do
fundo do coração podem ver em seu intelecto o Espírito que derrama as águas
sempre nascentes como de uma fonte, que imediatamente os ilumina e permite ao
intelecto ver as coisas maravilhosas do novo nascimento e as coisas acessíveis
da glória divina. Em uma palavra, pela participação sobrenatural ao Espírito
por meio da graça, o intelecto de põe a
contemplar misticamente e recebe abundantemente grandes benesses.
Progredindo na paciente concepção da
graça, ele chega às visões e às presciências pela iluminação do Espírito, e se
eleva ao nível de Deus. Ele vê a união hipostática que ultrapassa o
entendimento, esta união da natureza divina com a natureza hipostática do homem.
Ele vê a efusão do Espírito em tudo, esta efusão que Adão não viu assim, porque
não comungava da natureza divina, nem recebeu de fato a adoção de Deus.
DA ENERGIA DIVINA NO HOMEM E,
PORTANTO, DA PAZ.
17. Consideremos que está em nosso
poder a energia que está no coração do Espírito Santo, e veremos depois as
coisas que ela realiza. Consideremos ainda a energia que nos é natural e as
coisas que lhe são próprias. Veremos que nos é praticamente impossível, com
nossas energias naturais, encontrar a paz. Pois está aí, juntamente com o amor
e a alegria, o verdadeiro fruto da energia do Espírito: ser paciente, ser doce,
cheio de bondade, partilhar nossos bens com os que nos são próximos. No
imediato nenhuma energia que nos é natural se distingue do impulso da alma, a
qual é manifestamente da ordem do ardor. Mas esta energia não vem a nós sem a
vontade. A vontade do monge ativo está ligada ao desejo, como a do
contemplativo está ligada mais à tensão. É por isso que é impossível às nossas
energias naturais extinguir totalmente o desejo e o ardor por cujo intermédio
nos colocamos normalmente em ação.
Porém a energia do Espírito Santo no
coração é sobrenatural, sua gênese não reside em nada da natureza, mas ela se
manifesta de forma inconcebível naqueles que receberam a piedade: ela é
claramente suscitada apesar dela, ou, numa palavra, ela irradia luz. Pois
ninguém pode lhe dizer o que leva à energia, ao flamejamento e à manifestação
do Espírito, senão quem já recebeu naturalmente o dom de vê-la e de se regozijar
com ela em seu coração. A energia divina não tem nenhuma necessidade da vontade
nem do impulso natural para se desenvolver. É claro que o desejo e o ardor não
operam aqui, nem fazem nada. Numa palavra, a parte passional da alma cai no
ostracismo e perde a ação quando do coração sobe naturalmente a respiração do
Espírito vivificante. Mas o intelecto exulta e vive. A partir daí também a alma
encontra a paz, na calma e na absoluta e necessária impassibilidade. Ela
contempla a Deus. Maravilhosamente, sua relação com Deus, sua iluminação, sua
tensão se tornam o Espírito que ela recebeu de Deus. Assim ela vê que alcançou
o conhecimento do inexprimível esplendor mais que luminoso da beleza divina, e
ela ama abundantemente ao Deus mais do que belo. Ela se regozija em conhecer o
Pai do Senhor, que, na medida em que se pode expressar, é infinito, ilimitado,
incompreensível, ela se regozija por conhecer sua herança e a si mesma daí por
diante dentro da inefável compaixão divina, e então atinge uma paz maravilhosa,
pois percebe que não lhe falta mais nada, pela graça da extrema beleza que
ultrapassa o intelecto.
Como dissemos, quando o ardor natural é
suplantado em sua ação pela energia do Consolador, que se desenvolve por si só,
a paciência e a doçura, unidas à maior bondade, se ligam à vida da alma. Elas
são frutos do Espírito Santo, com o qual comungam os que receberam a piedade de
Deus. Mas o espírito de ilusão e mentira, mesmo que pareça agir sobre a alma
independente da vontade e do impulso de quem o recebe, não apazigua o estado
passional – ao contrário, provoca-o – não realiza nem o amor a Deus, nem a
alegria, nem a paz. Pois a mentira é desordenada, ela é inconsequente, estranha
à paz e à calma que vêm de Deus.
18. Eu fico maravilhado, Senhor, diante
da benfazeja luz da paz admirável, luz tão repousante, bem-amada, naturalmente
transbordante, cheia de graça e imensamente transbordante. Ela, e só ela, é toda
a vida do intelecto. Eu fico maravilhado, Todo-Poderoso, Mestre Santo, que uma
vez tocados pelas efervescências inefáveis de sua bondade infinita, esta possa
viver totalmente por si mesma e não por você, que está acima do ser. Pois você
é a vida que criou as vidas, e a fonte de toda bondade e de toda beleza. Se,
com efeito, a mulher não fez mais do que tocá-lo, e sequer a você, mas apenas
às suas vestes, ó Salvador, e ainda sequer às suas vestes, mas apenas às
franjas do tecido, e secretamente, e mesmo assim ela foi imediatamente curada
de toda uma vida de enfermidade e devolvida à saúde contra todas as expectativas,
que pensar, ó Rei, do que deve experimentar naturalmente, e da vida que deve
levar, e por que, aquele que, em sua bondade, você tocou com a inefável
efervescência divina, e a quem você concedeu clara e maravilhosamente sua
compaixão? Sabemos que você tomou pela mão a sogra de Pedro. E que a febre a
deixou de imediato. Ela recuperou a saúde, levantou-se e o serviu cheia de
admiração e ardor. Ora, esta mulher não foi tocada senão uma vez, e de fora:
pois você a tomou pela mão. Se então, de acordo com as palavras do Evangelho,
ela foi inteiramente curada no mesmo instante, o que será daqueles a quem você
toca inefavelmente, não uma vez, mas continuamente, noite e dia, e não em
qualquer parte de fora do corpo, mas no mais profundo do coração, você que tanto
ama suas almas, claramente auxiliando-os com sua força naquilo que lhes
acontece, consolando-os nas infelicidades e fazendo por eles miríades de coisas
boas e belas? Como então, ó Altíssimo, poderão estes homens viver para si
mesmos, e não inteiramente para você, como é natural? Ou melhor, agora que eles
vivem apenas por você, como não se considerarão infelizes, como não se
prosternarão humildemente, se se virem, por qualquer satisfação efêmera,
afastados do tão grande e extraordinário socorro de sua graça?
Glória a você, verdadeiramente
glorificado, que glorifica os humildes. E quando eles são glorificados, você os
torna ainda mais humildes, pois, com seus dons inefáveis, eles se tornam
devedores de tantos bens imensos. Quando você concede a graça aos humildes,
você se enraíza maravilhosamente em seus corações e eles são verdadeiramente
glorificados. Você disse claramente no livro de Salomão que a sabedoria de Deus
se enraíza num povo glorificado, além de toda imaginação. “É por isso que eu me
elevei no coração como um cedro do Líbano, eu que superei as coisas de baixo,
as coisas da terra. Chegado ao cume dos pensamentos divinos, atingi as alturas,
a montanha de Deus. Como o terebinto estendi meus ramos. Naqueles em quem eu me
enraízo por meio da graça espiritual, meus galhos são os ramos da glória e da
graça”.
Senhor, você é a própria verdade. O que
eu digo é inteiramente verdadeiro. É por isso que a alma pura, a alma que o
recebeu como uma esposa, tanto desejou permanecer à sua sombra, por difícil que
tenha sido. Ela mostra assim que seu fruto enche de doçura, e não simplesmente
isto, como ele se torna doce na boca. Pois a doçura do Senhor normalmente não
passa em todos pelos seus sentidos, como quando se diz: “Como o cinamomo e os
bálsamo eu dei meu perfume, e como a mirra escolhida eu espalhei o bom odor”,
ela não faz isto a todos. É o que também Paulo que dizer: “O perfume único e
mesmo foi para alguns um odor de vida que conduz à vida, para outros um odor de
morte que leva à morte”. É assim que acontece superabundantemente, se podemos
dizê-lo, com a doçura divina e a glória de Deus que se revela
concomitantemente. Não são todos, mas apenas alguns que as percebem por meio
dos sentidos intelectuais: os que se dedicam à hesíquia e que receberam a bem-aventurança
divina pela comunhão com o Espírito que dispensa a vida e a luz, em suma, os
que têm o coração puro, na medida em que é possível tê-lo. Se uma vida
tumultuada, impura, manifestamente privada da comunhão com o Espírito, fosse
digna, ela sentiria naturalmente em sua alma a glória de Deus, seu perfume e
sua doçura. Mas isto não é possível, não pode ser. É preciso a fuga do mundo, a
solidão, a hesíquia, a clausura, a vida devotada aos deveres da virtude, da
sobriedade e da vigilância, da prece e da atenção, e a tudo o que trazem
consigo os que se arrependem, a fim de lugar à insuperável bondade da
misericórdia divina. Por amor ao homem esta se inclina e permanece na alma que
a busca penosamente: é a piedade maravilhosa. Deus – ó, quanta graça! – se torna
com a alma um só espírito enraizado na profundidade do coração, irradiando uma
luz estrangeira, que cresce e se eleva em altura, estendendo-se nos ramos do
intelecto e trazendo os frutos espirituais: o amor, a alegria, a paz, a
paciência, a bondade, a nobreza e miríades de coisas boas e belas, estes frutos
que recebe aquele que deles se alimenta. Se você julgar corretamente o que
acontece aqui, você poderá ter uma ideia de que sensação de glória, de perfume,
de doçura, passa da boca à alma, quando se recebe com toda a pureza os frutos
do Espírito que dispensa a vida e a luz.
É por isso que são verdadeiramente
bem-aventurados os corações puros que possuem a ciência das virtudes. Pois eles
verão a Deus na vida futura mais completamente, mais claramente. E desde agora
eles o veem como que em garantia, segundo as Escrituras: segundo estas, não
apenas eles o veem e verão, como ainda poderão provar das coisas sobrenaturais
na medida em que agora as experimentam parcialmente e delas usufruem em Cristo.
DA VIDA CONTEMPLATIVA. DE QUÊ
O CONTEMPLATIVO PRECISA. QUE A PRECE É CARACTERÍSTICA DA PARTE CONTEMPLATIVA DA
ALMA, E QUE A CONTEMPLAÇÃO É ASSIMILADA PELOS PADRES À ORAÇÃO.
19. A vida contemplativa reside na
santa prece. Ela é sua companheira constante. Uma e outra são sementes dadas
por Deus, sementes deificantes da vida intelectual da alma. Elas são as obras
inseparáveis da alma que Deus carrega e realiza com sua lei. Para a tradição,
contemplação e prece estão de tal modo unidas que os Padres falam delas no singular:
eles as chamam de ação do intelecto e contemplação. São Isaac disse: “O ato do
intelecto se acha na pura obra deste, no intercâmbio divino, na prece
perseverante e em tudo o que se lhe segue. Ele se realiza na parte da alma que
deseja e se chama contemplação”. Veja que existe aí mais um símbolo de unidade
do que a união das duas coisas, da prece e da contemplação. Ele acrescenta
ainda que “esta contemplação purifica a energia do amor da alma, que é um
desejo natural, que ilumina o que há de inteligência na alma”. Compreenda que
existe uma única energia da parte contemplativa da alma, a saber, a prece e a
contemplação.
É o que também nos mostra são Máximo,
quando diz: “O intelecto não pode se purificar sem o encontro e a contemplação
de Deus”. E ainda: “A anacorese, a contemplação e a prece reduzem o desejo e
até o suprimento”, e “a alma é conduzida conforme à razão, quando ambas vão a
Deus pela contemplação espiritual e a oração”. E mais: “Dê à razão as asas da
leitura, da contemplação e da prece”. Assim, em tudo a contemplação é
necessária à prece e a acompanha. As duas constituem uma mesma energia do
intelecto, ou da razão, e são inseparáveis uma da outra. Esta energia é
suscitada pelo intelecto, contemplação e prece sustentando-se mutuamente quando
a razão é forte e se dedica à hesíquia com todo conhecimento. É por isso que os
Padres dizem que o intelecto que ora sem o poder da contemplação é como um
pássaro sem asas, uma vez que ele não se eleva a Deus seguindo suas próprias
disposições nem se distancia sem falhas das coisas terrestres e que não
consegue se aproximar das coisas do céu com toda a força da alma.
Segundo são Máximo, a contemplação
purifica o intelecto, e o estado de oração o leva nu até Deus. Não é preciso
dizer que o intelecto que não tende para a contemplação não será purificado,
como diz a lei de Deus. Ele afirma que a pureza do intelecto está na revelação
dos mistérios, pois a pureza do intelecto é a perfeição que faz retornar a
contemplação celeste suscitada fora dos sentidos pelo poder espiritual do mundo
de cima, o mundo das maravilhas inumeráveis. O contemplativo ora numa altura
tal que a ciência da contemplação purifica nele a reflexão do intelecto. Esta
pureza lhe permite ver a Deus com os olhos fechados, na medida em que isto é
possível. Aquele que ora se rende verdadeiramente à beatitude.
SOBRE “DEUS É ESPÍRITO, E OS
QUE O ADORAM
DEVEM ADORÁ-LO EM ESPÍRITO E VERDADE”.
20. Diz-se que Deus é Espírito, e que
os que o adoram devem fazê-lo em espírito e verdade. É dito “os que o adoram”
no plural, e não “o que o adora”, no singular. Isto é bem natural, uma vez que
ele quer salvar a todos os seres e conduzi-los ao conhecimento da verdade, ele
que preparou incontáveis e diferentes moradas para a fruição eterna dos que
serão justificados, ele, o anjo do grande conselho, o salvador que, da altura
de seu amor pelo homem, estende suas mãos para chamar aqueles cuja reflexão é
sábia, ou tola, fraca ou doente. Um mesmo caminho de salvação é assim oferecido
a todos os homens de uma vez por todas. Eles são aí levados por múltiplos
caminhos e o tomam de diferentes maneiras, conforme o estado e a resolução de
cada um; e eu acrescentarei segundo sua força e certamente segundo o
ensinamento daquele que o levou a Deus e que escolheu adorar a Deus, como foi
dito. Pois pode acontecer que não estejamos seguros a respeito de quem nos
ensina ou que duvidemos que sua natureza seja boa. Mas então falhamos com o
objetivo perfeito, que está em Deus. Outros podem ter tido um mestre experimentado
nas coisas divinas, mas, por sua inaptidão, viram-se impedidos de atingir a
perfeição. Mas uns e outros, e no fundo todos, se o quiserem, podem adorar a
Deus em espírito e verdade, seja conforme a ordem própria a cada um, seja, é
preciso dizê-lo, segundo sua força, seja segundo o dom que recebeu do Deus do
universo.
Assim, um homem simples que caminha
observando os mandamentos e vive a fé, se seguir humildemente outros homens
considerados, torna-se claramente um adorador de Deus em espírito e verdade.
Pois a fé que fala claramente de Deus e das coisas divinas e invisíveis não
pode ser outra coisa que o Espírito. De fato, o Senhor afirma: “As palavras que
eu lhes digo são espírito e vida”. Quanto aos maravilhosos mandamentos
deificantes daquele que é a própria verdade, não imagino que alguém possa ser
tão fraco de inteligência para querer se separar da verdade. De modo que aquele
que, pela fé, segue a Deus em espírito e verdade, assim como aquele que ensina
as disposições desta fé, é chamado de monge ativo e contemplativo.
Mas quem se liga ao conhecimento dos
seres ou da Sagrada Escritura, como é natural a uns e outros, que continue a se
recolher em Deus, a passar do visível, do conhecido e da carne para as coisas
do intelecto. É evidente que, elevando-se para o Espírito, e daí em linha reta
para aquilo que ultrapassa a inteligência, ou seja, para a verdade além de toda
verdade, para Deus, ele estará adorando claramente a Deus em espírito e
verdade. Do mesmo modo os que salmodiam e os que oram, se compreendem o poder
das palavras que cantam e o poder da prece, e se recolhem estas palavras em si
tanto quanto possível, adoram totalmente a Deus em espírito e verdade. Pois é
evidente que de espírito e verdade são também as santas palavras dos salmos e
das orações. E certamente aquele que se dobra sobre si mesmo na comunhão
visível e sob o impulso do Espírito, aquele que, em sua forma simples e com os
olhos fechados vê a Deus pela luz do conhecimento, também este, da maneira mais
elevada, adora a Deus em espírito e verdade.
Enfim, aquele que vê como em um espelho
a luz da glória e da economia de Cristo, na medida em que isto é possível, e a
efusão do Espírito que vem do Pai por intermédio de Cristo, animando e
consolando os fiéis, também este adora verdadeiramente a Deus em espírito e
verdade, em Jesus Cristo.
DA PRECE
21. É Deus quem ensina o conhecimento
ao homem, conforme está escrito. Mas como ele ensina? Ele dá a prece o santo
impulso que transmite luminosamente ao que ora a respiração contínua do
Espírito. Esta prece sagrada é verdadeiramente a morada, a grande morada da
graça mais do que boa. Ela é um mestre para aquele que a recebe. Ela é
manifestamente um espelho da alma: nela o intelecto vê claramente suas próprias
tendências, seus desvios, suas alienações, suas acídias, suas fraudes. Mas não
apenas isto. Ela é também o espaço da pureza, o esplendor da contemplação, o
espírito da tensão da obra divina em direção a Deus, a chama do fogo dos
desejos ardentes por Deus, a simplicidade do intelecto desembaraçado de formas,
o silêncio longe de tudo e a imensa alegria do maravilhamento. Numa palavra, o
intelecto vê e conhece infalivelmente por meio da prece aquilo que são os
estados e as paixões da alma. Ele é iniciado luminosamente nas causas primeiras
dos princípios que dão à alma seu movimento. Ela por sua vez serve às primeiras
e se liga aos últimos, tanto quanto possível, sucessivamente, a partir do
momento em que se tornam dignos de amor ou de solicitude.
Levar a vida de monge dedicado à
ciência implica assim não apenas que se conheça por meio da ascese, correta e
perfeitamente, o uso conveniente do intelecto e da palavra, da reflexão e dos
sentidos, como também que se saiba discernir o que se deve conceder ao ardor e
ao desejo, que se aprenda sabiamente, por meio da ação e da contemplação, a
formar em si mesmo, graças ao conhecimento natural da reflexão, a bela harmonia
ordenada das potências da alma, e a cantar a melodia intelectual, na medida em
que seja esta também infinitamente doce. Assim, a paz de Deus, a bem-amada paz,
e a alegria que ela produz, virão repousar no monge iniciado na verdadeira
prece e ornado com os frutos do Espírito.
Portanto, aquele que decidiu que deve
por todos os meios e de todos os modos orar continuamente, como manda o
Apóstolo, e que desta prece faz o próprio coração de suas ações, este será
contado dentre os discípulos de Cristo. E seguindo seus conselhos relativos à
sagrada oração, ele se tornará filho da graça em Cristo.
O QUE É NECESSÁRIO PARA A
PRECE, E
NO QUE ELA É DIGNA DE HONRA.
22. Se a santa prece não fosse mais do
que o mestre que ensina e mostra os deveres da virtude, já não seria ela digna
destas grandes coisas? E se ela não é apenas um mestre que ensina e mostra, mas
também um consolador que conduz a tudo o que é naturalmente da ordem dos bens,
de quantas oferendas sagradas não estaria ela acima, de quantos louvores não
estaria além? E no entanto o ensino e a consolação de pouco ou nada servem, se o
ensinado e o consolado forem fracos. É preciso um poder que estimule seu
desejo. Se você procurar, você encontrará de uma vez por todas a oração, e nela
descobrirá a energia que conforta a alma no Espírito.
É grande assim o poder da oração
naqueles que se dedicam à virtude. E está certo. Pois a prece que respira, e
por assim dizer a prece que vive, faz subir do coração um fluxo contínuo. E ela
é assim manifestamente pela comunhão e a energia do Espírito vivificante. Três
coisas são, portanto, as mais necessárias: o ensino daquilo que convém aos
espirituais, o consolo nos combates das obras e, acima de tudo, o poder que
alivia os atos e as dificuldades. Nosso Senhor, que nos deu o Espírito, disse:
“Vocês receberão o poder do Espírito Santo que virá sobre vocês”. E a este
poder ele chamou de Consolador e Mestre que ensina, quando disse: “O
Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome lhes ensinará tudo e
os lembrará daquilo que eu disse”. É assim que por meio da oração é concedida a
cada um, para seu bem, a manifestação do Espírito. A um é dado um espírito de
sabedoria, a outro um espírito de conhecimento, a outro um espírito de cura e
todas as coisas que foram mencionadas pelo Apóstolo, que são animadas pelo
único e mesmo Espírito, que se distribui em cada um conforme quer. É o que o
ensinamento de são Paulo nos revela claramente.
A quem de algum modo participa dos dons
do Espírito três coisas estão ligadas necessariamente: o poder mais alto do que
a natureza, o ensono mais elevado do que o mundo e a consolação divina revelada
nas santas palavras do Senhor, conforme dissemos. Aliás, quando o Senhor diz:
“Sem mim vocês nada podem”, ele mostra indubitavelmente que tudo o que tende a
agir tem obrigatoriamente necessidade do poder divino. E quando ele diz: “Não
chamem ninguém na terra de ‘mestre’, porque vocês não têm senão um mestre e
guia, que é Cristo”, ele quer dizer que o homem tem necessidade do ensinamento
divino para compreender o que deve fazer e o que lhe vem da parte de Deus.
Enfim, quando ele afirma: “Eu pedirei ao Pai e ele lhes enviará um Consolador,
o Espírito da verdade, para que ele permaneça sempre com vocês”, ele lembra que
a consolação é necessária e inseparável da graça.
A distinção entre os carismas se
estabelece assim por si só. Com efeito, uma coisa é a sabedoria e outra coisa
(em espécie) o conhecimento. A profecia não se assemelha a ambos. E os carismas
das curas são ainda outra coisa. Cada um dos dons do Espírito enumerados pelo
Apóstolo se distingue dos demais. Porém, qualquer que seja a graça, ela é
adornada pelas três energias do Espírito de que falamos. Com efeito, como o
intelecto criado preso dentro de um corpo poderia estar unido aos seus próprios
bens e à virtude, se não lhe fosse dado participar do poder mais alto do que o
céu, que nem os anjos possuem? E coo encontraria ele um meio de participar do
mistério mais elevado do que o mundo, sem a iniciação do Espírito? Vale dizer,
ele seria tomado de vertigem ao alcançar esta altura a que é levado pelo grande
dom de Deus e pela firme tensão da virtude se não descobrir também a santa
consolação do Deus bom.
Que devemos pensar então da prece feita
sob a impulsão do Espírito, esta prece que dispensa à alma todo dom espiritual
e traz em si o poder, o ensinamento e a consolação do Espírito Santo? De
quantos louvores não será ela mais do que digna? Quanto não devem honrá-la os
que a receberam pela graça? E quanto não devem buscá-la aqueles que ainda não a
possuem, a ela que, pela santa união, liga o intelecto a Deus em Jesus Cristo,
o Filho de Deus na verdade?
DA ORAÇÃO.
23. Quando, pela graça, o estudo
regular das coisas que cercam a Deus e o socorro do sopro do Espírito
vivificante propiciam ao intelecto um claro pensamento de Deus, que este veja a
si mesmo e considere sua própria fraqueza, e que ele considere o quanto a
negligência, o esquecimento dos deveres e o trabalho realizado pela ignorância
o afastaram daquilo que ele devia fazer. Assim, você que se esforça por
condenar a si próprio e se humilhar diante do que é justo e verdadeiro, dirija-se
continuamente a Deus pela prece, com um espírito humilde, na certeza e na
esperança do incompreensível amor que Deus dedica ao homem por inefável
bondade. Este amor transbordante nos permite aproximar com segurança do trono
da graça, como nos ensina são Paulo. Pois não é seguindo nossos caminhos que
Deus costuma agir em nós, mas é conforme sua infinita compaixão. Não tentemos
colocar em nós mesmos nosso olhar durante a prece, mas olhemos para a força da
pureza e da grande compaixão que existe em nosso Deus, nosso Pai mais do que
bom, a fim de que tenhamos em nós, sem mal, seu amor verdadeiramente salutar.
SOBRE “DEUS DISSE A ABRAHÃO:
DEIXE SUA TERRA”. E DA CONTEMPLAÇÃO.
24. Deus disse a Abrahão, ou seja, ao emigrante:
“Deixe sua terra, sua família, a casa do seu pai e vá para a terra que eu lhe
mostrarei, uma terra onde correm o leite e o mel”.
É isto que ele diz ainda agora, e mais
alto, ao intelecto que emigra e que passa do sensível ao inteligível: “Deixe os
sentidos e as coisas sensíveis – e, no fundo, a totalidade do mundo visível – e
venha para a terra que lhe mostrarei”. Estas palavras devem ser associadas ao
que disse o Senhor: “Venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres e tome sua
cruz – ou seja, crucifique-se para o mundo, para os sentidos e para as coisas
sensíveis – e venha me seguir”, a mim que subo para o Pai, juntamente com o
Espírito que a tudo dirige. Foi dito: “Deus disse a Abrahão”. Deus é o Pai que
fala pelo Verbo, o Filho. E continuando: “Venha para a terra que lhe
mostrarei”. Este é o gesto habitual do dedo, para apontar. Ora, o Espírito de
Deus é chamado de “dedo de Deus”. Pois a expressão “eu expulso os demônios com
o dedo de Deus” também aparece como “pelo Espírito de Deus” em outra parte. Os
sábios egípcios diziam: “É o dedo de Deus”, designando assim a energia
espiritual. “Para a terra que lhe mostrarei”, é como se ele dissesse: “para a
terra à qual o conduzirei por meu Verbo e meu Espírito”. “Para a terra onde
correm o leite e o mel” equivale a dizer para a compreensão do próprio Deus,
para o conhecimento daquilo que ele é por natureza.
Neste conhecimento é impossível que o
intelecto seja aquilo que ele deve ser se não for iluminado e esclarecido pela
chama do Espírito vivificante, esta chama que contemplamos por intermédio do
Filho. Com efeito, a partir daí o Deus que ama o homem convida o intelecto e se
engajar e partir como um novo Abrahão, para além das agressões dos espíritos do
mal, passando das coisas sensíveis às coisas inteligíveis, às coisas do além,
onde se alcança em sua simplicidade a visão e a contemplação da Divindade nas
três Pessoas. Ela é, por causa deste convite, revelada pelo tríplice poder e
pela tríplice energia da Origem única. Pois Deus Pai é propriamente a terra
prometida que os mansos devem herdar, bem como os de coração reto. Temos a
promessa disto pelo Espírito divino. Os herdeiros terão o ardor da esperança: a
terra onde correm o leite e o mel, as luzes da manhã, os raios gêmeos, a vida,
as delícias, a purificação do mundo inteiro, até que invoquem Aquele que nasceu
do Pai, seu Filho inseparável, quando ele se encarnará no homem como um raio de
mel e quando a raça humana será cumulada de doçura e de maravilhosa alegria
pelos ensinamentos e as graças transbordantes e pelas miríades de coisas boas e
belas. O leite é o Espírito Santo. Ele é simples. Ele não é engendrado, mas ele
procede. E sua branca luz fornece alimento divino aos seres de razão que são os
filhos chamados a entrar no Reino dos céus, como disse o Senhor.
É assim natural ver na terra onde
correm o leite e o mel o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É para esta terra que
se transporta o intelecto e para ela que ele emigra, como foi dito, sob a
condução e pelo poder e a energia da Divindade em três Pessoas. Pois, assim
como ninguém pode dizer “Senhor Jesus” – segundo Paulo – senão no Espírito
Santo, também ninguém pode levar o intelecto de sua alma para a glória e a
grandeza da unidade simples das três Pessoas, e vê-las, senão pelo poder e a
graça da Trindade, na deposição das coisas sensíveis pelos sentidos, e até das
coisas inteligíveis reveladas pela Escritura e o mundo sensível, no
distanciamento daquilo que é mensurável.
Assim, é na sua luz, na luz de Deus, ou
seja na unidade de sua irradiação, que veremos a luz, que o veremos, a você que
ilumina nossos corações e nosso intelecto. E possamos reconhecer, para
contemplá-lo, aquilo que lhe pertence e o que vem de você, a fim de que nenhuma
carne se glorifique de si mesma. É por isso que aquele que antes era Abrão, que
quer dizer o emigrado, depois de ter partido e de ter deixado tudo como lhe
fora ordenado, dirigindo-se para a terra onde correm o mel e o leite, recebeu o
nome de Abrahão, ou seja, o pai de numerosas nações. Também o intelecto digno
de ser chamado de emigrante, desde o momento em que parte do sensível, dos
sentidos e do mundo todo pelo poder e a energia da Divindade em três Pessoas,
dirigindo-se para a irradiação simples da Trindade, para a contemplação e a
visão, engendra e suscita, como se fossem numerosas nações, inúmeros grandes
pensamentos, inefáveis e misteriosos. Ele está feliz, se regozija e exulta
diante das coisas extraordinárias que lhe são reveladas e que nascem para ele,
como um pai faz diante dos seus filhos, e possui a paz que está em Cristo.
DA HUMILDADE E DA
CONTEMPLAÇÃO
25. Suas obras são admiráveis, Senhor,
e minha alma está arrebatada por conhecê-las. A mesma causa que eleva o
intelecto suscita também a extrema humildade. O que conduz a alma às alturas
infinitas é também aquilo que mais a rebaixa. A humidade é o começo da
contemplação, e a contemplação é a perfeição da humildade. Ainda que tivéssemos
toda a sabedoria deste mundo seria impossível alcançar a contemplação sem a
humildade. Quero dizer: a contemplação que nos eleva. Pois os Gregos tinham uma
contemplação que não elevava. Sem a contemplação que eleva e sem inclinar o
próprio pescoço como um anel é impossível ao homem ser humilde.
Oh sabedoria inefável d’Aquele que nos
criou tão sabiamente! Mas quem a conhecerá jamais, sem tê-la experimentado
primeiro, a partir da humildade, a mais alta elevação, e depois, a partir das
alturas, a extrema humildade? E se dizemos a propósito do intelecto semelhante
a Deus, que o que desce é o mesmo que sobe, devemos acrescentar que o que sobre
é também o que desce. Pois quando o intelecto que conhece a arte da humildade
recebeu pela graça as delícias das alturas e se regozija por trazer em si as
coisas que ultrapassam a razão, ele se coloca, pela humildade, abaixo de tudo.
Davi disse: “Senhor, meu coração não se dilatou, meus olhos não se elevaram, eu
não alcancei as coisas grandes e maravilhosas que me ultrapassavam, sem
primeiro ter me humilhado”. Entretanto, o intelecto, não sem razão, pode dizer
o contrário: “Senhor, eu não me humilhei, não me dei ao trabalho, não disse de
mim mesmo ser terra e cinzas, sem que antes meu coração não se tenha dilatado,
que meus olhos não se tenham elevado, que eu não tenha alcançado as coisas
grandes e maravilhosas que me ultrapassam”.
Oh Rei, admirável Criador! Você leva o
êxtase ao meu coração, em mim que compreendo a obra de sua sabedoria: o
intelecto que sua providência criou sábio.
26. O intelecto que retorna a Deus
pelas mãos da graça conhece em primeiro lugar um estado de condenação. Por isso
o homem que traz em si este intelecto se lamenta no luto e sofre com lágrimas.
Ele parte seu coração tanto quanto possível. A cada dia ele purifica o que nele
existe de passional. Ele se humilha naturalmente sem a menor tristeza. Mas
quando, pelo dom de Cristo, ele chega à purificação que traz a hesíquia, quando
ele se opõe em espírito às agressões inteligíveis, quando ele se eleva para
Deus e para sua glória e permanece tendendo à contemplação, ele descobre,
depois daquela primeira, uma segunda condenação, que provém do intelecto, e
esta condenação é imensa, dura um longo tempo e é sem saída. Dela, ele adquire
uma humildade mais firme, real e clara, a tal ponto, que se ele pudesse dizer
que todos os homens são bem-aventurados, ele próprio se veria como o pior dos
seres, ou antes, não somente ele se veria como o pior dos seres, mas, em
verdade e pelos sentidos da alma, ele se veria pior até do que aquilo que não
tem ser. Pois aquilo que não é, tampouco pode pecar, mas ele próprio está em
constante estado de pecado.
Daí provém sua humildade. No entanto,
ele se regozija e se glorifica de muitas coisas, embora nunca de si mesmo –
pois ele nunca cessa de se condenar por seu pecado. Porém ele se entrega ao
Deus compassivo, que o aproxima de seu sopro, ou, para falar mais claramente,
que suscita e espalha dentro de seu coração fluxos de luz celeste e rios das
maravilhas do Espírito eterno, e que ilumina o intelecto e diz de seu
conhecimento: “Eu estou com você”. Deus revela a ele seus mistérios como a um
amigo e o cumula de alegria. A ele respondemos com as palavras de Davi: “Ele
não trata segundo nossas faltas, nem nos retribui segundo nossos pecados”. E
segundo Paulo: “É pela graça que somos salvos”, ainda que tenhamos cumprido na
medida do possível com todos os mandamentos divinos, ainda que tenhamos
rejeitado todo caminho injusto na medida de nossa capacidade, e ainda que nos
tenhamos esforçado por não perder nada – se possível fora – daquilo que leva à
salvação.
Aquele que não vê a si mesmo sentindo
estas coisas e que não conhece a si mesmo experimentando-as ainda não tocou a
verdadeira contemplação. Ele não chorou o bastante. Ele não considerou a
unidade da fé e o conhecimento da verdade. Ele não viu a glória divina nas
coisas que acontecem, nem aquilo que está além dos afazeres humanos. Resumindo,
ele não alcançou a ciência das razões divinas e humanas.
DA CONTEMPLAÇÂO
27. A criação que traz em si o
inteligível e a Escritura que traz em si o espiritual testemunham a glória, o
Reino, a sabedoria, o poder, enfim, a grandeza de Deus. Mas o que traz cada uma
destas coisas? Seu testemunho é nada? É pouco, como uma gota no oceano? Não.
Pois foi contemplando a si mesmo e, por assim dizer, liberando aquilo que nele
é sábio, poderoso, glorioso ou grande, que Deus fez tudo o que fez. Ele nos
permitiu ver as coisas grandes e gloriosas, cheias de sabedoria e de poder. Ele
próprio não tem necessidade de nada. Mas ele transborda de bondade. Assim como
ele resolveu, e na medida em que resolveu, ele, com muita harmonia e avaliação
e para seu próprio bem conduziu o homem a estar, viver e passar seu tempo na
terra, e velou para ligá-lo a si e por lhe conceder o gozo que lhe convinha.
Ele criou o Adão único, mas considerando a multitude dos homens. Então ele
permitiu que se visse que sua paciência nada negligenciara, e que nada faltaria
a nenhum dos homens que viesse a habitar no mundo. A terra guardou o que a faz
corresponder às coisas de baixo; o céu, o sol, o ar e o mar estão em
correspondência com a terra. Assim, cada qual corresponde ao outro, e traz em
si esta analogia que trouxe de Deus, que conhece todas as coisas previamente e
que a tudo criou com uma ordem e um poder que exprimem a analogia e a harmonia.
Pois se o Criador não houvesse
suscitado a gênese dos seres tendo em vista o uso do mundo, mas em vista
somente de sua natureza potente e sábia, gloriosa e grande, teríamos miríades
de mundos ao invés de um único, e não mundos como o que conhecemos, mas mundos
estranhos, sobrenaturais, que ultrapassariam o entendimento. A alma não poderia
suportar facilmente a glória e o esplendor de sua beleza e de sua sábia
diversidade, e em seu arrebatamento ela quereria fugir para fora do corpo. Deus
quis fazer do homem uma obra única, o rei das coisas da terra, um outro Deus das
coisas de Deus, e de bom grado lhe deu o usufruto de todas as coisas deste
mundo. Bem disse o profeta: “Ele formou a terra do nada”. E um outro: “Ele
estendeu o céu acima das alturas como um manto”. E fazer tremer a terra apenas
por contemplá-la, que transbordamento de poder! Assim é que ele entregou ao ser
por sua simples palavra todas as coisas visíveis, mas guardou para o século
futuro as coisas mais gloriosas e melhores que ele reformou com sua morte
depois de as ter fundido no túmulo, para que a alma as possa ver. E o homem se
tornou uma nova criatura devotada a novos bens, novas delícias, novas visões.
Quanto aos homens que vemos agora, eles não passam de sombras ou de um longo
sonho, podemos dizer.
Se você quiser se assegurar disso,
considere tanto quanto puder a ordem dos anjos intelectualmente, sua sabedoria,
seu poder, que nos são não apenas inefáveis como incompreensíveis. Embora o
mundo por vir não dependa senão apenas do pensamento de Deus, tamanha variedade
e todas as coisas do além são maravilhosas. Se estas coisas dependem de um
único pensamento, porque elas jamais existiram, uma vez que era possível que se
pusessem em movimento pela vontade, a sabedoria e o poder de Deus? Mas se este
pensamento é acessível, como é possível conceber que ele seja infinito? Com
efeito, o infinito não tem limites e, onde não existem limites tampouco existe
movimento, mas o escoamento da energia a partir do poder que vem da essência,
para explicarmos a coisa em parte. O que a criação ou a Escritura revelam de Deus,
se isto pode se comparar ao poder de Deus, é algo bem obscuro, uma pequena gota
num oceano sem fundo nem fim. No entanto, possamos nós, digo eu, descobrir e
conhecer esta gota espiritual. Assim, quando tivermos estendido o intelecto
pelo infinito, depois de termos contemplado como uma gota a beleza, a glória e
as delícias, e quando tivermos celebrado por analogia, na medida em que nos é
permitido, Aquele que é para o infinito infinitamente mais que o infinito,
possamos nós, intelectos simples e infinitos à imitação dos anjos, nos
tornarmos Deus fora de todos os limites, nos unirmos a ele numa punica forma,
num estado que nos leve para além do mundo, numa regozijo inefável, numa
alegria e num transbordamento do coração, pela energia e a graça do Espírito. Amém.
DO MONGE ATIVO E DO MONGE
CONTEMPLATIVO
28. O monge ativo que se aplica em ser
manso e vigilante como deve sê-lo um ativo não deve deixar de salmodiar. Mas o
monge contemplativo não está em estado de poder salmodiar. Ele não deve
desejá-lo. Ele não o pode, uma vez que ele próprio se encontra assumido pela
energia da graça divina, levado em silêncio ao cume das delícias espirituais,
na alegria de um coração calmo que nada mais atinge. E ele não deve deseja-lo,
uma vez que ele não contempla senão uma coisa, e que ele coloca em ação a
faculdade intelectual da alma por meio de pensamentos imutáveis e pacíficos,
numa profunda serenidade. É por isso que a obra da visão de Deus passa
necessariamente pelo silêncio da contemplação. No entanto a visão pode lhe ser
concedida mesmo quando ele lê. Ele não deve se espantar. Devemos ver aí as
mutações do intelecto e o caráter composto e mutante de nossa natureza. Mas é
preciso saber que depois da leitura esta obra da contemplação pela graça ainda
é o ponto mais baixo da obra da contemplação. Tanto por si mesmo como por seu
próprio desenvolvimento, o intelecto não pode, apenas graças à leitura,
considerar o indivisível. Mas na liberdade intelectual, que se cumpre
misteriosamente no coração do silêncio, vemos no mais das vezes a unidade que
supera a divisão. O que vemos das coisas sensíveis não ultrapassa o que ouvimos
delas? Os olhos, com efeito, são mais fiéis que os ouvidos, como todos
concordam. Tanto nas coisas sensíveis como nas inteligíveis, ver, ou seja,
contemplar alguma coisa dos inteligíveis, é bem melhor do que ouvir, o que
ocorre quando lemos. Pois, assim como no caso da mulher samaritana que, depois
de falar com o Verbo verdadeiro, foi pregar sua divindade aos seus concidadãos,
mas quando o Verbo, no transbordamento de sua extrema bondade, foi ele próprio
à cidade e falou aos seus habitantes, estes disseram que não precisavam mais do
testemunho da mulher para estabelecer a divindade do Verbo; do mesmo modo,
quando a reflexão se encontra fora da alma e de suas potências, ela testemunha
da divindade pelas palavras da linguagem com as quais ela fala.
Mas quando a alma e tudo o que há nela
vê pela graça a divindade do Verbo, já não é mais o tempo em que ela tinha
necessidade do testemunho de fora. Quem escuta deve, com efeito, ver o que
escuta. Quem vê não precisa que lhe sejam ensinadas as coisas que ele vê, uma
vez que ele é contado entre os que veem, entre os que têm olhos. É o que
podemos observar em Tomé, que ouviu e não foi persuadido, mas disse: “Se eu não
vir, não acreditarei”. Mas quando ele viu, ele gritou: “Meu Senhor e meu Deus”.
Naquilo em que ele não acreditava antes de ter visto, ele próprio reconheceu a
verdade; aquilo que ele não possuía quando apenas escutara – ou seja, a fé –
ele adquiriu no momento em que viu.
É preciso, portanto, distinguir a
contemplação da ação, do mesmo modo como distinguimos o intelecto dos sentidos.
29. As criancinhas e os homens na flor
da idade precisam de leite. Mas para uns o leite é um alimento, para outros um
prazer. O mesmo acontece aos monges ativo e contemplativo quando eles leem os
salmos. Um o faz para confortar e afirmar sua alma, o outro – o contemplativo –
o faz por prazer, e sobretudo para deixar repousar o fogo de seu coração, sua
tensão para Deus e o fluxo de suas lágrimas. Pois o Espírito abalança-se nele,
o cumula de alegrias nos esplendores da beleza de Deus, o transfigura de glória
em glória e o faz crescer. Mas a compleição da carne a argila do coração são
fracas. Assim, o monge ativo passa seu tempo nas palavras divinas para o
conhecimento, o ensinamento e a ciência que elas fornecem. Mas o contemplativo
recolhe em silêncio o conhecimento das palavras de Deus. Nenhum discurso é
capaz de expressar o que ele aprende inefavelmente e o que ele vê em sua contemplação.
A Escritura diz que o ouvido escutará as maravilhas da hesíquia. Ela diz:
“maravilhas” Mas ela não pode dizer quais são estas maravilhas. Ela não tenta
expressar o que não é exprimível nas coisas que ultrapassam a razão. É por isso
que eu quero chamar de bem-aventurados os monges ativos a quem a palavra divina
glorificou por terem acreditado antes de ver. Mas eu considero que os
contemplativos são ainda mais que bem-aventurados. Pois se o monge ativo,
embora sem ver, recebeu apenas por sua fé a bem-aventurança, tudo o que diz
respeito ao contemplativo é inconcebível, pois ele caminha numa fé bem mais
elevada do que a do monge ativo. Pois ele vê as coisas grandes e maravilhosas,
ele experimenta as elevações em seu coração, ele está naturalmente todos os
dias em estado de contemplação.
30. O Criador e Ordenador do universo
concedeu o desfrute aos dois componentes do homem que se correspondem e assim
deu à vida um só e mesmo nome. Ao homem exterior ele ofereceu toda a criação
visível. Ao homem interior, que é a alma, ele ofereceu o que há de inteligível
na criação sensível. Pois assim como no homem o inteligível está unido aos
sentidos, também em toda a criação visível a beleza inteligível pode ser
percebida no coração de cada coisa. Não há nada nas coisas sensíveis – é o
mínimo que podemos dizer – que esteja privado de conexão com o intelecto. E é
bastante natural. Pois nada, de tudo o que foi feito para o homem pela palavra
divina d’Aquele que domina o universo, pode existir sem razão. Ora, é isto que
aconteceria se a criação sensível não estivesse penetrada pelo intelecto. Como
o corpo se contenta com a sinergia do visível, a alma cristã permaneceria
vazia. O corpo seria melhor do que a alma, o que é absurdo. E de onde a alma
tiraria a vida que lhe é própria? De Deus? Mas então uma criação sem razão irá
contra a ordem d’Aquele que a tudo criou pelo Verbo. Pois as substâncias
separadas que são as dos seres compostos seriam inferiores, se esta criação nos
coubesse sem mediação, uma vez que tais substâncias se dirigiriam por si mesmas
a Deus. Seria preciso ao contrário se elevar a partir dos simples inteligíveis
e descobrir as delícias da visão? Mas se acontecesse que inteligências
materiais, ultrapassando sua natureza, rivalizassem com as inteligências
imateriais para tender para o bem, só isto já nos permitiria alcançar uma ordem
semelhante à dos anjos. Pois estes possuem suas vidas em si mesmos e tendem à
beleza primeira. A partir de si mesmos eles desfrutam das auroras da luz única
de Deus. Mas nós que, por nossa natureza, estamos abaixo deles e somos segundos
depois dos anjos e das ordens que por assim vêm depois deles, em nosso nível
nos recolhemos em Deus e em sua beleza, sem colocarmos na frente as substâncias
separadas, ou as coisas simplesmente inteligíveis. Pois esta é a obra angélica,
a obra dos que descobrem por si próprios a tensão divina. Mas avançando pela
razão a partir dos seres compostos e chegando às criaturas simples, passamos ao
incriado como as coisas da natureza, conforme eu já disse. Nós nos recolhemos
na simplicidade em nós mesmos e em Deus.
É por isso que, a fim de que possamos
desfrutar, viver e nos elevarmos a Deus em nosso intelecto, os é necessário
contemplar o inteligível espalhado por todo o sensível e unido às coisas visíveis,
este inteligível que o monge ativo não pode ou não quer ver. Ele não pode, se
não tiver um homem, ou a Escritura, para lhe mostrar. E ele não quer, mesmo que
lhe seja dado, quando, por presunção ou malícia, ele desconfia de seu próximo,
não crê senão em si mesmo, jamais provou do ensinamento dessas coisas e
considera que as indicações da Escritura são para ele um guia suficiente. Ele
se contenta em colocar a criação a serviço de seu corpo, pensando que é nisto
que reside a piedade. Isto lhe basta, e ele não busca nada além. O
contemplativo, ao contrário, recolheu o invisível na criação visível, descobriu
aquilo que na Escritura concorda com o Espírito, e com passo alegre partiu para
as substâncias separadas. Ele vê a beleza de seu esplendor, ele se regozija em
atravessá-las pela graça e ele se dirige para o incriado inteligível de Deus.
Dedicado às delícias do infinito e da contemplação, na medida do possível, ele
está, na simplicidade e no sobrenatural, inefavelmente suspenso no raio da
beleza divina. Num maravilhamento mais alto do que o mundo, num estado de
unidade e de simplicidade, ele desfruta naturalmente da beleza inexprimível e
deste esplendor luminoso. Ele está cumulado de alegria e de admiração. Assim
ele recebe o fluxo sem fim do regozijo divino, e em sua generosidade ele mostra
ao monge ativo, por suas palavras e seus escritos, o caminho que conduz à
verdade.
DA COMUNHÃO COM O ESPÍRITO
SANTO
31. Você sabe quem se difunde no
coração dos fiéis e qual é o signo desta efusão? É acima de tudo o Espírito
Santo quer procede do Pai pelo Filho, e que preenche o mundo. Ele está inteiro
em tudo, e se difunde inteiro em cada um dos fiéis. Ele se distribui
impassivelmente e se dá numa comunhão irresistível. O sinal de sua comunhão, ou
de sua efusão em nós, é o desejo pela humilde pobreza, as lágrimas que não
cessam de correr sem dificuldade, o amor verdadeiro, o amor total por Deus e o
próximo, a alegria do coração, o regozijo em Deus, a paciência nos deveres, a
mansidão para com todos, e simplesmente a bondade, a união do intelecto, a
contemplação, a luz, o ardente poder da prece contínua, enfim, a ausência de
cuidados com as coisas temporais e a memória do eterno. “Como são maravilhosas
suas obras, Senhor!”. “Da cidade de Deus se disseram coisas verdadeiramente
gloriosas”; a cidade de Deus é aqui o coração fiel.
32. Se depois que ele se fez ouvir você
compreendeu o grande Conselho de nosso Deus, conselho inconcebível em sua
bem-aventurança, que nos foi revelado pelo amor sobrenatural do Pai pelo homem
e que Jesus nos trouxe e transmitiu, ele que na bondade transbordante de sua
santidade que ultrapassa o entendimento e em seu amor pela raça se fez por nós
o Anjo deste grande conselho que recolhe todas as razões das coisas visíveis
numa única razão concisa que Deus prometeu nos dar, se você compreender você
nunca deixará de estar maravilhado, alegre e em paz.
33. Se você conheceu o objetivo que nos
foi assinalado pela grandeza de Deus, e o que por este objetivo acontece entre
nós e Deus, e se você compreendeu o que Deus quer para nós, como ele cumpre o
que é nosso e o quanto nos falta daquilo que lhe pertence, sua obra será cheia
da tristeza amada por Deus e de uma humildade total e verdadeira.
DA CONTEMPLAÇÃO
34. Quem medita a respeito de tudo o
que o amor de Deus lhe permite experimentar nas visões intelectuais, verá sem
dúvida se erguer em sua alma três coisas que as Escrituras e os Livros santos
sublinharam com fervor – que se fosse preciso que os homens as adquirissem por
todos os meios – ou seja, a fé, a esperança e o amor, que são o cumprimento, ou
antes o fundamento, de todas as virtudes da ação e da contemplação. Esta é
verdadeiramente a trindade santa que está em nós e que pode nos unir à
Santíssima Trindade, se a levarmos como se fôssemos anjos.
35. O intelecto são contempla
geralmente ao redor de Deus três ordens de sistemas, que são por sua vez
trinitários: a ordem pessoal, a ordem natural e a ordem que se segue à natural.
A primeira trindade se revela ao intelecto principalmente pelas Santas Letras.
A trindade natural é descoberta a partir da contemplação dos seres. Quanto à
trindade que se segue à natural, ela provém da verdade da razão. Portanto,
quando o intelecto penetra na primeira ordem trinitária, ou mais precisamente
quando ele tende para ela, ele encontra o inacessível, mas ele ainda não se
tornou simples. Quando ele atinge a segunda ordem, maravilhado, ele descobre a
alegria da sabedoria. Mas quando ele penetra na terceira trindade, ele entra
verdadeiramente na treva, aonde está Deus. Ele se torna totalmente simples,
infinito, para além de todo limite, num estado no qual não existem nele nem
figura nem forma. Quando enfim ele considera, ou melhor, quando ele tenta ver
estas três ordens como uma décima ordem na qual os pregadores da verdade dizem
que toda a plenitude da divindade reside num corpo[1],
então ele enxerga verdadeiramente a paz que o ultrapassa, na natureza perfeita
da graça da contemplação.
36. Se ele subdividir novamente, o
intelecto contemplará então no dom apaziguador de Cristo três estados que
organizam no mistério a graça espiritual: o que está além do mundo, o que
abarca o mundo e o que está em si. Nesta unidade trinitária, ou no dez, ou na perfeição
da contemplação, o intelecto, pela bondade da graça, celebra na alma os aguilhões
do amor de Deus e os mistérios deste amor. Ele brilha ao redor deles, ele se
torna radioso, ele irradia uma luz de felicidade. Ele próprio não vive senão em
espírito. Ele volta para Deus o amor da alma. Tanto quanto possível, ele o
transporta para o eros divino. A
partir de então ele começa a amar a Deus, e com razão. Ele se eleva e avança ao
redor deste amor, ele se liga aos mandamentos, ele os contempla, corre para
eles tanto quanto pode. Ele se esforça continuamente para desabrochar pela
graça, na medida em que isto lhe seja permitido, e para realizar ciosamente em
si mesmo o amor divino. Então Deus e o intelecto se tornam maravilhosamente um
só Espírito. Do mesmo modo como Deus está espiritualmente no intelecto que o
recebe, o intelecto está em Deus que o penetra. Considere aqui com clareza o
que diz Paulo: “Aquele que se liga ao Senhor se torna um com ele em Espírito”.
A partir daí Deus se torna para o intelecto irradiação, luz, eros, amor. E o intelecto se regozija em
Deus com maravilhosa alegria, exultando nu esplendor único da tripla luz. Ele
se acalma e repousa naturalmente em Cristo com arrebatamento.
37. Quer as expresse, quer as conceba
ou as veja, possa o intelecto contemplativo preferir dizer naturalmente diante
de Jesus encarnado estas cinco palavras referentes à glória, ao amor, à graça,
à paz e ao repouso.
Primeiro a palavra de glória: o Verbo
se reflete na criação do visível e do inteligível. Pois “tudo foi criado por
ele e nada do que foi feito foi feito sem ele”; os séculos e o que está na
eternidade, ou seja, a ordem do mundo mais alto do que o céu e, com mais forte
razão, o mundo temporal. Mais ainda, ele é da mesma natureza e está sobre o
mesmo trono que Deus Pai e o Espírito. Ele é a imagem do Deus visível e a
irradiação de sua glória. Ele é naturalmente tudo o que o Pai tem. É por isso
que ele está no Pai e o Pai está nele. Depois vem a palavra de amor: pois o
Verbo se fez carne a partir de nós e habitou entre nós. A palavra da graça:
Pela efusão e o dom do Espírito vivificante em nós, pois todos recebemos de sua
plenitude, e graça por graça. A seguir a palavra de paz, esta paz cuja boa nova
o Verbo anunciou aos que estavam próximos ou distantes dele; ele fundou a paz e
reconciliou o que está sobre a terra com o que está nos céus. É por isso que o
Pai nos ressuscitou e nos estabeleceu com ele nos lugares celestes em Cristo.
Enfim, a palavra de repouso: pois por ela nos tornamos incontestavelmente
herdeiros de Deus. Não apenas nada é mais forte do que Deus, mas ninguém se
iguala Àquele que, além de toda medida, é maior do que o infinito.
A partir de então aquele que é
conduzido em espírito e verdade por estas cinco palavras contempla na Trindade
única as três palavras conjuntas em vista do extraordinário cumprimento do
único objetivo secreto. Assim, pelo amor e a temperança, pela vigília, a
leitura e a oração, na humildade fundamental
e na justiça ativa, na medida do possível, ele progride simultaneamente
para as contemplações de Deus e as contemplações divinas, e ele vive só com
Deus, não dando a menor atenção a si mesmo, nem se abandonando ao medo que se
agarra a ele. Desde então ele usufrui inefavelmente dos numerosos e luminosos
carismas do Espírito, no santo amor, na alegria do coração, na paz
sobrenatural, nos bens que acompanham a verdade. E ele se torna um templo de
Deus, um novo herdeiro. A graça o faz herdeiro de Deus por adoção de uma vez
por todas.
SOBRE O QUE DEUS DISSE A
ABRAHÃO:
“EU MULTIPLICAREI A SUA
SEMENTE.”
38. A partir daí, quando, pelo poder do
Espírito que dá a vida e a luz, eu contemplo o Senhor, o Deus-Homem, com o
olhar apaziguado da alma, e quando eu lembro claramente das cinco palavras a
seu respeito, eu vejo maravilhosamente cumprir-se a promessa que o Verbo
encarnado fez um dia a Abrahão quando lhe anunciou: “Eu multiplicarei sua
semente como as estrelas do céu e como as areias à beira-mar”. Da mesma forma,
quando ele diz: “Todas as nações serão benditas na sua semente”, esta semente,
para são Paulo, significa Jesus. A semente multiplicada de Abrahão é, por
conseguinte, o Senhor Jesus, que, pela união e a energia da divindade, é o
único capaz de suscitar a superabundância. Sua grandeza é infinita, sua
amplitude insondável, sua verdade multiplicada como as estrelas do céu ou a
areia à beira-mar, pois ele é o Deus das graças. É precisamente dele que provém
a raça de Abrahão. Deus não fala aqui de Ismael, pois este não era filho de uma
mulher livre. Está escrito: “É de Isaac que lhe virá um filho”. Ele também não
fala de Israel, pois não é tanto de uma multitude que abarcaria todos os homens
da terra, mas do Senhor, do Cristo assumido, a partir da semente de Abrahão,
por Deus o Verbo: uma pessoa única, homem e Deus. Somente a paz não tem
fronteiras, seus julgamentos são um abismo e seus caminhos são insondáveis. Seu
poder, sua sabedoria e todo o divino que o cerca são no infinito infinitamente
infinitos. Nele as nações invisíveis foram abençoadas contra toda espera, e tal
multiplicação se cumpre através daquilo que havia sido previsto. Mas não era
conveniente nem necessário a Deus prometer ao patriarca que lhe concederia a
graça de multiplicar o povo com sua semente. Pois regozijar-se destas coisas é
no mínimo pagão e grosseiro. Mas um homem devotado ao melhor, como Abrahão, e
amado por Deus como o era este patriarca, não podia senão amar e se regozijar
com toda sua alma pelo conhecimento e a contemplação de Deus que se abriam para
ele, uma vez que daí ele recebeu uma superabundância de pensamentos, de
contemplações e de iluminações divinas, que se multiplicavam cada vez mais,
como convém a Deus.
Assim é que Moisés soube admiravelmente
suplicar, a fim de ver claramente a Deus que lhe aparecera. E quando ele o viu,
ele foi considerado tão justo que se multiplicou. E dele veio tamanha soma de
conhecimentos divinos que nem se pode mencionar. Também Salomão recebeu de Deus
uma profusão e uma soma de sabedoria e de ciência dos seres igual à areia das
praias. E ele se multiplicou mais do que todos os seus contemporâneos.
Se refletirmos a respeito disto
descobriremos facilmente como Deus multiplica o homem ou a semente do homem que
recebeu a graça. Com efeito, Deus não se regozija simplesmente com a multitude
de um povo. Ele se regozija com a sabedoria, a ciência espiritual da alma e com
as outras virtudes divinas que estão além de todo número. O Senhor Jesus, que
possui todas estas virtudes em superabundância, é ele próprio o cumprimento da
sabedoria de Abrahão, ele, em cujo corpo habitou toda a plenitude da divindade
que ultrapassa infinitamente toda ordem de grandeza. É dela que provém toda a
superabundância e os tesouros do conhecimento e da sabedoria ocultos em Cristo.
E este é verdadeiramente o dom que convém a Deus, este dom eminente prometido
com toda justiça ao eminente amigo de Deus, Abrahão.
Veja assim em Jesus Cristo a divina
multiplicação, como que infinita, das cinco palavras de que falei. Em primeiro
lugar a irradiação da natureza divina é revelada pela glória que envolve
Cristo. Pois ele é verdadeiro Deus. As meditações teológicas dos Padres sobre a
grandeza são infinitas, e são insondáveis aquelas sobre a abundância da
multiplicação. Pois tudo o que diz respeito à filiação do Pai, a justa doutrina
da consubstancialidade, as coisas da comunhão do Espírito, a efusão dos dons
dos quais participam miríades de homens – talvez a terra inteira – e que jamais
diminuíram, e ainda as coisas da economia da encarnação, e tudo o que daí
decorre, tudo isto é inefável e sem número. Ora, tudo isto, para resumir, o que
provém da glória, o que provém do amor, da graça, da paz, de nosso repouso,
tende a se multiplicar secretamente, na medida em que é permitido, mais do que
o número das estrelas do céu e do que os grãos de areia das praias, em Jesus
Cristo, a semente de Abrahão. Esforcemo-nos para louvar e glorificar tão alta
promessa, maravilhosa e secreta, digna somente de Deus, a fonte das graças,
feita a um amigo fiel eleito entre todos, para a imensa felicidade comum da
raça humana, em especial dos crentes. Glória Àquele que quis que assim se
multiplicasse a semente. Amém.
SOBRE “LOUVE A MINHA ALMA AO
SENHOR”.
39. Louve minha alma ao Senhor pelo céu
dos céus, este céu cujo ser é a luz. Louve-o acima dos céus, por seus anjos e
suas potências. Profundamente louvados sejam seu poder e sua sabedoria. Bendito
seja seu santo nome. Louve ao Senhor. Louve-o pelas águas que estão abaixo do
firmamento e pela luz que está acima das águas. Louve-o pelo firmamento do céu,
por sua ordem e seu giro maravilhoso. Louve-o pelo azul que a tudo inflama.
Louve-o pelo sol, a lua, as estrelas, por sua glória e beleza, por sua
diversidade, sua posição e seu movimento, por seu estado flamejante e sua
ardente existência de fogo sem matéria, esta coisa inteiramente terrível.
Louve-o pela luz do dia, e pela sua mudança quando se extingue, esta mudança
por meio da qual com toda sabedoria ela cobre por igual tudo o que há no mundo.
Louve minha alma ao Senhor pela paz e o
equilíbrio maravilhosos nos quais se enfrentam os elementos irredutíveis, os
quatro grandes elementos do todo: a água, o fogo, o ar e a terra. Louve-o pela
imensa proliferação e pela diversidade dos pássaros, pela providência que
dirige sua vida e seus movimentos. Louve-o pelo mar e sua enorme potência que é
quebrada pela coisa mais frágil de suas margens, a areia. Louve-o por todos os
seres inumeráveis que vivem nas águas, com tamanha diversidade de formas, de
grandeza, de qualidade, de condutas, de hábitos, de costumes, de força e de
energia. Na paz e no arrebatamento, louve ainda ao Senhor por tudo o que o mar
pode reunir tão depressa e que contribui para as necessidades da vida do homem.
Com alegria louve ao Senhor pela terra,
os animais e as serpentes sem número que se deslocam sobre ela, tão diferentes
e variados. Louve-o igualmente, é certo, pelas árvores que crescem e que, paradoxalmente,
dentro de uma mesma família, dão frutos ou não os dão, numa diversidade
incomparável. Louve-o pelas ervas, os frutos, os cereais, os legumes, que estão
ligados aos perfumes, ao calor, ao frio, à umidade e à secura, e que diferem
por muitas razões que ultrapassam a razão. Louve-o pelas águas que se dividem e
se repartem, pelas chuvas, a neve e a geada, pelas tempestades e pelos raios.
Por estas coisas e por outras
semelhantes louve, minha alma, e bendiga ao Senhor, por seu poder
incompreensível, sua sabedoria inefável, sua glória inexplicável. Pois todas as
coisas visíveis lhe foram dadas por este Criador no indizível amor que ele tem
por você, desde que no meio de todas essas coisas luminosas e gloriosas você veja
em sua intimidade e em sua razão, que você reflita a glória, a sabedoria e o
poder de seu Criador que nos amou a ponto de nos dar seu filho único, que se
fez homem, coisa nova e maravilhosa que ultrapassa a inteligência.
DA CONTEMPLAÇãO
40. É preciso que se diga: o que concebeu fazer o poder de
seu poder, que ultrapassa todo poder, Mestre supra-essencial, mais alto do que
o ser? E o que quis você por meio deste poder, Rei mais do que sábio? Que quis
você em sua incompreensível benevolência, Deus mais do que bom? E o que fez
você, Senhor mais do que glorioso que domina o universo, em seu amor infinito,
na inefável providência de sua bondade por nós? Glória à sua infinita bondade
com que, sem limites, nos cumulou em sua previdência, sua sabedoria e seu poder
que não compreendemos, você que em tudo é totalmente inacessível. Possa eu
dizer, também eu, com o bem-aventurado Davi: “Como são grandes as suas obras,
Senhor, e profundos os seus pensamentos”. Pois eu vejo pelo intelecto, tanto em
verdade como em espírito: eis que a casa do Senhor está cheia de glória. Mas da
mesma maneira, ao mesmo tempo em que eu recebo esta visão, eu me vejo, também
eu, na morada da glória do Senhor, repleto de glória e de graça, cumulado do
repouso inefável e da indizível paz eterna. Eu estou, e não sem razão, totalmente
fora de mim, atingido, ferido pelo aguilhão do amor divino, e queimo com o
ardor do desejo do amor, na alegria espiritual, na felicidade e no mais alto
regozijo, acima do mundo. Pelo dom de Deus eu estou até o fundo do coração
cheio da santa luz do Espírito, esta lâmpada que jamais se extingue, se podemos
nos expressar assim. Assim eu penetro nas razões dos seres, reunidos numa única
razão secreta com todas as razões do universo, e vejo todas as coisas da
Escritura convergir para esta razão. Mistérios me são revelados, conduzindo a
esta razão única, manifestando-se por ela apenas aos que veem em espírito em
espírito e em verdade. Esta razão é o grande Conselho de Deus. É por ela que
Davi cantava quando a viu: “O Conselho do Senhor reside na eternidade, e os
pensamentos de seu coração de geração em geração”. Pois ninguém jamais poderá impedir
o Conselho do Senhor. Este Conselho se vê e se transmite não por um
ensinamento, mas por uma graça espiritual anipostática iluminando
verdadeiramente o intelecto e dispondo-o a enxergar o que está além do mundo.
“Quem conhece o poder de sua cólera,
Senhor? E quem considera seu ardor e o teme?”, diz a sagrada Escritura. Mas a
sabedoria espiritual em mim diz também: quem conhece o poder do seu amor? Quem
pode medir seu eros a partir de seus
atos? Maravilhosas são as obras de seu amor, Senhor, minha alma sabe-o bem. O
conhecimento do seu eros é um
maravilhamento. Mas quem pode tender inteiramente para ele? Este conhecimento,
que se estende infinitamente até o infinito, não está apenas acima de tudo pela
qualidade, mas também pela diversidade. Não podemos falar dela, porque ela
provém de uma e outra fonte, numa sabedoria sem limite e na correspondente
potência, ó Senhor inefável. Pela natureza, o poder, a energia, você é a
Unidade. Pelas hipóstases, pelas propriedades pessoais, é a Trindade. Seja
bendito, você que nos abençoou com a benção espiritual total na Pessoa de nosso
Cristo Jesus, por meio de quem você nos revelou e nos estabeleceu nos pousos
celestes acima de todo princípio, de todo poder, de toda potestade, de toda
dominação, de todo nome pronunciado neste século ou no século futuro, você que
nos fez herdeiros com ele, herdeiros seus em tudo, herdeiros da Trindade do
Deus único, e que maravilhosamente nos deu o poder sobre tudo o que há no céu e
na terra. Pois é nele, em Jesus Cristo, que nós, os terrestres, fomos
justificados pela razão e pela graça.
Você, Deus da Trindade, que transborda
de amor divino e do maravilhoso eros!
Por seu intermédio participamos do dom de Deus o Verbo. Você é verdadeiramente
glorificado, Senhor que nos contemplou assim com a sua glória, acima de todo
entendimento, você que é verdadeiramente inefável, e que faz o que é
incompreensível, e que mantém oculto o eros
que, além de toda medida, lhe traz até nós.
41. Bem-aventurado o homem cujo sentido
intelectual refloresceu graças à admirável hesíquia e que retornou por assim
dizer a si mesmo e que vive pela inspiração e pela impulsão do Espírito.
Redirecionando as disposições da alma, despertando o intelecto e transformando
sem dificuldade o coração, este sentido é pela graça o fruto de uma reflexão
sã, quando esta voa na direção do divino. Mas ela não pode retornar a si sem a
experiência da hesíquia e a pureza que a graça dá ao intelecto. Isto é tão
impossível a um homem quanto nadar no ar. Com o sentido intelectual, sua
lembrança e sua contemplação de Deus são eficazes e úteis; sem ele é como se
houvesse um esquecimento de Deus, e sua lembrança é mais ignorância e ceticismo
do que contemplação e conhecimento. Aquele que pela graça encontrou este
sentido divino é como se tivesse encontrado a Deus: ele não tem necessidade de
palavras; ele se mantém próximo a Deus. Ele foi escolhido para celebrar a
liturgia divina. Ele abraça o silêncio, ou melhor, ele se cala ainda que não
queira. O Espírito de Deus permanece nele. O amor, a paz, a alegria espiritual
se erguem nele. A vida que ele vive não é a mesma vida habitual e comum, pois
ele se regozija em Deus e seus olhos veem a luz intelectual, pois eles próprios
são olhos do intelecto. Seu coração guarda o fogo. A simplicidade, a
imutabilidade, o infinito, a ausência de limites e de começo, o eterno se unem
maravilhosamente nele para arrebata-lo. As lágrimas não cessam de correr de
seus olhos. Ele tem em seu coração nada menos do que a fonte de água viva, a
água espiritual. Ele encontra a unidade e a totalidade ao se unir ao
inteligível. Ele se cerca da luz do único. Ele desfruta das delícias que estão
acima do mundo. Ele é arrebatado pelo êxtase, ele brilha de alegria,
maravilhado, fora de si, absorvido por Deus.
Quem experimentou isto compreenderá e
celebrará com justeza ao Deus Altíssimo, além de toda imagem, de toda
qualidade, de toda geração, de toda quantidade, simples, sem forma,
inexplicável, sem começo, eterno, incriado, incorruptível, incompreensível,
insondável, mais alto que o ser, mais que poderoso, mais que bom, mais que
belo. A ele o louvor e a glória pelos séculos dos séculos.
DA ILUMINAÇÃO DIVINA
42. Senhor, aos insensatos a sabedoria
diz: “Venham, comam meu pão e bebam o vinho que preparei para vocês”. Assim eu
me confiei ao seu inefável amor pelo homem, Senhor, e chego a você,
verdadeiramente insensato que sou por ser pecador em todas as minhas ações.
Assim eu imploro, ó compassivo, eu lhe imploro, conceda-me o dom do alimento
espiritual e da bebida de seu Espírito, este Espírito que é também
incontestavelmente a própria luz. Pois os seus o dizem: os que trazem o
Espírito trazem também a luz. Assim, quando a luz surgir inefavelmente, eu
saberei que ela está em mim de um modo que ultrapassa a natureza. Pois você
será para mim minha vestimenta, minha vida santa e bem-aventurada. Os que
trazem a luz como a possuem os seus, de você se revestem, aurora luminosa da
glória do Pai, vida verdadeira e sem mistura. Tais homens, como seus santos,
revestiram-se do Pai. Assim são eles claramente as mansões, as moradas, os
templos da Divindade três vezes luminosa, a Divindade celebrada acima de tudo.
Eles deixaram o visível, separaram-se do inteligível, eles repousam
espiritualmente em você, a Divindade mais que divina.
DE ONDE VEM O EROS DIVINO NA ALMA
43. O eros divino vem habitar na alma por meio dos mandamentos e dos
dogmas de Deus, quando o Espírito vivificante volta a se iluminar no coração. Então
ele se inflama com um fogo ardente. Este amor é como uma alma cheia da divina
oração pura, eterna, sempre transbordante: ele é um movimento, uma energia, ele
unifica e agrega, é êxtase e visão, a alegria verdadeiramente sagrada que
provém da iluminação. Ele é o caminho reto da união perfeita e maravilhosa que
vem de Deus, é a fonte incontestável da luz supranatural, esta luz intelectual anipostática
de que falam os Padres. Ele é a fonte dos dons da deificação, da segurança da
futura herança dos santos, das garantias da glória de Cristo, da vestimenta
mais que celeste da alegria que paira acima do mundo, do selo da santa adoção,
numa palavra, do esplendor de Cristo, que torna semelhantes a ele os que o
recebem e lhes permite participar de sua inefável deificação. Eles serão
chamados de irmãos, de herdeiros de Deus, herdeiros com ele: isto é uma coisa
absolutamente maravilhosa.
Por isso é bem-aventurado aquele que,
votando-se ardentemente ao que dissemos, pode adquirir o eros inefável de Deus e se dedicou à santa oração levando uma vida
voltada para a hesíquia. Pois ele estará verdadeiramente ligado a Deus e
transformado pela mudança deificante que ultrapassa o intelecto. Sofrer por
Cristo será para ele uma alegria, ele se consagrará inteiramente aos seus
mandamentos. A ele a glória por todos os séculos dos séculos. Amém.
DO EROS DIVINO
44. Deus está naturalmente no infinito
infinitamente acima de toda contemplação, mesmo a dos querubins. Mas de certa
forma podemos contemplar seu eros,
que provém de uma infinita bondade. É por meio dele, pela força do eros, que o criado é feito inteligível e
que o visível se torna inteligível através das razões inteligíveis das
criaturas. É por isso que o eros
divino, desde sua primeira efusão, se manifesta nos seres inteligíveis, ou seja
nos anjos e nas almas que estão mais próximos de Deus e são com ele
aparentados. São principalmente as naturezas inteligíveis que têm como
característica a divindade. Pois por meio delas Deus cria também as outras
naturezas em seu amor e grandeza de alma, ou mais precisamente na grandeza
intelectual que é sua, como já revelamos. Assim é possível àqueles que
contemplam em plena luz, de um modo ou de outro, o eros d’Aquele que em si é totalmente invisível, verdadeiramente
verem através das coisas visíveis, como nos templos, o inteligível que está
acima dos mundos.
Entre Deus que ama o homem e o homem
que é amado, muitas coisas provêm profundamente do eros divino quando ele atrai das muitas maneiras que lhe são
naturais e, sobretudo, quando o intelecto faz do coração iluminado sua morada,
trazendo em seu espírito a visão que o inflama. É então que a alma recebe pela
graça no coração as garantias da vida espiritual. É dado a ela sentir a energia
do intelecto: ela começa a contemplar sobrenaturalmente na luz divina, sem erro
e com toda segurança, os dons d’Aquele que a ama. A partir daí, ela se sente
chamada a se lembrar dele e busca continuamente voltar aos seus dons. Com
alegria ela representa para si o rosto d’Aquele que a ama e se maravilha desmesuradamente,
se consome de amor por Deus e já não se permite sentir ou conceber outra coisa
senão isto. No transbordamento da contemplação ela já não sabe, ela ignora que
ela é. Assim engajada, ela se torna radiosa, ela exulta, ela se regozija, ela transborda
de felicidade, ela ama a Deus, ela alcança a fervura do eros, é conduzida aos mistérios de Deus, é levada ao fogo do
coração pelo Santíssimo Espírito vivificante.
Existe aí um círculo sagrado todo feito
de doçura: o círculo do amor. Este círculo é maravilhosamente animado pelo eros divino que revela a aparição das
criaturas, este eros por meio do qual Deus, tomado de amor por nós, indica
manifestamente o caminho que faz de nós seres tomados de amor por ele. Assim é
que Deus se faz amado por nós e nós, que proviemos de Deus no princípio, a ele
retornamos. Quando chegamos à semelhança divina em imagem, pela doçura e o
regozijo do eros que recebemos de
Deus, tornamo-nos bons e sábios, ou seja, somos ativos e contemplativos, somos
amados por Deus e amamos a Deus, experimentando os mistérios da união
vivificante e do êxtase, numa palavra, a paixão bem-aventurada da luz radiosa
do conhecimento, em Cristo nosso Senhor.
DO TEMOR NO AMOR
45. Vocês que escolheram o amor de Deus
e o repouso espiritual do eros
místico, vocês que com toda sua sensibilidade carregam o cálice divino, que com
ele estão inefavelmente radiosos e felizes, vocês que contemplam as
profundidades dos mistérios que estão acima do mundo, que desfrutam do
indizível e repousam na mais profunda paz, temam ainda e orem, atentos a Deus,
votados à humildade de todas as maneiras, e ouvindo aquilo que o divino Davi
disse abertamente a Deus: “Você é minha alegria, livre-me daqueles que me
encarceraram”; e também o que ele ensina em sua natural nobreza, por ser
portador do Espírito: “Sirvam ao Senhor com temor e regozijem-se nele com
tremores”; vejam igualmente a Paulo, o vaso de eleição, que foi arrebatado até
o terceiro céu, que entrou no paraíso sagrado e que ouviu as palavras inefáveis
que nenhum homem pode dizer, e que depois de tão grandes coisas ainda temia
ensinar aos outros sem ter ele mesmo aprendido o bastante.
Do mesmo modo, se o divino Davi, o
mestre da terra inteira, diz: “Vocês que amam ao Senhor, execrem o que é mau”,
é como se ele ensinasse abertamente: “Vocês que amam ao Senhor, temam”. Ele via
que a malícia tentava se opor invejosamente ao amor a Deus e se misturar
naturalmente à alma. É por isso que ele também disse, àqueles que amam ao
Senhor, que chegaram a este estado, que estão atentos em execrar a malícia: “Se
vocês aprenderam que devemos execrar a malícia, mesmo assim ainda devem temer”.
Pois se não houvesse nada mais a temer, o profeta não ordenaria execrar àqueles
que amam a Cristo.
Pois se regozijar-se e exultar em Deus
contemplando os mistérios naturais consiste num estado elevado, num estado
elevado verdadeiramente cumulado de graça, ainda assim nossa alma é
naturalmente mutável e muito próxima da matéria terrestre e do corpo que esta
cultiva. Ela deve se cobrir rapidamente do temor na luta que a faz tender ao
eterno, mas ela espantosamente se une à matéria. Quer queira, quer não, ela
respira com ela, sofre com ela, muda naturalmente de forma, como se, podemos
dizê-lo, não tivesse nenhum poder. A matéria se opõe a ela implacavelmente e a
comanda de muitas maneiras levando-a à ruína. Assim é que se torna necessária a
prece suscitada pelo temor. A alma que tende para Deus tem necessidade tanto do
temor quanto do tremor. E eu peço aos mais nobres dentre os que me ouvem para que
se esforcem para ver e discernir o que são esta atenção e esta prece, a partir
do momento em que a alma contempla estas coisas pela graça luminosa do Espírito
e experimenta ardentemente o amor a Deus.
Se Adão tivesse tido naturalmente o
temor, uma vez que ele recebeu tanto dom profético, do qual ele usufruía e que
o levou a imitar a Deus, ele não teria sido vencido tão pouco nobremente. Mesmo
Sansão, nascido da promessa, mesmo Davi que trazia a Deus em si, e tantos
outros, dos quais o mais admirável foi Salomão. Se tais homens foram vencidos,
é porque eles tinham necessidade do temor, da luta, da atenção e da prece. Que
pensar então dos que ainda não alcançaram o dom e a energia sobrenaturais do
Espírito? E dos que ainda não se elevaram no êxtase do eros divino, neste amor louco que nos conduz à beleza visível de
Deus? De quanto temor, quanto tremor, quanta atenção e quanta prece não
necessitam estes em Jesus Cristo, com o coração humilde e constantemente?
DAS TRÊS FORMAS DO AMOR
46. A experiência mostra que o
princípio do amor é triplo e que analogamente as coisas primeiras são triplas;
assim sendo, as razões do amor são triplas.
Existe o amor sensível, ou seja, o amor
dos sentidos, voltado para as coisas sensíveis; este amor consiste num desejo
passional por aquilo que se quer. É assim que, na maior parte dos casos, amam
os animais desprovidos de razão.
Existe outro amor que consiste num
impulso da alma, um impulso da razão em direção ao que pensamos ser o bem, e
para que recebamos os benefícios que nos traz o bem.
O terceiro amor é o amor do intelecto.
Mas este provém do Espírito vivificante. Um encantamento sobrenatural empurra a
beleza para dentro do coração sem que se queira, inflamando e ativando a
contemplação do bem supremo, ou seja, de Deus. Pois não é por sua vontade, mas
por natureza, que a alma considera que Deus é belo, e que ele é infinitamente
mais belo do que tudo. Assim, seu eros
não se inflama sob a ação da vontade. Pois ele é sempre suscitado pela energia
natural do Espírito vivificante que age no coração, na mesma medida em que este
está longe de ser animado pela vontade. Ao contrário, é ela suscita
naturalmente a vontade. O consolo divino, como é natural e conforme foi dito, é
assim a energia de Deus levada à alma pelo sopro e vinda do Espírito. Ela é a
relação da alma com Deus que nos dá a vida. A consolação que ela traz é
maravilhosa: ela é a união e a compaixão. Ela leva todo o intelecto a se unir
com toda força, com todas as potências da alma, à beleza divina no desejo
intelectual do belo.
Segue-se daí que a consolação não é
propriamente nada do que foi dito: nem o apetite do sensível, nem o desejo do
bem. Só é chamado consolação o amor da beleza intelectual percebida pela
contemplação, este amor que provém da energia pela qual o impulso do Espírito
Santo é suscitado pelo coração de maneira sensível. E o Espírito Santo que
coloca em ação esta energia é chamado de Consolador. É esta energia que é
verdadeiramente o amor; as duas outras formas de amor não passam de ídolos. O
amor da alma que busca pelo raciocínio o bem para o bem é naturalmente um ídolo
do amor divino e espiritual. Quanto ao amor sensível, ele é uma consequência do
amor psíquico.
É praticamente impossível conhecer
racionalmente as coisas do amor, a doçura e a consolação, e menos ainda o que é
a pureza do coração, se este não for animado, de modo contínuo e manifesto,
pelo poder vivificante do Espírito Santo. Pois o raciocínio não é capaz de modo
algum de colocá-lo em movimento do interior da sede das potências da alma, vale
dizer, o coração. Ele só consegue fazê-lo desde o exterior. O mesmo acontece
com os sentidos, com mais forte razão. É por isso que por meio do raciocínio e
dos sentidos só é possível amar de modo parcial, idólatra e tenebroso. Mas o
poder e a energia do Espírito Santo vivificante, penetrando até o fundo e o
interior toda a morada da alma, e suscitando e conduzindo, em seguida, com seu
encantamento, as potências da alma na contemplação intelectual da extrema
beleza, arrebata a alma ao mais alto ponto em direção à beleza divina, pelo
amor verdadeiro e o encanto que estão acima do mundo. Portanto, somente aquele
que traz a Deus em si e que está divinamente animado por este poder que
mencionamos, é capaz de compreender com toda certeza, no secreto de sua alma, o
que é o amor verdadeiro e o que é sua fruição, e como nenhum homem pode amar de
verdade coisa alguma, nem amar ao próprio Deus, antes de tomar parte no
Espírito vivificante, ainda que ele seja capaz de amar de modo geral. Pois ele
não sabe o que é verdadeiramente o amor e o inefável prazer que este traz em
Jesus Cristo nosso Senhor, a ele toda a glória pelos séculos dos séculos.
QUE O INTELECTO ALCANÇA A
CONTEMPLAÇÃO DE DEUS
DE TRÊS MANEIRAS
47. Assim como o movimento do corpo
necessita de outro elemento dentro de sua própria ordem, a saber, os olhos, e
de mais outro elemento que esteja acima de sua natureza – a luz –, também o
movimento do intelecto tem necessidade de outros elementos: em sua própria
ordem, os olhos, e acima de sua natureza, a luz. É por isso que nem todos os
movimentos da alma são convenientes. A ela só convém aquele que é suscitado
pela graça dos olhos e da luz.
Os olhos do intelecto são a porta do
coração que se abre pela fé. A luz é o próprio Deus que age pelo Espírito no coração.
E assim como a luz sensível não produz nada de justo sem os olhos, por lhe
faltar aquilo que a vê, também a luz inteligível, Deus, não anima o intelecto
de quem não abriu a porta do coração. Mas nem os olhos podem fazer nada sem a
luz, nem a abertura do coração serve sem Deus. Ou antes, é impossível ao
coração se abrir se Deus não agir nele, e sem que ele, o coração, veja.
COMO PARTICIPAR DA VISÃO
48. Quando o coração se une ao
intelecto por meio da graça, este, sem erro, vê através da luz espiritual e
tende para aquilo que deseja, que lhe é próprio e que é Deus. Ele está
inteiramente fora dos sentidos, ou seja, fora de qualquer cor, qualidade ou
imaginação: ele descansa das imaginações do sensível. Nosso intelecto é como um
vaso divino que recebe tanto quanto lhe é possível o inacessível esplendor da
beleza de Deus. Trata-se de um vaso maravilhoso, que se dilata sob a abundância
do Espírito divino quando este o penetra. Quanto mais o Espírito aflui, maior
se torna o vaso. Se o Espírito penetra pouco, o vaso diminui, e se torna mais
frágil quanto menor o fluxo. Se o Espírito o penetra com força, o vaso o acolhe
em si e guarda sem perda aquilo que recebeu. Mas se ele recebe pouco, ele se
torna frágil e inapto, e já não consegue reter o que foi vertido. Ele se torna
mais leve quanto mais recebe. Mas se torna mais pesado e mais ligado à terra
quando permanece vazio daquilo que lhe convém. A ele é mais fácil conter mais
do que menos: ele é o contrário dos vasos sensíveis, que são mais aptos a
conter menos do que mais.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava em Deus, e o Verbo era Deus”. Pela imensidão destas palavras dilata-se o
intelecto que as escuta. Levando a ele a mais alta luz, Deus abre ao intelecto
as mais vastas imensidões. Pela amplidão que sua voz emprestou à contemplação
de Deus, tornou firme o intelecto permitindo-lhe alçar-se por si só e se tornar
apto à elevação, contendo ao extremo a sabedoria divina. E quando Jesus,
falando de Paulo, disse a Ananias: “Ele é para mim um vaso de eleição”, devemos
entender isto como no sentido do homem interior: arrebatado ao terceiro céu,
como ele próprio escreveu, Paulo recebeu palavras inefáveis, que não é
permitido ao homem dizer.
DA CONTEMPLAÇÃO
50[2].Em
que lugar está nosso intelecto quando recebe o esplendor da manifestação de
Deus? Ele possui uma propriedade maravilhosa de que iremos falar e que o opõe
ao lugar corporal. Pois este recebe mais na medida em que mais cresce, enquanto
que com o intelecto acontece o contrário. Quanto mais ele se recolhe e se
fecha, mais consegue acolher. E quando ele chega a reduzir a zero todo
movimento da razão e da inteligência, bem como todo e qualquer movimento, ele
consegue ver o que é grande e maior do que tudo: ele vê a Deus. Ele o vê na
mesma medida em que a graça do Santíssimo Espírito Santo lhe concede, e que a
natureza material e criada lhe permite ver Aquele que está além das coisas
visíveis. Ele não imagina no vazio, nem repassa sempre o mesmo pensamento, como
em um sonho. Mas pelo poder inefável do Espírito divino na luz do coração,
operando e experimentando a transformação que ultrapassa a natureza e que ele
recebe pela graça, ele repousa em calma e seu coração vigia. E antes ignorar
quem se é do que ignorar esta energia divina e espiritual. Pois neste momento
acontece um movimento contínuo do coração, um movimento espiritual feito de
calor e transbordamento de vida que na maior parte das vezes vem acompanhado de
doces lágrimas. Este movimento coloca em paz o coração não apenas em si mesmo,
mas com todos os homens. Ele engendra a pureza, a bem-aventurança, as súplicas
silenciosas, a abertura do coração, a alegria, o prazer inefável. O homem que
descobriu este movimento por ter ouvido falar dele foge verdadeiramente, e não
apenas em aparência, de todo prazer corporal, toda alegria mundana, toda
riqueza, toda glória das coisas exteriores, que são abolidas.
Quem recebeu todas essas coisas carrega-as
de fato, divina e espiritualmente, com o coração e o intelecto, e não apenas
pelo simples raciocínio. E não é com esta luz sensível que ele se regozija,
pois se deixando distrair pelos sentidos ele torna menos vívida a luz divina, a
luz verdadeiramente doce do intelecto. É por isso que, desde que ele se dedica
a esta, por pouco que seja, parece-lhe ser possível confortar um pouco o homem
exterior: ele suporta tudo, ele aguenta tudo, ele se torna forte em tudo por
sua atitude interior feliz no amor divino e na contemplação. Já nenhuma
aflição, para não dizer nenhum pecado, lhe pesa.
É por este lugar, ou seja, pelo intelecto
amoroso, que Davi tanto penou, que ele ensinou o desejo e confortou sua fadiga,
quando ele disse não ter concedido o sono a seus olhos, nem descanso às suas
pálpebras, nem repouso à sua face até que tivesse encontrado um lugar para o
Senhor. E o sábio Salomão prescreveu: “Se o espírito do rei se levantar contra
seu coração, não deixe seu posto”. Também o Salvador ordenou a seus discípulos:
“Levantem-se, vamo-nos daqui”. É deste lugar que ele falava, quando celebrou a
Páscoa ritual numa sala no andar de cima[3].
É por isso que, quando chamamos de bem-aventurados aos pobres de espírito,
penso que esta pobreza de espírito significa a retirada do intelecto para fora
de todas as coisas, por assim dizer, seu desnudamento e seu recolhimento em si
mesmo. Pois então o intelecto não apenas vê o Reino de Deus, mas também o
experimenta: ele adquiriu a paz no regozijo imortal.
DO ATIVO E DO CONTEMPLATIVO
51. O contemplativo recolhe os frutos
do prazer da melhor parte, que é a verdadeira contemplação, quando se dedica ao
silêncio e contempla a Jesus. O monge ativo ignora este prazer que ainda não
experimentou: ele se inquieta e se agita com muitas coisas – ele canta, ele lê,
ele esgota seu corpo e despreza, como preguiçosos que não fazem seus deveres,
aqueles que voltaram suas faculdades intelectuais para as coisas inteligíveis
que não aparecem aos sentidos, mas que produzem um prazer inefável aos que a
elas se dedicam e uma alegria inexprimível aos que nelas repousam. Sequer
ocorre ao seu espírito, ao que parece, que diante do verdadeiro Verbo de Deus
que de nada necessita em seu grande amor pelo homem cessa todo regozijo
pessoal. O regozijo passa a nascer então da contemplação divina, pois Deus é
perfeito e não precisa do repouso que nos é próprio. É por isso que ele louva e
acolhe a Maria sentada a seus pés, nutrindo-se da contemplação de suas palavras
e despertando em si o homem interior para melhor compreendê-las. Mas ele não
louva do mesmo modo a Marta, embora ela se inquiete e se agite por muitas
coisas, como está escrito. Não apenas ele as exorta à melhor parte, como ele
ensina, com elas a todos os homens a não acusarem de ociosidade aos que desejam
contemplar e consagrar sua vida ao repouso, mas sim a louvá-los e imitá-los
tanto quanto possível.
COMO CONTEMPLAM OS
CONTEMPLATIVOS
52. Nas coisas presentes que já vieram
ao mundo os contemplativos contemplam como num espelho e em enigmas o estado
das coisas futuras que estão para nascer. Mas assim como o espelho não mostra
em si nada que tenha uma consistência real, embora aquilo que ele mostra exista
– pois qualquer um que ame a verdade reconhecerá que o que se contempla num
espelho é a clara imagem de uma realidade – também as coisas que existem e que
virão não possuem outra consistência e outra substância do que a que mostram,
mas revelam ao menos as imagens incontestáveis de realidades verdadeiras. Elas
receberam a faculdade de contemplar e conduzem certamente à própria verdade.
Assim, quando você ouve Paulo dizer que
caminhamos pela fé e não pela visão, não pense que ele fala da fé que provém de
se ouvir dizer. Senão, como poderia ele dizer: “Eu agora conheço em parte, mas
então eu conhecerei como sou conhecido”, e: “Quando chegar o que é perfeito, o
que é parcial desaparecerá”? Percebe que este conhecimento das coisas presentes
leva a contemplar o que ele será no século futuro, e que a única coisa que
separa o conhecimento do século futuro do conhecimento do século presente é
como aquilo que separa o imperfeito da perfeição em sua forma única? Quem
afirma caminhar pela fé e não pela visão diz também: “Assim eu corro, mas não
ao azar, e luto, mas não como quem combate o ar”, tão certo e verdadeiro era
seu conhecimento das coisas do século futuro.
Ele não é inconsequente consigo mesmo
quando diz essas coisas, longe disto, mas parece sê-lo devido ao duplo sentido
da fé, como é duplo o sentido da visão. Pois existe uma fé que precisa de
provas, porque nascida de uma simples asserção, e existe uma fé que não
necessita nenhuma prova, pois algumas evidências convencem suficientemente
aquele que crê: esta é aquela a que chamamos de fé anipostática.
Você compreenderá mais claramente o que
quero dizer por meio de um exemplo. Suponha que eu lhe diga que vi um homem
tecendo um pano bordado e capaz de inserir no tecido animais alados, formas de
leões, de abutres, de cavalos, carros, combates e outras coisas semelhantes. Se
você não viu com seus próprios olhos este tecido, é preciso que você tenha fé
na simples asserção para aceitar sua existência. Mas se você viu não o tecelão
mas o tecido, você saberá por isso mesmo, sem necessidade de alguém que lhe
diga, que se trata de obra de um homem; pois não acontece na natureza que um
tecido se faça sozinho, ou que possa ser tecido por algum outro ser semelhante
a ele. A partir daí é outra fé, diferente da primeira, que preenche sua alma. É
assim que o sentido da forma visível, como dissemos, é descoberto pela fé. Por
exemplo, você viu um homem com cabelos louros, ou morenos, eventualmente
longos; tudo nele é harmonioso, os olhos, a tez, o nariz, os lábios, todos os
traços pelos quais se revela a forma de um rosto: esta forma que você viu é anipostática.
Se lhe perguntarem como é este tecelão que você não viu, você poderá demonstrar
de modo geral e com toda certeza, por haver visto o tecido, que aquele que o
criou é um homem. Mas você dirá que ignora a forma anipostática deste homem,
porque você não o viu com seus próprios olhos. Você não negará que se trata de
um homem, não se recusará a reconhecer que quem teceu o pano bordado tenha uma
forma humana: mas esta forma é vista de modo impessoal. Embora ela não tenha
sido contemplada, ela é recebida sem hesitar de uma maneira geral, quase como
se você o tivesse visto realmente.
Existe assim, repetimos, uma fé que
trazemos em virtude de uma simples asserção e por ouvirmos falar. E existe uma
fé anipostática que provém do fato de estarmos claramente persuadidos. Assim,
existe uma forma que pertence a alguém, que é contemplada em sua realidade
fundamental[4] e
à qual chamamos de anipostática; e existe uma forma que não pertence a uma
pessoa, mas que é contemplada de forma geral e não se expressa nas numerosas
diferenças deste gênero.
Todos os contemplativos possuem em si a
fé anipostática. Mas em geral eles veem uma forma que não é anipostática. Pois
se Deus não é uma forma inteligível, como pode ele ser chamado de beleza? A
beleza de Deus contemplada pelo intelecto fora de sua pessoa simboliza esta
forma inteligível, eminente, profundamente admirável e gloriosa, que suscita o
arrebatamento da alma, que cumula e ilumina o intelecto com luz intelectual,
banhando-o num esplendor abundante e diversificado, e abrindo-o ao sentido de
Deus. Depois de sua visão, Manué disse: “Estamos perdidos, mulher, porque vimos
a Deus”. Quem quer que tenha visto esta forma confessa que ela é uma aparição
de Deus. É também nesta forma que Moisés viu a Deus, conforme está escrito:
“Deus apareceu a Moisés em uma forma, não num enigma”. Mas se Deus fosse
inteiramente desprovido de forma divina, ele seria totalmente invisível. E,
como a beleza se amolda à forma, tampouco a ela veríamos.
Se, ao falarmos de Deus, deixássemos de
dizer que a forma cabe à divindade, o mesmo ocorreria com a beleza, e com mais
forte razão com a face, que exprime a forma e a beleza. Ora, vimos que foi dito
pelos Profetas que ele próprio não possuía nem forma, nem beleza, que lhe
faltava a forma[5].
Mas o Profeta dizia isto do Verbo, a partir do momento em que este pendia do
madeiro como um dos malfeitores, sem demonstrar em si mais nenhum sinal da natureza
divina. Quanto à natureza humana, com efeito, mesmo que ela não tivesse mais
nenhuma beleza devido à morte, é evidente que ela tinha no mínimo a forma de um
morto. Davi celebra isto ao dizer que ele é belo com toda beleza, mas não em
sua natureza humana. Pois ele acrescenta: “A graça se espalha em seus lábios”,
o que manifestamente se aplica à divindade, à qual a beleza está ligada. Davi
menciona frequentemente a face de Deus. Ora ele diz: “Você retirou sua face, e
eu caí”, ora ele clama: “Não retire de mim sua face”, ou: “Afaste sua face de
meus pecados”. Assim, se ele não recusa dizer que a face e a beleza são
atributos de Deus, fora de toda imagem e de toda realidade fundamental, é justo
dizer a mesma coisa da forma, que é face e beleza.
É a mesma coisa que pensava Paulo ao
dizer: “Eu corro, mas não ao acaso; eu luto, mas não como quem combate o ar”.
Pois não podemos ver a Deus em si mesmo, nem tomar parte do que ele é em si
mesmo. Mas podemos vê-lo de outra maneira. O Incompreensível se deixa compreender.
É também por isso que Davi nos aconselha a buscar sempre a face do Senhor, a
fim de que, penetrando na visão de sua divindade, possamos descobrir a graça
imensa e inefável, o regozijo e o prazer divinos. Ele fala assim a Deus, a
respeito de si mesmo: “Eu serei cumulado por ver a sua glória” Pois a glória do
esplendor da face divina se ergue, abundante e infinita, sobre aqueles que
contemplam a Deus em espírito e em verdade. O regozijo e as delícias da glória
são inesgotáveis, e por assim dizer insuportáveis em sua superabundância para
aqueles que o experimentam. Mas para os que não o viram nem provaram elas são
indescritíveis e inconcebíveis. De fato, se nenhuma palavra pode descrever a
doçura do mel a quem nunca o experimentou, como se poderia mostrar as coisas da
luz que ultrapassa o intelecto aos que nunca a viram, que jamais receberam o
regozijo e o prazer divino que estas coisas trazem?
Não diremos mais nada. São Paulo, que
tinha a fé anipostática em Deus e a forma de Deus eminente, mais do que bela
mas não hipostática, dizia caminhar segundo a fé, e naturalmente pela fé
anipostática, não pela forma contemplada em sua realidade fundamental, pois a
fé não suscita sozinha a deificação incriada. De fato, diz são Máximo: “Eu
chamo de deificação incriada à iluminação da divindade em sua forma
anipostática”. Esta iluminação não tem origem, mas se manifesta de maneira
inconcebível naqueles que são dignos dela. E no entanto é através da forma que
podemos ver a beleza, esta beleza da qual o grande Basílio disse: “Que existe
de mais digno de amor do que a beleza de Deus?”. E também: “A verdadeira
beleza, a mais digna de amor, que somente o homem de intelecto puro pode
contemplar, envolve a divina e bem-aventurada natureza”. É neste sentido que
Paulo pode dizer de si mesmo que era ignorante na arte de falar, mas não no
conhecimento. Pois é grande quem chegou a este conhecimento por meio do qual
conhece em parte, em sua forma inteligível, a Deus que ultrapassa o
entendimento.
É este conhecimento parcial que teve também
Moisés vendo a Deus. Ao considerar a forma divina e a beleza que não podemos
ver na realidade fundamental, ele disse: “Se tenho achado graça aos teus olhos,
rogo-te que me faças saber o teu caminho, e conhecer-te-ei, para que ache graça
aos teus olhos”. Uma vez que já lhe haviam sido reveladas a manifestação divina
e a glória da beleza, mas não na realidade fundamental de Deus, ele pedia o que
é o mais perfeito. Mas Deus não lhe concedeu aquilo que sequer o olhar dos
anjos – como de toda alma dotada de inteligência – pode ver, e que ultrapassa
os limites de todo conhecimento. Pois Moisés era vidente: ele vira a Deus nas
trevas, não na hipóstase, mas na forma e na beleza inteligíveis fora da
realidade fundamental. Assim Deus se deixou ver. É o que disseram Moisés e
Elias, e de modo geral os diversos profetas que viram a Deus.
Nós caminhamos pela fé anipostática
nascida da contemplação de Deus, confirmada pela glória irradiante da beleza de
sua face, atestada pela visão de sua luz que ultrapassa todo esplendor, e não
pela fé que provém da simples afirmação daquilo que ouvimos dizer. Caminhamos
pela fé anipostática, não pela visão da realidade fundamental. Não é no século
futuro que teremos necessidade da fé. É aqui que está a fé anipostática. Então
veremos mais claramente a inteira beleza da glória divina. Agora a vemos
primeiro como sombra. Como dizia Gregório o Teólogo: “Quando uma visão chega a
uma aparência de verdade, ela está fora de si mesma”. É o que está simbolizado
pelo que vemos na sombra. Pois então a coisa será face a face. O parcial
desaparecerá e o perfeito será revelado. Mas agora, como disse santo Agostinho:
“A visão parcial de Deus é o que arrebata toda alma dotada de razão no ardente
desejo de sua glória”. Com efeito, é nisto que a alma se torna simples e em sua
simplicidade vê uma única coisa: o segredo de Deus que ultrapassa tudo. Nesta
forma, nesta beleza, nesta face, toda inteligência se cobre de alegria, de
beleza e de luz. Ela é alegre, bela e luminosa no Espírito, e está para além do
mundo. É por meio delas que ela estende, se eleva, transporta até o
arrebatamento sua faculdade contemplativa. É por meio delas que a alma é
misteriosamente iluminada, que ela é cumulada de regozijo e prazer divinos.
Numa palavra, é por meio delas que são glorificados e deificados aqueles que
amam contemplar e ouvir a divina Origem, e que se tornam seus amigos, seus
discípulos, os iniciados de Deus, mesmo que ainda estejam ligados à carne. É
por meio delas enfim que eles veem e refletem como num espelho, pelo sentido do
intelecto, a fruição dos bens futuros e, em parte, a condição do século por
vir, que o olho não viu, o ouvido não ouviu, nem o coração do homem realizou.
SOBRE: “JERUSALÉM CONSTRUÍDA
COMO UMA CIDADE CUJOS HABITANTES VIVEM JUNTOS. PARA LÁ SOBEM AS TRIBOS, AS
TRIBOS DO SENHOR EM TESTEMUNHO DE ISRAEL”.
53. Jerusalém se traduz como “lugar de
paz”. Ela é o símbolo do l ugar de Deus, ou seja, da alma que carrega a paz em
Cristo. No entanto, não é a qualquer alma que é dado possuir a paz em Cristo e
inscrever em si mesma o nome da paz, mas à alma construída como uma cidade, a
alma que possui a pedra angular, a pedra venerável que Deus colocou a Sião como
promessa. Sião é o lugar de observação, lugar alto de Jerusalém, o símbolo do
intelecto contemplativo da alma de paz. Mesmo que procuremos, não vamos
encontrar em nenhuma outra parte o intelecto que se eleva, que observa das
alturas e contempla a verdade. Ele só pode ser encontrado dentro de um coração
que teve a experiência da paz em Cristo e que foi transformado para atingir um
estado de vida que dissemina a paz.
A alma que carrega a paz divina possui
assim a pedra venerável, a pedra angular e as pedras preciosas envoltas nas
Letras sagradas com as quais são lapidadas as feras que tentam atingir a
montanha de Deus. Ela possui também o betume, ou seja, a humildade suscitada
pelo Espírito Santo, que queima sob o fogo de Deus o coração endurecido como a
pedra e aplaina o ser até fazer dele um espírito quebrantado e humilde. Ela
possui as águas das chuvas que o Salvador concede para que com elas corram rios
do nosso coração. Ela também porta a madeira imputrescível – os pensamentos da
ação verdadeira – que permitem a união. Ela traz os pregos e a dura verruma do
temor diante dos mandamentos de Deus. Ela tem o Verbo divino como arquiteto, e
também os que vêm logo abaixo, vale dizer, aqueles que, com sua ciência,
edificam as potências da alma. Ela possui os móveis, que são simplesmente obras
de marchetaria, o jejum, a vigília, a salmodia, a leitura e as demais coisas,
em uma palavra, aquilo que a razão orgânica nos transmitiu tendo em vista o
modo da virtude. Ela possui o cordão vermelho, as leis sagradas de Deus que
estão nas Escrituras. Ela possui a luz mais que irradiante, o sol do intelecto,
que se reflete na vida da alma.
Em suma, a alma que possui divina e
espiritualmente todas as coisas que recebeu de maneira sensível para a
construção da cidadela, esta alma é a Jerusalém inteligível, e ela é construída
como uma cidade para ser a moradia do Deus do universo, da Trindade vivificante
que não tem começo. Cristo disse: “Eu e o Pai viremos – espiritualmente – e
nele faremos nossa morada”. É como se ele dissesse: “Faremos nele uma cidade,
uma cidade verdadeiramente maravilhosa que se estenda até o infinito”. É por
isto que se diz: “Jerusalém que se constrói” e não “Jerusalém que foi
construída”. Com efeito, uma vez que Aquele que nela habita não tem limites, é
natural que também ela se estenda até o infinito. É por isso que não se diz “a
cidade que é construída”, mas “ela é construída como uma cidade”. Pois ela se
constrói por si mesma. A convergência dos numerosos e variados trabalhos tende
a um cumprimento comum numa mesma obra construída em altura, comprimento e
largura. Deste modo a cidade pode ser chamada com razão de “Moradia do Reino
que não tem começo”. Mas uma vez que o infinito habita nele, não se pode pensar
que o edifício possa ter um fim, coisa que não acontece com as cidades que são
construídas. É por este motivo que nas Letras sagradas ela é chamada não de
“cidade que foi construída”, mas daquilo que é “construído como uma cidade”. E
este é o sinal evidente de que ela é Jerusalém e que ela é construída como uma
cidade: seus habitantes, ou seja, suas potências têm uma vida comum, elas não
estão divididas, elas não erram, não giram no vazio. Mas elas possuem uma mesma
e única vida e trazem sem perturbação a paz que está em Cristo.
Outro símbolo representa que este possa
concluir com sucesso o edifício que permite aos habitantes da cidade ter uma
vida comum. De fato, foi dito: “para lá sobem as tribos, as tribos do Senhor,
em testemunho de Israel”. Aqueles que mais acima foram chamados de habitantes
da alma são agora chamados de tribos. Pois as potências da alma que lhe são
estranhas não lhe pertencem. As potências que antes eram simplesmente as tribos
da alma se tornam as tribos do Senhor. Elas se elevaram na alma de paz sobre os
degraus divinos acima do mundo. Todas constituem em Israel – o intelecto que vê
a Deus – um testemunho e uma confirmação, e todas colaboram para a obra única
de Deus: o conhecimento de Deus. E todas essas tribos inteligíveis se esforçam
em conjunto para construir a cidade santa e pacífica de Deus que domina o
universo. Pois é verdadeiramente então que as potências da alma galgam os
degraus e permitem ao intelecto que vê a Deus tê-lo em si e compreendê-lo.
Quando as tribos ou as potências da alma dispersa e submetida à alienação e à
divisão não levam uma vida comum, é impossível que se ergam e edifiquem a alma.
Pois não existe aí nem um lugar de paz, nem Jerusalém que se construa, para que
se possa ver o signo do intelecto. Mas quando as potências se reúnem, é
impossível que elas não subam ao alto para o Senhor galgando os degraus
intelectuais que conduzem às grandes coisas, defendendo e salvando o intelecto
que contempla a Deus. Assim, quando, num estado pacífico e calmo, a alma se
constrói no Espírito como uma cidade cujos habitantes – suas próprias potências
– vivem em comunidade, as potências intelectuais se elevam nos degraus do
Senhor. Elas permanecem na unidade e na solidão, trazendo sua aliança ao
intelecto que contempla a Deus. Então, cante: “Jerusalém, construída como uma
cidade cujos habitantes vivem juntos. Pois para lá subiram as tribos, as tribos
do Senhor, em testemunho de Israel”, em Jesus Cristo nosso Senhor.
54. Sem pretender ir demasiado longe,
podemos acrescentar ainda ao que foi dito: procure saber se a luz divina, a luz
que provém da paz, começou a cobrir com sua sombra a sua alma. Descubra se sua
alma se tornou como Jerusalém, construída como uma cidade. Veja se seus
habitantes vivem juntos, se todos os seus pensamentos e suas potências estão
unificados e reunidos em seu desejo de construir uma cidade, não separadamente,
mas em conjunto; e se a esta Jerusalém, construída como uma cidade, sobem as
tribos do Senhor que sejam as potências genéricas da alma, as potências divinas
que se elevam juntas em espírito. Se você perceber estas coisas acontecendo em
você, não cesse de construir assim. Mas lembre-se da torre de Babel, de sua
construção e da divisão das línguas, e saiba que nem toda construção é boa,
mesmo que pareça assim vista do exterior. Os que têm olhos veem dois modos de
construir e de erguer em geral. Um, que é fundamentado sobre o bem e permite que
Deus venha a habitar em nós; esta cidade pode ser reconhecida pelo fato de que
seus habitantes vivem juntos e que as tribos que sobem para ela são as tribos
do Senhor, anunciando as grandes coisas que cumulam a alma de maravilhas, de
paz, de amor, de santificação, e que a edificam. O outro está fundado no mal e
leva à ruína da alma; ele pode ser reconhecido infalivelmente pela divisão das
línguas inteligíveis, pela malfadada confusão, pelas paixões que acabam por
habitar em nós como a lacraia na torre de Babel. Compreenda, portanto, o
sentido de uma e outras destas construções, e não peque ao escolher a melhor
das duas.
Mas se de tempos em tempos a paz, a
união dos pensamentos, a luz intelectual não cumulam as profundezas de seu
coração, se a contemplação de Deus não faz subir ao seu coração um prazer
inefável; se a energia anipostática do Espírito e seu fogo que reanima não
escoam continuamente do lugar mais inferior do seu coração, a ponto de parecer
esgotá-lo quando o coração traz o regozijo, a alegria intelectual, a visão
profunda e mística nos membros superiores do corpo; se sua alma não experimenta
em espírito os mistérios inefáveis; se uma alegria indizível e um arrebatamento
inconcebível não agem de modo conjunto e uniforme sobre você; se você não recebe
em seu interior a santificação de Cristo quando ela se levanta; saiba que sua
alma não é Jerusalém, que ela não se constrói como uma cidade, que seus
habitantes – os pensamentos – não estão unidos num único ser; que as tribos, as
potências universais, não se tornaram tribos de Jesus e não se elevaram até o
alto na alma para levar até aí o extraordinário, para iniciar o intelecto e
pregar-lhe o que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao
coração do homem que não recebeu o Espírito de Deus. Cuide para não construir
em si uma torre de Babel do intelecto, esta torre cujo fim é a queda, a divisão
e a confusão das línguas inteligíveis, e a perdição final, como foi dito.
Eu queria ainda lembrar por que razão
alguns tem sua alma construída como a cidade de Jerusalém e quais são a causa,
a construção e a ruína da torre de Babel. Eu queria ainda dizer por que os
habitantes da primeira vivem juntos, e por que a torre de Babel conheceu de
tantas maneiras a divisão das línguas. Mas eu me deterei aqui, velando pela
brevidade o bom entendimento daqueles que me escutam.
SOBRE “ELES ERAM NOBRES ENTRE
OS FILHOS DO ORIENTE”.
55. Nobres dentre os filhos do Oriente
são aqueles que, pela contemplação e a visão de Deus, o Oriente – a luz e o
esplendor do Sol espiritual e da justiça – tornou livres e melhores em seus
pensamentos; os que não nasceram nem do sangue nem da vontade do homem, nem da
vontade da carne, mas de Deus; aqueles cujo coração e cujo intelecto amam
permanecer nos templos divinos que estão nos céus; os que receberam os
mistérios divinos, os mistérios inefáveis do Reino; os que se tornaram o Corpo
de Cristo Filho de Deus, e seus membros, cada um de sua parte; os que formam
com ele um mesmo corpo, uma mesma herança, uma mesma comunhão; os que dele
herdaram e que tem por Pai ao Deus altíssimo, acima dos céus; os que, acima de
toda razão, tem parte na natureza divina; os que receberam o selo do Espírito
Santo vivificante, com o qual comungam, no qual vivem, pelo qual veem. Eles
estão cobertos de vestes brancas, que receberam do Espírito, e túnicas bordadas
de ouro, cerzidas de pedras preciosas e de pérolas, sua touca e sua coroa são
feitas de rubis, de diamantes, de toda espécie de pedras escolhidas, e eles
comem e bebem à mesa do Rei. Aí o alimento é inesgotável e o néctar abundante.
Pois aí todas as coisas estão em espírito, e eles as recebem em espírito.
Nestas moradias reais acontecem
inumeráveis coisas maravilhosas. O fogo que refresca e reanima, e os aguilhões
do amor atravessam o coração. Uma água viva canta e espalha ondas de vida
eterna. O ar é carregado de sopros perfumados, o Espírito dispensa a vida e a
luz de esplendor único é aí três vezes luminosa, simples, mais alta do que o
ser. Esses homens conheceram estas contemplações e estas delícias. A partir daí
eles se separaram das coisas de baixo e se uniram às coisas do alto. Eles
superaram o visível e se voltaram inteiramente para o inteligível. Eles
ultrapassaram as coisas que passam e se deitaram com as que permanecem. Eles
jazem em baixo e circulam em cima. Seus corpos os ligam e atraem para baixo,
mas o Espírito os chama e desliga os laços consumidos pelo fogo. Então seus
corpos se libertam ao mesmo tempo em que eles se elevam, rapidamente e em
arrebatamento, aos céus. Eles se tornam simples pela própria simplicidade de
sua tensão para Deus. Eles se separaram de tudo pela contemplação única de
Deus, eles são transportados da glória do Espírito a glórias ainda maiores,
passam de uma riqueza a outra mais abundante e desfrutam das delícias do
inefável. Eles dizem a si mesmos: “Maravilhosa é a riqueza da glória e das
delícias”. Depois eles são arrebatados por verem coisas ainda maiores do que as
primeiras. E como que despojados de tudo, tornam-se cada vez mais empobrecidos.
Eles mergulham no êxtase, ou melhor, eles se abrem ao êxtase e cumulam de
alegria seu coração. Eles seguem o Rei das Potências, partilham de sua vida,
penetram no coração dos anjos, maravilhados pela efusão de tão grande graça,
profundamente gozosos desta herança indizível, deste inefável amor pelo homem.
Tais são, tanto quanto eu saiba, os nobres dentre os filhos do Oriente, em
Jesus Cristo nosso Senhor, a ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos.
Amém.
Quando o intelecto viu em Cristo a
verdade divina em toda sua simplicidade, é tempo de se calar. É tempo de beber
o néctar de Deus, a bem-aventurança e o regozijo espiritual. É o tempo das
visões místicas, de usufruir das coisas sobrenaturais. Pois o intelecto vê
então manifestamente na mão do Senhor a copa cheia de uma mistura de puro
vinho. Ele vê na luz este vinho que se derrama de uma borda à outra, e sabe com
toda evidência que é inesgotável. Pois o fundo da copa que a bondade divina nos
concede dividir e por assim dizer a profundidade da riqueza e o cumprimento da
graça ainda não são visivelmente consumidos na vida presente, por maiores que
sejam a elevação a Deus e a deificação. O cumprimento e a perfeição ainda estão
guardados para o igual usufruto de todos no século futuro. Segundo o discípulo
bem-amado: “Aquilo que seremos ainda não foi revelado”. E conforme Paulo, agora
nós conhecemos em parte, mas então virá a perfeição, quando todos os pecadores
beberão com os justos da copa mística de Deus e descobrirão o fim, os espelhos
abolidos e a verdade claramente revelada, por terem alcançado a perfeição do
mistério que por ora se mantém secretamente velado. Os justos conhecerão uma
felicidade ainda mais perfeita: eles receberão a recompensa de sua esperança em
Deus e trarão os frutos das obras virtuosas, conforme está escrito: “Estarão
embriagados pela beleza de sua casa, e você os embebedará com as torrentes de
suas delícias”. É deles que o Senhor disse que abrirá o Reino do Pai e os
servirá. E é com eles que ele prometeu que beberá a nova copa e se regozijará
em seu Reino.
Mas os pecadores beberão a bile da
amargura e do luto eterno. E beberão até que saibam de que se privaram para sua
infelicidade ao recusarem o néctar dulcíssimo que o divino Davi pediu e ordenou
que se beba neste século presente, quando disse: “Provem e vejam que o Senhor é
bom”. Ora, os pecadores não alcançam este néctar. Mas os que o alcançam, os que
se deixam persuadir pelo mandamento, veem a copa e observam o vinho transbordar
de uma borda à outra. Na bondade da graça, eles o bebem e experimentam da borda
da qual ele entorna, cumulam de doçura os sentidos da alma, e cantam
naturalmente a Deus odes de ação de graças. Eles dizem: “Sua copa que nos
embriaga nos enche de delícias. E a partir daí sua inconcebível piedade, como o
vinho, como o que permanece no fundo do cálice, nos seguirá por todos os dias
de nossa vida, a vida imutável e imortal do século futuro”. Trazendo sempre em
nós estes divinos bens futuros, estaremos de fato neles, certamente provaremos
da libação de parte e de outra da copa nova e vivificante que está na mão do
Senhor. Pois os que bebem desta copa todos os dias compreendem verdadeiramente
o que está oculto naquilo que veem. Eles descobrem o fundamental no que está
disperso, e se tornam parcialmente, como em garantia, o século futuro. É claro
que os justos terão no além uma parte mais abundante e mais total daquilo que
eles já têm em parte, mesmo estando ainda ligados ao peso da carne e às trevas
inferiores.
Também é claro que Davi não disse que
todos beberão, sejam justos ou pecadores. Ao contrário, ele considerava
duvidoso que os pecadores bebam. E ele deixou subentendido que certamente os
justos beberão. Com efeito, podemos nos perguntar se os pecadores beberão, mas
não se os justos beberão. Pois para os justos isto é evidente, tão saciados
estão eles desde já pela libação, a ponto de se regozijarem e dizer: “Você me
cumulou de alegria, Senhor, pelo que me fez, e eu me regozijo pelas obras de
suas mãos”. Como “obras de suas mãos”, ele quer dizer que Deus segura e oferece
a copa cheia de uma mistura de vinho puro; que em seu grande amor pelo homem
ele a inclina de uma borda à outra; e que ele guarda para o século futuro o
vinho que ela contém. Mas desde já eles cantam a Deus em sua embriaguez: “Seu
cálice que nos embriaga faz delícias em nós, em Jesus Cristo”.
A você que me criou eu cantarei e
louvarei, Altíssimo que por sua graça distribui sobre mim suas compaixões. Rei
mais do que bom que ama as almas, seu dedo sagrado toca no mais profundo de meu
coração, como você sabe, você, o único que faz maravilhas e prodígios. Você
conduz aquele a quem você levantou a ver naturalmente as letras que sua santa
mão escreveu no livro da vida por intermédio de seu Espírito divino, e a
contemplar com seu próprio sentido do intelecto a beleza que ultrapassa todo
arrebatamento, a beleza de sua mão, e tudo o que enche de regozijo e de alegria
mística em Jesus Cristo nosso Senhor.
Existe uma paz, mais aparente do que
real, que quando o corpo vive o prazer, provoca na alma muita perturbação, chegando
a imitar a serenidade por algum tempo. E existe uma paz dos sentidos que buscam
a fuga de tudo e a hesíquia. Mas esta, embora seja incomparavelmente melhor do
que a primeira, dura pouco. Pois uma vez que a alma é perturbada pelo
pensamento, o corpo e o homem inteiro sofrem e são naturalmente perturbados.
Mas existe uma terceira paz, uma paz mais elevada dos sentidos e da alma. Uma
conduta e um esforço sutis a suscitam na hesíquia das potências da alma e de
todo o homem interior, quando se alcança a prece pura, as mais doces lágrimas e
o acolhimento prazeroso das palavras de Deus. Mas mesmo esta ainda não é a
perfeição da paz.
Com efeito, é impossível que o
flautista ou o citarista tocarem continuamente as árias mais maravilhosas, pois
eles suportam nas mãos a privação e a pena, e uma vez que lhes advém a fraqueza
e a dor eles rapidamente cessam de tocar; do mesmo modo, quando a alma dispõe
as harmonias fundamentais de suas próprias potências, o imutável não permanece
todo o tempo com ela, mas relaxa pouco a pouco; por si ou por força o ardor
diminui, ou a agitação e a acídia própria das criaturas se aliam ao peso e à
rudeza do corpo contra a perseverança.
Mas quando a alma recebeu pela graça a
vinda do Incriado que criou o universo, quando ela comungou com o Espírito
imutável e vivificante, ela se torna maravilhada e cheia de uma outra vida, ela
é trazida naturalmente à vida pelo sopor vivificante do Espírito, ela desfruta
daí por diante de uma vida sobrenatural e verdadeiramente imutável. E, assim como
ela vive pelo poder vivificante, ela vê que o criou a vida é a luz, e se
regozija em contemplar as obras sobrenaturais d’Aquele que está acima da
natureza, ela se enche de uma paz que ultrapassa toda inteligência, pela
incompreensível ação vivificante d’Aquele que criou a vida além do
entendimento, pela iluminação, pela visão, pela alegria daquilo que ela enxerga
dentro do mistério. Ela já não se altera, não relaxa, não se preocupa com as
armadilhas e as mentiras do inimigo. Ao contrário, sempre em movimento para
Deus, elas contemplam as coisas que cercam a Deus, não por sua própria vontade,
mas pelo poder e a impulsão, direi mais: pela vontade do infatigável Espírito
divino que, por sua energia e sua hipóstase, age no coração, não como
imaginamos, mas como só o próprio Espírito sabe, ele que sonda e conhece as
profundezas de Deus e que inicia os sentidos da alma que o recebem. Portanto,
quanto maior for o tempo que guardarmos atentamente iluminada sobre nós mesmos
a graça do Espírito e quanto mais vigiarmos para que ela não se extinga,
vivendo sempre na hesíquia, tanto mais seremos cumulados com a santidade e a
paz inefável e sobrenatural, em Deus, na Trindade, e traremos então
verdadeiramente sem esforço, com humildade, amor e oração, a paz do corpo, do espírito
e da alma, conforme dissemos. Pois a paz que vem com esforço ainda não é a paz
perfeita, mas esta a suscita. A paz perfeita, segundo o que nos foi
transmitido, vem sem o menor esforço corporal na calma e na perfeita celebração
do sábado, e no repouso que existe em Cristo.
Você que entendeu que não era nada, que
aprendeu com facilidade a conhecer Aquele que o criou e formou, que discerniu
em sua imobilidade o movimento que foi a causa de sua passagem ao ser, você
que, em seu desejo de amor, com toda sua disposição e de todo o seu ser, se
ofereceu ao dulcíssimo Jesus, seu Criador que o formou, você que não age senão
para contemplar sua face, você que, graças aos numerosos carismas de Deus, vive
este movimento pela ação e a contemplação, você que é criatura se tornará Deus, espiritual, em tudo
semelhante ao Criador, e se regozijará eternamente com seu Senhor e Pai na
calma do desejo de Deus, no repouso que está em Deus, por Jesus Cristo, pelos
séculos dos séculos, pois você estará além das coisas visíveis. Amém.
56. Quando eu vi, ou seja, quando eu
aprendi a conhecer pela visão do intelecto de onde eu vim para chegar aqui de
modo tão maravilhoso, e como eu me dirijo ao meu fim, em terceiro lugar eu
imagino Aquele que me conduz, me carrega, me realiza, eu penso no Pai inefável,
nem por um momento ignoro seu amor, e vejo assim de toda maneira o mistério do
fim que me envolve. Eu me regozijo com estas três coisas, mais do que posso
expressar. Mas a tamanho regozijo às vezes se segue uma tristeza não menor,
quando eu compreendo que levo uma vida incontestavelmente indigna de minha
vocação. Pois quando eu vejo, pela criação, como você me mostra sua glória
inacessível, quando eu considero o modo como, pela encarnação de seu Filho
único, você me revelou seu inefável amor por mim, quando eu conheço a inefável
união sobrenatural que você me oferece permitindo-me tomar parte indizivelmente
da contínua efusão do Espírito, eu admiro profundamente sua glória, me
maravilho com a nova compaixão que você tem por mim, pois você me permitiu
escapar a todas as coisas visíveis, elevou-me a todas as coisas inteligíveis e
me fez repousar e me regozijar inefavelmente em você, santa Trindade mais alta
que o ser.
Pretendendo Deus em sua grande
sabedoria fazer do homem um novo anjo sobre a terra, em ente celeste que a ele
se assemelhasse, nele colocou uma alma dotada de intelecto e capaz de
compreender o conhecimento e a ciência divina. É por isso que ele disse: “Eu
afirmo: vocês são deuses e filhos do Altíssimo pela graça” Vale dizer: vocês
são como anjos segundos, que contemplam a Deus em silêncio e se elevam
amorosamente para ele na luz espiritual. Mas é impossível que o homem nascido
sobre a terra possa se elevar até o estado angélico, pois claramente ele não é
puro espírito como os anjos. É pela fé que o crente, por meio de Deus
Todo-Poderoso que doa infinitamente, se torna espírito, como que transformado
em criatura divina e mística. O Salvador nos revelou isto ao dizer que o que
nasce do Espírito é espírito. E o fiel João testemunha que nascem em espírito
aqueles cuja alma se presta a isto, quando diz: “Ele deu o poder de se tornarem
filhos de Deus aos que creem em seu nome, que nasceram não do sangue do homem,
nem da vontade da carne, mas de Deus”, para se tornarem o homem interior, ou
seja, o homem à imagem do Deus que o criou.
É este nascimento, não segundo a
natureza, mas segundo a graça, que estão ligados aqueles que nascem do
Espírito, segundo a doutrina segura que recebemos. É por isso que o intelecto
que participa da graça se torna naturalmente o trono do Espírito Santo. Da
mesma forma, com efeito, que o ferro aquecido ao fogo se torna ele próprio fogo
– não que ele se transforme naturalmente em fogo, mas ele participa do fogo por
transmissão até que ele se assimile ao fogo, que ele se torne o trono do fogo e
que o fogo repouse nele – também o intelecto, ao nascer do Espírito, ao se unir
a ele ou ao se comunicar com ele, se torna Espírito e trono do Espírito:
claramente, Deus o envolve. Ele se assenta e repousa sobre ele como num trono.
Isto representa para a alma o maravilhoso início do progresso, embora ela não
penetre na ordem dos anjos – da qual se diz ser a mais baixa das potências
celestes – mas ela penetra na ordem do Deus Altíssimo. A seguir ela penetra na
ordem dos tronos, depois na dos querubins, depois na dos serafins, até receber
na totalidade a propriedade da ordem angélica, portanto da ordem mais baixa,
anunciando aos que estão próximos em Espírito os gloriosos mistérios de Deus.
Pois se, de acordo com os sábios divinos, a participação deve preceder a
transmissão, é claro que primeiramente é preciso participar do Espírito, na
medida em que o intelecto é seu trono, e assim transmitir as coisas espirituais
– como acontece com os querubins – no Espírito que revela a efusão e a
amplitude da sabedoria espiritual, para então desejar passar a sabedoria a
outros, e assim realizar-se com os serafins pelo conhecimento da sabedoria, e,
graças ao cálice e à bebida que são dados por este conhecimento, alcançar os
ardentes amores de Deus que nos despertam. É isto que nos mostra a ordem dos
serafins. Poderemos então transmitir a outros seres o calor dos amores divinos,
reanimando seu próprio fogo e atingindo a ordem que permite ensinar aos que são
próximos: a ordem dos anjos. É por isso que, antes de se tornar Deus no
Espírito e tronos de Deus, querubins e serafins, aqueles que passam pelas
ordens espirituais inferiores não estão certos de se tornarem anjos, nem de
servirem a Deus e ensinar em espírito e verdade as coisas, como exige o
verdadeiro progresso da alma, que recebe seu início da participação do Deus
Altíssimo e, conforme foi dito, se dirige a nosso Senhor Jesus Cristo.
Eu o confessarei, Senhor, inefável
Trindade, não segundo o quanto lhe cabe, Mestre, mas segundo a minha medida,
tanto quanto me é possível. Com o que lhe pertence, Deus indizível; é, com
efeito, Senhor, e se estende infinitamente acima de toda palavra e de todo
intelecto que pretenda compreende-lo ou falar-lhe. Você me criou do nada pela
grandeza de sua vontade, você me formou com suas mãos como um outro nada, e me
fez à sua imagem e semelhança. Mas eu sou vão diante de tais coisas preciosas e
glorificadas. Falta-me miseravelmente o reconhecimento para com seus
mandamentos cheios de santidade, de alegria verdadeira e de criação divina.
Pois é maravilhoso que antes mesmo de ter me concedido ser você tenha, por mim,
pela minha vida, para que eu possa vê-lo, conhecê-lo e experimentar o extremo
prazer espiritual das coisas que o cercam, criado um mundo de tamanha grandeza
de beleza e de glória, de tamanho poder, tamanha sabedoria criadora, um mundo
coberto de coisas tão abundantes e diversas sem as quais eu não poderia viver
sequer uma hora, e com as quais eu vivo feliz em meu corpo, das quais usufruo e
com as quais me alimento. É por intermédio delas, quando eu as contemplo em
minha alma, que eu compreendo e admiro o oceano de sua providência e de seu
amor feito de sabedoria e poder.
Mas, Deus inefável, até agora eu levei
uma vida de desordem, contra seus mandamentos verdadeiramente doces e amados
pelos sábios. Oh, minha alma, quão grandes são minha insensibilidade e meu
endurecimento! Você não compreende, homem impuro, que para viver apenas em seu
corpo e para viver essas coisas perecíveis, o pobre servidor depende do rico e
deve se submeter sem tardança aos mandamentos de seu Senhor, por pesados que
sejam às vezes. Pois a origem dessas coisas não está em quem age, mas
manifestamente n’Aquele que ordena. Homem sem inteligência, como você recusa vilmente
os mandamentos de tal Criador, de tamanho benfeitor, tamanho provedor, quando
eles foram feitos para você e para sua glória imortal? Como, ao contrário, você
se volta contra eles? Quanta insolência, e que mal eterno você atrai para si!
Quando eu me aproximei do Senhor, Deus
mais que bom, na direção da inefável felicidade, oh Senhor que ama as almas, eu
disse à sua criatura, à minha pobre alma verdadeiramente pecadora: “Minha alma,
você possui muitas coisas espirituais, coma, beba, regozije-se”. E quando o
pecador se levantou contra mim, eu fui maltratado e humilhado. Mas oh!, riqueza
da sua bondade, Deus benfazejo! Quando perigosamente eu me desviei do caminho
reto e belo, você me concedeu seus dons sem medida, e logo me fez retornar. Eu
comi e bebi verdadeiramente e me regozijei naturalmente no Espírito por sua
compaixão. Mas novamente fui banido, deixei-me perder pela mentira maléfica de
um demônio ou por minha desatenção, não sei, ou sem dúvida por ambas as coisas.
Talvez ainda tenha sido seu julgamento mais profundo que me levou aos
abandonos, às faltas e aos castigos. De novo e sempre eu afundo no lodo do
abismo sem nada que me segure, e sofro, me inclino até que em mim penetre o
espinho ou o aguilhão do pecado que traz a morte, em suma, todas as coisas más que
o inimigo tramou grosseiramente contra minha alma por causa de minha triste
negligência e de minha lamentável loucura. Porém você jamais me abandonou
totalmente. Meu Deus mais do que bom, você me chamou com sua voz espiritual no
mais secreto de meu coração e disse à minha alma esvaziada: “Eu sou a sua
salvação. Não tenha medo. Volte a repousar. Não se perca”. Assim você me
consolou, Jesus paciente, você se tornou para mim o sustentáculo da salvação.
Você me recebeu com toda sua força, como a direita do Pai, como a direita do
Senhor, e seu castigo me restabeleceu novamente, como tantas vezes, na enorme
alegria dos segredos inefáveis.
Então venha, Verbo de Deus, como um
selo certo em meu coração, pela inefável contemplação de sua beleza
sobrenatural. Venha para meus braços, pela ação de seus santos mandamentos
vivificantes. Venha, Jesus Cristo, Rei mais alto do que o céu. Venha para que
em você eu viva eternamente. Aproxime-se invisivelmente de mim que a você
retorno com toda minha alma. Felicidade além do mundo, alegria daqueles em quem
você vive inefavelmente, envie seu brilho, Deus infinitamente sábio, para que
minha alma dotada de inteligência retorne a si, para que ela se volte para você
e se percam e se dispersem os que em vão me combatem, os que me perseguem por
nada, os que me fazem mal impiedosamente. Guarde-me continuamente. Senhor, eu
lhe peço, como a menina dos olhos, a fim de que eu o contemple eternamente,
Mestre inefável, glorioso acima de tudo.
57. Que sou eu, terra e cinzas? E
quando eu passo como uma sombra, um sonho rápido, que vale meu tempo diante de
você, Senhor incriado que não teve começo, a cujos olhos mil anos são com o dia
de ontem que passou e como uma vigília noturna? E o que é minha consciência
diante de você, que com toda consciência criou os céus e a terra, que com
sabedoria fundou num instante o universo em sua abundância, para que eu me
mantenha íntegro diante de você que tanto ama as almas? Não, Mestre, não, eu
lhe peço, eu lhe suplico, os pais não julgam o que fazem os recém-nascidos, nem
lhes pedem nenhuma obra, mas, de um modo ou de outro, provêm simplesmente, com
toda misericórdia e zelo o que lhes cabe, alimentam-nos e cuidam deles tanto
quanto possível.
É por isso, Deus santo que é
verdadeiramente nosso Pai eterno profundamente amoroso, o Criador que tirou do
nada tudo o que somos, que eu lhe peço que não se irrite com minhas altas e
injustiças; você que ama o homem, não exija de mim obras análogas à sua graça.
Mas como convém às criancinhas, e até mais, seja indulgente diante daquilo que
eu faço, e aumente em mim seu puro dom, em mim que peço seu socorro, pois me
falta a sabedoria. Sim, você me criou, você me conformou e você me formou de
novo em vista a um objetivo infinitamente bom, Deus cantado acima de tudo, a
fim de que, depois de me haver criado para o melhor e de me haver paramentado
com as belezas da criação divina, como uma imagem fiel, você me glorifique nas
coisas mais puras e mais altas, pois você veio não para me julgar, mas para
salvar o mundo. Amém.
58. Eu condeno a mim mesmo. Você vê,
Senhor que conhece o que está dentro dos corações, Deus mais do que sábio. Eu
não preciso de nenhum juiz. Quanto às coisas incertas, Deus mais do que bom, o
julgamento se faz com justiça. Quem a ele se opõe não faz senão se condenar
previamente. Na verdade ele vê e confessa não ser simplesmente pecador, mas
ainda que peca a cada dia e a cada hora. Senhor que ama o homem, proteja-me do
castigo. Fonte abundante de piedade e de graça, eu imploro sua piedade e peço
sua graça. Você quis se tornar homem por mim. Em sua transbordante bondade,
você nada nos faz seguindo nossas faltas. Em seu imenso amor por nós, você nada
nos devolve segundo nossos pecados. Antes você se deixa vencer por seu amor, e,
tão distante quanto está o oriente do ocidente, você afasta de nós nossas
iniquidades. Eu lhe suplico então, Jesus Cristo, Senhor paciente, Mestre
misericordioso, eu lhe imploro. Embora eu seja indigno, esqueça toda minha
injustiça e todo meu pecado, coloque em meu coração o selo perfeito do seu
Espírito Santo, conceda-me o dom verdadeiramente santo, em seu poder e
sabedoria, a fim de que, pelo poder de sua graça, na sabedoria e na
contemplação espiritual, eu faça aquilo que lhe agrada, tanto quanto estiver ao
meu alcance, para que novamente o fluxo espiritual de sua pura sabedoria
escorra de meu coração, no conhecimento da verdade e na luz que a acompanha, e
para que eu me encontre a partir daí em comunhão com você e com o que lhe
pertence, iluminado pelos séculos dos séculos e desde já por sua luz mais do
que gloriosa, na incomparável compaixão de sua graça inefável. Amém.
59. Não podemos saber com toda clareza
se uma mentira, ou aquilo que podemos chamar de “sugestão”, é fundamentalmente
diabólica, a menos que tenhamos fugido dos demônios e escapado a seus ataques.
E ninguém foge dos demônios nem deles se livra, como eu disse, se não tiver
recebido na solidão de seu coração o impulso fundamental e contínuo da
respiração divina. É isto que a fé ativa unida à humildade, ao amor a Deus e
aos homens, engendra por meio da vida voltada à hesíquia e à vigília, e pela
leitura consagrada à prática e à contemplação, enfim, à teologia acompanhada da
oração. Quanto ao amor ativo, podemos dizê-lo com razão, ele é o cumprimento
dos santos mandamentos de Deus, na medida do possível. Não apenas este amor
torna a compreensão mais pura e mais clara, como ele propicia daí por diante um
conhecimento exato e um discernimento mais seguro das mentiras dos demônios e
de sua irrupção na alma. Porém a inveja dos demônios ultrapassa todos os
limites, eles combatem cada vez mais, rivalizando no ardor da luta e
comportando-se furiosamente, sem tomar fôlego e com a maior selvageria, usando
de tudo o que pode prejudicar a alma devotada a Deus. E se Cristo, o verdadeiro
Salvador de seu povo, não vier, em seu amor pelo homem, tomar a defesa dos
fiéis, nenhum homem será salvo, quem quer que seja, mesmo que santo.
60. Com toda evidência eu o reconheço e
confesso, Senhor: por minha desatenção, minha ingratidão, minha conduta absurda,
eu, que era dotado de razão, desgraçadamente me coloquei abaixo das feras sem
razão, pois estas mantêm sua natureza e vivem segundo ela, enquanto que eu
sequer conheço, seja por um instante, a pura e verdadeira energia de minha
natureza, por estar marcado pela sujeira das más paixões, por minha tendência
às transgressões e à confusão que elas provocam. Assim é que eu perco a
inteligência e deixo de saber em verdade, como deveria, qual é minha natureza.
Em minha malícia eu ultrapassei a própria tribo dos demônios e carrego em
minhas intenções todos os seus vícios. Pois se eu pudesse viver como eles
vivem, desembaraçados de toda doença, morte ou necessidade, não há dúvida que
eu transbordaria de vícios, miserável de mim, incapaz de reter meus impulsos doentios.
Não somente eu não sou imortal, mas ainda permaneço por longo tempo enfermo e
mesmo assim eu transgrido, me exponho
aos pecados e me regozijo com isto. O pior é que eu não tendo para um dado
vício deixando os outros de lado, como faz cada demônio. Pois o demônio do amor
ao dinheiro é um, o da vanglória outro, o do amor ao prazer outro ainda. Cada
um trabalha uma paixão diferente, ou melhor, faz-se amigo e colaborador
daqueles a quem convence que se dedique a esta ou àquela paixão. Somente eu amo
e coloco em ação todas as paixões ao mesmo tempo e de todas as maneiras, com
tanto ardor que, mesmo sem que os demônios se aproximem ou me assaltem do
exterior eu me dirijo para elas, e nelas caio lamentavelmente. E mesmo as
faltas que não cometo não é por ter delas fugido por minha vontade ou por
tê-las rejeitado voluntariamente, mas, no fundo, apenas porque não tive
possibilidade.
Assim é que eu tenho secretamente mais
vícios do que estes seres imortais insensíveis às doenças e às carências da
vida, e no entanto cada um deles não carrega mais do que uma única espécie de
pecado. Mas eu, cujos dias não são apenas curtos mas, como já disse, ainda
submetidos às doenças, à fraqueza, à malícia, eu que sou atraído por todos os
pecados e que estou pronto a cometê-los o mais depressa possível, eu estou na
realidade bem pior do que os próprios demônios. Mas Senhor, Senhor, nada está
acima da compaixão com a qual você nos salva, pois sem nenhum ressentimento
você a concede mesmo aos demônios arrependidos. Dê-me a força, a sabedoria e
tudo o que devo fazer para que eu me arrependa como devo pelos pecados que
cometi e para que sua santa Face me acalme, Mestre, suprema vida, vida
benfazeja, regozijo contínuo dos justos para além do mundo, impensável amor
absoluto, amor pelo homem e misericórdia inefável. Cumule com sua grande e
maravilhosa compaixão minha alma que diz: “Tenha piedade, você que perdoa”, a
fim de que fique claramente demonstrado aos que sabem que mesmo os demônios que
retornaram e que, como tais, disseram: “Tenha piedade” à sua infinita bondade,
não foram abandonados por você para longe de sua compaixão, nem deles você se
afastou, fonte das graças. Pois se você tem piedade de mim que sou pior do que
eles e pior do que as feras sem razão, não existe em verdade nenhum homem nem
demônio culpado de pecado que, prosternando-se diante de você e dizendo: “Tenha
piedade”, não tenha se encontrado imediatamente junto de você, na eminência de
sua bondade infinita e além de toda esperança, da mais rica e mais maravilhosa
compaixão. Tenha piedade de mim, Jesus, que é nosso Pai e fonte de toda
compaixão.
61. Muitas coisas me vieram ao
espírito, Senhor, sobre as quais refleti. Mas nenhuma que eu tenha realmente
compreendido e sobre a qual possua uma certeza definitiva. Nada existe que, de
um modo ou de outro, deixe de escapar ao meu conhecimento. Com toda evidência,
eu sou incapaz de conhecer de forma simples e total, e isto é bem natural. Eu
vejo o céu e, é claro, a terra. Mas o que eles são, sobre o quê estão
fundamentados, de que modo todas essas coisas giram umas ao redor das outras,
qual é sua natureza, tudo isso eu ignoro, mesmo sendo fácil apontar o ar, a
água e o fogo a quem quiser ver. Mas quem poderá saber a natureza de cada um, e
por que a água desce e o fogo sobe, e por que o ar se espalha por toda parte?
Posso murmurar sem sequer abrir a boca; mas renuncio a falar do conhecimento
dessas coisas. Sequer um cabelo, a coisa aparentemente mais comum, quase não
toca nossos sentidos. Como poderia? Alguns vêm com o tempo, progressivamente.
Mas que sei eu dos cabelos em sua própria natureza?
É por isso que eu lhe peço, Mestre, que
me livre da presunção que me faz julgar e condenar o próximo e não importa
quem. Segure-me com seu braço poderoso, pois eu não possuo nem a inteligência
nem a força para adquirir essa sabedoria. Quem conhece a medida dos céus, o
volume e o peso da terra, o curso do sol, tão rápido e infatigável,
maravilhosamente pontual e regrado? Quem jamais compreenderá o poder que essas
coisas carregam em tamanha sabedoria? Como é possível conhece-las, se não somos
capazes de entender sequer o que é um mosquito? Eu não tenho nenhuma
inteligência, perdi o poder da sabedoria, mas pela graça eu me confio a clamar
pela deificação em você, pela união sobrenatural com Deus, que provém da ação
divina que lhe é própria e da intelecção que está suspensa em você.
62. Somente aqueles que, pela visão que
vem com a graça, conhecem o sentido espiritual, podem assistir aos que não
adquiriram este sentido e se deixam levar, no plano psíquico, por sinais
visíveis, ou ao menos pelos mais manifestos. Segundo o divino Paulo este homem,
com efeito, discerne tudo, enquanto que ele próprio não é julgado por nenhum
outro, enquanto que os outros não apenas não veem quem é desprovido do Espírito
de Deus, como ainda em sua loucura chegam a chamar de bem-aventurados aqueles
na verdade lamentam não ter recebido da graça o sentido espiritual e de serem
levados pelo espírito do mundo, estes a quem a palavra divina chama de
psíquicos. Pois os espirituais que, por terem tocado o divino, conhecem tal
sentido, não julgam absolutamente nada, nem com precipitação, nem conforme as
aparências, como o faz a maioria. Eles julgam de acordo com a verdade imutável
e eterna que está neles, pois eles são iniciados em tudo pelo Espírito
vivificante que os ilumina, lhes concede uma vida sobrenatural inteiramente
diversa da vida habitual e lhes dá a luz e o conhecimento aos olhos da maioria,
aos quais ele se revela assim manifestamente.
Assim foi Jacó o patriarca, que se
mudou para permanecer num único lugar, que viu com seu olhar penetrante muitas
coisas e que pronunciou palavras admiráveis a seus filhos.
Também assim foi Isaac, esta grande voz
dentre os profetas que, vendo Jesus ser levado à imolação como um cordeiro, não
se sentiu oprimido por este sofrimento, nem ferido por este rebaixamento e por
suas consequências, mas contemplou misticamente, com o olho espiritual, a
glória que naturalmente se ocultava nestas coisas. Ele viu que Jesus não mais
possuía forma nem beleza, e tudo o que ele sofreu além disso; e, no entanto,
foi nisto que ele reconheceu a sua divindade.
Numa palavra, assim foram todos os
profetas que, pela iluminação do Espírito, se ligaram com todo o intelecto às
coisas inteligíveis. Quanto aos que trazem o espírito do mundo, ou, para dizer
mais exatamente, que são levados pelo espírito do mundo, quem quiser
reconhecê-los com facilidade deve se lembrar da raça dos escribas e dos
fariseus nos Evangelhos, lembrar-se como eles só se ocupavam com as aparências,
como só viviam para serem vistos, e como, pretendendo se fazer chamar doutores
de Israel pela sua maneira de ser, pela gravidade de sua postura e de seu
caminhar, não viam outra coisa do que esta pose, e com belas palavras simulavam
a vida virtuosa. Foi assim – ó cegueira! – que, pela inveja causada pelo
espírito do mundo, eles condenaram cruelmente Jesus Cristo à morte, a ele que
era o Filho verdadeiro do Deus do universo, a vida divina, a verdadeira vida.
Pois se, como está escrito, o Espirito Santo não nos fala por inveja, é
evidente que o espírito do mundo o faz, e também julga na iniquidade e nas
trevas. É por isso que eles se lamentarão, conforme está escrito, quando vier o
Juízo final de Deus, e se atormentarão a si próprios, pois verão Aquele que
eles transpassaram, e então eles se perguntarão, dizendo: “Não é este aquele a
quem consideramos como nada e cuja vida pensamos ser uma loucura? Como é
possível que ele tenha sido contado entre os filhos de Deus?”. Enganados pelas
trevas da presunção às quais foram levados pelo espírito do mundo, eles não
conheceram a verdade, nem se deixaram levar a ela, para onde vão os que possuem
a prontidão no Espírito, o qual os guia e atrai. Quanto aos espirituais, Paulo
diz: “Não sabem vocês que nós julgaremos os anjos? E como mais razão ainda as
coisas da vida?”. É assim que julga todo aquele que traz em si o Espírito, este
Espírito que o mundo, como diz o Senhor, não pode conceber nem contemplar.
Portanto, aqueles que, pelo verdadeiro
sentido da alma, não se revestiram do Espírito Santo mais do que celeste e
tampouco conheceram Aquele que cumpre o inefável e diz o inexprimível dentro do
mistério, possuem apenas o espírito do mundo. Mas, diz São Paulo, “vocês não
estão na carne, mas no Espírito, se o Espírito de Deus habitar em vocês. Ora,
se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é de Cristo”. Veem como
aqueles que têm em si mesmos o Espírito não são carnais? E como aqueles que,
miseravelmente, são privados do Espírito, não apenas são incapazes de fazer um
juízo correto a respeito das coisas divinas, mas sequer podem ser de Cristo? O
Apóstolo mostra ainda mais claramente em outra parte como se opõem o espírito
do mundo e o Espírito Santo quando diz: “Nós não recebemos o espírito do mundo,
mas o Espírito que provém de Deus, a fim de conhecer aquilo que, pela sua
graça, Deus nos deu”. Compreendem que só os que receberam o Espírito de Deus
podem conhecer o divino e a verdade? É o que diz o Senhor quando afirma:
“Quando vier o Espírito da verdade, ele os conduzirá a toda a verdade”.
Você percebe de onde emerge
naturalmente a verdade total? Não é quando o julgamento é justo e livre de todo
e qualquer erro? É por isso que o Espírito Santo é chamado de Espírito de
aconselhamento, Espírito de ciência, de inteligência, de sabedoria, Espírito
condutor, Espírito pronto, Espírito de verdade. O Espírito também é chamado em
Isaías de Espírito de Julgamento. Pois é nele que a alma se comporta
resolutamente naquilo que dissemos. É por meio dele que ela é julgada, quando
opera em si essas virtudes e as recebe. Sem ele, tudo é cheio de trevas e falta
de verdade. Quem não possui o Espírito de verdade e logo se esforça por
discernir o que é falso naquilo que lhe dizem não pode alcançar a verdade.
“Ninguém, já foi dito, conhece o que há no outro, senão o Espírito que nele
habita”. Pois o Espírito sonda tudo. Se fosse permitido descobrir a verdade sem
ele, jamais o Espírito poderia ser chamado de Espírito Santo de verdade e de
Espírito de julgamento, ele jamais teria estes nomes pelos quais o chamamos. Se
aquele que julga fala sem o Espírito de verdade, ele se tornará o advogado da
mentira sem saber; numa palavra, ele terá decaído da verdade (pois o Espírito
da verdade e o do julgamento são o mesmo), ele estará se exilando para longe de
Deus e da glória de Deus, ele estará dividido. Julgando e se explicando
precipitadamente na falta da verdade, em sua ignorância e sua grosseria ele
entregará o justo, como um novo Judas. Ora, este último, o três vezes
miserável, foi condenado por ter traído displicentemente, em detrimento de seu
dever, nosso Senhor Jesus Cristo, a quem o Pai nos enviara, e que era, ele
próprio, a justiça e a verdade, conforme ele mesmo nos disse.
Fariseu miserável, cego, indo e vindo
sem possuir o Espírito que ilumina os olhos espirituais da alma, julgando pelas
aparências, apressada e falsamente o que há no homem como se o contemplasse com
olhos espirituais, se você visse as ressurreições paradoxais e os milhares de
milagres divinos que Jesus fazia por si só, por seu verdadeiro Deus, você
deveria venerá-lo, celebrá-lo e crer nele, ao invés de se irritar e se
aborrecer por que ele, com imensa sabedoria e amor pelo homem, rompia o sábado
e porque seus discípulos, os discípulos do Esposo, não jejuavam nem lavavam as mãos.
Fariseu sem Inteligência nem coração, podemos dizê-lo, e cheio de trevas, você
pretendia dirigir a fonte da sabedoria e de tantas graças maravilhosas e
inefáveis? Mas se você despreza as obras mais simples de um tão grande poder,
estas obras cuja razão é inconcebível para você, como pretende você ainda
enxergar? Você é muito ignorante, ingrato e insensível. Ademais, você se ilude
a um ponto que a ninguém é permitido, podemos dizer. Por acaso você admirou as
obras extraordinárias, as maiores que ele realizou, você o glorificou tanto
quanto possível e celebrou Aquele que as realizou, dirigiu-se a ele
humildemente e com a retidão dos que, em sua opinião, negligenciaram a
tradição, você pediu a ele que lhe explicasse a razão pela qual ele rompeu o
sábado? Mas a presunção, com a malícia que a acompanha, é aparentemente a coisa
mais nefasta e mais penosa, e tanto mais tenebrosa na medida em que pretende
saber. E tanto lhe falta a inteligência, que ela ignora sua própria ignorância.
Além disso, fariseu cego que não
procura saber se o interior do cálice está limpo, mas que se preocupa em deixar
brilhando o exterior do prato para que seja visto, você não ouviu o que Cristo,
a verdadeira sabedoria, ordenou a respeito do julgamento quando disse: “Não
julguem segundo as aparências, mas segundo a justiça”? Não compreende que é
impossível julgar com justiça e tomar as decisões corretas se nos fiamos apenas
nas aparências? Com efeito, a aparência representa aqui aquilo que qualquer um
pode ver. Como, insensato, o mesmo que não teme a ordem do Pai, nem compreende,
ao que parece, que o homem verdadeiro não julga o visível a partir do visível,
como não sente ele vergonha? Como não esconde ele a sua face? É o que você
deveria fazer, uma vez que, privado da verdadeira vida, você próprio vive longe
da luz, da sabedoria, da verdade, do conhecimento dado pela verdade, e de
tantos outros bens que o Espírito Santo dispensa e distribui, e sem os quais
não apenas é impossível que você possa julgar infalivelmente as coisas que lhe são
estranhas, como também não é capaz de ver em que espécie de mal você está
enredado. Se você quiser acreditar em mim, retire a trave de seu olho, ou seja,
retire de seu intelecto a ostentação e a presunção. Então você verá
racionalmente se pode retirar a palha e eventualmente captar o pecado,
secretamente aliviando o olho do seu próximo. Mas enquanto seu olho interior
não vir a luz inteligível, é evidente que a trave colocada nele o encherá de
trevas. Portanto, antes de buscar por si mesmo, antes de rejeitar para longe de
você todo o mal, não pretenda combater as ofensas do demônio nem as provas da
ignorância. Isto só p podem fazer os que receberam a luz. Pois a empresa é
fortemente aleatória e os impulsos são perigosos. Que só falem e, no fundo, só
julguem – conforme o conselho do bem-aventurado Davi – aqueles a quem o Senhor
libertou das mãos dos inimigos – os inimigos inteligíveis – e a quem ele reuniu
longe dos locais hostis – os estados passionais, estranhos, divididos –
unindo-os a si mesmos e à sua glória. Que assim falem e julguem, libertos e
salvos, os que foram reunidos, unificados, iluminados pela luz.
Mas se você não se encheu de luz
espiritual, como foi dito, fortifique-se pelo silêncio e não tema aprender
primeiro e confessar que você ignora se o que lhe acontece lhe traz a salvação
ou a perdição. Como não o faz refletir as palavras de Cristo: “Eu não julgo
ninguém”? Mas você, o que diz? “Eu julgo todo mundo”. Quanta ignorância, para
não dizer: quanta inconsciência! Foi dito: “O Pai entregou todo julgamento ao
Filho”. O Filho recebeu do Pai o poder de julgar. E você, de onde tirou aquilo
que não lhe foi dado? A Trindade habita tão claramente assim em você? Ela
caminha em você visivelmente como diz a promessa? Você se vê em Deus o Verbo e
vê o Deus Verbo em você? Você está em Deus? As águas do rio do Espírito Santo
correm ou jorram claramente em luzes inacessíveis no interior de seu coração?
Você recebeu todas as outras graças pelas quais Deus age manifestamente nos
seus santos? Ou você não tem necessidade de mediador? Proteja, portanto, sua
língua do mal. Guarde seus lábios para que não digam mentiras. Procure,
interrogue os outros com prudência, instrua-se, mas não ensine, deixe-se
questionar pelos homens, e quanto a você, não julgue nada. É ingênuo e cego
quem crê poder ler as palavras nos livros. Mais tolo ainda é aquele que, sem
possuir o Espírito vivo, pretende conhecer o que há dentro do próximo. Pois
onde as coisas não são aprofundadas, não podemos saber sequer o que há em nós,
nem tampouco as armadilhas e os obstáculos que o demônio invejoso e maligno que
desdenha do bem opõe ostensivamente a nós que, por presunção, caímos no mal e,
contra nosso dever, nos deixamos persuadir e começamos a julgar.
E assim, por não nos deixarmos instruir
nós nos iludimos, desgraçadamente não alcançamos a verdade e, ao invés de
avançar e aprender, não servimos para nada. E ao mesmo tempo em que
prejudicamos a nós mesmos, nos tornamos causa de escândalo e de males para
aqueles que nos são próximos e nos tornamos passíveis do enorme julgamento de
Deus. Mas se discernirmos as intrigas do demônio, se obedecermos à ordem que
nos deu o grande Paulo no sentido de não julgarmos nada nem ninguém antes do
tempo, até que venha a nós em Espírito o Senhor que nos ilumina, que nos revela
abundantemente as profundezas, que nos ensina com toda certeza os conhecimentos
e as revelações das visões divinas e dos bens místicos, e que faz de nós sem
falta seres verdadeiramente espirituais, portadores de Deus – ou antes, que faz
de nós deuses – então ele nos desculpará. Ele nos restabelecerá em sua glória
quando tivermos recebido a graça do discernimento, quando com pureza soubermos
a que mal nos conduzem os julgamentos que fazemos sem que tenhamos o dom de
Cristo. Somente então poderemos julgar corretamente sem o risco de cairmos.
63. Desde o princípio Deus assistiu a
Israel em muitas coisas. Ele o cercou de uma grande e maravilhosa solicitude, e
dentre todos os homens fez dele partícipe de sua herança. Mas Deus também
cumulou os fiéis em Cristo com esta assistência e esta solicitude, por meio de
grandes e extraordinárias obras, que ultrapassam aquelas que fez por Israel,
assim como a alma ultrapassa o corpo. Elas as cobrem, assim como o sol cobre as
estrelas. As coisas dos cristãos superam as de Israel como o corpo supera a
sombra. Pois, se bem compreendermos, os feitos de Israel são realmente a sombra
dos nossos. Para eles o Faraó foi um senhor amargo e impiedoso, e cavaleiros
selvagens foram a imagem de Satanás e dos seus, não porque pudessem fazer
grande mal aos corpos, mas porque se esforçavam para atormentar impiedosamente
as almas. Para eles foi Moisés quem
conduziu o povo de Deus. Mas nós temos em nós mesmos – e como isto nos eleva! –
o Filho verdadeiro de Deus, o Verbo em pessoa, que supera infinitamente a letra
da Lei. Lá havia o bastão, aqui a cruz. A madeira, mudando paradoxalmente de
aspecto, devorou as serpentes. Mas a cruz se transformou de instrumento do mal
em signo de bondade, destruindo os demônios. Eles roubaram o ouro, a prata, os
ornatos das vestes do Egito. Mas nós fazemos secretamente em espírito a mesma
coisa, mas sabemos que o subtraindo ao pecado conduzimos a Deus a beleza
sensível. Lá, uma coluna de nuvens e de fogo conduziu Israel ao mar. Aqui, a
visão de Deus e de seu amor abrasador permite ao intelecto fiel e contemplativo
chegar às lágrimas nas quais se perdem e morrem todas as coisas do ódio, quando
este intelecto se afasta dele, do mesmo modo como antes o Faraó e os egípcios
se perderam no mar milagrosamente enquanto os judeus conseguiam atravessar.
Resumindo, se quisermos considerar e,
por conseguinte, contemplar, tudo o que os judeus realizaram então,
encontraremos a sombra e a imagem daquilo que seria cumprido daí por diante
pelos verdadeiros cristãos. Assim, se quisermos saber do modo mais global e
mais claro o que nos diferencia dos judeus, devemos pensar no que anunciava a
Lei antiga e no que anuncia a nova Lei que os cristãos trazem. Deste modo
podemos discernir sem erro. Pois a primeira predicação diz das criaturas, e das
criaturas visíveis, que elas vieram de Deus, ao afirmar: “No princípio Deus fez
o céu e a terra”, etc. Quanto à predicação dos cristãos, ela não fala apenas
das criaturas sensíveis, mas das criaturas inteligíveis. De fato, é ao inteligível
que ela se refere, quando diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em
Deus, e o Verbo era Deus”. A predicação dos judeus afirma: “Deus disse: façamos
o homem à nossa imagem e semelhança”. Mas a dos cristãos diz: “O Verbo se fez
carne e habitou entra nós”. Uma diz: “Que ele domine sobre os peixes do mar, os
pássaros do céu e sobre os animais, por toda a terra”. A outra diz: “Nós
recebemos tudo de sua plenitude”. Uma afirma: “Deus disse: Faça-se a luz”. E a
outra: “O mesmo Deus que disse: ‘A luz brilhará no meio das trevas’, brilhou
ele próprio em nossos corações”.
Portanto, aquele que está indeciso
entre uma e outra dessas duas predicações de que falamos, pode constatar com
clareza: a experiência que os cristãos têm de Deus supera os bens dos judeus e
os ultrapassa de longe. Ele dirá que tais bens não passam da sombra e da imagem
de uma verdade sobrenatural, a verdade que os cristãos carregam, ou a verdade
de Cristo. E ele celebrará e glorificará a abundância da graça e da providência
divinas que, pela compaixão supra-essencial das coisas mais elevadas do que o
mundo, eleva lentamente a humanidade das sombras e das imagens até Jesus Cristo
nosso Senhor.
QUE DEUS, POR SEU AMOR PELO
HOMEM, SE TORNA ACESSÍVEL A TODOS OS SENTIDOS DOTADOS DE INTELIGÊNCIA.
64. Ó santíssimo Verbo enipostático,
Sabedoria e Poder de Deus! Como poderei eu, Senhor, louvar sua essência, ou sua
glória inacessível? Como poderei celebrar a sua bondade, que é infinita? Eu não
passo de um homem, e minha inteligência é limitada. Mas eu o louvarei e
celebrarei aquilo que eu puder alcançar.
Pois me foi permitido de todas as
maneiras sentir sua glória e sua bondade e minha alma a você se ligará com toda
sua força e o seguirá. Assim, quando eu o ouvir, eu temerei como é natural, e a
partir de então serei arrebatado por tudo o que está em você, conforme o
profeta que disse: “Eu ouvi, Senhor, o que me anunciou, e eu temi. Compreendi
suas obras, e fui arrebatado”. Altíssimo, Verbo incompreensível, que bateu à
porta, ou seja, aos ouvidos da Esposa do Cântico dos Cânticos, cujo coração foi
então revolucionado. Ela estava fora de si e procurava vê-lo com todo ardor,
dizendo: “Mostre-me seu rosto, faça-me ouvir sua voz. Pois seu rosto é belo, e
sua voz é doce”. Também gosto do que disse Jacó: “Primeiro eu ouvi falar do
Senhor, mas agora meu olho o viu”. Pois assim como você é Verbo e Sabedoria, é
também a verdadeira luz que ilumina todos os homens que vieram ao mundo. Você é
a luz que ilumina e se revela por toda parte desde a origem. Pois tal como, em
Espírito, o Sol de Justiça, você é a luz deslumbrante que dá a visão a quem, em
toda a beatitude e pela graça das virtudes, contempla os mistérios divinos e
sobrenaturais do Deus púnico, e a natureza inefável das coisas ligadas ao eros divino e que ultrapassam o mundo. É
o que João proclama claramente: “Nós vimos sua glória, a glória do Filho único
provindo do Pai, cheio de graça e de verdade”. Pois assim como você é o
verdadeiro Deus, é também verdadeira luz, conforme João testemunha. A partir daí,
aqueles que, por um intermédio de um dom indizível receberam de sua plenitude,
Deus inefável, dizem abertamente: “O mesmo Deus que disse: ‘A luz brilhará no
meio das trevas’, brilhou ele próprio em nossos corações”.
Você irradia inefavelmente, ilumina com
toda sua luz, a fim de nos permitir ver as coisas da graça e da verdade mais
altas do que o céu, as coisas que ultrapassam a natureza e o mundo, e a fim de
nos oferecer delas o maravilhoso regozijo. É por isso que em seu amor pelo
homem você não apenas se tornou acessível ao ouvido e à vista, mas também ao
tato. Disse o discípulo bem-amado: “Aquilo que ouvimos, o que vimos, o que
contemplamos, o que nossas mãos tocaram do Verbo da vida”. Se você revestiu os
fiéis, dando o repouso de uma vez por todas aos seus, é claro, bom Deus, que
você se deixou tocar por eles em espírito e milagrosamente. Segundo Paulo, o
santo predicador da verdade, os que por felicidade foram batizados no Senhor e
na fé que nele possuíam, dele se revestiram com mais felicidade ainda, do Deus
que nos cumula de dons. Assim é que Isaías, a trombeta profética, a grande voz,
se regozijou com toda sua alma em Deus, o Pai e o Senhor. Pois o Pai lhe
permitiu que de você ele se revestisse maravilhosamente, Senhor, como de um
manto de salvação e uma túnica de alegria, e com você ele se cobriu além de
toda inteligência. Vê-lo ao redor dele, abraçando-o como a luz inacessível e
maravilhosa, deu ao inspirado de Deus tamanho regozijo, tanta alegria, e tanto
mais na medida em que ele compreendeu que ali estava a salvação, pois você é a
própria salvação.
Assim é que na infinita abundância de
seu amor, você mais uma vez se deixou sentir pelas narinas inteligíveis que
tiveram a santa fé, e com isto você concedeu maravilhosamente o repouso aos que
o celebram e louvam, cantando que seu nome é um perfume que se espalha e
anunciando isto aos seus próximos. “Pois meu bem-amado é um fruto bonito de se
ver, bom em sentir e doce para provar. E seu perfume espalha o bom odor de sua
mirra”. É por isso que Paulo, que lhe tinha em si, dizia que nós somos o bom
odor de Cristo.
Mas você também de comer e de beber aos
seus fiéis. Você é o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida da alma. Você
maravilhosamente vivifica e nutre, faz crescer progressivamente e misteriosamente
alegra aquele que o recebe. É isto que Davi, o santo profeta, dizia aos seus
próximos quando sentiu que o provara ao trazer Deus em si: “Provem e vejam que
o Senhor é bom”. Pois você não somente se revelou como um fruto, mas ainda os
pobres em espírito, os humildes, aqueles a quem tudo falta, o comem como a um
bom alimento e são saciados, e os que o procuram incansavelmente no desejo de
encontrá-lo e comê-lo o louvarão, Senhor, pela imensa doçura que experimentarão
ao prová-lo. Pois àquele que é reconfortado pelo seu poder que dá a vida, são
oferecidos um santo alimento e uma bebida santa. Os corações dos que o comem
viverão pelos séculos dos séculos. Você é eterno e incorruptível e torna
incorruptíveis aos que o comem. Por sua transbordante ação natural, você os
transporta para a eternidade. É por isso que, em sua infinita bondade que
suscita tanta beleza e bem-aventurança, você chama e clama aos seres providos
de razão, dizendo: “Venham, comam do meu pão e bebam do vinho que preparei para
vocês”. Ora, é a si próprio em sua santidade que você chama assim . Pois você
diz também: “Eu sou o pão da vida”, e “Eu me entreguei como a fonte da vida”.
Assim você nos propõe que comamos seu santo corpo e seu sagrado sangue.
Assim, nutrindo-os pelos sentidos intelectuais,
você alegra os seus, Senhor que tanto ama as almas, você para eles se torna a
luz e a vida, como os cumula de toda alegria, das coisas boas e belas acima do
ser. Bendito seja Jesus, maná espiritual, celeste, alimento infinito. Glória,
Mestre, ao indizível amor com que você nos envolve, glória à sua inefável
misericórdia e à sua paciência. Amém.
QUE O ESPÍRITO DE DEUS HABITA
NOS FIÉIS
65. É uma coisa maravilhosa para o
sentido intelectual, ou a respiração, a efusão do Espírito vivificante proveniente
de Deus Pai nos corações carnais que santamente acolheram a fé em economia do
Verbo encarnado. Que o dom se espalha, que o poder divino, a energia da
Divindade incriada mais elevada que o ser se espalha, é maravilhoso, dissemos.
Mas que a energia se uma ao coração e no coração se torne um movimento
perpétuo, isto é sobrenatural e pede que sintamos temor.
66. Outra coisa maravilhosa: que o Pai,
no Espírito e pelo Verbo divino de Deus tenha criado por seu intermédio tudo o
que existe de sensível e inteligível, e que esta Trindade possa conjuntamente
habitar, caminhar e claramente fazer sua moradia na reflexão humana. É um
grande milagre que para todo fiel votado à piedade, a Divindade em três Pessoas
envie um anjo. Mas que a própria Trindade, infinitamente poderosa e
vivificante, queira o bem do homem e lhe comunique a força e a energia
espiritual de Deus, isto ultrapassa todo milagre.
67. É uma coisa verdadeiramente
maravilhosa que o coração seja capaz de portar o santo raio do Deus Altíssimo
que domina o universo, e confiar-se a ele continuamente. Num momento, do
exterior, pelas santas Escrituras, Deus ilumina o intelecto, o torna doce e
solícito, e o cumula de amor pelos homens e pelos milagres; noutro, a luz – ó
alegria! – se entrega real e verdadeiramente ao fiel, de dentro do coração, não
de fora, e sempre, sem fenecer. Isto está acima de toda admiração e ultrapassa
o entendimento.
68. Mais uma coisa maravilhosa: o
coração do fiel transporta em si também Àquele a quem os serafins e as
potências celestes carregam miraculosamente. Isto é admirável. Porém além de
transportar, unir-se a ele, tornando-se com ele um só corpo, como não seria
isto além de toda admiração?
69. É verdadeiramente um milagre além
de toda medida que, pela graça, a alma possa ser o trono, o leito, o carro de
Deus infinitamente sábio e infinitamente poderoso, cujo trono é o céu. Mas que
a alma seja a tal ponto amada por ele que possa se tornar um único sopro com
ele, que ela comungue das coisas mais altas do céu e que lhe sejam confiados os
maiores mistérios, quem jamais poderá admirar-se disto na medida justa?
70. É uma coisa realmente maravilhosa e
estupidificante: Deus, que não tem sequer um lugar para repousar, repousa
divinamente no coração. Um rei terrestre, que tem seus limites, se adota alguém
por amor, se o sustenta com sua mão generosa, busca plenamente e concede
justamente àquele a quem adota ou sustenta, como dissemos, a glória e a honra,
e com ela o regozijo e a alegria. Mas não se trata de um rei terrestre de quem
falamos aqui, mas do Deus sem começo, do Deus incriado, do Criador e do Senhor
do universo, a quem miríades e miríades e milhares e milhares de anjos servem
com temor, é deste Deus mesmo que, longe de simplesmente sustentar de quem se
compadece, o toca no interior do coração e nele vem habitar, não por um tempo,
mas pela eternidade, unindo-se assim àquele que o acolheu e recebeu sua graça,
glorificando-o imensamente, deificando-o maravilhosamente e cumulando-o de
miríades de bens misteriosos. Que glória inefável, que honra, que regozijo, que
felicidade, quantas coisas maravilhosas ele lhe concede sempre! Senhor,
Trindade, tenha piedade!
71. É uma coisa maravilhosa: Deus, que
criou o universo, e que o contém em si, se deixa conter de modo
incompreensível, e não obstante claro e contínuo, pelo coração do fiel. Um rei
mortal, cujo poder é bem pequeno, se bate à porta de alguém, se entra em sua
casa, se come e bebe à sua mesa e compartilha de sua vida, cumula naturalmente
de glória, de honra, de alegria, de prazer e de um grande reconforto a quem o
recebeu. Mas que o Rei eterno, o Senhor do universo, o Criador das coisas
sensíveis e inteligíveis, entre discretamente, não na casa, mas no coração
daquele de quem se compadece, e não para usufruir dos bens que estão em seu
coração, mas para lhe dispensar a força do céu, a consolação mais alta que o
mundo e a glória sobrenatural e durável, que pensa disto aquele que recebeu tal
graça? Qual não será sua alegria? Quanta felicidade, quanto prazer não sentirá
ele? Numa palavra, quanta beatitude? Ela será imensa e benfazeja. Pois é
verdadeiramente uma maravilha incomparável que Aquele que a tudo preenche e que
se encontra acima de tudo faça do coração do homem sua morada e seu templo
eterno.
72. Deus que disse: “A luz brilhará no
meio das trevas” brilha de alegre luz no coração dos fiéis. O amor de Deus se
espalha nos corações pelo Espírito Santo a quem ele foi dado. Pois Deus envia
aos corações o Espírito de seu Filho, que clama: “Abba, Pai”. Ligados assim ao
Senhor – ó união maravilhosa! – os fiéis se tornam com Deus um só e mesmo
Espírito. Que outra coisa, dentre tudo o que dissemos, nos fará sentir tão de
perto a graça?
73. É claro que os fiéis são herdeiros
de Deus, herdeiros com Cristo. Eles são como Cristos segundos, comungando com a
natureza divina como filhos de Deus e deuses por adoção e por graça, coisa que
ultrapassa toda inteligência e transborda o pensamento. Eles contemplam e
experimentam sobrenaturalmente o que está acima do mundo, ou melhor, eles o
desfrutam. Eles desfrutam daquilo que o olho não viu, que o ouvido não escutou,
daquilo que não chega naturalmente ao coração do homem. Glória ao amor
incompreensível de Deus Pai que nos ama verdadeiramente. Glória ao amor da
Trindade, em sua extrema e inefável bondade, mais alta do que o céu.
QUE TODO FIEL É EMINENTEMENTE
HONRADO POR DEUS
74. Quem nasce do Espírito é Espírito,
declarou Cristo. Ó incomensurável graça! Ó dom inefável! Deus criou o homem com
numerosas graças verdadeiramente maravilhosas. Desde que foi criado, o homem é
naturalmente uma criatura. Mas em sua transbordante generosidade, o Senhor todo
compassivo, a Trindade mais alta que o ser e que criou o universo concedeu no
limite à criatura – ó felicidade! – a graça do Espírito incriado. Coisa jamais
concebível, ele próprio se uniu ao homem, o deificou, fez dele seu filho e lhe
concedeu tornar-se Espírito. De fato, ele disse: “Eu disse: Vocês todos são
deuses, filhos do Altíssimo”. A respeito de Deus está escrito: “Eu dei uma
ordem, e esta ordem não passará”. E: “Tudo o que quis, o Senhor fez”. E: “A
vontade do Senhor permanece pela eternidade, e os pensamentos de seu coração
por todos os séculos”. Pois sua natureza é verdadeiramente inalienável e
imutável. E seu Verbo em pessoa veio nos trazer sua palavra, sua ordem, sua
vontade, seu conselho. Ele foi o anjo deste grande e maravilhoso conselho
sobrenatural. E ele deu o sopor do Espírito aos seus discípulos, e assim os fez
renascerem espiritualmente. Ele os incorporou misteriosamente ao Espírito e fez
deles filhos de Deus. Pois os que são conduzidos pelo Espírito de Deus se
tornam filhos de Deus. Ora, se eles são filhos de Deus, é claro que são também
deuses. O filho carrega necessariamente o ser daquele que o engendrou. É por
isso que o Salvador ensinou aos discípulos a chamarem a Deus de Pai, uma vez
que eles possuíam a comunhão do Espírito. A Santíssima Trindade tornou assim
deuses, Filho e Espírito, os fiéis, mas escondeu ao extremo todos os dons
maravilhosos que até agora só o pensamento pode captar. Amém.
SOBRE: “ELE ESTENDEU SUAS
ASAS, RECOLHEU OS SEUS E OS COLOCOU SOBRE SEU DORSO.”
75. Compreenda pelo sentido intelectual
o que vou dizer agora. Saiba que você ficará maravilhado, cheio da alegria do
Espírito e indubitavelmente penetrado pelo prazer divino.
O Espírito Santo falou pela boca de
Davi: “Revele-se, ó você que assenta sobre os querubins”. E também: “Aquele que
vê os abismos, que assenta sobre os querubins”. E ainda: “Ele está sobre os
querubins”. Porque então vem ele sobre os fiéis? Que coisa excepcional, além de
toda medida, sucedeu no intervalo? Pois não apenas Deus se coloca sobre nós
como a galinha que protege a vida de seus pintinhos e os aquece,
maravilhosamente guardando-nos e alegrando-nos, como ainda – ó arrebatamento da
ordem do amor divino! – nos colocando sobre si e, tornando-se para nós como que
um carro novo que na abundância de seu amor divino ultrapassa todo
entendimento, nos guarda em toda segurança e nos conduz inefavelmente para as
coisas da vida mais elevada que o céu, as coisas indizíveis que estão além do
mundo. Ele nos dispõe para viver acima do ser nas delícias, na paz, no repouso,
inefavelmente, para nos regozijarmos em espírito na alegria divina e conhecer
sua doçura. O bem-aventurado Moisés disse com efeito no Espírito: “Ele – ou
seja, Deus – abriu suas asas, recolheu os seus e os levou sobre seu dorso”. Ó
amor inefável! Ora, que ele tenha estendido suas asas, que tenha recolhido os
fiéis, que tenha tornado a si mesmo aquele que os carrega, isto realmente vai
além da honra dos querubins, e em verdade cumula de uma alegria imensa e
inefável. Que ele receba a carga destes fiéis, que os receba sobre seu dorso,
que os cubra com sua sombra, esta é uma coisa que, segundo o divino Davi, mesmo
o intelecto dos querubins não é capaz de ver e celebrar dignamente. Assim como
sua grandeza, sua compaixão é incomparável, ó Santíssima Trindade, a você a
glória!
76. O hábito dos monges, as promessas
que o acompanham e a vida monástica exigem um intelecto votado à solidão. Pois
somente Deus anima este intelecto e nele age com toda atenção possível e com
toda justiça. Ele o anima transmitindo-lhe a graça vivificante. Age nele
permitindo-lhe contemplar a unicidade e a simplicidade de sua glória e de seu
Reino que domina o universo. Pois só ele é o Altíssimo, de uma outra ordem do
que a de todos os seres, diferente deles por sua incomparável preeminência. Só
ele é soberanamente poderoso, e ele comunica a todas as coisas uma parte de seu
poder. Só ele é verdadeiramente sábio, e dispensa aos sábios toda a sabedoria.
Só ele é, real e eternamente, e de todas as maneiras o Pai e o Criador de todos
os seres. Assim, é com toda a justiça e mérito que foi dito: “Todas as coisas
vêm dele e são por ele e nele. A ele a glória por todos os séculos”.
Se assim é, numa palavra, todas as
coisas boas e belas recebem de Deus sua existência de uma vez por todas, nele
se guardam e se protegem, tendem para ele e nele encontram seu fim. Estas
coisas unem e ligam a Deus como a seu Pai todos os que delas vivem como convém.
São a bondade, o amor, a prudência, a sabedoria, o conhecimento, a contemplação
e a ação correspondente, a deificação, o prazer divino e a santa alegria que
ele proporciona, a paz acima do céu, o temor religioso, a força, o conselho, a
via de piedade, a ciência, tudo o que é próprio à natureza dotada de razão,
tudo o que encanta, dá glória, alegra, identifica a Deus e deifica.
Se tudo o que de bom e belo de que
falamos provém de Deus e dele apenas quem ama estas coisas belas e boas ama em
vão, por estar dividido e separado de Deus, a raiz e a fonte de toda beleza e
de todo bem. Pois ao dar as costas tão pouco nobremente àquele que a tudo
criou, manteve e fundou tantas boas e belas coisas, ele jamais terá em si mesmo
aquilo que por natureza é belo e bom. E o que ele imagina possuir de belo e bom
jamais será verdadeiramente belo e bom: tudo não passará de engano e cruel
desilusão. É de Deus, e somente de Deus, que poderemos esperar com todo
coração, se nos aplicarmos com ardor e nos ligarmos fortemente à sua lei, e
apenas a ela. Somente assim, com efeito, descobriremos a glória sem mescla, o
prazer inalterado, a inalienável riqueza infinita, e traremos em nós plenamente
a série de coisas belas e boas de que falamos, e também, ó milagre, o próprio
Deus que habita e caminha com elas, e desfrutaremos destas coisas que estão
além do mundo e que os sentidos exteriores não podem ver nem ouvir. É assim que
viveremos com toda simplicidade, em toda solidão, em Jesus Cristo nosso Senhor.
77. Quando o coração que traz em si o
Espírito leva humildemente uma vida votada à hesíquia e se deixa animar pela
graça, o intelecto alegremente concorde com a verdade de Deus se põe a contemplar um grande número de
visões divinas, inicia-se nas coisas inefáveis que estão além do mundo,
considera a si mesmo como um novato, como um estrangeiro entre os seres. Ele
vive entre delícias, desfruta com clareza em espírito das coisas que
ultrapassam a inteligência e que estão além de todo pensamento. Numa palavra,
muitas vezes ele vê a Deus de maneira diversa, experimenta os arrebatamentos
extáticos que o unem a ele, se lança pelo silêncio e a visão para a deificação,
na medida em que esta é um estado feliz, e se eleva acima de si mesmo ao
receber o eros, sob o impulso e o
ardor do Espírito que dá a vida e a luz em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.
78. Aquele que, conforme a providência,
leva sua vida permanecendo apenas em Deus, e que vê a Deus em espírito
claramente caminhar e habitar em si, manifestamente cumpriu com o mandamento
divino do Senhor Jesus que disse: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em
vocês”. Este se uniu a Deus, como um estranho no mundo, e com ele morreu
maravilhosamente e em toda felicidade, tornando-se assim para o Salvador o
operário seguro de todos os mandamentos. Pois aquele que permanece em mim e eu
nele, disse o Salvador, traz em si muitos frutos, ou seja, muitas virtudes.
Que ele se apresse, se quiser, no amor
divino, pela contemplação, a prece e a vida mais divina, portar as virtudes,
habitar e perseverar em Deus tanto quanto possível. Então Deus, vendo o combate
sagrado da alma, inclinará os céus, ó milagre, contra toda expectativa. Ele
caminhará e permanecerá nesta alma para conceder àquele que o recebe a fruição
de toda sorte de coisas boas e belas e a satisfação dos santos mandamentos.
Pois foi ele que disse: “Sem mim vocês nada podem”, pensem vocês fazer o que
quiserem.
79. Se, por amor e no interesse de
todos não se deve esconder um tesouro, nem a sabedoria, é claro que tampouco se
deve guardar no intelecto, sem colocar por escrito, a obra intelectual votada a
Deus, a contemplação e a tensão, mas, ao contrário, por amor e no interesse de
todos, devemos transmiti-la por escrito e por sinais visíveis. Pois o homem é
um animal dotado de razão, que recebeu o intelecto e a ciência. É por isso que,
quando ele pensa em Deus e considera os frutos da fé em si mesmo, ele recolhe o
intelecto divino que lhe é próprio e penetra com ciência e coragem no lugar dos
santos mandamentos. Mas para chegar até aí, ele tem necessidade da ajuda e do
socorro de Deus, ou mais exatamente de sua proteção. Ele reza muito, pedindo
com suas lágrimas a compaixão de Deus através dos mandamentos.
Mas quando quer ter compaixão por
aquele que ora, como um pai tem compaixão por seu filho, ó milagre, Deus logo
espalha sobre ele seu Espírito em seu coração. Ele traz assim maravilhosamente
ao estado de amor ardente aquele que o recebeu. E, não é preciso dizê-lo, como
pode um pai fazer a seu filho, ele lhe concede toda sua confiança, como uma garantia
vivificante, pela efusão e a energia do Espírito, e o cumula de transbordante
doçura e bondade. Ele lhe concede a humildade, mas pela união ele de outro modo
o eleva para a glória e a honra, e o leva de tal modo ao fogo do eros que tudo o que ele vê ao redor de
Deus, e do modo como o vê, lhe aparece verdadeiramente como seu próprio ser.
Pois, numa palavra, as moradas do Pai, a riqueza, a glória, a força, a beleza,
a sabedoria, o poder, o conhecimento total, todas as coisas boas e belas, são
naturalmente a glória e o louvor, as delícias, a honra e a felicidade do filho.
Assim, quando a alma, nas contemplações naturais, participa do Espírito, ou
seja, quando ela contempla a Trindade em Deus, como reporta o grande Basílio,
ela é em verdade tomada de um imenso amor, ela vê a Deus verdadeiramente como
seu próprio Pai e vê as coisas de Deus como seu próprio ser, conforme dissemos.
Basta-lhe simplesmente ver a Deus e nada mais. Sua felicidade é imensa, e ela
exulta em Jesus Cristo nosso Senhor.
O QUE É O PRAZER NO SENTIDO
PRÓPRIO
80. Eu penso que ninguém, quando se vê
com conhecimento de causa diante destas coisas que se referem ao que podemos
chamar de prazer no sentido próprio, ignora que, na sua ação mais elevada, elas
não são condenadas nem pela natureza nem pela razão. Elas enchem o coração de
alegria e regozijo, assim que são realizadas. Pois elas estão muito longe
daquilo que chamamos e prazer da carne, que é o prazer idólatra e não o prazer
em sentido próprio. Quem deseja o prazer puro, o indissolúvel prazer espiritual
do intelecto, deve busca-lo não pecando mas fazendo passar das coisas da terra
às coisas do céu aquilo que ele considera seu ser, e depois toda a sua alma.
Com efeito, este é o prazer verdadeiro, o imutável prazer do coração que a alma
dotada de razão tem em si inato, que permanece eterno, luminoso, que jorra
sempre e que ninguém condena, desejável, que conduz à beatitude porque habita
com os santos desde a origem dos séculos, silencioso, pacífico, bom, aberto,
radioso, sorridente, divinamente sábio, transparente, consolador, cheio de
alegria, ativo e tudo o mais. Se você conheceu por experiência este prazer,
intelectual e espiritualmente, você concordará com tudo o que escrevemos. Caso
contrário, guarde com fé essas palavras.
DO PRAZER DA CARNE
81. Quanto ao prazer que não é do
intelecto e do espírito, mas da carne, é incorreto chama-lo de prazer. Pois,
uma vez obtido, ele traz consigo a amargura e o arrependimento. Com toda
evidência, é falso chama-lo prazer. Ele é alterado, distante da alma racional,
ele próprio desprovido de razão, baixo, irresponsável. Ele se delicia nas
trevas, perturba, atormenta, passa e murcha depressa. Ele se vai contra sua
vontade e envergonhado quando o corpo envelhece. Ele condena a si próprio,
torna a vida penosa e difícil, é prisioneiro de si mesmo, cheio de infâmia e
não pensando senão na corrupção, ele é desleixado, sem rosto, sem esperança e
não se deixa ver. Uma vez obtido, ele cobre de tristeza tenebrosa aquele que se
entregou em ato. Se você conheceu este prazer, saiba ao menos que é verdade o
que dizemos. E se, graças a Deus, você se guardou, persuadido de que minhas
palavras são a expressão da verdade, saiba colher os frutos gloriosos da vida.
82. Eu possuo a irradiação contínua da
luz espiritual, a vida mais elevada que o mundo, o alimento e as delícias
divinas, a tensão e o desejo, a união e a fruição da Divindade em três Pessoas,
eu possuo o amor inefável e maravilhoso que me liga a Jesus Cristo, o Senhor do
universo. Mas, ó minha miséria e minha loucura, ó mal de minha irracionalidade,
minha inteligência que foi elevada pela graça acima do céu se deixa enganar,
inclina-se para o que a faz cair, para as coisas terrestres, para a
composteira, enchendo-se de mau odor. Quem não se espantaria com minha infelicidade
e não choraria por mim, pedindo em sua piedade a Deus, que ama o homem
inefavelmente, para que me conceda um maior poder divino por meio do Espírito
vivificante que espalha a luz, para que eu escape mais facilmente ao diabo
ardiloso e ao inimigo maligno, para que eu siga em minha vida santa e
maravilhosa? Todos os sábios anjos e todas as almas dos justos, rezem por mim a
Deus, por mim que vivo na insensibilidade do intelecto e na baixeza.
83. Meu Deus, meu Deus, nada á maior do
que você, que não tem limites. Você carrega em si o todo, pois é o Criador do
universo. Você está infinitamente acima de tudo, por ser mais alto do que o
ser. Senhor, meu Senhor, santa união indizível, sopro inefável concedido aos
cristãos de quem você tem piedade, eu lhe dou glória. Como, Mestre, vendo-o eu
brilhar em meu coração dia e noite, não fico todo o tempo fora de mim sob o
transbordamento da graça? Como posso ser negligente e insensível diante da
imensidão de tal dom, Deus todo-poderoso? Oh, quão pecador eu sou!
Se você soubesse quem foi que me
consagrou, e por quem e a quem minha vida foi consagrada, em seu arrebatamento
você celebraria a obra do Deus mais alto que o ser, rendendo-lhe graças no mais
alto grau pelas coisas gloriosas que ele fez em sua bondade, além de toda
medida. Porém, se, antes mesmo de declarar seu maravilhamento, você compreendeu
o quanto eu estou longe do verdadeiro mistério que existe em Cristo, você
conhecerá minha irresponsabilidade, minha pesandez, minha negligência, para não
dizer minha insensibilidade e minha manifesta loucura.
Naquele tempo, Jesus disse: “Eu o
louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque você escondeu estas coisas aos
sábios e aos inteligentes, mas as revelou às crianças. Ouve, Pai, eu o louvo
porque você quis assim”. Ore, peça que nos seja concedido nada experimentar que
vá contra o amor pela sabedoria. Tanto nas aflições da vida como nas coisas de
Deus, e para nada fazer que seja indigno dos dois. E me perdoe.
[1]
“É em Cristo que habita, em forma corporal, toda a plenitude da divindade.” (Colossenses 2: 9)
[2] No original falta o capítulo 49.
[3] Lucas, XXII,
12.
[4] Realidade fundamental (hypokeimenon): designa o que é inerente à hipóstase, ao fundamento
do criado, à pessoa.
[5]
“Ele cresceu como broto na presença de Javé, como
raiz em terra seca. Ele não tinha aparência nem beleza para atrair o nosso
olhar, nem simpatia para que pudéssemos apreciá-lo.” (Isaías LIII, 2-3)
Excelente!
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