Da Prece do Coração: Nicéforo o Solitário, Gregório o Sinaíta, Simeão o Novo Teólogo


EXCERTO DOS
“RELATOS DE UM PEREGRINO RUSSO”



“Agradeça a Deus, irmão bem amado, por ter revelado a você uma atração irresistível para a prece interior perpétua. Reconheça nisto o chamado de Deus e acalme-se pensando que desta forma a concordância da sua vontade com a palavra divina foi devidamente provada; foi-lhe dado entender que não é a sabedoria deste mundo nem um vão desejo de conhecimentos que conduz à luz celeste – a prece interior perpétua – mas ao contrário é a pobreza de espírito e a experiência ativa na simplicidade do coração. Por isso você não deve se espantar de não ter entendido nada de profundo sobre o ato de rezar e por não ter aprendido como chegar a esta atividade perpétua. Na verdade, fala-se muito sobre a oração e existem inúmeras obras recentes escritas a respeito, mas todos os julgamentos dos seus autores estão fundamentados sobre a especulação intelectual, sobre os conceitos da razão natural e não sobre a experiência alimentada pela ação; eles falam mais dos atributos da prece do que de sua essência própria. Um explica muito bem porque é necessário rezar; outro fala do poder e dos efeitos benéficos da prece; um terceiro, das condições necessárias para bem orar, ou seja, o zelo, a atenção, o calor do coração, a pureza de espírito, a humildade, o arrependimento que é preciso para se por a rezar. Mas o que é a oração e como aprender a orar – a estas questões que no entanto são essenciais e fundamentais, raramente encontramos resposta entre os pregadores destes tempos; pois elas são mais difíceis do que todas as suas explicações e demandam não um saber escolar mas um conhecimento místico. E, coisa ainda mais triste, esta sabedoria elementar e vã os leva a medir a Deus com uma escala humana. Muitos cometem um grande erro, ao pensarem que os meios preparatórios e as boas ações engendram a oração, enquanto que na verdade é a oração a fonte das obras e das virtudes. Eles tomam erradamente os frutos ou as consequências da prece pelos meios de chegar a ela, e assim diminuem sua força. Trata-se de um ponto de vista inteiramente oposto à Escritura, pois o apóstolo Paulo fala assim da oração: Eu lhes recomendo orar acima de tudo[1].”

“É assim que o Apóstolo coloca a oração acima de tudo. Muitas boas obras são requeridas ao cristão, mas a obra da prece está acima de todas as outras, pois, sem ela, nenhum bem pode cumprir-se. Sem a oração frequente, não podemos encontrar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a Verdade, crucificar a carne com suas paixões e seus desejos, sermos iluminados no coração pela luz de Cristo e nos unirmos a ele na salvação. Eu digo frequente, pois a perfeição e a correção da nossa prece não dependem de nós, como também diz o apóstolo Paulo: Não sabemos o que pedir[2]. Apenas a frequência foi deixada em nosso poder como meio de atingirmos a pureza da oração que é a mãe de todos os bens espirituais. Adquira a mãe e você terá uma descendência, diz são Isaac o Sírio, ensinando que é preciso antes adquirir a oração para podermos depois colocar em prática as virtudes.”



(...)



“Este livro santo está cheio de uma grande sabedoria. É um tesouro misterioso de ensinamentos sobre os desígnios secretos de Deus. Ele não é acessível a qualquer um em qualquer parte; mas ele contém máximas que estão ao alcance de cada um, profundas para os espíritos profundos, simples para os simples. É por isso que vocês, pessoas simples, não devem ler os livros dos Padres na sequência tal como estão colocados aqui.”

“Esta é uma disposição conforme a teologia; mas aquele que não é instruído e que deseja aprender a prece interior na Filocalia deve praticar a seguinte ordem: em primeiro lugar, ler o livro do monge Nicéforo (na segunda parte); depois o livro de Gregório o Sinaíta inteiro, salvo os capítulos curtos; depois as três formas da prece de Simeão o Novo Teólogo e seu tratado sobre a Fé; depois o livro de Calixto e Inácio. Nesses textos, poderá ser encontrado o ensinamento completo da prece interior do coração, ao alcance de todos. Se você quiser um texto ainda mais compreensível, tome na quarta parte o modelo abreviado da prece de Calixto, patriarca de Constantinopla.”














1. NICÉFORO O SOLITÁRIO







TRATADO DA SOBRIEDADE

E DA GUARDA DO CORAÇÃO



Vocês que ardem por obter a grandiosa e divina luz de Nosso Salvador Jesus Cristo, vocês que querem captar sensivelmente no coração o fogo mais que celeste, vocês que se esforçam por obter a experiência e sentir a reconciliação com Deus, vocês que deixaram todos os bens deste mundo para descobrir e possuir o tesouro que se esconde nos campos do coração, vocês que desejam partir desta terra e abrasar com a bem-aventurada luz as tochas da alma, e que, para tanto, renunciaram a todas as coisas presentes; vocês que querem conhecer e apoderar-se com um conhecimento experimental do reino de Deus presente no seu interior, venham, porque vou expor a ciência, ou melhor o método da vida eterna, ou melhor da vida celeste, que introduz, sem fadiga nem suor, aquele que o pratica no porto da impassibilidade. Ele não teme nem a sedução nem o terror[3] que vêm dos demônios. Este método só perde sua razão de ser quando, por desobediência, marchamos longe da vida que lhes exponho. É o que aconteceu a Adão. Por haver desprezado o preceito divino, por ter se ligado à serpente, confiado nela e se deixado fartar do fruto enganador, ele precipitou-se lamentavelmente, e com ele sua descendência, nas goelas da morte, das trevas e da corrupção.



Retornem, portanto – para falar mais exatamente, retornem a si mesmos, meus irmãos, rejeitando com o maior desprezo o conselho da serpente a perdição que nos arrasta  ao mais baixo ponto. Pois só existe um meio para se alcançar a reconciliação e a união com Deus: retornar, em primeiro lugar e tanto quanto pudermos, a nós mesmos, ou melhor – por um paradoxo –, penetrar em nós mesmos, nos separando do comércio do mundo e dos desejos vãos, para nos ligarmos indefectivelmente ao “Reino dos céus que está dentro de nós”.



É por isso que a vida monástica recebeu o nome de “ciência das ciências e arte das artes[4]”. Pois esta vida santa não nos é estranha e não tem nada em comum com as vantagens corruptíveis daqui embaixo que desviam nosso espírito da melhor parte para nos enterrar sob seus aluviões. Ela nos promete bens maravilhosos e inefáveis, “como o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, nem o coração do homem imaginou” (I Cor., 2, 9). Da mesma forma, “não devemos lutar contra a carne e o sangue, mas contra as dominações, as potências, os príncipes das trevas deste século” (Efe. 6, 12). Como o século presente não é feito senão de trevas, fujamos, fujamos dele mesmo em pensamento. Que não haja nada de comum entre nós e o inimigo de Deus, pois “aquele que tornar-se amigo dele tornar-se-á inimigo de Deus” (Tg., 4, 4). E àquele que se tornou inimigo de Deus, quem poderá ajudar?



Imitemos portanto nossos Padres e, seguindo-os, busquemos o tesouro escondido em nossos corações e, tendo-o descoberto, seguremo-lo com todas as nossas forças para a um tempo guardá-lo e valorizá-lo. É para isto que fomos nós destinados originalmente. Se algum novo Nicodemo quiser zombar a respeito: “Como é possível entrar dentro do coração para aí viver e trabalhar?”, ele terá direito à resposta que o próprio Salvador deu à objeção do primeiro Nicodemo[5]: “o Espírito sopra aonde bem entende”. Se por falta de fé duvidarmos das obras da vida ativa, como chegaremos às obras da contemplação? Pois a ação é o caminho que leva à contemplação.



Mas, como é impossível convencer um espírito tão incrédulo sem provas escritas, vou apresentar no presente tratado, para proveito de todos, as vidas dos santos e seus escritos. Convencido, ele rejeitará todas as dúvidas. Começaremos por nosso pai, santo Antônio o Grande, seguindo com sua posteridade, e colheremos, com o melhor de nós, as peças de convencimento contidas nas palavras e na conduta destes santos.













EXTRATO DA VIDA DE NOSSO PAI

SANTO ANTÔNIO



“Um dia, dois irmãos puseram-se a caminho para irem ao encontro do santo abade Antônio. Durante o caminho, faltou-lhes água; um morreu, e o outro sentiu que não duraria muito mais tempo; sem forças para prosseguir, ele deitou-se no chão a esperar a morte. Antônio, que estava sentado sobre uma montanha, chamou dois monges que estavam por lá, e apressou-os, dizendo: “Peguem um cantil com água e corram ao caminho que leva ao Egito; dois irmãos vinham por ali, um acaba de morrer e o outro não durará muito, se vocês não forem diligentes; isto me foi manifestado enquanto eu estava em oração.” Os monges colocaram-se a caminho, encontraram o morto e o enterraram; eles recuperaram o outro com água e o conduziram ao ancião, pois distavam um dia de marcha. Podemos nos perguntar porque Antônio não dissera nada antes da morte do primeiro; mas esta questão é deslocada. Não dependia de Antônio decidir sobre aquela morte, mas somente a Deus que resolveu deixar morrer um e revelar o segundo. O que há de maravilhoso da parte de Antônio é que, sentado sobre a montanha, ele tinha o coração sóbrio e vigilante, tendo Deus lhe revelado acontecimentos distantes. Vemos com isto que Antônio, graças à sobriedade e vigilância de seu coração, foi gratificado com a visão divina e a vista longínqua. Pois Deus, nos diz João da Escada, “manifesta-se ao espírito no coração, primeiro para purificar aquele que o ama, depois como uma luz que ilumina o intelecto, tornando-o obra de Deus”.





DA VIDA DE SANTO TEODÓSIO O CENOBIARCA (séculos V-VI)



São Teodósio foi atingido pela flecha suave da caridade e tornou-se seu prisioneiro a ponto de consumir em suas obras o sublime e divino mandamento: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo o coração” (Mt., 12, 37). Isto só foi possível porque todas as potências naturais de sua alma tendiam unicamente ao amor de seu Criador, à exclusão de todos os objetos aqui de baixo. Eu falo das atividades intelectuais de sua alma. Ele também inspirava reverência quando consolava e era por outro lado a própria doçura e afabilidade quando repreendia. Quem teve relações mais úteis a todos, sendo ao mesmo tempo capaz de recolher seus sentidos e dirigi-los para dentro de si mesmo, a ponto de enfrentar a agitação do mundo com a mesma tranquilidade que o deserto? Quem foi mais capaz de permanecer em si tanto na multidão quanto no isolamento? É assim que, recolhendo seu espírito para introduzi-los em si mesmo, nosso grande Teodósio foi atingido pelo amor do Criador.





DA VIDA DE SANTO ARSÊNIO



O admirável Arsênio criou para si uma regra de jamais tratar nada por escrito e de jamais escrever sequer uma letra. Não que ele não fosse capaz. Era-lhe mais fácil ser eloquente do que a um outro falar com simplicidade. Não, era unicamente pelo hábito do silêncio e pela repugnância a aparecer. Pela mesma razão, ele tinha o cuidado, após as reuniões da comunidade (sinaxes), em não ver ninguém nem ser visto: ele se colocava atrás de um pilar ou de qualquer obstáculo para esconder-se dos demais assistentes. Ele queria com isto vigiar a si mesmo, recolher seu espírito e assim, elevar-se a Deus com mais facilidade. Um novo exemplo de homem santo, verdadeiro anjo sobre a terra, que recolheu em si o espírito para elevar-se sem penas a Deus.





DA VIDA DE SÃO PAULO DE LATROS (+ 955)



São Paulo quase não deixava as montanhas e os lugares desertos. Os animais selvagens eram seus companheiros e seus convivas. Um dia ele achou bom descer para visitar os irmãos. Ele então os exortou e os ensinou a se mostrarem corajosos, a nunca negligenciar preguiçosamente os trabalhos penosos da virtude mas a se dedicarem com extrema atenção e discrição à vida evangélica e a combater valentemente os espíritos do mal. Ele expôs um método para reconhecer as sugestões da paixão e evitar as sementes clandestinas das paixões. Vocês viram nosso santo Pai ensinar a seus discípulos ignorantes um método para afastar as sugestões das paixões? Só pode se tratar da guarda do espírito, pois esta é sua obra e de nenhum outro. Vamos em frente.





DA VIDA DE SÃO SABBAS (século VI)



Quando são Sabbas notava um recruta que ainda não havia aprendido bem a regra da vida monástica, e que já era capaz de guardar seu espírito, de combater contra os pensamentos do inimigo, uma pessoa que havia banido de seu coração a lembrança do mundo, ele lhe reservava uma cela no meio da mosteiro, se ele tivesse a saúde delicada. Se ele fosse robusto, ele permitia que ele construísse sua própria cela. Vocês veem como são Sabbas exigia de seus discípulos a guarda do espírito, tomando como condição para tanto a vida na cela? Que faremos nós, que vivemos ociosamente na cela, sem sequer sabermos que existe uma guarda do espírito?





DA VIDA DE SÃO ÁGATÃO



Um irmão perguntou ao abade Ágatão: “Abade, diga-me qual dos dois é o melhor: o trabalho corporal ou a guarda do seu interior?” Ágatão respondeu: “O homem é como uma árvore: o trabalho corporal são as folhas, a guarda do espírito é o fruto. Está escrito que toda árvore que não produz fruto será cortada e atirada ao fogo. Segue-se claramente daí que todo nosso esforço deve estar centrado nos frutos, entenda-se: na guarda do espírito. Mas também são necessárias a sombra e o frescor das folhas, ou seja, o trabalho corporal.” Admirem como nosso santo se expressa a respeito daqueles que não possuem a guarda do espírito. Daqueles que só podem se prevalecer da vida ativa, ele dizia: “toda árvore que não dá fruto”, ou seja a guarda do intelecto, e que só tem folhas, ou seja a vida ativa, será cortada e atirada ao fogo. Terrível sentença, meu pai!





DO ABADE MARCOS A NICOLAU



“Meu filho, você quer possuir dentro de você uma chama da ciência espiritual, a fim de caminhar sem hesitação na noite profunda deste século, que “o senhor dirija seus passos” e que você deseje com ardente fé a via do Evangelho, ou seja, comungar, pelo desejo e pela prece, com os preceitos evangélicos da perfeição? Vou lhe mostrar um método maravilhoso e uma invenção espiritual. Ele não exige nem fadiga nem combate corporais, mas uma fadiga espiritual e uma atenção do espírito apoiada no temor e no amor a Deus e, com este método, Você derrotará sem trabalho a falange dos inimigos... Se portanto você quiser obter a vitória contra as paixões, com a oração e o concurso de Deus, entre em si mesmo, mergulhe nas profundezas do seu coração, siga a pista destes três gigantes poderosos: o esquecimento, a preguiça e a ignorância, que são o ponto de apoio dos invasores espirituais. É através deles queque as outras paixões más insinuam-se na alma, operam, vivem e prevalecem numa alma ligada aos prazeres... Uma grande atenção e supervisão do espírito, unida à ajuda do alto, o fará descobrir o que permanece desconhecido à maioria, e você poderá assim, com grande esforço de prece e atenção, libertar-se dos gigantes do mal. Com a poderosa colaboração da graça, esforce-se para estabelecer em seu coração e aí guardar com cuidado a perfeita harmonia da verdadeira ciência, da lembrança da palavra de Deus e de uma boa resolução; assim, todo traço de esquecimento, ignorância ou preguiça desaparecerá do seu coração”. Veem a unanimidade das palavras espirituais, e como elas nos expõem claramente a ciência da atenção? Escutemos os próximos.





SÃO JOÃO DA ESCADA



“O hesiquiasta é aquele que, paradoxalmente, esforça-se por circunscrever o incorpóreo em uma moradia carnal” (cap. 27). “O hesiquiasta é aquele que diz: eu durmo, mas meu coração vela. Feche a porta de sua cela ao seu corpo, a porta de sua boca à palavra, e sua porta interior aos espíritos” (cap. 27). “Sentado no alto observe, se souber, e você verá a maneira, o momento, a origem, o número e a natureza dos ladrões que querem se introduzir na sua vinha para roubar as uvas. A sentinela está fatigada, ela se levanta para orar, depois ele se senta e se coloca valentemente em sua ocupação” (cap. 27). “Uma coisa é a guarda dos pensamentos, outra a guarda do espírito: entre elas existe toda a distância do oriente ao ocidente, e a segunda é bem mais difícil” (cap. 27). “Os ladrões que percebem em algum lugar os exércitos do rei não se aventuram ali; da mesma forma, aquele que soldou a prece ao seu coração praticamente não corre o risco de ser despojado pelos ladrões espirituais” (cap. 26). Vejam a ocupação admirável de nosso santo Pai. E dizer que nós caminhamos nas trevas, como em um combate noturno; não ouvimos as preciosas palavras do Espírito e, voluntariamente surdos, passamos ao largo. Prossigamos. Vejamos como outros Padres nos convidam à sobriedade.









DO ABADE ISAÍAS (+ 488)



“Aquele que se separa do que está à sua esquerda (o mal), conhece então completamente todos os pecados que cometeu contra Deus, porque não vemos os pecados senão quando nos separamos dolorosamente deles. Quem chega a este grau encontra as lamentações, a prece e a vergonha diante de Deus, à lembrança de sua má ligação com as paixões. Esforcemo-nos portanto, meus irmãos, tanto quanto pudermos, e Deus trabalhará conosco segundo a abundância de sua misericórdia. Se não guardamos nosso coração a exemplo de nossos pais, ao menos apliquemo-nos, na medida de nossas possibilidades, em guardar nosso corpo sem pecado como Deus nos pede, e tenhamos fé em que, na hora da fome, ele nos enviará sua misericórdia como o fez aos seus santos.” Com estas últimas palavras nosso santo consola os fracos. Tanta é a compaixão e a indulgência de tão grande santo!





MACÁRIO O GRANDE



“A obra mestra do atleta, é de penetrar em seu coração, desprezar Satã e engajar-se num combate contra ele atacando seus pensamentos. Aquele que guarda seu corpo visível da corrupção e do adultério mas comete o adultério interiormente ante Deus prostituindo seus pensamentos – de nada lhe servirá um corpo virgem. Porque está escrito: “Aquele que olha para uma mulher para desejá-la já cometeu adultério em seu coração” (Mt., 5, 28). Existe um adultério que se consuma no corpo e existe o adultério da alma que se entrega a Satã.” Nosso Pai parecia contradizer as palavras citadas do abade Isaías, mas não é o que acontece. Pois Isaías prescreve “guardar o corpo como Deus nos pede”; ora, Deus não pede apenas a pureza do corpo, mas também a do espírito...



DIÁDOCO DE FOTICÉIA



“Aquele que habita sem cessar em seu coração emigra definitivamente das agruras da vida. Caminhando segundo o espírito, ele não conhece mais as invejas da carne. Como ele vai e vem no castelo das virtudes que são por assim dizer os guardiães das portas, os planos dos demônios não fazem efeito sobre ele.” Diz bem o santo que os planos do demônio não têm efeito sobre nós quando vivemos nas profundezas de nosso coração, e isto na medida mesma em que aí permaneçamos desde o início... Percebo que vai faltar-me o tempo consignar, como eu queria, os propósitos de todos os Pais. Mencionarei apenas mais alguns e tentarei concluir a partir daí.





ISAAC O SÍRIO



“Aplique-se em entrar na sua câmara interior e você verá a câmara celeste. Pois tudo é uma só coisa e a mesma porta abre para a contemplação das duas. A escada deste reino está oculta dentro de você, na sua alma. Lave-se do pecado e você descobrirá os degraus nos quais subir.”





JOÃO DE CÁRPATOS



“Nossas preces exigem muitas lutas terríveis antes de nos revelar o estado impassível do espírito, este segundo céu do coração no qual habita o Cristo. Escutem o apóstolo: Não sabeis que o Cristo habita em vós? A menos que sejais os reprovados” (II Cor. 13, 5).





SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO



“O diabo (e seus demônios), desde o dia em que a desobediência baniu o homem do paraíso e do contato com Deus, tem licença para agitar espiritualmente a alma do homem, de dia e de noite, seja pouco, seja muito, seja demais. O único meio de se proteger é a lembrança constante de Deus: a lembrança de Deus gravada no coração pela virtude da cruz firma inquebrantavelmente o espírito. Este é o objeto do combate espiritual que o cristão deve levar no estado de fé cristã e para o qual ele revestiu-se da armadura. Senão, ele combate em vão. Este combate é a única razão das várias asceses com as quais maltratamos o corpo por causa de Deus. Trata-se de forçar as entranhas do Deus de Bondade, de recuperar sua dignidade primeira e de imprimir o Cristo, tal qual u m selo, na razão, conforme as palavras do apóstolo: “Minhas crianças, eu estou em trabalho de parto desde que o Cristo formou-se em vós” (Gal. 4, 19). Vocês compreendem agora, meus irmãos, que existe uma arte, ou antes um método espiritual, para levar rapidamente quem o emprega à apatheia e à teóptica. Convençam-se de que a vida ativa vale para Deus tanto quanto as folhas da árvore, que não servirão de nada à alma que não possuir a guarda do espírito, o fruto. Façamos tudo para não morrermos estéreis e não termos que conhecer arrependimentos inúteis.



Questão: Seu tratado nos ensina a conduta daqueles que agradam ao Senhor; ele nos ensina que existe uma ocupação que liberta prontamente a alma de suas paixões e que ela é necessária a todo cristão que se alistou no exército de Cristo: não duvidamos mais, estamos convencidos. Mas o que é a atenção? Como chegar a ela? É o que queremos saber, pois não temos a respeito a menor ideia.



Resposta: Em nome de nosso senhor Jesus Cristo que disse: “Sem mim não podeis nada” (Jo., 15, 5) e depois de ter invocado sua ajuda e seu socorro, tentarei mostrar o melhor que puder o que é a atenção e como, com a graça de Deus, podemos alcançá-la.





DO MESMO NICÉFORO



Alguns santos chamaram a atenção de “guarda do espírito”, outros de “guarda do coração”, ou de “sobriedade”, ou de “repouso do espírito”, e de outros ainda. Diferentes expressões que querem dizer a mesma coisa, como quem diz pão, filãozinho ou pão francês.



O que é a atenção, quais são suas propriedades? Escutem-me com bem. A atenção é o sinal da penitência cumprida; a atenção é o apelo à alma (do desvario das paixões), a aversão ao mundo e o retorno a Deus. A atenção, é desvestir-se dos pecados e revestir-se da virtude. A atenção é a certeza indubitável do perdão dos pecados. A atenção é o princípio da contemplação, ou melhor, é sua base permanente. Graças a ela, Deus se inclina sobre o espírito para manifestar-se a ele. A atenção é a ataraxia do espírito, sua fixação à alma pela misericórdia de Deus. A atenção é a purificação dos pensamentos, o templo da lembrança de Deus, o tesouro do suportar as provas. A atenção é a auxiliar da fé, da esperança e da caridade. Sem a fé, não suportaríamos as provas que vêm de fora: aquele que não aceita com alegria as provas não pode dizer ao Senhor: “Tu és meu refúgio e meu asilo” (Sl. 3, 4). E, se ele não cola seu refúgio no Altíssimo, ele não possuirá amor no fundo do seu coração[6].



Este efeito sublime chega à maioria, para não dizer a todos, pelo canal do ensinamento. É muito raro recebe-lo de Deus, dispensando um mestre, apenas com o vigor da ação e o fervor da fé. Ora, exceções não fazem leis. É importante assim buscar um mestre infalível: suas lições nos mostrarão nossos desvios, à esquerda e à direita, e também nossos excessos em matéria de atenção; sua experiência pessoal dessas provas nos esclarecerá a respeito e nos mostrará, sem dúvidas, o caminho espiritual que então poderemos percorrer sem dificuldade. Se você não tem um mestre, procure um a qualquer custo. Se você não o encontrar, invoque a Deus com espírito contrito e em lágrimas, suplique-lhe com todo o despojamento e faça o que eu disse.



Mas antes, que a sua vida seja aprazível, livre de todo cuidado, em paz consigo. Então entre na sua câmara, tranque-se, e, sentado num canto, faça o que eu vou lhe dizer:



Você sabe que nosso sopro, o ar de nossa inspiração, nós só o expiramos[7] por causa do coração. Pois é o coração que é o princípio da vida e o calor do corpo. O coração empurra o sopro a fim de expelir seu próprio calor para fora pela expiração, assegurando assim para si uma temperatura ideal. O princípio desta organização, ou melhor seu instrumento, é o pulmão. Fabricado pelo Criador com um tecido fino, sem parar ele introduz e expele o ar à maneira de um fole. Desta forma o coração, por um lado atraindo o ar fresco pela inspiração e expelindo o calor pela expiração, conserva inviolável a função que lhe foi assinalada no equilíbrio geral do ser vivo.



Quanto a você, como eu disse, sente-se, recolha seu espírito, introduza-o – o espírito – nas suas narinas; é o caminho que o ar toma para chegar ao coração. Empurre-o, faça-o descer até seu coração junto com o ar inspirado. Quando ele chegar lá, você verá a alegria que irá se seguir; você não tem nada a temer. Assim como o homem que volta para casa depois de uma ausência não retém sua alegria de poder reencontrar sua esposa e filhos, também o espírito, quando está unida à alma, transborda de uma felicidade e experimenta delícias inefáveis.



Meu irmão, acostume então seu espírito a não se apressar em sair daí. No início faltará zelo, é o mínimo que podemos dizer, para esta reclusão e este encerramento interiores. Mas, uma vez adquirido o hábito, ele não experimentará mais prazer alguns nos circuitos exteriores. Pois “o reino e Deus está dentro de nós” e a quem voltar para ele seu olhar e o buscar com uma prece pura, todo o mundo exterior se tornará vil e desprezível.



Se, logo no começo, você penetrar pelo espírito no lugar do coração que eu lhe mostrei, graças a Deus! Glorifique-o, exulte e agarre-se unicamente a este exercício. Ele lhe ensinará o que você ignora. Saiba a seguir que, enquanto seu espírito se acha lá, você não deve nem deter-se nem permanecer ocioso. Mas não tenha outra ocupação nem meditação do que o chamado de “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim!” Sem trégua, por preço algum! Esta prática, mantendo seu espírito ao abrigo das divagações, o torna impenetrável e inacessível às sugestões do inimigo e, a cada dia, ele crescerá no amor e no desejo por Deus.



Mas se, meu irmão, apesar de todos os seus esforços, você não conseguir penetrar nas partes do coração indicadas por mim, faça como eu lhe disse, e, com a ajuda de Deus, você alcançará seus objetivos. Você sabe que a faculdade de locução do homem tem sua sede no peito. É de fato em nosso peito que, quando nossos lábios estão mudos, nós falamos, decidimos, compomos nossas preces e nossos salmos, etc. Após haver banido desta faculdade todo pensamento (você pode, é só querer), dê-lhe o “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” e obrigue-o a clamar interiormente, à exclusão de qualquer outro pensamento, estas palavras. Quando, como tempo, você se tornar mestre nesta prática ela lhe abrirá a entrada do coração, assim como eu lhe disse, indubitavelmente. Eu mesmo fiz esta experiência. Com alegre e desejável atenção você verá chegarem-lhe todos os coros das virtudes, do amor, da felicidade, da paz e do resto. Graças a elas, todas as sua demandas serão atendidas por Nosso Senhor Jesus Cristo...






2. GREGÓRIO O SINAÍTA







DA HESÍQUIA E DA PRECE





Dos sinais da graça e da ilusão. Qual é a diferença entre calor e energia. Como é fácil, sem um guia, cometer o erro do sincretismo.





1. Seria preciso falar como o grande Doutor e não ter necessidade do auxílio das Escrituras, nem de outros Padres, ó Longino, você que traz o sinal, mas  sim sermos ensinados por Deus – pois  foi dito: “Todos serão ensinados por Deus” - a fim de receber dele e por ele o conhecimento e de aprender o que é bom. Não foi apenas a nós, mas a cada fiel, que foi dada, como a lei do Espírito sobre as tábuas de nossos corações, trazer escrito ao mesmo tempo aqui e com os Querubins, o extraordinário, e de nos entretermos com Jesus por intermédio da prece pura.



Mas, se recebemos a nova criação ainda crianças, não concebemos a graça  nem percebemos toda a novidade, mas antes desconhecemos a transbordante imensidão da honra e da glória da qual participamos. E não sabemos que através dos mandamentos devemos crescer em nossa alma e nosso espírito, e ver com o intelecto aquilo que recebemos. A maior parte dentre nós, pela negligência e o estado passional, cai na insensibilidade e na cegueira. Não sabemos nem se Deus existe, nem o que somos, nem aquilo que nos tornamos ao nos tornarmos filhos de Deus, filhos da luz, filhos e membros de Cristo.



E se somos batizados na idade adulta, não percebemos senão a água, não sentimos o Espírito. Mesmo renovados no Espírito, não cremos senão com uma fé morta e inerte, não afirmamos plenamente aquilo que nos tornamos. Somos assim carne e vivemos e caminhamos segundo a carne. Se nos arrependemos, não observamos nem conhecemos os mandamentos senão de modo corpóreo, não espiritual. Se, depois de muitas penas, a alguns dentre nós é dado ver aparecer a graça em seu amor pelo homem, nós a vemos como uma ilusão. E quando ouvimos dizer que esta graça age em outros, ficamos com inveja e a vemos como um erro. Assim, permanecemos mortos até o último dia, e não vivemos nem agimos em Cristo. Como diz a Escritura, aquilo que temos nos será tirado no momento do êxodo e do Juízo, por nossa descrença ou nossa desesperança. Nunca compreendemos que é preciso que os filhos sejam à imagem do Pai: deuses, pois eles vêm de Deus; espirituais, porque vêm do Espírito. Diz-se que aquilo que é nascido do Espírito é espírito. Mas nós somos carne e, embora tenhamos recebido a fé e tenhamos nos tornado celestes, o Espírito de Deus não permanece em nós. Se o Senhor permitiu a angústia e o cativeiro e deixou que se multiplicassem as carnificinas, é talvez porque quis nos corrigir com remédios mais fortes, ou nos separar, ou nos livrar da malícia.



2. Direi, antes de mais nada, se Deus dá voz aos que anunciam tais bens, como podemos encontrar o Cristo que possuímos, ou que recebemos pelo batismo no Espírito, ou melhor, como podemos ser encontrados por ele. São as palavras do Apóstolo Paulo: “Não sabem que Jesus Cristo mora em seus corações?”. Depois direi como avançar – possa isto ser assim – e como conservar o que foi conseguido.



A melhor maneira, e a mais curta, é expor brevemente os extremos e o meio, pois a coisa é muito vasta. É por isso que muitos levaram o combate só até achar o que buscavam, e aí detiveram seu impulso. Eles não foram mais longe e não se preocuparam com isto, contentando-se com o começo que encontraram. Quando encontraram um obstáculo e deixaram secretamente a via, eles imaginaram continuar no bom caminho, e marcharam para longe dele sem nenhum ganho. Outros, que chegaram até a metade do caminho da iluminação, pararam antes do fim. Foram negligentes, ou voltaram atrás vivendo na indiferença, e tornaram-se novamente noviços. Outros chegaram a tocar a perfeição, mas não foram suficientemente atentos. A presunção os fez cair, voltaram atrás e se viram outra vez trabalhando com os médios e os noviços. Ora, os noviços, os médios e os perfeitos têm cada qual sua própria via, uns a energia, outros a iluminação e outros a purificação ou a ressurreição da carne.







Como encontrar a energia



3.  A energia do Espírito, que recebemos misteriosamente no batismo, encontra-se segundo dois modos. Em primeiro lugar, de modo geral, por obra dos mandamentos, através de muitas penas e tempo, é que, segundo são Marcos, se revela o dom que, na medida em que cumprimos os mandamentos, nos ilumina mais e mais com sua própria irradiação. Em segundo lugar, o dom se manifesta na submissão, pela invocação aplicada e contínua do Senhor Jesus, ou seja, pela lembrança de Deus.



Seguimos mais lentamente a primeira via, e mais depressa a segunda, se aprendermos com esforço como cavar pacientemente a terra para encontrar ouro. Se quisermos encontrar e conhecer a verdade sem cairmos em erro, busquemos unicamente a energia do coração, sem imagens ou qualquer tipo de forma. Não tentemos nem ver em imaginação a forma ou a figura dos supostos santos, nem contemplar luzes, pois, com tais imaginações falsas, o erro vem bater no intelecto daqueles que não possuem experiência. Não nos liguemos senão na energia da oração que age no coração, que aquece e alegra o intelecto e inflama a alma com o inefável amor a Deus e aos homens. Veremos então uma grande humildade e uma grande contrição virem por intermédio da prece, uma vez que ela é, para um noviço, uma energia do Espírito Santo, espiritual e sempre em movimento, De início, ela é como que um fogo de alegria que sobe do coração. No final, ela é como uma luz ativa que espalha perfumes.



4. Estes são os sinais do começo, para aqueles que procuram realmente, mas que não tentam, como diz a palavra de sabedoria que afirma que ela é encontrada pelos que não tentam e se manifesta aos que não lhe são infiéis. Em alguns ela se manifesta como a luz da aurora. Em outros, é uma exultação trêmula. Em outros, uma felicidade. Em outros, uma alegria mesclada de temor. Em outros, ela é tremor e alegria. Em alguns, às vezes, ela consiste em lágrimas e temor. A alma se regozija com a visita e a compaixão de Deus. Mas ela teme e treme em sua presença, pois é culpada de numerosos pecados. Outros, de início, ficam numa indizível contrição, numa pena inefável da alma, dolorosa como a da mulher que sofre no parto, conforme a Escritura. Pois a palavra viva e ativa – vale dizer: Jesus –, penetra nas juntas e nas profundezas do corpo, como diz o Apóstolo, até separar a alma do corpo, para consumir pela força o que existe de passional em todas as suas partes. Em outros ainda, trata-se de um amor e de uma paz irresistíveis, que se revelam diante de nós. Em outros, é uma exultação que os Padres muitas vezes chamaram de sobressalto, uma potência do Espírito, um movimento do coração vivo. Podemos chamá-la também de pulsação e suspiro do Espírito intercedendo inefavelmente por nós junto a Deus. Isaías a chama de “onda da justiça de Deus”. O grande Efrém a chama de “picada”. O Senhor a chamou de “fonte de água que jorra na vida eterna” (pois por “água” ele entendia “Espírito”), saltando no coração e transbordando de ardor e de poder.



5. É preciso saber que o sobressalto, ou a exultação, apresenta duas formas diferentes: a forma serena (a que chamamos pulsação, suspiro e intercessão do Espírito) e a grande alegria do coração (a que chamamos sobressalto e batimento, e que consiste num salto, um voo do coração vivo em direção ao céu e a Deus). Pois, ao receber do Espírito divino as asas do desejo amoroso e livre dos laços da paixão, a alma se esforça por voar para o alto antes mesmo de seu êxodo; ela tenta se livrar da pesandez.  Aí acontece o fremir do espírito, que chamamos de ardor transbordante e movimento da alma, conforme diz o Evangelho: “Jesus tremeu em espírito e ficou comovido, e disse: Aonde vocês o colocaram?”.



O divino Davi explicou a diferença entre o grande e o pequeno sobressalto quando disse que as montanhas saltam como carneiros e as colinas como cordeiros. Ele está falando dos perfeitos e dos noviços. Que as montanhas e as colinas sensíveis que ele evoca, e que não são vivas, possam saltar, isto é coisa que, para ele, ultrapassa a natureza.



6. É preciso saber que o temor a Deus não está ligado ao tremor (não me refiro ao tremor que vem da alegria, mas daquele que provém da cólera, ou seja, do castigo e do abandono). Com efeito, nasce da prece uma exultação trêmula no fogo do temor a Deus. Mas este temor não é aquele trêmulo temor da cólera e do castigo. Ele é o temor da sabedoria, do qual se diz ser o começo da sabedoria. Existem três espécies de temor (embora os Padres só mencionem dois): o temor elementar e o temor perfeito, e ainda o temor da cólera, que devemos chamar propriamente de tremor: este é o que derruba e quebra.



7. O tremor possui muitas formas diferentes. Um é o tremor da cólera, outro o da alegria, outro o do ardor (quando se diz que o sangue ferve em torno do coração), outro o da velhice, outro o do pecado, ou seja, do erro, outro ainda o da maldição que, por intermédio de Caim, foi imposta à raça dos homens. De início, o tremor que provém da alegria e o que provém do pecado combatem contra aquele que luta, mas isto não acontece com todos. Cada um dos dois é reconhecível. Um é a exultação trêmula, a graça que chama a alma para uma grande alegria e para as lágrimas. Outro é um calor inconstante, um torpor, uma dureza do coração, que queimam a alma, inflamam os membros que desejam se juntar e que, buscando na imaginação interior a união dos corpos e o amor, consentem e permitem o ultraje.



8. Nos noviços a energia é dupla. Ela age no coração de duas maneiras que não podem se misturar. Uma vem da graça, outra do erro. Isto é atestado pelo grande Marcos o Asceta: ele diz que existe uma energia espiritual e uma energia satânica, ignorada pela criança. E ainda, que o calor da energia que queima nos homens é tripla: uma vem da graça, outra do erro ou do pecado, e a outra da superabundância de sangue, a que Talassius o Africano chamava de compleição, e que pode ser amansada e apaziguada pela temperança.



9. A energia da graça é o poder do fogo do Espírito, suscitada no fundo do coração na alegria e no regozijo, firmando, aquecendo e purificando a alma. Ela faz imediatamente cessar os pensamentos e por um tempo paralisa os movimentos do corpo. Estes são seus sinais, e os frutos que manifestam a verdade: as lágrimas, a contrição, a humildade, a temperança, o silêncio, a paciência, o retiro, e tudo o que se lhes assemelha, tudo aquilo que nos faz ter uma certeza indubitável.



10. A energia do erro é a inflamação do pecado que esquenta a alma pelo prazer, suscitando no movimento do corpo o desejo furioso da cópula. Ela não possui nem consistência nem ordem, segundo são Diádoco. Ela é feita de uma alegria sem razão, de presunção, de confusão, de felicidade sem gosto e a que falta alimento. Num regozijo tépido, ela é feita sobretudo para satisfazer ao desejo. Imaginando uma matéria que inflama, ela opera com os prazeres e o ventre insaciável. Ela penetra e queima, com efeito, a compleição da carne, a fim de que o homem, dedicado ao usufruto do prazer por seu estado, expulse pouco a pouco de si a graça.


DA HESÍQUIA E DOS DOIS MODOS DA PRECE





1. Existem dois modos de união, ou antes, duas entradas que levam à prece do intelecto, que age no coração por meio do Espírito. Através destes dois modos, ou bem o intelecto que adere ao Senhor em conformidade com a Escritura recebe em primeiro lugar a prece no coração, ou bem a energia, despertando paulatinamente no fogo da alegria, faz com que a prece atraia o intelecto e o incite a invocar o Senhor Jesus e unir-se a ele.



Pois se o Espírito age em cada um como quer, como diz o Apóstolo, pode acontecer que, em alguns, uma das formas de que falamos preceda a outra. Pode ser que a energia chegue ao coração ao diminuírem as paixões e manifeste o calor divino, pela invocação contínua de Jesus Cristo, pois, como diz a Escritura, nosso Deus é um fogo que consome as paixões. Pode ser que o Espírito atraia o intelecto para si, encerrando-o nas profundezas do coração e impedindo seu movimento habitual. O intelecto então já não é um cativo levado aos Assírios fora de Jerusalém, mas é levado de Babilônia para Sião numa mudança bem melhor, e assim ele pode dizer com o Profeta: “É a você, Deus, que são endereçados os hinos em Sião, e a você é dirigida a prece em Jerusalém”. E também: “Quando o Senhor trouxer de Sião os que eram cativos”. E: “Jacó exultará e Israel se regozijará”, ou seja, o intelecto ativo e contemplativo que, pela ação e com a ajuda de Deus vence as paixões e, pela contemplação, vê o próprio Deus, na medida em que isto é possível. É então que o intelecto, convidado para uma mesa abundante e cheia das delícias divinas, canta: “Você preparou para mim uma mesa, na cara dos demônios e das paixões que me atormentavam”.





Como orar



2. Pela manhã, diz Salomão, semeie sua semente, ou seja, a prece, e que à tarde sua mão não descanse, a fim de não interromper no tempo a continuidade da prece e de não faltar no momento em que ela se esgotar. Pois, diz ele, você não sabe qual se realizará, se um ou outro.



Logo pela manhã, sentado num banquinho, faça o intelecto sair da razão, encerre-o no coração e guarde-o lá. Dolorosamente encurvado, com uma viva dor no peito, nas espáduas e na nuca, diga perseverantemente em seu intelecto ou em sua alma: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. A seguir, por causa do suplício e da pena, e talvez também pela pesada continuidade (não devido ao único e contínuo alimento do triplo nome, pois “aqueles que no comem, foi dito, terão ainda mais fome”), transporte o intelecto para a outra metade, e diga: “Filho de Deus, tenha piedade de mim”. Repita esta metade de muitas formas. Mas não mude frequentemente, por negligência. As plantas que são constantemente podadas não se enraízam. Retenha a subida do sopro, a fim de não respirar facilmente. Pois o movimento dos sopros provenientes do coração obscurece o intelecto e agitam o pensamento; ele o faz desviar-se ou o deixa cativo do esquecimento, ou fá-lo ocupar-se de uma coisa atrás da outra, e o intelecto termina por se encontrar insensivelmente aonde não deveria estar.



Se você perceber a aproximação das impurezas dos maus espíritos ou dos pensamentos, ou se eles tomarem forma em seu intelecto, não se perturbe. E se lhe ocorrerem bons pensamentos sobre as coisas, tampouco deixe sua atenção ligar para eles. Na medida do possível, retenha a respiração, encerre seu intelecto no coração e invoque continuamente, com perseverança, o Senhor Jesus. Você queimará e afastará rapidamente todas essas distrações, flagelando-as invisivelmente com o nome divino. Com efeito, disse João Clímaco: “Flagele com o nome de Jesus aqueles que o combatem. Não existe arma mais forte no céu ou sobre a terra”.





Da respiração



3. Isaias o Anacoreta é testemunha da necessidade de reter a respiração, assim como muitos outros. Um disse: “Domine o intelecto desenfreado, ou seja, puxado e dissipado pela potência contrária que a negligência permite retornar à alma despreocupada, após o batismo, com outros espíritos ainda piores, como disse o Senhor. E sua última condição se torna ainda pior do que a primeira”. Um outro afirma que o monge deve ter a lembrança de Deus como respiração. Outro, que o amor a Deus antecede a expiração. E o Novo Teólogo disse: “Segure a respiração que vem do nariz, a fim de não respirar facilmente”. E João Clímaco: “Que a lembrança de Jesus se uma à sua respiração, e você então conhecerá o benefício da hesíquia”. E o Apóstolo: “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim”, operando e inspirando a vida divina.



“O Espírito sopra aonde bem quer”, diz o Senhor, tomando como exemplo o sopro do vento sensível. Quando nos tornamos puros, é porque recebemos o hálito do Espírito e a palavra implantou-se em nós como uma semente, segundo Tiago, o irmão de Deus. Aquele que transborda de bondade é então plantado em nós e nos conforma consigo permitindo-nos receber aquilo que não se partilha. Sem confusão, sem diminuição, ele nos faz cumprir a obra divina. Mas nós negligenciamos os mandamentos que mantêm a graça e, por nossa indolência, caímos novamente ante as paixões. E no lugar da respiração do Espírito Santo, nós nos enchemos dos sopros dos maus espíritos. É certamente daí que provêm os bocejos e o espreguiçamento, como dizem os Padres. Aquele que adquiriu o Espírito e dele recebeu a purificação é, com efeito, aquecido por ele e respira a vida divina, proclama-a, concebe e desenvolve, conforme a palavra do Senhor: “Não serão vocês a falar, mas o Espírito de meu Pai que falará por vocês”. Mas aquele que carrega em si o contrário e que é dominado por ele, age e fala o oposto.





Como salmodiar



4. “Quem é preguiçoso, diz João Clímaco, deverá se levantar para orar. Depois sentar-se-á novamente e retomará corajosamente seu primeiro trabalho”. Ele fala do que o intelecto deve fazer depois que atingiu a guarda do coração. Mas é claro que ele também está falando da salmodia. Diz-se que o grande Barsanulfo foi um dia interrogado sobre a salmodia e o modo de salmodiar, e o ancião respondeu: “As Horas e as odes são tradições da Igreja, e é bom que elas nos tenham sido transmitidas para a vida comum. Mas os monges de Sceta não cantam as Horas nem possuem odes. Eles têm um trabalho manual, uma meditação solitária e uma prece intermitente. Quando você se levantar para orar, diga o Trisagion[8] e o Pai Nosso. Peça a Deus que o liberte do homem velho. E não se demore: pois seu intelecto está em oração o dia todo”. O ancião queria demonstrar que a meditação solitária é a prece do coração, e que a oração intermitente é o momento da salmodia. Também o grande João Clímaco diz claramente: “A obra da hesíquia é a ausência de preocupações em tudo, depois a prece ativa e, em terceiro lugar, a obra indefectível do coração”. Este é o lugar da prece, portanto o lugar da hesíquia.





Das diferentes salmodias



5. Alguns ensinam que se deve salmodiar muito; outros, que se deve salmodiar pouco; outros, que não se deve salmodiar, mas apenas orar e fatigar-se, trabalhar com suas mãos, ou arrepender-se, ou dedicar-se a algum outro trabalho difícil. Qual é a diferença?



A resposta é: aqueles que, depois de muitos anos e muitas penas, encontraram a graça na vida ativa, ensinam aos demais conforme aprenderam, e não podem admitir que outros possam aí chegar em pouco tempo pelo estudo, a misericórdia de Deus e uma prece ardente, como diz o santo Isaac. Enganados pela ignorância e a presunção, eles os condenam, e afirmam que agir de outra forma é uma ilusão e não uma energia da graça. Eles não sabem que aos olhos do Senhor, segundo a Escritura, é fácil proporcionar rapidamente a riqueza ao pobre, e que “o começo da sabedoria é adquirir a sabedoria”, a graça, como diz o Provérbio. Também o Apóstolo repreende seus discípulos que ignoram a graça, quando diz: “Não sabem vocês que Jesus Cristo mora em vocês? A não ser que sejam reprovados”, ou seja, incapazes de progredir devido à sua negligência. Em sua incredulidade e sua autossuficiência, eles não admitiam as obras extraordinárias próprias da oração, que o Espírito cumpre em alguns singularmente.



6. Objeção. Diga-me: jejuar, abster-se, velar, permanecer em pé, fazer as metanias[9], chorar, ser pobre, estas coisas não são ações? Como pode você dizer, colocando apenas a salmodia, que sem a vida ativa é impossível manter a prece? Estas coisas não são ações?



Resposta. Se a boca ora e o intelecto se agita, qual é a vantagem? “Um edifica e o outro destrói; cansamo-nos à toa”. Mas o intelecto deve trabalhar como o corpo. Caso contrário, seremos justos de corpo, mas com o coração cheio de toda acídia e impurezas. O Apóstolo confirma-o: “Se eu rezo em línguas, ou seja, com a boca, meu espírito está em oração, mas é apenas minha voz, e meu intelecto permanece estéril. Eu rezo apenas com a boca. Mas é preciso rezar também com a inteligência”. E: “Eu prefiro dizer cinco palavras, etc.”. João Clímaco o testemunha, ao dizer: “Prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência, etc.”.



Existem muitas obras, mas elas são parciais. A grande obra que a tudo engloba, a fonte das virtudes segundo João Clímaco, é a prece do coração, por meio da qual se descobre todos os bens. “Não há nada mais terrível, diz são Máximo, do que o pensamento da morte, e nada maior do que a lembrança de Deus”. Aqui ele mostra a transcendência da obra. Porém muitos, cegos por sua extrema insensibilidade e por sua ignorância, têm pouca fé e se recusam a entender que existe uma graça no tempo atual.



7. Penso que os que salmodiam pouco fazem bem. Eles observam a proporção mais justa – segundo os sábios, toda medida é excelente – e não esgotam toda a potência da oração na vida ativa. Assim, o intelecto, não se mostrando negligente à oração, não relaxa diante dela. Mas, se eles salmodiam apenas em parte, eles se desdobram o mais possível na oração. Há, entretanto, momentos em que, sufocado por seu apelo contínuo e pela constante repetição, o intelecto pode dar-se um repouso, deixando a estreiteza apertada da hesíquia pelas extensões da salmodia. Este é o melhor conselho e o ensinamento dos homens mais sábios.



8. Aqueles que nunca salmodiam fazem bem, se estiverem suficientemente avançados. Eles não precisam de salmos, mas de silêncio, de prece contínua e de contemplação, se lhes foi dado receber a luz. Eles estão unidos a Deus e não têm necessidade de separar dele seu intelecto para lança-lo na confusão. A vontade própria faz tombar o obediente, diz João Clímaco. E a interrupção da prece faz cair o hesiquiasta. Quando ele se separa da lembrança de Deus como de seu esposo, seu intelecto se torna adúltero: ele se toma de amor pelas menores coisas.



Nem sempre é possível ensinar aos demais este tipo de prece. Aos simples e aos iletrados que vivem na obediência, sim: pois a obediência, pela humildade, participa de todas as virtudes. Mas aos que não obedecem, sejam eles simples ou sábios, não se pode ensinar, para que não sejam levados a se perder. Quem não segue senão a si mesmo, com efeito, não pode escapar à presunção, que acompanha naturalmente o erro, diz o santo Isaac.



Alguns, que não veem o perigo das consequências, não ensinam senão este tipo de oração aos que encontram, para que seu intelecto, dizem eles, adquira a prática e o amor à lembrança de Deus. Mas isto é inadmissível, sobretudo com os monges independentes. Pois seu intelecto ainda se encontra impuro, por causa da negligência e da autossuficiência. Ele não foi purificado pelas lágrimas, e reflete mais as más imagens dos pensamentos do que a oração, quando os espíritos impuros que estão no seu coração, perturbados pelo som terrível, grunhem e tentam destruir aquilo que os flagela. Se o monge independente escuta, se recebe o ensinamento relativo a esta obra e tenta mantê-lo, ele cairá em um destes dois males: ou se desvirtuará, e, iludindo-se, não será curado, ou será negligente, e não fará nenhum progresso durante toda a sua vida.



9. Direi eu, na medida em que conheço um pouco o assunto por experiência própria: quando você permanecer na hesíquia, dia e noite, orando a Deus constantemente, sem pensamentos, humildemente, e seu intelecto esteja esgotado de chamar, seu corpo esteja dolorido e o coração não sinta mais nem calor nem alegria, demasiado concentrado pela invocação de Jesus, que dá a resolução e a paciência àquele que combate, então levante-se, salmodie, sozinho ou com seu discípulo, ou ocupe-se em meditar sobre uma palavra, pense na lembrança da morte, trabalhe com suas mãos ou com os outros membros. Ou aplique-se à leitura, de preferência em pé, para que o corpo mantenha a pena.



Quando você estiver em pé, salmodiando só, diga o Trisagion, depois a oração do Senhor, com sua alma ou em espírito, e com o intelecto atento ao coração. Se a acídia o pressionar, diga ainda dois ou três salmos e dois tropários[10] penitenciais, sem cantar. Estes tropários não são cantados, diz João Clímaco. A pena do coração, devotado à piedade, basta para levar-lhe a alegria, como diz são Marcos, e o calor do Espírito lhe é dado, com a graça e o regozijo. Durante o salmo, diga também a oração em espírito ou com sua alma, sem distração, e o Aleluia. Esta é as ordem dos santos Padres, de Barsanulfo, de Diádoco e de muitos outros. Como diz o divino Basílio, é preciso variar o salmo a cada dia, para estimular a resolução, e para que o intelecto não fique cansado de cantar todos os dias os mesmos salmos. Ao contrário, é preciso deixa-lo livre, e ele será fortalecido em sua resolução. Mas se você salmodia em companhia de um discípulo fiel, que seja ele a dizer os salmos. Você se guarde, secretamente atento e orando em seu coração. Com a ajuda da oração, despreze todos os pensamentos que sobem ao coração, venham eles dos sentidos ou do intelecto. Com efeito, a hesíquia consiste no despojamento momentâneo dos pensamentos que não vêm do Espírito, afim de que você não perca o melhor, prestando atenção ao que há de bom neles.





Da ilusão



10. Você que ama a Deus, fique especialmente atento ao conhecimento. Quando, trabalhando na obra, você enxergar uma luz ou um fogo fora de você, ou uma suposta figura de Cristo, ou de um anjo, ou de um santo, não a receba para não ser prejudicado. Vigie sempre para não permitir que seu intelecto imagine tais figuras. Tudo o que se forma assim a contratempo do exterior não faz senão perder-se a alma. O verdadeiro princípio da prece é o calor do coração que queima as paixões, leva o bom humor e a alegria à alma, confirma o coração num desejo seguro e numa indubitável plenitude.



Os Padres dizem que tudo de sensível ou de intelectual que chega à alma, e que o coração põe em dúvida ou não aceita, não vem de Deus, mas é enviado pelo adversário. Quando você perceber o intelecto atraído para fora ou para cima por qualquer potência invisível, não creia nela, não permita que ela se entranhe, mas tranque-a o mais depressa possível em sua obra. “As coisas de Deus, diz o santo Isaac, vêm por si sós, e você não sabe o momento”. O inimigo natural que reside nos rins transforma como quer pela imaginação as coisas do Espírito, substituindo umas pelas outras. Em lugar do calor, ele coloca a desordem de seu próprio fogo, até tornar a alma pesada com esta ilusão. Em lugar do regozijo, ele suscita uma alegria selvagem e o suor do prazer, de onde vêm a presunção e a cegueira. Ele se esconde dos noviços, e os faz tomar suas maquinações por uma graça operante. Mas o tempo, a experiência e a percepção o revelam aos que não ignoram sua malícia. “A garganta, diz a Escritura, discerne os alimentos”; vale dizer, que o paladar espiritual descobre infalivelmente o que são todas essas coisas.





Da leitura



11. “Você é um operário, diz João Clímaco. Aquilo que você lê deve visar a ação. Esta obra torna supérflua qualquer outra leitura”. Não cesse de ler os livros sobre a hesíquia e a prece, tais como a Escada, santo Isaac, os escritos de são Máximo, do Novo Teólogo, de seu discípulo Stéthatos, de Hesíquio, de Filioteu o Sinaíta, além de tudo o que for deste gênero Deixe os outros escritos até que chegue o momento; não que seja necessário rejeitá-los, mas eles não têm o mesmo objetivo. Eles dirigem o intelecto para aquilo que buscam, e o desviam da oração.



Que sua leitura seja solitária, dita numa voz sem ênfase, se eloquência estudada, sem elegância de linguagem ou de modulação, sem sair de você de modo passional e inconsciente, ausente de onde você está, para agradar a alguns, mas também sem ser insaciável, porque toda medida é excelente. Leia sem rudeza, nem lentidão, nem negligência, mas modestamente, mansamente, pausadamente, de maneira compreensível e harmoniosa, com sua inteligência, sua alma e sua razão. O intelecto sentir-se-á reconfortado. Ele receberá em sai a força de orar intensamente. Mas nas condições contrárias a essas, ele não encontrará senão a obscuridade, o relaxamento e a confusão. A razão acaba por fazer mal à cabeça, e se esgota para a oração.



12. Esteja atento em examinar precisamente e a toda hora para onde o está levando sua resolução, se ela conduz conforme a Deus a este bem que é a hesíquia para benefício da alma, ou à salmodia, ou à leitura, ou à prece, ou à obra de virtudes semelhantes, a fim de não ser devastado sem o saber, por ser um operário apenas na forma, querendo, em seu modo de vida e seus pensamentos, agradar aos homens, e não a Deus.



Pois as armadilhas do maligno são numerosas. No mais profundo segredo, ignorado pela maioria, ele vê a tendência da resolução e não cessa de tentar devastar a obra sem que nos demos conta, a fim de que o realizado não se faça conforme a Deus. Mesmo que ele chegue a sustentar contra você um combate inflexível e sobrevenha o enfrentamento, você, estando certo de sua resolução diante de Deus, não se deixe devastar, mesmo que o impulso de sua vontade, forçada pelo maligno, o leve a perder-se em delírios contra sua vontade. É possível que, agravado pela moléstia, sejamos vencidos sem o querer. Mas somos logo perdoados e encorajados por Aquele que conhece as resoluções e os corações.



Esta paixão – a vanglória – não deixa o monge avançar na virtude, mas ele permanece com suas penas, e chega à velhice sem dar frutos. Ela sempre pode alcançar os três – noviço, médio e perfeito – e despojá-los da obra das virtudes.



13. Eu afirmo, por haver aprendido, que o monge jamais poderá progredir sem estas virtudes: o jejum, a temperança, a vigília, a paciência, a coragem, a hesíquia, a prece, o silêncio, o luto, a humildade. Pois elas engendram-se mutuamente e guardam umas às outras. O desejo consumido pelo jejum constante gera a temperança. A temperança gera a vigília. A vigília, a paciência. A paciência, a coragem. A coragem, a hesíquia. A hesíquia, a prece. A prece, o silêncio. O silêncio, o luto. O luto, a humildade. Reciprocamente, a humildade gera o luto. Retornando em sentido inverso, você descobrira como os filhos, por seu turno, geram as mães. Dentre as virtudes, nenhuma é maior do que esta geração recíproca. Pois todas desejam claramente suas contrárias.



14. É preciso situar aqui as penas e as fadigas da obra, e expor claramente como se deve conduzir cada obra, para que alguém que nos ouça não caminhe sem assumir suas penas e, não produzindo frutos, não nos acuse, a nós e a outros, de que as coisas não se passam como dissemos.



Com efeito, somente as penas do coração e a fadiga do corpo podem cumprir a obra da verdade. Elas revelam a energia do Espírito Santo que, pelo batismo, lhe foi dada, a você e a todo fiel que afundou nas paixões por negligenciar os mandamentos, este mesmo Espírito Santo que, por sua inefável misericórdia, aguarda nosso arrependimento, para que não ouçamos ao final, por causa de nossa esterilidade: “Tirem dele o talento, e deem ao que tem dez. Porque, a todo aquele que tem, será dado mais, e terá em abundância. Mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado”, e para que não sejamos atirados ao castigo, para sofrermos eternamente na Geena. Nenhuma obra do espírito ou do corpo feita sem pena e sem fadiga jamais dará fruto a quem a faz, pois “o Reino dos céus sofre violência, diz o Senhor, e são os violentos que o tomam”. A violência de que se trata consiste em sentir as penas do corpo em todas as coisas.



Muitos, por terem trabalhado por longos anos e ainda trabalharem sem fadiga para não penar duramente sob a quente resolução do coração, por recusarem o amargor das penas, esvaziaram-se de toda pureza, e não comungaram com o Espírito Santo. Os que trabalham na preguiça e na negligência talvez acreditem ter muitas penas. Mas, por não sofrerem e por serem, no fundo, insensíveis, eles jamais colherão frutos. Testemunha disto é aquele que disse: “Ainda que as obras de nossa vida sejam grandes, se nosso coração não estiver dolorido, elas não passarão de bastardas e sem conteúdo”. Toda vez que caminhamos sem penas, levados pela acídia às distrações vãs e acreditando nelas encontrar repouso – o que não acontece nunca – estamos sem dúvida em meio às trevas. Atados invisivelmente por correias indefectíveis, não podemos nos mover, tornamo-nos inertes em toda obra, transbordamos de vaidade – sobretudo os noviços. Pois, para os perfeitos, tudo o que faz com medida é bom. É o que atesta o grande Efrém, quando diz: “Pene uma pena terrível, para escapar às penas das penas inúteis”. Senão, segundo o profeta, nossos rins não poderão ser libertados pelo sofrimento do jejum. No doloroso aperto do coração, somos concebidos entre dores como o recém-nascido daquela que dá à luz, mas não geramos um espírito de salvação sobre a terra do coração. Não estamos senão no tempo, no deserto inútil, no relaxamento e na hesíquia, pensam alguns, e se gloriam. Mas no momento do êxodo, todos seremos indubitavelmente conhecidos por nossos frutos.



15. Não cabe a ninguém aprender por si só a ciência das virtudes, mesmo que alguns tenham se servido da experiência a título de mestre. Com efeito, há presunção em pretender agir por si próprio, e não a partir do conselho dos que precederam. Ademais, cada um deve ser gerado, “parido”. Se, de fato, o Filho não faz nada por si próprio, mas faz o que lhe foi ensinado pelo Pai, e se o Espírito não fala por si só, quem poderá ter alcançado tamanha altura que não t tenha necessidade de outro para inicia-lo? Estará enganado aquele que pensa ter mais loucura do que virtude? É preciso obedecer àqueles que conhecem as penas da virtude ativa, segui-los no jejum e na fome, na temperança que afasta os prazeres, na vigília constante, na dura genuflexão, na dolorosa posição imóvel, na prece perseverante, na humildade autêntica, na contrição e no contínuo gemido do coração, no silêncio que traz a palavra e que é temperado de sal, na paciência em tudo. Não se deve viver sempre em repouso, nem se manter todo o t empo num só lugar antes da velhice e da doença. Pois, diz a Escritura, você se alimentará das penas das virtudes e o Reino dos céus pertence aos violentos.



Quem se dá a pena de cumprir a cada dia as obras de que falamos, com a ajuda de Deus, colherá os frutos a seu tempo.


DE COMO O HESIQUIASTA DEVE SE MANTER SENTADO

EM ORAÇÃO E NÃO TER PRESSA EM LEVANTAR-SE





Tanto, na maior parte do tempo – porque é penoso – você pode permanecer sentado sobre um banco, tanto, raramente, por um momento e para relaxar, você pode alongar-se sobre seu leito. Você deve permanecer sentado com paciência, por causa daquele que disse: “Persevere na oração”, e não ter pressa em se levantar por negligência, quando o apelo espiritual do intelecto e a longa imobilidade o fizerem sofrer. “Eis, diz o profeta, que fui tomado de dores, como quem está para parir”. Curvado para frente, reunindo o intelecto no coração, se ele se abrir, peça ajuda ao Senhor Jesus. Você terá dores nas espáduas, e muitas vezes a cabeça ficará dolorida. Mas persevere na pena e no amor, procurando o Senhor dentro do coração. Pois o Reino dos céus é dos violentos e são os violentos que dele irão se apoderar. O Senhor mostrou em verdade como devemos assumir tais penas. A paciência e a perseverança em tudo parem as penas do corpo e da alma.





Como dizer a oração



Dentre os Padres, uns ordenam dizer toda a oração – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim” – enquanto outros recomendam dizer a metade – “Jesus, Filho de Deus, tenha piedade de mim” – o que é mais fácil dada a fraqueza do intelecto. Pois ninguém só e por si só, pode dizer no mistério “Senhor Jesus”, pura e perfeitamente, se não for por meio do Espírito Santo. Como a criança que ainda balbucia, ele é incapaz de articular plenamente. Não se deve alternar frequentemente as invocações, por negligência, mas fazê-lo raramente, pela perseverança.



Da mesma forma, alguns ensinam a dizer a prece com a boca, outros com o intelecto. Penso que se deve fazer com ambos. De fato, tanto o intelecto como a boca podem ser presas da acídia e não conseguir falar. Devemos assim orar com os dois, a boca e o intelecto. Mas devemos chamar igualmente com calma e sem perturbação, para que a voz não ferva e entrave a percepção e a atenção do intelecto, até que este, pronto para o trabalho, tenha progredido e recebido do Espírito o poder de orar total e intensamente. Então não haverá mais necessidade de falar com a boca, mesmo porque será impossível. Basta o intelecto para realizar a obra inteiramente.





Como manter o intelecto desperto



Saiba que ninguém consegue por si só dominar o intelecto, se antes não tiver sido dominado pelo Espírito. Não que, em seu movimento natural, ele seja desenfreado por natureza, mas sim, arrastado ao turbilhão pela negligência, ele aí se estabeleceu desde a origem. Pois, pela transgressão dos mandamentos de Deus que nos regeneraram, nós nos separamos de Deus, perdemos a percepção de Deus pelo sentido intelectual, e perdemos a união com Deus. Em seguida, o intelecto, perdido, separado de Deus, foi levado por toda parte como um cativo. Já não lhe é mais possível permanecer em repouso a não ser submetendo-se a Deus, permanecendo junto a ele e unindo-se a ele na alegria, orando a ele continuamente e com perseverança, e confiando em espírito a ele nossas quedas de todo dia, pois ele a tudo perdoa imediatamente àqueles que, com humildade e contrição, oram e invocam sempre seu santo nome. “Celebrem o Senhor, foi dito, e invoquem seu santo nome”.



A retenção do sopro, a boca fechada, estas coisas detêm o intelecto em parte, e este logo volta a se dispersar. Quando chega a energia da prece, é ela que o mantém junto a si, o alegra e livra-o do cativeiro. Mas quando o intelecto está em oração, imóvel no coração, pode também acontecer que o pensamento de perca, ocupado com outras coisas. Este não está submetido a ninguém, senão aos perfeitos do Espírito Santo, que atingiram a imobilidade em Jesus Cristo.





Como expulsar os pensamentos



Jamais um noviço expulsará um pensamento que Deus já não tenha expulsado. Cabe aos fortes combater e expulsar os pensamentos. E mesmo eles não os expulsam por si sós. É com Deus, e revestidos de sua armadura, que eles conduzem o combate contra os pensamentos. Quando estes chegarem, apele para o Senhor, muitas vezes e com perseverança, e eles fugirão. Pois eles são suportam o calor que vem da prece para o coração, e fogem como se queimados pelo fogo. “Fustigue os que o combatem, diz João Clímaco, com o nome de Jesus”. Pois nosso Deus é um fogo que consome a perversidade. O Senhor apressa-se a auxiliar, e logo faz justiça aos que, com toda alma, o chamam dia e noite.



Mas os que não possuem a energia da prece podem derrubar os pensamentos de outra maneira, imitando Moisés. Se permanecer em pé, com as mãos e os olhos voltados para o céu, Deus fará fugir os pensamentos. Depois poderá se sentar e se dedicar à oração com perseverança. Isto é o que deve fazer aquele que ainda não adquiriu a força da oração. E mesmo aquele que tem esta energia, todas as vezes que enfrentar as paixões do corpo, a acídia e a prostituição, as mais duras e mais pesadas dentre as paixões, deve também estender as mãos para chamar o socorro contra elas. Mas para não cair na ilusão, ele não deve fazer isto por muito tempo e deve sentar-se novamente para que o inimigo não venha pela imaginação enganá-lo do alto, mostrando-lhe uma pretensa forma da verdade. Pois possuir um intelecto infalível em cima e embaixo, no coração e em todos os lugares, e mantê-lo a salvo, é coisa que só podem os puros e os perfeitos.





Como salmodiar



Uns dizem que se deve salmodiar de tempos em tempos, outros, com muita frequência, outros nunca. Não salmodie muito, para não ficar confuso. Nem nunca, por causa do relaxamento e da negligência que advirão. Imite aqueles que salmodiam de tempos em tempos: toda medida é excelente, segundo os sábios que são os loucos de Deus.



A salmodia frequente é própria dos ativos, por causa de sua ignorância e porque ela traz a pena. Mas ela não convém aos hesiquiasta, aos quais basta orar a Deus apenas no coração e se afastar dos pensamentos. A hesíquia, segundo João Clímaco, consiste de fato na rejeição de todo e qualquer pensamento que venham dos sentidos e do intelecto. Se esgotar toda sua força na salmodia frequente, o intelecto ficará fraco para orar com intensidade e perseverança.



“Durante a noite, diz João Clímaco, dedique muito tempo à prece e pouco à salmodia”. É o que você deve fazer. Quando, estando sentado, você perceber a oração agir e não cessar de se mover no coração, não a deixe para se levantar e salmodiar, a menos que ela o deixe por si só. Abandonando a Deus dentro de si, você se levantará para falar ao exterior, desviar-se-á do que é elevado para dirigir-se ao que está abaixo e criará uma confusão. Você perturbará o intelecto, tirando-o de sua calma. Pois é assim que o hesiquiasta guarda também a ação, mantendo-a na paz e na serenidade, como o indica seu próprio nome. Deus é paz, para além da confusão e do barulho. Nosso louvor, assim como nossa maneira de viver, deve ser angélica e não carnal. Salmodiar em plena voz não passa de um símbolo do apelo do intelecto. A salmodia nos foi dada devido à nossa negligência e nossa rusticidade, para nos orientar àquilo que é verdadeiro. Aqueles que não conhecem a prece que é, segundo João Clímaco, a fonte das virtudes que rega as plantas – as potências da alma – devem salmodiar muito, sem medida, sempre com grande diversidade, jamais cessando, até que esta longa e penosa ação os conduza à contemplação e eles possam descobrir a prece intelectual ativa em seu interior. Pois uma coisa é o ato do hesiquiasta, outra a vida comum. Cada um, se perseverar sobre o caminho para o qual foi chamado, será salvo. Assim, quando eu o vejo regressar para o meio deles, receio não estar escrevendo senão para os fracos.



Todos os que tentam viver a prece a partir daquilo que ouviram ou aprenderam não fazem mais do que se perder, se não tiverem quem os guie. Quem já provou da graça deve, segundo os Padres, salmodiar com medida e se dedicar sobretudo à prece. Mas nos momentos de despreocupação, ele deve salmodiar ou ler os livros dos Padres. O navio não precisa de remos quando o vento infla as velas e lhe traz uma brisa favorável para vagar pela superfície do mar salgado das paixões. Mas quando ele se detém, ele é empurrado pelos remos ou puxado por outro barco. Se alguns, que gostam de discussões, afirmam que os santos Padres, ou outros hoje em dia, permanecem em pé toda a noite e salmodiam continuamente, nós lhes responderemos com a Escritura que nada é perfeito em todos, que o ardor e a força podem faltar, e que o que é pequeno não necessariamente é pequeno para os grandes, nem o que é grande é necessariamente perfeito para os pequenos.



Qualquer ação é fácil para os perfeitos. É por isso que nem todos o são, e que nem todos foram ativos. Nem todos seguiram a mesma via, nem a guardaram até o fim. Muitos passaram da vida ativa à contemplação e repousaram de tudo o mais, e penetraram no sábado conforme a lei espiritual. Eles se alegraram apenas em Deus, saciados com as delícias divinas e, pela graça, ficaram incapazes de salmodiar ou de meditar qualquer outra coisa. Eles foram arrebatados por um tempo para fora de si mesmos, e atingiram parcialmente, como em garantia, o cimo daquilo a que aspiravam. Outros, na vida ativa até o fim, dormiram e foram salvos, e receberam sua recompensa no século futuro. Outros, que se embalsamaram após a morte como sinal de sua salvação, foram na morte cumulados de certeza, tendo tido durante sua vida toda esta graça do batismo, com a qual, por causa do aprisionamento ou da ignorância de seu intelecto, não puderam comungar. Outros se comprouveram em ambas as coisas, na prece e na salmodia, e assim obtiveram sucesso, transbordando de graça sempre ativa, sem jamais encontrar obstáculos. Outros conservaram até o fim a hesíquia, homens simples a quem bastou a simples oração, o que é muito bom, e viveram unidas a Deus, sós diante de Deus apenas. Os perfeitos, como dissemos, tudo podem em Cristo que lhes dá a força. A ele a glória por todos os séculos dos éculos. Amém.



Que dizer do ventre, que reina entre as paixões? Se você conseguir detê-lo de deixá-lo meio morto, não relaxe. Ele me dominou, bem-amado, e eu o servi como um escravo, como alguém que capitulou. Ele trabalha com os demônios, é a moradia das paixões. Por ele chegou-nos a queda, e por meio dele, se temperante, vemos a ressurreição. Por sua causa decaímos tanto da primeira como da segunda dignidade divina. Uma vez corrompida a dignidade original, havíamos sido renovados em Cristo, mas negligenciamos os mandamentos que conservam e aumentam a graça assegurando nosso progresso, e caímos agora para longe de Deus, mesmo se, em nossa ignorância, nos coloquemos acreditando estar com Deus.



Os corpos se nutrem de maneiras bem diversas, como dizem os Padres. Um precisa de pouco, outro de muito, para sustentar sua força natural. Cada um, segundo sua força e seu estado, provê aquilo que lhe é necessário. Mas o hesiquiasta deve estar sempre desprovido, jamais saciado. Quando o peso do estômago vem perturbar o intelecto, é impossível orar com intensidade e pureza. A ingestão de numerosos alimentos leva o homem ao sono: ele quer dormir o mais depressa possível, e, no sono, inúmeras imaginações assaltam o intelecto. Quem quer encontrar a salvação e se esforça por viver na hesíquia para o Senhor, deve, em minha opinião, satisfazer-se a cada dia com uma fatia de pão e três ou quatro copos de água e de vinho, e, dentre os alimentos que se apresentarem, tomar um pouco de cada um a seu tempo, evitando a saciedade a fim de, ao mesmo tempo em que se alimenta sabiamente, escapar ao torpor que nos invade quando comemos de tudo; e ainda não deve desprezar as criaturas de Deus, que são excelentes, dando sempre graças por tudo. Este é o discernimento dos sábios. Quanto aos que são fracos na fé e na alma, é melhor para eles absterem-se de alimentos. Eles não creem que Deus os guarda, e o Apóstolo lhes ordena que não comam senão legumes.



Que posso dizer-lhe? Você é velho. A regra que você busca é uma carga pesada. Os mais jovens não podem permanecer no lugar e na medida. Como você irá se manter? Pois quando você come, você deve permanecer livre nem tudo. Se você for vencido, arrependa-se e retorne ao trabalho. Nunca deixe de fazer assim, caindo e levantando, condenando a si mesmo e não aos outros, e assim você obterá o repouso e vencerá sabiamente por meio das quedas. Como diz a Escritura. Basta que você não ultrapasse o limite que colocamos. Porque nada fortifica tanto o corpo como o pão e a água. Já dizia o Profeta, menosprezando os demais alimentos: “Filho do homem, coma seu pão e beba sua água com moderação”.



O alimento tem três limites: a temperança, o contentamento e a saciedade. A temperança consiste em ter fome após tomar a refeição; o contentamento, em não ter fome mas não se sentir pesado; a saciedade, em sentir-se pesado. Mas comer após estar saciado é a porta da gulodice, pela qual entra a prostituição. Se você possuir este conhecimento preciso, escolha o melhor, na medida em que lhe for possível, e não ultrapasse os limites. É próprio dos perfeitos, para o Apóstolo, sentir fome e ser saciados, e ser fortes em tudo.





Do erro, e de outros aspectos



Compreenda, eu quero que você tenha um conhecimento preciso do erro, e que você saiba se proteger dele, para não ser ferido profundamente por ignorância e perder sua alma. A ignorância inclina facilmente o livre arbítrio do homem a se associar aos inimigos e sobretudo aos que os seguem. Os demônios se aproximam e cercam os noviços e os monges independentes, colocando-lhes armadilhas de pensamentos, fossos que os farão cair, e o chicote dos fantasmas. Sua cidadela está em poder dos bárbaros. E não devemos estranhar que alguns se tenham desorientado, que tenham perdido o espírito, que tenham admitido ou que admitam o erro, que vejam coisas estranhas à verdade, ou, por inexperiência ou ignorância, digam incongruências. É coisa comum que os simples, querendo falar da verdade e dizendo sem o saber uma coisa por outra, não conseguiram se expressar corretamente, perturbando muitas almas e, por sua desinteligência, lançaram sobre os hesiquiasta a vergonha e o ridículo. Nada há de espantoso, de fato, em que um noviço se engane, mesmo depois de numerosas penas. Isto aconteceu a muitos dos que buscaram e buscam a Deus, tanto antigamente como hoje em dia.



Quem pretende ir a Deus e confessá-lo com toda pureza, e que se esforça por tê-lo em si, de forma impudente e temerária, é facilmente destruído pelos demônios e abandonado a si mesmo. Procurando com presunção e audácia coisas que ultrapassam sua própria condição, ele se esforça por chegar antes do tempo e se vangloria. Mas muitas vezes, movido pela compaixão, vendo em nós esta audácia para com as coisas elevadas, o Senhor não permite que sejamos tentados por muito tempo, a fim de que cada um, conhecendo sua própria presunção, retorne a si, antes de se tornar o opróbio dos demônios e de provocar nos homens risos ou lamentações, sobretudo aquele que deve buscar esta obra maravilhosa com paciência e humildade, e mais ainda com submissão, interrogando aos que têm experiência, para não colher contra sua vontade espinhos ao invés do trigo, e a perdição em lugar da salvação. Cabe aos fortes e aos perfeitos combater sempre a sós os demônios, levantando continuamente contra eles o glaivo do Espírito, que é a palavra de Deus. Mas os fracos e os noviços devem escapar da morte fazendo de sua fuga sua cidadela, com temor e piedade: eles devem evitar o combate e toda audácia prematura.



Quanto a você, se você estiver bem na hesíquia, esperando estar com Deus, quando você perceber uma imagem sensível ou intelectual, exterior ou interior, seja a própria figura de Cristo, ou a pretensa forma de um anjo ou de um santo, ou uma luz, desenhando-se e modelando-se em seu intelecto, não o aceite jamais. Pois o intelecto tem por si só, em sua natureza, a faculdade de imaginar. Ele pode facilmente dar forma àquilo que ele deseja, naqueles que ainda não estão completamente atentos. Ele prejudica a si mesmo. A lembrança daquilo que é bom e daquilo que é mau acaba por deixar totalmente sua marca na percepção do intelecto, levando-o à imaginação. Desta forma tornamo-nos imaginativos e não hesiquiastas. Por isso, vigie para não conceder sua fé e seu assentimento – mesmo se a coisa parecer boa – sem antes interrogar aqueles que têm experiência, e sem examinar longamente o assunto, a fim de não se prejudicar. Permaneça atento a esta coisa, e mantenha seu intelecto incolor e vazio de qualquer figura ou forma. Pois aquilo que Deus envia como prova para coroá-los, muitas vezes fez tombar os homens.



Nosso Senhor quer testar as tendências de nossa liberdade. Aquele que, na reflexão ou nos sentidos, viu alguma coisa, mesmo vinda de Deus, e a recebeu sem referi-la aos que têm experiência, engana-se facilmente ou se enganará, pois se compraz aceitando a coisa. O noviço deve se agarrar à energia do coração, que não engana, e não admitir nada mais, até apaziguar as paixões. Deus não reprova aquele que, para não se enganar, permanece estritamente atento a si mesmo, mesmo que não receba o que vem dele sem antes interrogar e examinar longamente. Ele louva acima de tudo a sabedoria, mesmo que ele tenha às vezes censurado alguns.



Não devemos fazer perguntas a todos, mas apenas a um a quem, pelo brilho de sua vida, foi confiada a conduta dos demais, o homem pobre que enriquece os outros, conforme a Escritura. Pois muitos que não tinham experiência prejudicaram inúmeros que não possuíam inteligência, e receberão seu julgamento após a morte. Nem todos podem conduzir os outros, mas apenas aqueles a quem, segundo o Apóstolo, foi dado o discernimento divino, o discernimento dos espíritos, que separa o melhor do pior com a espada da palavra. Cada um pode ter um conhecimento próprio, um discernimento natural, prático ou matemático, mas nem todos possuem o discernimento do espírito. Dizia o sábio Eclesiastes: “Os que vivem em paz com você são muitos. Mas somente um em mil pode aconselhá-lo”. Não é pequena a batalha para encontrar um guia seguro nas obras, palavras e pensamentos.



Podemos distinguir aquele que é seguro e que não se engana porque seus atos e seu julgamento são atestados pela divina Escritura, e que ele está certo naquilo que precisa ter em espírito. É uma grande força, com efeito, alcançar a evidência da verdade e ser purificado de tudo o que é contrário à graça. O diabo costuma dar aos seus erros (principalmente entre os noviços) a aparência de verdades, transformando seus vícios em virtudes espirituais. Quem se esforça por adquirir a prece pura deve assim caminhar na hesíquia com um grande temor, em luto, sob a condução daqueles que têm experiência e interrogando-os sempre. Ele deve chorar seus pecados todo o tempo, aflito e temendo a danação e a separação de Deus agora ou no século futuro. Quando o diabo vê alguém que vive aflito ele não permanece, temendo a humildade que provém do luto. Mas se alguém imagina presunçosamente atingir as coisas elevadas, seu desejo não é verdadeiro, mas satânico. O diabo o apanha facilmente em sua rede e o transforma em seu servidor.



A arma suprema é a constância na oração e no luto, a fim de não tombar da alegria da prece na presunção, mas, tomando sobre si a pena que alegra o coração, permanecer a salvo. A prece infalível é o calor que acompanha a prece de Jesus que veio despejar fogo sobre a terra de nossos corações. Ela queima as paixões como espinhos e dá à alma o regozijo e a alegria. Ela não vem nem da direita, nem da esquerda, nem do alto, mas jorra no coração como uma fonte de água que brota do Espírito que dá a vida. Não deseje encontrar ou possuir senão a ela em seu coração, guardando seu intelecto sempre livre de imagens, despojado de reflexões e de pensamentos, e não tema nada. Pois aquele que disse: “Coragem, sou eu, nada temam”, está conosco. É a ele que pedimos que nos proteja. E quando invocamos a Deus, não devemos nem temer, nem gemer. Se alguns se perderam e perderam o espírito, considere que eles chegaram aí por sua independência e seu orgulho. Pois quem busca a Deus na submissão e na humildade, interrogando, jamais fará mal a si próprio, pela graça de Cristo que quer salvar a todos os homens. A tentação, quando chega, é sempre uma prova e uma coroa. Pois Deus, pelos meios que só ele conhece, oferece sua ajuda. Àquele que se conduz corretamente e leva uma vida sem mácula, evitando o desejo de agradar aos homens e o orgulho, ainda que toda a falange dos demônios suscite contra ele miríades de tentações, nenhum mal será feito, dizem os Padres. Mas os que caminham com presunção e por sua própria vontade prejudicam a si mesmos facilmente.



O hesiquiasta deve sempre conservar a via real. O excesso em tudo causa facilmente a autossuficiência, à qual segue-se depressa o erro.



Retenha a expiração do intelecto, fechando um pouco a boca durante a prece, mas não a expiração das narinas como fazem os ignorantes, a fim de não se prejudicar inflando o orgulho.



Existem três virtudes da hesíquia, que devem ser estritamente observadas, examinando sempre se vivemos sempre com elas ou se, enganados pelo esquecimento, não estamos caminhando à deriva. Estas são a temperança, o silêncio e a autocondenação, ou seja, a humildade. Elas contêm e protegem umas às outras, e delas a prece nasce e cresce continuamente.



O início da graça na oração não vem para todos da mesma maneira. E o dom natural do Espírito, diz o Apóstolo, se revela e é conhecido de muitos modos, segundo sua vontade. Ele se manifesta em nós como a Elias o Tesbita. Em alguns, um espírito de temor, fendendo as montanhas das paixões e rompendo os rochedos, os corações duros, vem paralisar a carne de pavor e a deixa como morta. Em outros, um tremor, ou uma exultação imaterial e essencial, pois o que não possui ser nem substância não existe (é o que os Padres denominam com mais clareza “balanço”), estremece o coração. Em outros, enfim, sobretudo nos que progrediram na oração, Deus provoca uma brisa leve e pacífica de luz, Cristo se estabelece no coração, segundo o Apóstolo, e se revela misticamente em espírito. É por isso que Deus disse a Elias sobre o monte Horeb que o Senhor não estava nem num lugar nem noutro, nas ações parciais dos noviços, mas que o Senhor estava na leve brisa de luz, e lhe mostrou a perfeição da prece.





Que fazer quando o demônio se transforma em anjo de luz e engana o homem?



O homem necessita de muito discernimento para reconhecer a diferença entre o bem e o mal. Não se apresse em se livrar sozinho daquilo que lhe aparece, mas permaneça grave. Não guarde o bem senão depois de testá-lo longamente. E rejeite a malícia. Primeiro você deve testar e discernir, e só depois crer. Saiba que existem obras evidentes da graça que o demônio não pode fazer, mesmo que se transforme. Ele não pode dar a doçura, a mansidão, a bondade, a humildade, o desprezo pelo mundo, nem deter os prazeres e as paixões: estas são ações da graça. A energia do demônio não passa de torpor, orgulho, preguiça e todas as formas de malícia.



Do modo como agir em você, você saberá se a luz que brilha em sua alma é de Deus ou de Satanás. A alface parece com uma salada amarga; o vinagre aparentemente é como o vinho. Mas ao paladar, a boca conhece e discerne a diferença. O mesmo acontece com a alma: se ela tiver discernimento, ela conhecerá pelo sentido intelectual os carismas do Espírito Santo e os fantasmas de Satanás.






3. SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO







DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO





Para aqueles que dizem que não é possível a quem vive no mundo submetido às suas necessidades, alcançar a perfeição da virtude. Para começar, um relato muito útil.





Irmãos e Padres bem-amados, é coisa muito boa, e útil à alma, pregar comumente a todos a grande e infinita piedade de nosso Deus boníssimo e cheio de compaixão, e revelar a todos os nossos irmãos cristãos o oceano insondável da misericórdia e da bondade que Deus tem para conosco. Ora, eu, como meus irmãos podem ver e o sabem muito bem, nunca tive como ações minhas, nem jejuns numerosos e excessivos, nem vigílias, não dormi no chão duro, jamais mortifiquei meu corpo além da conta, mas conheci minha indignidade, refleti sobre meus pecados, condenei a mim mesmo, humilhei-me, e o Senhor misericordioso e boníssimo me salvou, como disse o divino Davi: “Eu me humilhei, e ele me salvou”. Numa palavra, não fiz mais do que acreditar nas palavras de Deus, e o Senhor meu Deus me recebeu com esta fé. Pois quem adquire a humildade encontra diante de si muitos obstáculos. Mas a quem descobre a fé e crê nas palavras de Deus nada é capaz de se opor. Se, com efeito, desejamos com toda nossa alma encontrar a fé, depressa e sem pena a encontraremos, uma vez que a fé é uma graça do Deus boníssimo, que a coloca naturalmente à nossa disposição, apenas a queiramos possuir. É por isso que vemos que os bárbaros e os pagãos possuem uma fé natural, cada um crendo nas palavras do outro e tendo mútua confiança em seu meio.



Mas, para provar a vocês o que eu digo, com fatos e não apenas com palavras, escutem este relato:



Um homem chamado Jorge, na flor da idade – por volta de uns vinte anos – morava em Constantinopla, em nosso tempo. Ele era muito bonito, e seus movimentos eram tão estudados, que muitos levantavam suspeitas a seu respeito, principalmente aqueles que tinham por hábito não ver senão o exterior das pessoas e que, sem conhecer os segredos de cada um, condenam e julgam sem consideração aos demais. Este jovem soube de um monge que morava em um mosteiro de Constantinopla. Tendo revelado a ele todos os segredos de seu coração, ele acrescentou que desejava a salvação de sua alma e que tinha um grande desejo de abandonar o mundo e se tornar monge. O venerável ancião louvou o seu desejo, deu-lhe os conselhos necessários e confiou a ele o livro de são Marcos o Asceta, para que nele pudesse ler o que o santo dizia da lei espiritual. O jovem recebeu o livro com tanto amor e piedade como se viesse do próprio Deus, com a confiança e a esperança de extrair grandes benefícios dali. Voltando à sua casa, pôs-se a ler o resto do dia com muita atenção. Depois releu, piedosamente, umas três ou quatro vezes. E, como esperava, sentiu-se grandemente confortado. Mas ele reteve principalmente três capítulos, que deixou impressos em seu coração, e tomou a decisão de coloca-los em prática e observá-los atentamente. O primeiro capítulo dizia o seguinte: “Se você busca a cura de sua alma, cuide para que sua consciência não tenha do que acusa-lo. Tudo o que ela lhe mandar fazer faça, e você obterá disto um grande benefício”. O segundo dizia: “Quem procura adquirir os carismas do Espírito Santo antes de praticar os mandamentos de Deus é semelhante ao escravo que, no mesmo instante em que é adquirido por seu senhor, reclama sua liberdade”. O terceiro dizia: “Quem reza apenas com a boca e ainda não adquiriu o conhecimento espiritual nem sabe orar com seu intelecto é semelhante ao cego que clamava: ‘Filho de Davi, tenha piedade de mim’. Mas quem adquiriu o conhecimento espiritual, que ora com seu intelecto e que abriu os olhos de sua alma, é semelhante a este mesmo cego depois que o Senhor o curou de sua cegueira: ele recebeu a luz em seus olhos e viu o Senhor, de maneira que já não diz ‘Filho de Davi’, mas ‘Filho de Deus’, e ele o adora como convém”.



Estes três capítulos agradaram muito ao jovem. Ele ficou maravilhado, e recebeu uma certeza plena em sua alma, e acreditou sem sombra de dúvida que ele obteria um grande benefício em obedecer à sua consciência, como dizia são Marcos, que ele desfrutaria dos carismas do Espírito Santo e de sua energia, se ele observasse os mandamentos de Deus, e que, enfim, pela graça do Espírito Santo, ele se tornaria digno de abrir os olhos da alma e de ver o Senhor com olhos de seu intelecto. Ele esperava contemplar esta indizível beleza do Senhor e foi ferido de tanto amor quanto desejava. Entretanto, ele não fez nada além, como me afirmou mais tarde sob juramento, do que rezar e se prosternar toda noite, antes de ir para cama dormir, conforme o que lhe havia sido recomendado pelo ancião.



Algum tempo depois, numa noite em que ele seguia a regra ditada pelo ancião e sempre atento à sua consciência, ela lhe ordenou que continuasse a rezar e a se prosternar, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”, por tanto tempo quanto pudesse. De bom coração ele obedeceu e logo se pôs, sem a menor hesitação, a fazer o que lhe ordenava sua consciência, persuadido de que era o próprio Deus quem lhe pedia que agisse assim. A partir daí, ele nunca mais se deitou para dormir sem primeiro fazer o que lhe ordenara sua consciência. E, como ele não cessava de escutá-la e ela não cessava de lhe pedir sempre mais, em pouco tempo sua oração da noite se alongou grandemente. De fato, durante o dia ele dirigia a casa de um patrício, ocupando-se de muitos negócios, ia cotidianamente ao Palácio, e quase não lhe restava tempo para orar. Mas à noite, antes de se recolher, ele orava como dissemos. Sem coração se enchia de calor e compunção, e as lágrimas escorriam de seus olhos. Ele multiplicava as prosternações e, gemendo e chorando, rezava também à Mãe de Deus. Parecia-lhe que o Senhor estava em pessoa diante dele, e ele se prosternava a seus pés e lhe pedia que tivesse compaixão de si, como o cego de que fala o Evangelho, e que desse luz aos olhos de sua alma. Assim, a prece que ele fazia alongava-se cada dia mais. Enquanto rezava, ele se mantinha reto como uma coluna, sem mexer os pés ou qualquer membro de seu corpo e sem voltar os olhos para olhar aqui ou ali, e permanecia imóvel, com grande temor e tremor.



Assim, numa noite em que ele orava e dizia em seu intelecto: “Deus, tenha compaixão de mim, pecador”, um esplendor divino brilhou subitamente sobre ele e encheu de luz o quarto. O jovem, extasiado, perdeu a consciência de si mesmo e até esqueceu que estava em uma casa. Pois de todos os lados ele não via senão luz e já não sabia se tinha os pés no chão ou se planava no ar, e em seu intelecto não havia a menor preocupação com seu corpo. Ele esqueceu o mundo inteiro. Ele era uma coisa só com a luz divina, e parecia-lhe ter ele próprio se tornado luz. Ele encheu-se de lágrimas e de uma alegria indizíveis. Então seu intelecto se elevou aos céus e lá ele viu uma luz ainda mais radiante e, junto a esta luz, apareceu-lhe o santo ancião que lhe havia dado o livro do abade Marcos e a regra.



Quando eu ouvi o relato do jovem, eu pensei que a intercessão do ancião foi de um grande auxílio para ele, e que deste modo a providência de Deus lhe tinha mostrado em que altura de virtude se encontrava este santo, permitindo a ele vê-lo junto a tamanha luz.



Passada a contemplação o jovem voltou a si, cheio de alegria e maravilhado. Ele chorou do fundo de seu coração e suas lágrimas foram acompanhadas de uma doçura extrema. Finalmente ele caiu sobre seu leito, e no mesmo instante o galo cantou. Pouco depois, as igrejas soaram as matinais, e ele se levantou para salmodiar conforme seu costume. Durante toda a noite ele não havia dormido, nem sequer cochilado um pouco.



Eis o que aconteceu ao jovem. Como ele próprio me afirmou, ele não fez nada além daquilo que vocês ouviram. Simplesmente – e foi por isto que lhe foi concedida esta contemplação – ele teve uma fé e uma esperança resolutas. E que ninguém diga que ele fez isto para tentar uma experiência, pois conforme me relatou isto jamais lhe passou pela cabeça. Ele não teve mais do que a resolução de sua fé. Ele apenas rejeitou de seu pensamento toda ideia relativa à carne e ao mundo, e tomou tanto cuidado em guardar sua consciência e de seguir bem aquilo que ela lhe dizia, que estava como que insensível a todas as coisas desta vida. Comer e beber lhe eram indiferentes, e muitas vezes ele permanecia em jejum.



Entenderam, irmãos bem-amados, o que a fé pode fazer, e o poder que ela tem quando é confirmada pelas obras? Compreenderam que nossa juventude não nos prejudica, e que nossa velhice não nos adianta se nos faltar o temor a Deus? Aprenderam agora que nem o mundo, nem a vida na cidade nos impedem de praticar os mandamentos de Deus se estivermos atentos, e que a anacorese e o deserto de nada servem se somos preguiçosos e negligentes? Todos nós ouvimos falar de Davi que, em meio às suas ocupações reais, conservava seu intelecto consagrado a Deus; nós nos admiramos e dizemos que só houve um Davi, que nunca houve outro? E eis que naquele jovem existiu mais do que um Davi. Pois Davi havia recebido o testemunho do próprio Deus, foi ungido profeta e rei e foi cumulado da graça do Espírito Santo. Se, depois de ter faltado com Deus, de ter perdido a graça do Espírito Santo e a dignidade de profeta, e de ter se distanciado da presença de Deus, ele retomou sua consciência, lembrou-se dos bens que teve e que perdeu, e outra vez buscou recuperá-los, o que há nisto de admirável? Mas que um jovem de vinte anos totalmente ligado às coisas passageiras deste mundo, sem que seu intelecto jamais tenha pensado em nada mais elevado do que estas coisas, que com muito custo entendeu o pouco que lhe disse o ancião e leu os três capítulos do abade Marcos, tenha podido acreditar imediatamente e sem hesitação, pondo-se ao trabalho com a esperança de que aquilo permitiria ao seu intelecto elevar-se até o céu, que ele receberia para si a compaixão e a intercessão da Mãe de Deus, que assim ele iria se reconciliar com Deus, a ponto deste lhe enviar do céu a iluminação e a graça do Espírito Santo, permitindo-lhe atingir o céu e desfrutar desta luz que muitos desejaram e poucos descobriram, isto sim é admirável e digno de louvor.



Foi assim que este jovem, que, durante muitos anos, não havia jejuado, nem velado, nem travado os combates da ascese, nem dormido sobre o chão duro, nem levado o cilício, que não se tornou monge, que não havia deixado o mundo, conseguiu se tornar, velando um pouco e orando um pouco, anjo terrestre e homem celeste, homem na realidade sensível e incorpóreo na realidade inteligível, próximo e inatingível, visto por todos mas a sós com o Deus único e onisciente. Foi-lhe dado ver esta dulcíssima luz do sol inteligível da justiça. E merecidamente. Pois o amor a o desejo que ele tinha por Deus o fizeram deixar o mundo em espírito, permitiram a ele esquecer a carne e todas as coisas vãs desta vida, e o ligaram inteiramente a Deus. Ele se tornou inteiramente espiritual, inteiramente luz. Ele conheceu esta contemplação e esta alegria, mesmo vivendo na cidade, mesmo passando a maior parte do tempo no palácio real, com seus encargos senhoriais e múltiplos servidores, sempre ocupado com suas tarefas.



Mas já dissemos o bastante, tanto para louvar a este jovem quanto para engajá-los em seguir seu amor e imitá-lo, para que se tornem dignos de receber de Deus semelhante graça. Ou vocês preferem que eu lhes diga coisas ainda maiores? Mas o que existe de maior do que o temor a Deus, como dizia Gregório o Teólogo, uma vez que “o começo da sabedoria é o temor a Deus”? Pois aonde está o temor a Deus, ali está a guarda dos mandamentos; onde está a guarda dos mandamentos está a purificação da carne, que é uma nuvem que cobre a alma e a impede de ver em sua pureza o esplendor da luz divina; aonde está a purificação da carne está o esplendor divino; e onde está o esplendor divino, aí estará o cumprimento do desejo de Deus. Ora, aonde estiver o esplendor divino e a iluminação do Espírito Santo estará o fim infinito de toda virtude . Quem alcançou este fim chegou até o limite do sensível e penetrou no conhecimento do espiritual.



Tais são, irmãos, as maravilhas de Deus. É assim que Deus manifesta seus santos que se escondem, ou bem para que outros os imitem e mudem sua condita, ou bem para que não tenham desculpa, caso não os imitem. Pois aqueles que vivem no meio da confusão, se se conduzirem como se deve, serão salvos e receberão de Deus grandes bens, apenas por sua fé. Assim, tenham piedade de suas almas, e confiem a si mesmos ao Senhor e às suas palavras de todo o coração. Tenham aversão e desprezem as coisas do mundo, mentirosas e passageiras. Caminhem em direção a Deus e agarrem-se a ele. Pois, sem Deus, nada existe no mundo. As coisas são nada, se Deus falta.



É por isso que eu choro, lamento-me e me aflijo quando penso que temos um mestre generoso que nos a ponto de nos conceder as graças que vimos se mostrarmos que temos fé em suas palavras e em suas promessas, enquanto que nós, como animais irracionais, preferimos a terra e as coisas corruptíveis que, em sua misericórdia, ele nos dá em abundância para as necessidades do corpo, a fim de que este utilize moderadamente o necessário à sua vida e que a alma não seja entravada, mas que faça sua própria busca e se conduza como prescrito, vivendo do alimento inteligível da graça do Espírito Santo.



É para isto que o homem foi criado: para encontrar nas coisas do mundo uma razão para glorificar a Deus que lhe deu tudo, para conhecer Aquele que lhe manifesta suas benfeitorias e sua benevolência, para deseja-lo, render-lhe graças em palavras e atos, para ser considerado digno de receber dele outros bens ainda maiores na eternidade. Mas nós nem suspeitamos os bens futuros, ligados que estamos apenas aos bens presentes, sem nenhuma atenção ou reconhecimento por Aquele que no-los deu. Somos assim semelhantes aos demônios, ou mesmo piores, para dizer a verdade, e é por isso que merecemos ser castigados por eles. Pois fomos cumulados das maiores benfeitorias desde que nos tornamos cristãos, que recebemos tantos mistérios e tantos carismas,

que cremos em um só Deus que se fez homem por nós, que sofreu tantos tormentos e morreu finalmente na cruz para nos libertar dos erros do diabo e do pecado. Ora, em tudo isso cremos por palavras, mas negamos com nossas obras. Não é o nome de Cristo anunciado todos os dias em toda parte, nas cidades, nas vilas, nos mosteiros e nos desertos? Entretanto, se quiserem, examinem de que modo os cristãos aprendem a guardar seus mandamentos: com dificuldade encontrarão um que seja verdadeiramente cristão em palavras e obras. Não disse o Senhor no Evangelho: “Quem crê em mim fará também as obras que eu faço, e ainda maiores”? Mas quem, hoje em dia, ousará dizer: “Eu faço as obras de Cristo, e nele creio com uma fé reta”? Vejam, irmãos, que arriscamos ser considerados sem fé no dia terrível do Juízo, e sermos castigados mais duramente do que aqueles que não conhecem a Cristo e não creem nele. Pois então será preciso, ou que sejamos condenados como incrédulos, ou que Cristo seja convencido com nossas mentiras, o que é impossível.



Escrevi isso, irmãos, não para interditar aos cristãos a anacorese e a hesíquia, dando preferência à vida no mundo – longe disto! – mas para fazer saber a todos os que lerem este relato que aquele que quiser e desejar fazer o bem com toda sua alma e todo seu coração, receberá do Senhor poder fazê-lo em qualquer lugar e será cumulado de carismas espirituais e de contemplações divinas, como o jovem que conheci, que foi meu amigo e me contou o que escrevi. É por isso que eu lhes peço, meus irmãos em Cristo, que tenhamos nós também em nossos corações o desejo de fazer o bem e que nos esforcemos por cumprir os mandamentos de Deus, na resolução da fé e da esperança. Nosso Senhor é fiel e não mente. Nossos rostos não serão confundidos. Estejamos certos de que podemos fazer o bem aonde quer que estejamos, nas cidades, vilas, mosteiros ou desertos. Pois, em sua bondade e segundo sua promessa, Deus abre as portas de seu Reino a qualquer um que não cesse de bater, e concede graça do Espírito Santo a quem pedir. Não é possível que quem procura com toda sua alma não encontre a riqueza dos carismas de Deus. A ele a glória, por todos os séculos dos séculos. Amém.          

SOBRE OS TRÊS MODOS DA PRECE





Existem três modos de atenção e de oração, por meio dos quais ou a alma se eleva e progride, ou tomba e se perde. Se ela utilizar estes três modos no tempo oportuno e como se deve, ele progride; se usar desconsiderada e inoportunamente, ela cai. A atenção deve estar inseparavelmente ligada à oração, como o corpo está inseparavelmente ligado à alma. A atenção deve ir adiante e aguardar os inimigos como uma sentinela. É ela que deve em primeiro lugar conhecer o pecado e se opor aos maus pensamentos que penetram na alma. Então chega a oração, que destrói e faz perecer no mesmo instante todos esses maus pensamentos, contra os quais a atenção lutou previamente. Pois a oração não pode matá-los sozinha. Ora, é deste combate da atenção e da prece que dependem a vida e a morte da alma. Pois se por meio da atenção mantivermos pura a prece, progrediremos. Mas se negligenciarmos de guardar a pureza da prece, se não velarmos por ela, se a deixarmos manchada pelos maus pensamentos, teremos sido inúteis e não progrediremos nada.



Existem, portanto, três modos de atenção e de oração. Diremos agora quais são as propriedades de cada qual. Assim, aquele que ama sua salvação poderá escolher o melhor e não o pior.





Do primeiro modo de atenção e oração



São as seguintes as propriedades do primeiro modo. Quando alguém se mantém em oração, eleva ao céu seus braços, suas mãos e seu intelecto. Representa para si mesmo pensamentos divinos, os bens celestes, as ordens dos anjos e as moradas dos santos. Reúne e colhe em seu intelecto tudo o que compreendeu das divinas Escrituras. Assim, ele conduz sua alma a amar e desejar a Deus. Às vezes e exulta, às vezes chora. Mas então seu coração se orgulha, sem que ele o perceba. Parece-lhe que o que faz vem da graça divina, para consolá-lo, e ele pede a Deus que o torne sempre digno de agir como o faz agora. Esta é a marca do erro. Pois o bem não é bem quando não é feito no bom caminho e da maneira correta. Ainda que vivesse numa extrema hesíquia, seria impossível a este homem não perder seu bom senso e enlouquecer. E mesmo que não chegue a tanto, ele não alcançará o conhecimento, nem será capaz de manter em si as virtudes da impassibilidade. É assim que muitos se perderam, por verem uma luz e um brilho com os olhos de seu corpo, por sentirem um perfume com seu olfato, por terem ouvido vozes com seus ouvidos, ou por terem experimentado outras coisas desta ordem. Alguns foram possuídos por demônios, outros vagaram de lugar em lugar, fora de si. Outros acolheram em si as contrafações do demônio: ele lhes apareceu como um anjo de luz e assim eles se desviaram do caminho tornando-se incorrigíveis, jamais ouvindo os conselhos de seus irmãos. Outros foram levados pelo diabo a se matar: atiraram-se de precipícios, enforcaram-se. Quem poderia descrever todas as ilusões por meios das quais o diabo os faz se perderem? É quase impossível.



Mas depois do que dissemos qualquer homem sensato pode compreender os danos a que se expõe adotando este primeiro modo de atenção e prece. E, mesmo que aconteça a alguém que utiliza este modo não sofrer nenhum mal, por se achar em companhia de outros irmãos (pois são principalmente os anacoretas que conhecem estes males), ainda assim, por toda a sua vida, ele não progredirá.





Do segundo modo



É o seguinte o segundo modo de atenção e oração. Quando alguém recolhe seu intelecto em si mesmo, separando-o do sensível, quando guarda seus sentidos e reúne todos os seus pensamentos para que eles não se dirijam às coisas vãs deste mundo, quando num momento examina sua consciência e em outro se mantém atento às palavras da oração, quando, em determinados momentos ele corre atrás dos pensamentos que o diabo capturou e que o conduzem ao mal e à vaidade, e em outros, depois de ser dominado e vencido pela paixão, volta a si, é impossível que este homem, que tem em si o combate, esteja em paz, ou que encontre tempo para trabalhar pelas virtudes e receba a coroa da justiça. Pois ele é semelhante a alguém que combate à noite, na escuridão. Ele ouve as vozes e recebe os golpes, mas não consegue ver claramente quem são, nem de onde vêm os golpes, como e porque eles o atingem, pois está devastado pelas trevas de sua inteligência e os tormentos de seus pensamentos. É impossível a ele livrar-se de seus inimigos, os demônios que o ferem. O infeliz pena em vão e perde seu salário, pois está dominado pela vaidade. Ele não compreende. Pensa estar atento. Muitas vezes, em seu orgulho, ele despreza e acusa os outros. Ele imagina que pode conduzi-los e se tornar seu pastor. Ele é semelhante ao cego que pretende conduzir os outros cegos.



É preciso a quem quiser ser salvo, que saiba o prejuízo que este segundo modo pode causar à alma, e que preste muita atenção. Mesmo assim, este segundo modo é melhor do que o primeiro, assim como uma noite enluarada é melhor do que uma noite escura.





Do terceiro modo



O terceiro modo é verdadeiramente algo paradoxal e difícil de explicar. Não apenas os que não o conhecem têm dificuldade em entendê-lo, como lhes parece coisa impossível. Eles não creem que tal coisa possa existir, pois, hoje em dia, este modo não é utilizado por muitos, mas por pouquíssimos. Parece-me que tamanho bem nos deixou, tanto quanto a obediência. Pois é a obediência ao pai espiritual que permite a cada um não se preocupar com nada, uma vez que seus cuidados são remetidos a seu pai, que ele se distancia das tendências deste mundo e que ele se torna um operário zeloso e diligente deste modo. E é preciso que ele encontre um mestre e um pai espiritual verdadeiro, livre de todo erro. Pois a quem se consagrou a Deus e a seu pai espiritual com uma verdadeira obediência, a quem não vive sua própria vida nem mais faz sua própria vontade, estando morto para as tendências do mundo e para seu próprio corpo, que coisa passageira poderá vencer e dominar? Que cuidados ou inquietações poderá ter este homem? Assim, é por meio deste modo e pela obediência que se dissipam e desaparecem todos os artifícios dos demônios e todas as armadilhas que eles tramam para arrastar o intelecto em toda espécie de pensamentos. É assim que o intelecto deste homem está livre de tudo. É com total liberdade que ele examina os pensamentos que lhe são sugeridos pelo demônio, com real aptidão que ele os expulsa, e com um coração puro que ele oferece suas orações a Deus. Este é o começo da verdadeira via. Os que não se consagram a este início penam em vão, sem que o saibam.



Ora, o começo deste modo não consiste em olhar para o alto, erguer as mãos, por seu intelecto nos céus e implorar por socorro. Estas, como dissemos, são as marcas do primeiro modo, características da ilusão. Tampouco consiste em vigiar os sentidos com o intelecto, de só estar atento a isto sem perceber na alma a guerra que lhe travam os inimigos e sem prestar atenção a ela. Estas são as marcas do segundo modo. Quem as traz é ferido pelos demônios mas não consegue feri-los. É morto e não se dá conta. É reduzido à escravidão, subjugado e não consegue se vingar daqueles que fazem dele um escravo; os inimigos não cessam de combatê-lo aberta ou secretamente, e o tornam vaidoso e orgulhoso.



Mas você, meu bem-amado, se quiser sua salvação, deverá a partir de agora se consagrar ao começo deste terceiro modo. Depois de prestar total obediência ao seu pai espiritual, como dissemos, você deverá fazer tudo com uma consciência pura, como se estivesse diante da face de Deus. Pois sem obediência a consciência jamais é pura. E você deve mantê-la pura por três razões: primeiro, por Deus; segundo, por seu pai espiritual; terceiro, para os outros homens e as coisas do mundo.



Você deve manter a sua consciência pura. Por Deus, significa não fazer o que não lhe agradar. Por seu pai espiritual: fazer tudo o que ele lhe ordenar, nem mais nem menos, mas caminhar segundo sua intenção e sua vontade, Para os outros homens: não fazer a eles o que você não gosta nem gostaria que lhe fizessem. Para as coisas do mundo: guardar-se dos abusos, ou, dito de outro modo, usar as coisas como se deve, tanto a comida como a bebida e as vestimentas. Em uma palavra, você deve fazer tudo como se estivesse na presença de Deus, a fim de que sua consciência não possa reprová-lo em nada, faça você o que fizer, e para que ela não possa açoitá-lo pelo que você fez de errado. Siga assim este caminho verídico e seguro do terceiro modo da atenção e da prece, como descrito aqui.



Que seu intelecto guarde o coração no momento da prece. Que ele não cesse de rodear o coração. E que do fundo do coração ele encaminhe a Deus suas preces. Quando ele provar que o Senhor é bom e assim for cumulado de doçura, ele já não se afastará do lugar do coração, e dirá as mesmas palavras do apóstolo Pedro: “É bom estar aqui”. Ele não mais deixará de velar sobre o coração e girar ao seu redor, afastando e expulsando todos os pensamentos que o diabo, o inimigo, semeia. Àqueles que não fazem ideia do que é isto e que não conhecem este estado, esta obra salutar parece penosa e incômoda. Mas os que provaram de sua doçura e desfrutaram do prazer que ela proporciona ao fundo do coração dizem, com o divino Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo?”.



Pois nossos pais, tendo ouvido o Senhor dizer no santo Evangelho que é do coração que saem os maus pensamentos, os assassinatos, as prostituições, os adultérios, os roubos, os falsos testemunhos, as blasfêmias, e que é aí que se encontra aquilo que mancha o homem, ouviram também o Evangelho ordenar que purificássemos o interior do cálice, para que também o exterior se torne puro, e assim deixaram quaisquer outras obras espirituais e se dedicaram totalmente a este combate, ou seja, à guarda do coração, persuadidos de que, por meio desta obra, eles poderiam obter todas as demais virtudes, uma vez que não há meio de uma virtude perdurar senão assim. Alguns de nossos pais denominaram a esta obra hesíquia do coração, outros a chamaram de atenção, outros de sobriedade e vigilância, ou refutação, outros de exame dos pensamentos e guarda do intelecto. Foi sobre ela que todos trabalharam e foi por meio dela que foram tornados dignos dos carismas divinos. É por isso que o Eclesiastes diz: “Alegre-se, jovem, com sua juventude, e caminhe sobre as vias de seu coração, íntegro e puro, e afaste de seu coração os pensamentos”. O autor dos Provérbios diz a mesma coisa, se a sugestão do diabo assaltá-lo: “Não o deixe entrar em seu lugar”. Como lugar, ele entende o coração. E nosso Senhor diz no santo Evangelho: “Não se deixem levar”, ou seja, não dispersem o intelecto aqui e acolá. Ele diz também: “Bem-aventurados os pobres de espírito”, ou seja: bem-aventurados aqueles que não possuem no coração nenhuma ideia deste mundo, e que são pobres, desprovidos que qualquer pensamento mundano. Todos os nossos Padres disseram coisas semelhantes. Quem quiser pode ler o que escreveram Marcos o Asceta, João Clímaco, Hesíquio e Filoteu o Sinaíta, o abade Isaías, o grande Barsanulfo e tantos outros.



Numa palavra, quem não estiver atento em guardar seu intelecto não poderá tornar puro seu coração, para ser considerado digno de ver a Deus. Quem não está atento não pode se tornar pobre de espírito, nem afligir-se e chorar, nem se tornar manso e pacífico, nem ter fome e sede de justiça. Resumindo, não é possível obter as outras virtudes senão por meio desta atenção. Assim, é a ela que você deve se aplicar antes de mais nada, a fim de compreender pela experiência aquilo de que lhe falei. E se você quiser saber como fazê-lo, eu lhe direi agora, na medida do possível. Esteja atento.



Antes de tudo, é preciso guardar três coisas. Em primeiro lugar, não se preocupar com nada, tanto com o que é racional como o que é irracional e vão, ou seja, morrer para tudo. Em segundo lugar, ter uma consciência pura, que não tenha nada que reprova-lo. Em terceiro lugar, não ter nenhum pendor: que seu pensamento não se volte para nada do que é deste mundo. Então se sente num lugar retirado, permaneça calmo, só, feche a porta, recolha seu intelecto para longe de tudo o que for passageiro e vão. Descanse o queixo sobre seu peito, mantenha-se atento a si mesmo com seu intelecto e seus olhos sensíveis. Retenha por um momento a respiração, dando um tempo para que seu intelecto encontre o lugar do coração e nele permaneça por inteiro. De início, tudo lhe parecerá tenebroso e duro. Mas depois que você trabalhar sem descanso, noite e dia, nesta obra de atenção, oh! milagre, você descobrirá em si uma alegria contínua. Pois o intelecto combatente terá encontrado o lugar do coração, e verá lá dentro aquilo que jamais havia visto antes e ignorava por completo. Ele verá este espaço que existe no interior do coração e verá a si mesmo inteiramente luminoso, pleno de sabedoria e de discernimento. Daí em diante, de qualquer lado que surja um pensamento, e antes mesmo que este penetre, seja concebido e se forme, o intelecto o expulsará e o fará desaparecer em nome de Jesus, ou seja, com a invocação: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. É então que ele começará a ter aversão pelos demônios, travando contra eles um combate sem trégua, opondo a eles seu ardor natural, expulsando-os, surrando-os, forçando-os a desaparecer. O que virá a seguir, com a ajuda de Deus, é algo que você aprenderá sozinho, pela experiência, graças à atenção do intelecto, e guardando a Jesus em seu coração, ou seja, a prece “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. De fato, um Padre disse: “Permaneça em sua cela, e ela lhe ensinará tudo”.



Questão: Porque o primeiro e o segundo modo de que falamos não podem conduzir com sucesso o trabalho pelo bem?



Resposta: Porque não os utilizamos como se deve. São João Clímaco compara estes modos a uma escada de quatro degraus, e diz: “Há os que se humilham e reduzem as paixões; outros que salmodiam, isto é, oram com a boca; outros, que se dedicam à prece intelectual; e outros, que chegam à contemplação”. Assim, quem quer subir os quatro degraus não começam pelo alto para se dirigir para baixo, mas vão de baixo para cima. Eles se erguem do primeiro degrau, depois do segundo, do terceiro e do quarto. É desta maneira que eles podem se elevar da terra e alcançar o céu. Primeiramente, no começo, devemos nos esforçar para deter e reduzir as paixões; depois, devemos nos dedicar à salmodia, orando com a boca, pois, quando as paixões estão reduzidas, a prece dá naturalmente à língua prazer e doçura, e agrada a Deus; em terceiro lugar, devemos orar com a inteligência e, em quarto, nos elevarmos à contemplação. O primeiro grau é o dos noviços, o segundo se abre aos que progridem, o terceiro aos que chegam ao cume do progresso, e o quarto, o dos perfeitos.



Portanto, o começo não é outra coisa do que a redução das paixões, que não se retiram da alma a não ser pela guarda e atenção do coração. Pois é do coração, como diz nosso Mestre, que vêm os maus pensamentos que mancham o homem, e é aí que são necessárias a guarda e a atenção. Uma vez que as paixões foram detidas e reduzidas a nada pela guerra que contra elas travou o coração e pela aversão que este lhes dedica, o intelecto pode desejar e buscar a reconciliação com Deus. Ele incrementa a oração, e atinge seu objetivo. Por meio da oração, ele castiga e expulsa os pensamentos que giram ao redor do coração para nele penetrar. Esta é a guerra. Os demônios se excitam, se opõem, e, por meio das paixões, suscitam no interior do coração a confusão e a vertigem. Mas diante do nome de Jesus Cristo eles desaparecem e derretem como a cera de uma vela. Expulsos do coração, eles já não têm paz e continuam a perturbar o intelecto, mas agora do exterior, por meio dos sentidos. É por isso que o intelecto percebe rapidamente as primícias da serenidade e da hesíquia, pois os demônios já não têm o poder de perturbá-lo em profundidade, mas apenas desde o exterior, na superfície. Entretanto, é impossível livrar-se da guerra e não mais ser combatido pelos maus espíritos. Isto só cabe aos perfeitos, àqueles que se retiraram completamente de tudo e que se dedicam continuamente à atenção do coração.



Portanto, aquele que se utilizar desses três modos em ordem, cada qual a seu tempo, poderá ao longo do tempo, depois de ter purificado seu coração das paixões, dedicar-se inteiramente à salmodia, combater os pensamentos, erguer aos céus seus olhos sensíveis (se sentir necessidade), contemplá-lo com o olhar da alma e se consagrar à prece pura, em verdade, como convém.



Porém, não devemos nos voltar em demasia para o céu, para evitar os maus espíritos que habitam o espaço e são chamados de espíritos aéreos, pois eles suscitam muitas ilusões, e é preciso estar atento. Deus só nos pede uma coisa: que nosso coração seja purificado pela guarda e a atenção. Se a raiz é santa, como diz o Apóstolo, claro que os galhos e os frutos serão sãos. Fora deste caminho, quem eleva seus olhos e seu intelecto para o céu e pretende se representar os inteligíveis não vê mais do que imaginações, coisas enganosas e não verdadeiras, pois seu coração é impuro.



Como dissemos, o primeiro e o segundo modos não levam o homem a progredir. Quando queremos construir uma casa, não começamos pelo teto para depois fazer as fundações, pois isto não é possível. Primeiro colocamos as fundações, depois erguemos a casa e finalmente fazemos o telhado. É assim que devemos agir quanto ao espiritual. Primeiro, colocar as fundações, ou seja, guardar o coração e dele retirar pouco a pouco as paixões. Depois, construir a casa espiritual: expulsar a perturbação dos maus espíritos que nos combatem pelos sentidos, e fugir o mais depressa possível da guerra que contra nós eles travam. Então fazer o telhado: retirarmo-nos de todas as coisas, pacificarmo-nos como se deve, darmo-nos totalmente a Deus. É assim que completaremos a m orada espiritual, em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a glória, pelos séculos dos séculos. Amém.



[1]     “Acima de tudo, recomendo que se façam preces, orações, súplicas, ações de graças por todos os homens.” (I Timóteo, II, 1)
[2]     “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Romanos, VIII, 26)
[3]       E não “queda”, como às vezes se traduz.
[4]     Esta expressão, empregada por Gregório de Nazianze à direção das almas, foi rapidamente confiscada pela corrente hesiquiasta.
[5]     “Nicodemos perguntou-lhe: Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?” (João, 3, 4).
[6]     Esta anexação de toda vida espiritual pela atenção é um dos traços característicos do hesiquiasmo sinaíta (cf. Hesíquio)
[7]     Talvez: respiramos.
[8] “Deus santo, Deus fortíssimo, Deus imortal, tem piedade de mim”.
[9] Ato de contrição e arrependimento (gr. Metanoia)
[10] Tropário: Esta palavra de origem grega designa uma maneira de canto com semelhanças a hino, a Salmo Responsorial e a ladainha, e que se emprega, sobretudo, nos ritos orientais, acompanhando as procissões. Muitos deles são marianos. O tropário é como que uma antífona mais prolongada. Costuma ser formado por uma estrofe cantada pelo coro, um estribilho respondido pela comunidade, um versículo cantado por um solista, de novo o estribilho da comunidade (isto pode repetir-se várias vezes), e, no final, de novo a estrofe, às vezes cantada também em parte pela comunidade. Esta estrofe é mais longa que uma antífona, mais de tipo hímnico e lírico, enquanto que os versículos estão pensados à maneira de «tropos», cantados por um solista, com resposta mais breve da comunidade. É um género de canto, portanto, que conjuga bem os três protagonistas: a assembleia, o coro e o solista. Às vezes, os tropários têm formas parecidas aos responsórios do ofício de Leitura ou aos responsórios breves das outras Horas. Servem, sobretudo, como cânticos de entrada na celebração, como também depois das leituras e da homilia, como resumo e assimilação do escutado. São como comentários e desenvolvimentos poéticos das ideias da festa.

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