Filocalia Tomo I Volume 1 - Antonio o Grande


ANTÔNIO O GRANDE



EXORTAÇÕES
SOBRE O COMPORTAMENTO DOS HOMENS
E A VIDA VIRTUOSA


Antônio o Grande


Antônio o Grande, nosso Pai, o Corifeu do coro dos ascetas, viveu no reino de Constantino, por volta do ano 330. Ele foi contemporâneo de Atanásio, que escreveu a história de sua vida. Ele levou ao extremo a virtude e a impassibilidade. Embora tenha sido um homem simples e iletrado, foi-lhe concedido do alto ensinar a sabedoria do Espírito, que instrui os pecadores e as crianças. Com seu intelecto iluminado pela graça desta sabedoria, ele explicou diversos e numerosos princípios espirituais, e aos que o interrogavam ele deu respostas muito sábias, para grande benefício da alma, como podemos ver nos escritos dos Padres do deserto. Além destes testemunhos, ele nos deixou 170 capítulos que estão reportados no presente livro. Que é ele o verdadeiro autor destes pensamentos, João Damasceno e outros o confirmam. A textura das frases exclui a dúvida. Entretanto, ela permite interpretações aos que as examinam minuciosamente. Seja como for, os pensamentos são contemporâneos de uma santa antigüidade.

Não é de espantar, assim, que as expressões procedam de uma escrita das mais simples, arcaica e sem pesquisas. O espantoso, é que tamanha simplicidade coloque o leitor no caminho da salvação e de tanto bem, a ponto de nele florescer a convicção, a ponto de nele instilar o regozijo. Direto ao ponto em que brilha a doçura e a certeza da vida evangélica. Aqueles que provarem deste mel em seu intelecto certamente alcançarão este prazer.

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Estes 170 capítulos, atribuídos a santo Antônio, e que constituem o texto inicial da grande Filocalia grega, são a um tempo um paradoxo e um símbolo.



O Paradoxo é evidente. O texto, o mais antigo da antologia, possui toda uma fórmula. Ele anuncia os dados e o alcance do combate espiritual. Mas ele é côo que estranho ao apoio bíblico e eclesiástico do corpus filocálico: nenhuma citação direta das Escrituras, nenhuma menção ao nome de Cristo, nenhuma referência à comunidade cristã. Apenas encontramos, no capítulo 141, e como uma breve interpolação, uma confissão das pessoas da Trindade.


Mas o símbolo não é menos claro. Existe aí como que um duplo enraizamento da tradição hesiquiasta no nome de santo Antônio e em suas “exortações” que, para a crítica moderna, não são mais do que uma compilação de escritos estóicos tardios revistos por um monge cristão. Ou então se trata da redação direta de um tratado cristão que utiliza premissas estóicas daquilo que os Padres chamarão mais tarde de “filosofia pratica”. Em todo caso, a osmose é total. A esperança cristã repousa inteiramente na “conduta virtuosa”. Simplesmente Deus, a imortalidade, a vida eterna, a salvação, o Reino dos céus, constantemente invocados, mas como que separados do Evangelho, substituem aqui a ataraxia. Assim, a salvação depende menos da redenção do que do princípio da causalidade. O homem é imortal porque é dotado de intelecto e de razão, não porque tenha sido remido pela encarnação do Filho de Deus. Um abismo. Mas um abismo fecundo, cheio de palavras-chave do vocabulário hesiquiasta (o logos e o nous, a razão e o intelecto) que, para os Padres, são as próprias mediações que unem Deus e o homem, desde que a razão se faz carne em Cristo e que o intelecto se resolve em prece do coração e em deificação luminosa. A osmose total não é, assim, gratuita.


Mas nestas condições, a atribuição do texto a santo Antônio não poderia ser senão simbólica. Apenas as datas coincidem aproximadamente: do século I ao IV de nossa era para os 170 capítulos, e o II e IV para santo Antônio, que foi nos desertos do Egito o Pai do monaquismo cristão: assim, Antônio e suas exortações apenas têm em comum o fato de serem os primeiros testemunhos daquilo que iria se seguir depois.


O lugar dos 170 capítulos à frente da antologia filocálica, por paradoxal que seja, é, portanto, exemplar. Estes capítulos significam no mínimo que o estoicismo, esta esfera fechada em que a um tempo se refinava e petrificava a filosofia antiga, acabou por se abrir à esperança cristã, ou, em todo o caso, por lhe servir de suporte. Ele chegará aos monges, ao longo dos séculos, pelo exercício da humildade e da compaixão evangélicas, atribuindo a “filosofia prática” unicamente a prece do coração, portanto à pura espera da graça. Mas o símbolo está preservado. Na longa história do monaquismo cristão, este texto, a seu modo, corresponde exatamente àquilo que foi a experiência decisiva de santo Antônio: uma gestação.





EXORTAÇÕES SOBRE O COMPORTAMENTO DOS HOMENS
E A VIDA VIRTUOSA



1. É abusivo dizer que os homens são dotados de razão. Não são racionais aqueles que se deixam ensinar pelas palavras e os livros dos sábios antigos. Mas são racionais aqueles cuja alma é dotada de razão e que são capazes de discernir o que é o bem e o que é o mal. Fugindo de tudo o que é mau e nocivo, eles se consagram ao estudo do que é bom e útil. São eles, e somente eles, que podemos chamar verdadeiramente de homens dotados de razão.


2. O homem dotado de razão na verdade não tem senão uma coisa no coração: obedecer e agradar ao Deus do universo, e conformar sua alma com a única preocupação de lhe ser agradável, dando-lhe graças pela realidade e a força de sua providência por meio da qual ele dirige todas as coisas, seja o que for que lhe aconteça durante a vida. De fato, seria fora de propósito agradecer pela saúde do corpo aos médicos que nos prescrevem remédios amargos e desagradáveis, enquanto recusamos a Deus a gratidão por coisas que nos parecem penosas, como se não soubéssemos que tudo o que acontece é como deve ser, e para nosso bem, pelos cuidados da providência. Pois o conhecimento de Deus e a fé nele são a salvação e a perfeição da alma.


3. A temperança, a resignação, a castidade, a perseverança, a paciência e similares, são as correspondentes potências virtuosas consideráveis que recebemos de Deus para resistir às dificuldades do momento, fazer-lhes frente e nos socorrer. Se exercermos e mantivermos estas potências, perceberemos que daí em diante nada mais de difícil, doloroso e intolerável nos acontece, com o pensamento de que tudo é humano e pode ser dominado pelas virtudes que estão em nós. Os que não têm a inteligência da alma não pensam assim, pois eles não compreendem que tudo acontece para o bem e como se deve, para nosso benefício, a fim de que brilhem as virtudes, e que sejamos coroados por Deus.


4. Se você pensa que ter dinheiro e mostrar opulência não passam de aparência ilusória e passageira, se você sabe que a vida virtuosa que agrada a Deus o resgata das riquezas, e se você refletir seriamente nisto e guardar na lembrança, você não mais gemerá, nem se lamentará, você não acusará ninguém, mas em tudo dará graças a Deus, vendo aqueles que são piores do que você apoiarem-se sobre a eloqüência e o dinheiro. Pois este é para a alma um mal tão grave como a cobiça, a ambição e a ignorância.


5. É examinando a si mesmo que o homem dotado de razão experimenta o que lhe convém e lhe é útil, o que é apropriado à alma e lhe é vantajoso, e o que lhe é estranho. E é assim que ele evita o mal que é nocivo à alma, por ser-lhe estranho e separá-la da imortalidade.


6. Quanto mais modestamente vive a pessoa, mais ela é feliz, porque tem poucas preocupações. Ela não precisa se inquietar com servidores e com trabalhadores, ela não procura possuir animais. Pois os que se deixam acossar pelas preocupações e tombam diante das dificuldades que elas lhes ocasionam acabam por desgostar-se de Deus. Mas então este ciúme que não está senão em nós irriga a morte, e ficamos a errar pelas trevas de uma vida de pecado, sem conhecermos a nós mesmos.


7. Não se deve dizer que é impossível ao homem alcançar uma vida virtuosa, mas sim que isto não é fácil. Esta vida não está ao alcance de qualquer um. Mas partilham a vida virtuosa aqueles, dentre os homens, que se consagram à piedade e cujo intelecto é amado por Deus. Pois o intelecto comum está voltado para o mundo, ele é mutante, ele nutre tanto bons como maus pensamentos, ele se altera por natureza e se dirige para a matéria. Mas o intelecto amado por Deus sabe preservar-se do mal que a negligência suscita no homem.


8. Os homens incultos e ignorantes transformam em zombaria as palavras dos outros e recusam-se a ouvi-los quando sua ignorância é repreendida; eles querem que todo mundo seja como eles. Da mesma forma, os homens depravados em sua vida e seu comportamento arrumam-se para que todo o mundo seja pior do que eles; eles imaginam que, em meio a tantos vagabundos, serão considerados irrepreensíveis. A alma descuidada se perde e se suja na malícia que lhe apresenta o deboche, o orgulho, a avidez, a cólera, a agressividade, a fúria, a brutalidade, os queixumes, a inveja, a cupidez, a rapacidade, a dor, a mentira, o prazer, a irresponsabilidade, a tristeza, a preguiça, a doença, a raiva, a vergonha, a fraqueza, o erro, a ignorância, as mentiras, o esquecimento de Deus. É por estes males, e por outros semelhantes, que a pobre alma que se separou de Deus é castigada.


9. Aqueles que desejam levar uma vida virtuosa, piedosa e louvável, não devem ser julgados por seu comportamento, que pode ser simulado, nem por sua conduta, que pode ser enganadora. Mas como os artistas, os pintores e os escultores, é por suas obras que eles revelam sua conduta virtuosa e amada por Deus, e que eles rejeitam como armadilhas todos os prazeres maus.


10. Aos olhos daqueles que possuem um juízo são, ser rico e bem nascido, mas possuir a alma inculta e a vida desprovida de toda virtude, equivale a ser infeliz, assim como é feliz aquele que a sorte fez nascer pobre e escravo, mas cuja vida é ornada de virtudes. Assim como os estrangeiros se perdem pelos caminhos, também os que não têm nenhum cuidado com a vida virtuosa se perdem deixando-se enganar pelas ilusões.


11. Devemos chamar “criador de homens” àquele que é capaz de domar as naturezas incultas a ponto de fazê-las amar a instrução e a cultura. Da mesma maneira, aqueles que transformam os desviados inspirando-lhes uma conduta virtuosa que agrada a Deus, também devem ser chamados “criadores de homens”, pois eles remodelam os homens. Pois a doçura e a temperança são para as almas humanas uma felicidade e uma boa esperança.


12. É preciso que os homens se conduzam em verdade como convém a seu comportamento e sua conduta. Uma vez operado este redirecionamento, torna-se fácil conhecer as coisas de Deus. Com efeito, aquele que venera a Deus com todo seu coração e com toda sua fé, recebe da providência divina a possibilidade de dominar a cólera e a cobiça. Ora, a cobiça e a cólera são a fonte de todos os males.


13. Que leve o nome de homem aquele que é dotado de razão ou aquele que aceita se corrigir. Quem não se corrige é chamado indigno do nome de homem: isto é próprio dos seres inumanos. Devemos fugir destes, pois é impossível àqueles que vivem no mal serem contados entre os imortais.


14. Se verdadeiramente a razão nos acompanha, ela nos torna dignos de sermos chamados de homens. Mas se abandonamos a razão, é apenas pela conformação dos membros e pela voz que diferimos dos animais sem razão. Que o homem inteligente reconheça assim que ele próprio é imortal, e ele terá aversão por toda cobiça desregrada, que é causa da morte para os homens.


15. Cada uma das artes, organizando a matéria que lhe é própria, revela sua virtude. Um trabalha a madeira, outro o bronze, outro o ouro e a prata. Do mesmo modo, nós que ouvimos falar da conduta feliz e virtuosa que agrada a Deus, devemos mostrar em verdade que somos homens dotados de razão por nossa alma, e não apenas pela conformação do corpo. Ora, a alma que é verdadeiramente dotada de razão e amada por Deus conhece diretamente todas as coisas da vida. Ela ora a Deus com todo seu amor e lhe rende graças na verdade, dirigindo a ele todo seu desejo e todos os seus pensamentos.


16. Assim como os pilotos têm um vigia para dirigir o navio e não atirá-lo contra algum banco submarino ou um rochedo, também os que aspiram à vida virtuosa devem examinar cuidadosamente o que fazer e o que evitar. Que eles considerem que seu bem está nas verdadeiras leis, as leis divinas, cortando pela raiz as ambições prejudiciais da alma.


17. Assim como os pilotos e condutores de carros, à força de atenção e cuidados, chegam aonde querem, também os que cultivam a vida reta e virtuosa devem ter o cuidado de levar uma vida que convenha e agrade a Deus. Pois aquele que quer, e que compreende que pode se acreditar, toma o caminho da imortalidade.


18. Considere que são livres, não os que a sorte fez livres, mas os que o são por sua vida e seu comportamento. Pois não devemos chamar livres de verdade os príncipes que vivem no mal e no deboche: eles são escravos das paixões da matéria. A liberdade e a felicidade da alma consistem na pureza fiel e no desdém pelo que acontece.


19. Lembre-se de que é preciso sem cessar dar seu testemunho aos olhos dos outros, mas por sua conduta virtuosa e pelas próprias obras. É assim, não pelas palavras mas pelos atos, que os doentes descobrem e reconhecem, em seus médicos, os benfeitores e salvadores.


20. A marca da alma dotada de razão e virtuosa está no olhar, no caminhar, na voz, no riso, nas ocupações e nas conversas. Pois tudo se transforma e se readapta para se tornar mais nobre. O intelecto amado por Deus guarda suas portas, vigilante e sóbrio, interditando a entrada à infâmia dos maus pensamentos.


21. Reflita você mesmo, e reconheça que os magistrados e as autoridades têm poder somente sobre os corpos, mas não sobre a alma. Guarde sempre consigo esta convicção. Se eles ordenam uma violência, ou um absurdo, ou uma injustiça nociva à alma, não devem ser obedecidos, mesmo que maltratem seu corpo, pois Deus criou a alma livre e capaz de decidir por si mesma se ela faz o bem ou o mal.


22. A alma dotada de razão dedica-se a se livrar da ambição, do orgulho, da arrogância, da falsidade, do ciúme, da rapacidade e dos vícios que lhes assemelham. Todos esses vícios são obra dos demônios e de uma vontade má. Mas um esforço e um cuidado perseverantes corrigem tudo isso no homem cujo desejo não se orienta para os prazeres fáceis.


23. Aqueles que vivem com pouco e não procuram tudo obter, escapam aos perigos e não precisam ser vigiados. Quanto aos que dominaram a cobiça em todas as coisas, estes encontram facilmente o caminho que leva a Deus.


24. Não é necessário que os homens dotados de razão possuam muitos relacionamentos. Eles só têm necessidade de relacionamentos úteis, dirigidos pela vontade de Deus. É assim que os homens retornam à luz e à vida eterna.


25. Os que aspiram a uma vida virtuosa amada por Deus devem se afastar do orgulho e de toda glória falsa e vã, e se esforçar para bem endireitar sua vida e seus pensamentos. Pois o intelecto amado por Deus e sempre igual é o caminho que nos eleva a Deus.


26. A ninguém adianta saber falar se lhe falta a conduta da alma que é agradável e apraz a Deus. Mas a fonte de todos os males é o erro, a mentira e a ignorância de Deus.


27. É o cuidado com a vida mais bela e com a alma que torna os homens bons e amados por Deus. Pois aquele que procura a Deus o encontra: ele domina toda cobiça e não se separa da oração. Este homem não teme os demônios.


28. Os que se perderam por causa das esperanças desta vida e não sabem senão em palavras levar a vida mais bela, são um pouco como pacientes que buscam os remédios e os instrumentos da medicina, mas que não sabem servir-se deles nem se inquietam com isto. É por isso que, quando estamos em falta, não devemos jamais acusar nossos pais ou qualquer outra pessoa, mas apenas a nós mesmos. Pois se a alma se abandona à negligência, torna-se para ela impossível vencer.


29. A quem não sabe discernir o que é bom do que é mau, é impossível julgar quem é bom e quem é mau. Pois o homem é bom se ele conhece a Deus; mas se ele não é bom, ele de nada sabe e nunca terá este conhecimento. Pois o bem é o modo de conhecimento de Deus.


30. Os homens bons e amados por Deus não denunciam o mal de outrem senão na sua presença, e cara a cara. Eles jamais reprovam os ausentes. E eles não aceitam escutar os que assim acusam os outros.


31. Que em suas conversas seja banida toda duração. Pois a modéstia e a reserva ornam o homem dotado de razão, mais ainda do que as virgens. O intelecto amado por Deus é a luz que ilumina a alma, como o sol ilumina o corpo.


32. Em todas as provações que couberem à sua alma, lembre-se de que aos olhos dos que têm o justo cuidado e a vontade de manter em ordem e em segurança o que lhes pertence, não é a posse perecível das riquezas que é considerada agradável, mas as doutrinas retas e verdadeiras: são elas que os fazem felizes. Pois o rico pode ser despossuído e pilhado pelos que são mais poderosos do que ele. Mas a virtude da alma é o único bem seguro e inviolável, o único também que, após a morte, salva a quem o possui. Os que pensam assim não serão arrastados pelos fantasmas da riqueza e dos prazeres.


33. Não convém que homens instáveis e incultos se tenham por eminências. O homem eminente é aquele que agrada a Deus, que se cala na maior parte das vezes, ou que fala pouco e não diz senão o que é preciso e agradável a Deus.


34. Os que aspiram a viver na virtude e no amor de Deus, cuidam das virtudes da alma como de um bem próprio, como de suas próprias delícias eternas. Quanto às coisas que passam, eles desfrutam delas na medida do possível, e conforme o que Deus dá e quer. A tudo eles usam com toda alegria e gratidão, mesmo se estas coisas lhes forem racionadas. Pois comer bem e bastante alimenta o corpo e sua matéria. Mas o conhecimento de Deus, a temperança, a bondade, a bem-aventurança, a piedade e a doçura deificam a alma.

35. Aqueles que, dentre os poderosos, obrigam a que sejam feitas ações deslocadas e nocivas, enquanto que a alma foi criada livre, não são, portanto, senhores. Eles podem aprisionar o corpo, mas não a vontade, pois o homem dotado de razão é seu senhor por Deus seu Criador, que é mais forte do que qualquer poder, qualquer imposição e qualquer potência.


36. Os que consideram como uma infelicidade a perda de dinheiro, de filhos, de servidores ou de qualquer outro bem, saibam que devemos antes de tudo contentarmo-nos com o que Deus dá, e devolver-lhe com entusiasmo e gratidão, quando preciso, sem sermos afetados por esta privação, ou antes por esta restituição, pois aqueles que se servem daquilo que não lhes pertence não cessam de devolver.


37. É obra do homem justo não vender sua liberdade em troca de bens que lhe sejam oferecidos, mesmo que sejam muitos. Pois as coisas da terra são como que um sonho, e a riqueza não passa de uma ilusão incerta e efêmera.


38. Que os que são verdadeiramente dignos de serem chamados de homens se dediquem a conduzir suas vidas no amor a Deus e à virtude a fim de que sua vida virtuosa brilhe no meio dos outros homens. Assim como a púrpura, por pouca que seja, salpicada sobre a brancura de uma vestimenta, a enfeita de beleza e a faz distinguir e reconhecer, também estes homens manterão com mais segurança o cuidado com as virtudes da alma.

39. Os homens sábios devotam-se a bem examinar sua força e os recursos da virtude que trazem na alma, se eles querem estar prontos para se opor a todas as paixões, na medida de suas possibilidades, que lhes são naturalmente dadas por Deus. Seus recursos, são a temperança face às seduções da beleza e a toda cobiça nociva à alma, a perseverança face às penas e privações, a paciência face ao insulto e à cólera, além das correspondentes virtudes.


40. É impossível que um homem se torne subitamente sábio e bom. É preciso um estudo assíduo, a perseverança, a experiência, o tempo, a ascese, e o desejo pela boa obra. O homem bom e amado por Deus, aquele que em verdade conhece a Deus, não cessa de fazer em abundância tudo o que agrada a Deus. Mas estes homens são raros.


41. Não convém aos menos dotados dos homens, os que se desesperam de si mesmos, tratar com negligência e desdém a conduta virtuosa amada por Deus,  sob pretexto de ser-lhes inacessível e fora de alcance. Ao contrário, eles devem colocar nisso todas as suas forças e cuidar de si, pois mesmo que não possam atingir os cumes da virtude e da salvação, entretanto, por seu esforço e seu desejo, ou eles se tornam melhores, ou ao menos não se tornam piores, o que para a alma não é pouco benefício.


42. Por sua natureza racional, o homem se liga a esta faculdade misteriosa e divina da razão. Mas por sua natureza corpórea, ele se aparenta aos animais. Alguns, pouco numerosos, verdadeiramente homens e verdadeiramente dotados de razão, de todo o coração dirigem ao seu Deus e Senhor seus pensamentos e afinidades, e o manifestam por seus atos e por uma vida virtuosa. Mas a maior parte dos homens, que não têm a inteligência da alma, desprezam esta filiação divina e imortal, para se voltar à afinidade com o corpo, afinidade morta, infeliz e passageira, e não pensam senão nas coisas da carne, como os animais sem razão, ligando-se aos prazeres. Assim eles se separam de Deus e, por efeito de sua vontade, separam a alma dos céus e a arrastam para o abismo.


43. O homem dotado de razão, lembrando-se de que participa do divino e que está unido a ele, jamais se apaixonará por seja lá o que for de terrestre e vil. Ele mantém seu intelecto voltado para o que é celeste e eterno. E ele sabe que a vontade de Deus é a salvação do homem, uma vez que Deus é para os homens a causa de todos os bens e a fonte da beatitude eterna.


44. Quando você tiver que se haver com alguém que disputa e combate a verdade e a evidência, corte imediatamente a disputa e afaste-se deste homem cuja inteligência está petrificada. Da mesma forma, com efeito, com que uma água ruim estraga os melhores vinhos, também as conversas sem sentido corrompem aqueles que consagram a vida e o pensamento à virtude.


45. Se nos esforçamos por todos os meios para escapar da morte do corpo, muito mais deveríamos fazer para escapar à morte da alma. Diante daquele que quer ser salvo, não existe, com efeito, outro obstáculo que a negligência e a irresponsabilidade da alma.


46.  Aqueles que têm dificuldade em compreender o que lhes é vantajoso e o que lhes é dito a respeito do bem são considerados doentes. Mas quando aqueles que compreendem a verdade discutem impudentemente, é a razão que está morta e seu comportamento é selvagem. Eles não conhecem a Deus e sua alma não está iluminada.


47. Deus, com sua palavra, destinou as espécies animais a diferentes usos sucessivos. Algumas devem ser comidas, outras devem servir. E ele criou o homem para contemplar suas vidas e suas obras e para reconhecê-las e interpretá-las. Que os homens se apliquem, assim, a não morrer sem antes contemplar e entender Deus e suas obras, como os animais desprovidos de razão. O homem deve saber que Deus tudo pode, e que nada se opõe Àquele que pode tudo. A partir do nada ele fez, e fez tudo o que quis com sua simples palavra, para a salvação dos homens.


48. O que está no céu é imortal, por causa da bondade inerente ao que é celeste. Mas o que está na terra tornou-se mortal por causa do mal terrestre inerente que está nela. E este mal, pela negligência e pela ignorância a respeito de Deus, atinge aqueles a quem falta a inteligência.


49. A morte, se o homem souber compreendê-la, é imortalidade. Mas para os ignorantes, que não a compreendem, ela é verdadeiramente a morte. Não é esta morte que devemos temer, mas a perdição da alma que está na ignorância de Deus. É isto, para a alma, que é temível.


50. O mal é uma afecção da matéria. Assim, não é possível que o corpo permaneça estranho ao mal. A alma dotada de razão, que compreende isto, ataca este peso da matéria que é o mal. Recusando-se a carregar tal peso, ela se volta para o conhecimento do Deus do universo, considera daí para diante o corpo como um inimigo e um adversário em quem não se pode confiar. É assim que a alma recebe a coroa de Deus, ao superar as provações do mal e da matéria.


51. Se a alma discerne o mal, ela toma aversão a ele como a um animal malcheiroso. Mas se o mal é ignorado, ele é amado por quem o ignora, e então ele captura a este. Pois o mal sujeita a quem o ama. Então o pobre infeliz não vê nem compreende aonde está seu bem, mas pensa que o mal o adorna de belezas, e então se regozija com isto.


52. A alma pura, que é boa, recebe de Deus a luz e o esplendor. Então o intelecto compreende o que é bom e suscita palavras amadas por Deus. Mas quando a alma é suja pela lama do mal, Deus se afasta dela, ou melhor, ela se separa de Deus. Os demônios do mal então penetram em seu pensamento, e começam a lhe sugerir ações ímpias, adultérios, violências, roubos, sacrilégios e outros malfeitos, que são todos obras do demônio.


53. Aqueles que conhecem a Deus enchem-se de todas as bem-aventuranças da bondade. Aspirando às coisas do céu, eles desdenham as coisas desta vida. Tais homens não agradam à maioria, nem tentam agradá-la. Assim, muitos dentre os que não compreendem nada, não apenas os detestam, como zombam deles. Em sua pobreza, eles aceitam suportar tudo isso, sabendo que o que parece um mal à maioria, aos seus olhos é o bem. Pois aquele cujo intelecto se abre às coisas celestes, crê em Deus e compreende que todas as coisas são criações de sua vontade, enquanto que aquele cujo intelecto não se abre, jamais acreditará que este mundo é obra de Deus e que ele foi feito para a salvação do homem.


54. Aqueles que estão cheios do mal e embriagados pela ignorância não conhecem a Deus, pois suas almas não são nem sóbrias nem vigilantes. Ora, Deus é inteligível. Ele não é visível em si, mas ele se manifesta plenamente no visível, como a alma no corpo. É impossível que o corpo se mantenha sem a alma, assim como é impossível que todo o visível, tudo o que é, possa se manter sem Deus.


55. Porque o homem vem para a existência? Para que, meditando sobre as obras de Deus, ele o contemple e glorifique Aquele que as fez para o bem do homem. Mas é a inteligência que recebe o amor de Deus. Ela é o bem invisível, que Deus concede aos que dela são dignos, por sua conduta virtuosa.


56. Livre é quem não está sujeito aos prazeres, mas domina o corpo pela sabedoria e pela castidade, e se contenta, com toda a gratidão, com os bens que lhe são dados, ainda que sejam racionadíssimos. Pois o intelecto amado por Deus e a alma, quando estão de acordo, pacificam todo o corpo, mesmo conta a vontade deste. Se a alma o quer, toda revolta do corpo é reabsorvida.


57. Quem não se satisfaz com o que possui presentemente para viver, mas quer sempre mais, sujeita-se às paixões que perturbam a alma e lhe impõem pensamentos e imaginações. Pois possuir mais é um mal em si. Assim como uma túnica grande demais atrapalha quem disputa uma corrida, também o desejo de aumentar as riquezas impede a alma de combater e ser salva.


58. As condições nas quais nos encontramos malgrado nós mesmos e sem que o desejemos são uma prisão e um castigo. Assim, ame aquilo que você possui atualmente. Pois se você o assumir de má vontade, você estará punindo a si mesmo por sua própria conta. Na verdade, não existe senão um caminho: o desprezo pelas coisas do mundo.


59. Assim como recebemos de Deus a visão para que possamos distinguir, dentre as coisas que temos diante dos olhos, o que é branco do que é negro, também a razão nos foi dada por Deus para nos permitir discernir o que é bom para a alma. Mas a cobiça, separando-se da razão, engendra o prazer e não permite que a alma seja salva ou que ela se una a Deus.


60. O que é conforme a natureza não é pecado. O pecado é a escolha do mal. Comer não é pecado. Pecado é comer sem dar graças, sem decência nem temperança. Pois convém guardar em vida o corpo fora de toda imaginação perversa. O olhar, se é puro, tampouco é pecado. O pecado está em olhar com inveja, com orgulho ou com indiscrição. É não escutar pacificamente, mas com hostilidade. É não guardar a língua para a ação de graças e a prece, mas deixá-la dizer não importa o quê. É não usar as mãos para socorrer os outros, mas servir-se delas para matar e roubar. Desta forma, cada um dos nossos membros peca por si só, fazendo mal em lugar do bem, contra a vontade de Deus.


61. Se você duvida de que cada uma de suas ações é vista por Deus, considere que você, que é homem e poeira, é capaz de num instante observar e conhecer toda sorte de lugares. Com mais forte razão pode Deus, ele que vê o universo como um grão de mostarda, e que criou e alimentou todas as coisas como quis.


62. Quando você fecha a porta de sua casa e fica só, saiba que um anjo designado por Deus a cada homem estará com você. É este anjo que os gregos chamam de daimon interior. Ele não dorme jamais. É impossível enganá-lo. Ele está sempre com você, ele vê tudo e a escuridão não o atrapalha. Com ele, Deus está em toda parte. Pois não existe lugar nem matéria aonde Deus não esteja, uma vez que ele é maior do que tudo e tem todos os seres em sua mão.

63. Se os soldados são fiéis a César porque César lhes garante o alimento, com muito mais razão devemos nos aplicar a dar graças com nossas bocas, sem jamais nos calarmos, e agradecer a Deus que a tudo criou para o homem.


64. A gratidão e a conduta virtuosa são os frutos do homem que mais agradam a Deus. Ora, os frutos da terra não amadurecem em uma hora: é preciso tempo, a chuva, cuidados. Da mesma forma, os frutos do homem não brilham senão pela ascese, o estudo, o tempo, a perseverança, a obstinação e a paciência. Mas mesmo que, ao ver em você estes frutos, alguns o considerem um homem piedoso, desconfie sempre de si mesmo enquanto você viver em um corpo, e considere que nada daquilo que vem de você agrada a Deus. Saiba que, de fato, não é fácil um homem permanecer até o fim puro de toda falta.


65. Nada entre os homens é mais precioso do que a palavra. Assim é que a palavra permite servir a Deus rendendo-lhe graças. Mas se nos servimos dela para dizer o mal e blasfemar, nós condenamos nossa alma. Invocar seu nascimento ou qualquer outra razão, quando se está em falta, é assim obra de um homem insensato; foi livremente e por sua própria conta que ele permitiu uma palavra ruim ou uma má ação.


66. Se nos esforçamos para cuidar das paixões do corpo para evitar a zombaria daqueles com quem encontramos, com mais razão devemos nos esforçar para curar as paixões da alma, uma vez que seremos julgados na presença de Deus, para que não sejamos submetidos à desonra e ao ridículo. Pois nós somos livres. Assim, mesmo quando sentimos em nós o desejo de más ações, não querer fazê-las é possível, está ao nosso alcance levar uma vida que agrade a Deus. Jamais alguém poderá nos forçar a fazer algo de mal, se não quisermos. Combatendo assim, seremos de fato homens dignos de Deus, e viveremos como anjos no céu.


67. Se você quiser, você será escravo das paixões. Se você quiser, e você é livre, você não será sujeito às paixões. Pois Deus o criou livre. E aquele que sobrepuja as paixões da carne recebe a coroa da incorruptibilidade. Pois se não houvesse paixões não haveria virtudes, nem as coroas dadas por Deus aos homens que delas são dignos.


68. Aqueles que não veem onde está seu benefício e não sabem aonde está o bem, são cegos na alma. Seu discernimento foi extinto. É melhor não nos ligarmos a estes, para não cairmos fatalmente nos mesmos erros, cegos e imprudentes.


69. Não devemos nos irritar com aqueles que estão em falta, mesmo se o que fizeram é reprovável e merece um castigo. Mas devemos endireitar os que tombam, em nome da própria justiça. Às vezes é preciso castigá-los, em sua pessoa ou de outro modo. Mas não devemos nos irritar nem nos deixar levar assim, pois a cólera age unicamente pela paixão, e não de maneira judiciosa e justa. Não devemos aprovar aqueles que se deixam levar indevidamente pela piedade. Mas é por causa do bem e da justiça que é preciso castigar os que fazem o mal, nunca pela paixão da cólera.

70. Somente os bens da alma são seguros e invioláveis. São a conduta e o conhecimento virtuosos, e o exercício das boas obras, que agradam a Deus. Pois a riqueza é um guia cego e um conselheiro sem inteligência. Aquele que usa a sua riqueza servindo-se dela para o prazer, perde sua alma insensível.


71. Os homens não devem adquirir nada de mais. Se por acaso eles têm muito, será bom para eles saber que tudo nesta vida é, por natureza, corruptível, tudo desaparece facilmente, se degrada e se destrói. Assim, eles não devem se inquietar com o que quer que aconteça.


72. Saiba que as dores físicas são naturais do corpo, uma vez que este é corruptível e material. Diante de tais sofrimentos, a alma instruída deve armar-se de perseverança e paciência, e não reprovar a Deus por haver criado o corpo.


73. Aqueles que participam dos Jogos Olímpicos não recebem a coroa por vencerem um, dois ou três adversários, mas após terem vencido a todos os que enfrentaram. O mesmo acontece com o homem que quer ser coroado por Deus. Sua alma deve dedicar-se à sabedoria, não somente nas coisas do corpo, mas em tudo o que se refere a perdas e ganhos, invejas, alimentos, a vanglória, as injúrias, a morte e as afecções análogas.


74. Não busquemos a boa conduta amada por Deus, pelo louvor dos homens. Devemos escolher a vida virtuosa para a salvação da alma. Pois a morte está presente diante dos nossos olhos a cada dia, e as coisas humanas são cheias de incertezas.


75. Está em nosso poder viver sabiamente, mas não está em nosso poder enriquecer. Porque então é preciso condenar a alma, quando ela sonha por um instante com uma riqueza que não temos meios de adquirir? Mas se não desejamos senão a riqueza, porque corremos sem inteligência, ignorando que a humildade precede todas as virtudes, do mesmo modo como a gula e a cobiça das coisas desta vida precedem todas as paixões?


76. Os sábios devem lembrar-se continuamente: se suportamos nesta vida as pequenas penas passageiras, nós os homens usufruiremos após a morte de um imenso prazer e de delícias eternas. Desde logo, aquele que combate as paixões e que quer ser coroado por Deus, se ele cair, não deve se desencorajar, nem permanecer em sua queda desesperando de si. Mas é preciso que ele se levante, retome o combate, e busque novamente a coroa. Até o último suspiro é preciso lembrar-se desta queda que lhe sucedeu. Pois os golpes que o corpo recebe são a armadura das virtudes e asseguram a salvação da alma.


77. As dificuldades da vida propiciam aos homens dignos, aqueles que levam adiante o combate, ser coroados por Deus. É preciso assim que, ao longo de sua vida, eles façam morrer seus membros a todas as coisas do mundo. Pois um morto não se preocupará mais com estas coisas.


78. Não convém que a alma que é dotada de razão e que combate, se deixe ficar facilmente apreensiva e medrosa diante das provas que lhe acontecem, se ela não quiser ser ridicularizada por sua preguiça. Pois a alma perturbada pela imaginação das coisas do mundo esquece o que ela deve a si mesma. São as virtudes da alma que nos abrem o caminho aos bens eternos. A causa dos castigos está no mal que os homens fazem a si mesmos.


79. O homem dotado de razão é combatido pelos sentidos de sua natureza racional, por meio das paixões da alma. Ora, existem cinco sentidos no corpo: a vista, o olfato, a audição, o paladar e o tato. A infeliz alma é capturada pelos cinco sentidos quando ela se submete às quatro paixões que lhes correspondem. Estas quatro paixões são a vanglória, a loucura insensata, a cólera e a lassidão. Portanto, a partir do momento em que, com prudência e reflexão, o homem levou a bom termo o combate e dominou as paixões, ele não é mais combatido. Sua alma está em paz, e ele recebe a coroa de Deus por sua vitória.


80. Dentre aqueles que se encontram num albergue, alguns recebem um leito, outros não o obtêm e deitam-se no chão, onde roncam tanto quanto os que dormem em sua cama. Após passarem a noite e deixarem pela manhã os leitos, eles partem juntos, cada qual levando apenas o que possui. O mesmo acontece com todos os que chegam a este mundo. Tanto os que viveram pobremente quanto aqueles que passaram a vida entre a glória e a riqueza, todos saem da vida como do albergue. Eles não levam consigo nada daquilo que fazia as delícias e a riqueza do mundo. Eles não levam senão suas próprias obras, boas ou más: aquilo que fizeram durante a vida.


81. Só porque você possui um grande poder, não é razão para ameaçar alguém de morte por qualquer coisa. Saiba que, por natureza, também você está submetido à morte, e que a alma se despe do corpo como de sua última túnica. Reconheça isto com clareza. Seja doce, faça o bem, e dê graças continuamente a Deus. Pois aquele que não é complacente não tem em si a virtude.


82. É impossível e inconcebível escapar da morte. Isto bem o sabem os homens verdadeiramente dotados de razão, dedicados às virtudes e aos pensamentos amados por Deus. Eles recebem a morte sem gemidos, sem medo e sem luto, lembrando-se de que ela é inexorável e que ela liberta dos males desta vida.


83. Não devemos odiar aqueles que negligenciam a conduta virtuosa que agrada a Deus e não se preocupam com a justa doutrina amada por ele, mas lamentá-los, pois eles são privados de juízo, cegos de coração e de reflexão. Eles tomam o mal como bem, e esta ignorância faz com que se percam. Com sua alma sem inteligência, esses infelizes não conhecem a Deus.


84. Recuse-se a conversar sobre a piedade e a vida virtuosa com muitas pessoas. Não digo por maldade, mas porque, pensão eu, você se arrisca a ser ridicularizado por pessoas irracionais. Pois o semelhante une-se ao semelhante. Ora, aqueles que se dispõem a escutar estas conversas são poucos. Na verdade, são raríssimos. Assim, é melhor não falar sobre nada, senão daquilo que Deus quer para a salvação dos homens.

85. A alma se compadece do corpo, mas o corpo não se compadece da alma. Assim, quando o corpo está moribundo, a alma sofre com ele. E quando o corpo está vigoroso e se sente bem, a alma experimenta a mesma alegria. Mas quando a alma se põe a refletir, o corpo não acompanha esta reflexão. Ele permanece abandonado a si mesmo. Pois a reflexão é um estado da alma, assim como a ignorância, o orgulho, a perfídia, a cupidez, o ódio, a inveja, a cólera, o desdém, a vanglória, a estima, a discórdia, o sentido do bem. Tudo isto é suscitado pela alma.


86. Conceba as coisas de Deus. Seja piedoso, sem inveja, bom, casto, doce, contente tanto quanto possível, afável, alheio às disputas. Possua estas virtudes e as que lhes assemelham. Pois esta é a fortuna inviolável da alma: agradar a Deus pelo exercício dessas virtudes, não julgar ninguém, não dizer de ninguém: “Fulano é mau, ele pecou”. É melhor nos ocuparmos de nossos próprios males e examinarmos se nossa própria conduta agrada a Deus. Porque afinal, que sentido faz nos preocuparmos se o outro é mau?


87. Um homem verdadeiramente digno deste nome dedica-se à piedade. Ora, é piedoso aquele que não deseja para si o que não lhe pertence. Mas todas as coisas criadas são alheias ao homem. Assim, despreze-as, porque você é a imagem de Deus; e o homem é a imagem de Deus quando sua conduta é reta e agrada a Deus. Mas é impossível ao homem tornar-se tal se ele não renunciar às coisas desta vida. Aquele que possui um intelecto amado por Deus sabe que todo o bem da alma e toda a piedade provêm daí. O homem amado por Deus não se apoia em ninguém quando ele próprio está em falta. Esta é a marca da alma que foi salva.


88. Aqueles que procuram adquirir pela força os bens passageiros, aqueles que acalentam o desejo pelas obras do mal, ignorando a morte e a perdição de suas almas, e que, infelizes, recusam-se a enxergar onde está seu benefício, estes não se dão conta daquilo que os homens deverão sofrer pelo mal que causaram, após sua morte.


89. O mal é uma afecção da matéria. Deus não está em causa. Ele deu aos homens o conhecimento, o saber, o discernimento do bem e do mal, e a liberdade. É a negligência e a irresponsabilidade dos homens que engendram as paixões do mal. Portanto, Deus não é sua causa. Os demônios caíram na maldade depois de uma escolha deliberada. O mesmo acontece com a maior parte dos homens.


90. Aquele que faz da piedade a companhia de sua vida não permite ao mal entrar em sua alma. E se o mal não penetra nela, a alma permanece ao abrigo do perigo e da infelicidade. Nem as enganações do demônio, nem os golpes da sorte prevalecerão nestes homens. Pois Deus os livra do mal. Eles vivem sob sua guarda, longe de toda infelicidade, semelhantes a ele. Se os elogiarem, eles rirão de quem os elogia; se os ofenderem, não responderão aos insultos. Pois eles não se comovem com o que é dito ou não dito a respeito deles.


91. O mal anda de mãos dadas com a natureza, como a ferrugem com o ferro, ou as excreções com o corpo. Mas não foi o ferreiro quem fez a ferrugem, nem os pais que fizeram a excreção. Da mesma forma, Deus não criou o mal. Ao contrário, ele deu ao homem o conhecimento e o discernimento, para que ele pudesse fugir do mal, sabendo que este é nocivo e condenável. Assim, quando você ver alguém feliz por ser rico e poderoso, cuidado para não invejá-lo. É o demônio que cria esta ilusão. Mas tenha imediatamente a morte diante dos olhos, e você não cobiçará jamais nem o mal, nem as coisas deste mundo.

92. Nosso Deus deu a imortalidade às coisas do céu e fez mutáveis as coisas da terra. Ele colocou a vida e o movimento no universo. A tudo ele criou para o homem. Assim, não se deixe cativar pelas imagens deste mundo que lhe chegam pelo demônio, quando ele introduz em sua alma maus pensamentos. Mas procure imediatamente os bens celestiais, e diga a si mesmo: “Se eu quiser, eu tenho em mim o poder de rechaçar também este ataque da paixão. Mas se eu não o fizer, é porque quero satisfazer meu desejo.” Continue assim com este combate, que pode salvar sua alma.


93. A vida é a união e a conexão do intelecto, da alma e do corpo. A morte não destrói o que estava unido, mas dissolve seu conhecimento. Pois tudo é salvo por Deus, mesmo depois da dissolução.


94. O intelecto não é a alma, mas um dom de Deus para salvar a alma. O intelecto que agrada a Deus ultrapassa e aconselha a alma. Ele a incentiva a desdenhar tudo o que é efêmero, material e corruptível, e a se apegar aos bens eternos, incorruptíveis e imateriais, a caminhar como um homem num corpo, observando e contemplando através dele as coisas celestes, as coisas de Deus, e todas as coisas deste tipo. O intelecto amado por Deus é assim o benfeitor e o salvador da alma humana.


95. Por meio da dor e do prazer, a alma que está no corpo é imediatamente exposta às trevas e à perdição. A dor e o prazer são como que humores do corpo. Para enfrentá-los, o intelecto amado por Deus aflige o corpo e salva a alma, como um médico que corta e cauteriza.


96. As almas que não são conduzidas pelas rédeas da razão nem governadas pela inteligência capaz de pressionar, atacar e vencer as suas paixões, ou seja, a dor e o prazer, como a animais irracionais, estas almas se perdem, a partir do momento em que a razão é arrastada pelas paixões, assim como o condutor do carro é derrubado pelos cavalos.


97. Não conhecer a Deus, que criou o universo para o homem e que lhe deu o dom da inteligência e da razão, para que o homem ganhe asas para se unir a Deus, concebê-lo e glorificá-lo, é uma grave enfermidade, é a ruína e a perdição da alma.


98. A alma está no corpo. A inteligência está na alma. E a razão está na inteligência. Quando é concebido e glorificado por ela, Deus imortaliza a alma atribuindo-lhe a incorruptibilidade e as delícias eternas, ele que por sua simples bondade fez existir todas as criaturas.


99. Em sua benevolência e bondade, Deus criou o homem livre e lhe deu o poder de agradá-lo, se ele quisesse. Ora, o homem agrada a Deus enquanto não existe mal nele. E se os homens louvam as belas obras e as virtudes de uma alma santa e amada por Deus, e se condenam as infâmias e as más ações, quanto mais Deus, que quer que o homem seja salvo.


100. Os bens, o homem os recebe da bondade de Deus. Para isto ele foi criado por Deus. Mas os males é o homem quem atrai para si. É dele que vem a malícia que está nele, a cobiça e a insensibilidade.


101. A alma que perdeu a razão, embora imortal e senhora do corpo, sujeita-se aos prazeres, sem compreender que as delícias do corpo lhe são nocivas. Mas, insensível em sua loucura, ela só pensa nessas delícias.


102. Deus é bom, o homem é mau. Nada é mau no céu, nada é bom na terra. Mas o homem dotado de razão escolhe o melhor. Ele reconhece o Deus do universo. Ele lhe dá graças e o celebra. Diante da morte, ele tem aversão pelo seu corpo, ele não deixa falarem os sentidos, sabendo que eles trabalham para sua perdição.

103. O homem mau quer ter sempre mais, e despreza a justiça. Ele não considera que a vida é incerta, instável e passageira, e que a morte é inflexível e inexorável. Mas, desprovido da graça e sem inteligência, o velho, como madeira podre, não serve mais para nada.


104. É experimentando o que nos entristece que nos tornamos sensíveis aos prazeres e à alegria. Quem não tem sede não sente prazer em beber. Quem não tem sono não tem prazer em dormir. Quem nunca teve tristeza não conhece o sentido da alegria. Da mesma forma, não desfrutaremos dos bens eternos se não desdenharmos os bens passageiros.


105. A palavra é servidora do intelecto. Aquilo que a inteligência quer, a palavra interpreta.


106. O intelecto a tudo vê, mesmo o que está nos céus. Nada o ensombrece, senão o pecado. Mas se ele é puro, nada lhe é inacessível. O mesmo acontece com a palavra: nada lhe é indizível.


107. Pelo corpo, o homem é mortal. Mas pelo intelecto e pela palavra, ele é imortal. Mesmo se você se cala, você pensa. E se você pensa você fala. Pois é no silêncio que a inteligência engendra a palavra. E a palavra de reconhecimento dirigida a Deus é a salvação do homem.


108. Quem diz palavras desprovidas de razão não tem inteligência, pois fala sem compreender. Então considere o que é importante fazer para a salvação da sua alma.


109. A palavra dotada de inteligência e que secunda a alma é um dom de Deus. Do mesmo modo, os discursos cheios de palavrório, que buscam as dimensões do céu e da terra, ou as grandezas do sol e das estrelas, são uma invenção do homem que desperdiça seu esforço. O homem bem falante procura em sua oratória vã o que não serve para nada. É como tirar água com uma peneira. Pois tais homens não poderiam jamais encontrar o que está em causa aqui.


110. Ninguém pode ver o céu nem compreender o que existe nele, a não ser o homem que tem o cuidado de manter a vida virtuosa, que conhece e glorifica Aquele que criou este céu para nossa salvação e nossa vida. Pois este homem amado por Deus sabe que nada existe sem Deus. Deus está em tudo e em toda parte, uma vez que ele é infinito.


111. Assim como o homem deixa o seio materno nu, também a alma deixa, nua, o corpo. Uma o deixa pura e luminosa. Outra coberta de marcas por suas faltas. Outra o deixa negra por todas as suas quedas. Desta forma, a alma dotada de razão e amada por Deus, lembrando-se dos males que se seguem à morte, leva uma vida de piedade, a fim de não cair condenada por suas faltas. Quanto aos que não creem, estes vivem na impiedade e no pecado, e desprezam as coisas do além: sua alma é desprovida de inteligência.


112. Assim como, ao sair nu do seio materno, você não se lembra do que era este seio, também ao deixar o corpo, você não se lembrará de como era ele.


113. Assim como, depois de sair do seio materno, você se tornou mais forte e maior no seu corpo, também ao sair do corpo, puro e sem mácula, você se tornará mais forte, você será incorruptível, pois você viverá nos céus.


114. Assim como o corpo nasce quando termina sua gestação no seio materno, também é necessário que a alma saia do corpo, quando ela atinge o limite que lhe foi assinalado por Deus naquele corpo.


115. O que você fez da sua alma quando ela estava no seu corpo ela fará com você quando deixar o corpo. Pois quem, aqui em baixo, fez a alegria e as delícias do corpo, construiu sua própria infelicidade após a morte. Ele condenou sua alma por falta de inteligência.


116. Assim como o corpo não consegue sobreviver se deixar, imperfeito, o seio materno, tampouco a alma, se deixar o corpo sem ter alcançado o conhecimento de Deus por meio de uma conduta virtuosa, poderá ser salva e unir-se a Deus.


117. O corpo unido à alma passa das trevas do seio materno à luz do dia. Mas a alma unida ao corpo permanece ligada às trevas do corpo. Assim, convém ter aversão e endireitar o corpo, na medida em que ele se mostra adversário e inimigo da alma. A abundância e o prazer das comidas despertam no homem as paixões do mal. Mas a temperança reabsorve as paixões e salva a alma.


118. Para o corpo, a visão são os olhos. Para a alma, a visão é a inteligência. Assim como o corpo sem olhos é cego, não vê o sol iluminar a terra e o mar, e não pode usufruir da luz, também a alma que não tem uma boa inteligência e uma conduta virtuosa é cega: ela não conhece  nem glorifica a Deus criador e benfeitor do universo, e ela não pode desfrutar de sua incorruptibilidade e de seus bens eternos.


119. A ignorância de Deus é uma anestesia e uma loucura da alma. Pois o mal nasce da ignorância. Mas o bem nos homens provêm do conhecimento de Deus e salva a alma. Portanto, se você se dedica a não realizar suas vontades, se você é sóbrio e vigilante, e se você conhecer a Deus, você levará até as virtudes a sua inteligência. Mas se você se aplica a satisfazer as vontades perversas para não procurar senão o prazer, então, embriagado com sua própria ignorância de Deus, você vai se perder como os animais sem razão, pois você não pensa nos males que o aguardam após a morte.


120. A providência é aquilo que acontece por necessidade divina, como o fato do sol nascer e se por todos os dias, ou de a terra dar frutos. Assim também é dito que a lei é aquilo que acontece por necessidade divina. Mas tudo é feito para o homem.


121. Tudo o que Deus faz em sua bondade, ele o faz pelo homem. Mas tudo o que o homem faz, ele o faz para si mesmo, tanto o bem como o mal. Não se espante com a felicidade dos bandidos, porque também as cidades alimentam  seus carrascos sem por isto louvar seus maus pendores, mas servindo-se deles para castigar os que merecem. Da mesma maneira, Deus permite que bandidos oprimam o mundo, a fim de por meio deles corrigir os ímpios. Mas depois, também eles serão entregues ao Juízo, porque não foi para servir a Deus, mas por se deleitarem em sua própria malícia, que eles fizeram mal aos homens.


122. Aqueles que veneram os ídolos não iriam, infelizes, se perder cada vez mais longe da piedade, se eles pudessem ver e saber com o coração o que de fato veneram. Mas, contemplando a harmonia, a ordem e a providência que presidem a tudo o que Deus fez e faz sempre, eles conheceriam Aquele que a tudo isto fez pelos homens.


123. Em sua desonestidade e sua injustiça, o homem pode matar. Mas Deus não cessa de dar a vida, mesmo àqueles que são indignos dela. Por repartir com abundância e por ser bom por natureza, ele quis que o mundo fosse, e o mundo existiu. E ele existe sempre, para o homem e para sua salvação.


124. Está ao alcance do homem compreender o que é o corpo, ou seja, que ele é corruptível e efêmero. E o mesmo homem compreenderá também o que é a alma, a saber, que ela é divina e imortal, criada pelo sopro de Deus, e unida ao corpo para ser provada e deificada. Ora, quem compreende o que é a alma adota a vida reta que apraz a Deus. Ele não obedece mais ao corpo. Mas ele vê a Deus por meio de sua inteligência, e nela ele contempla os bens eternos que Deus deu à alma.


125.  Deus que é bom e reparte sempre em abundância deu ao homem o poder de fazer o bem e o mal, atribuindo-lhe uma consciência a fim de que, contemplando o mundo e o que está no mundo, ele possa conhecer Aquele que a tudo fez pelo homem. Mas o ímpio pode querer conhecer, e não compreender. Pois lhe é dado não crer, lhe é permitido não achar nada, lhe é facultado conceber o contrário da verdade, na medida mesma em que o homem tem o poder de escolher entre o bem e o mal.


126. Esta é a ordem de Deus: quando cresce a carne, a alma se enche de inteligência, a fim de que entre o bem e o mal o homem possa escolher o que quiser. Mas a alma que não escolhe o bem torna-se desprovida de inteligência. Assim, todos os corpos têm uma alma, mas não podemos dizer que toda alma tenha intelecto. Pois o intelecto amado por Deus cabe aos homens sábios, santos, justos, puros, bons, misericordiosos, e aos homens piedosos. E a presença do intelecto é para eles um socorro no caminho para Deus.


127. Uma única coisa não é possível ao homem: tornar-se imortal. O que lhe é possível é unir-se a Deus, se ele compreende que pode. Se ele o quiser, com efeito, se o conceber, crer, amar, o homem, por uma conduta virtuosa, torna-se companheiro de Deus.


128. O olho contempla o visível, e o intelecto concebe o invisível. Pois o intelecto amado por Deus é a luz da alma. Aquele cujo intelecto é amado por Deus tem seu coração inundado de luz e vê a Deus com sua inteligência.


129.  Ninguém é mau, se for bom. Mas quem não é bom, certamente está entregue ao mal e ama o corpo. Ora, a primeira virtude do homem é o desdém pela carne. Separar-se do efêmero, do corruptível e do material, se for de livre e espontânea vontade e não por necessidade, faz de nós os herdeiros dos bens eternos e incorruptíveis.


130. Quem possui inteligência sabe aquilo que é, a saber, que o homem é corruptível. Ora, aquele que conhece a si mesmo sabe que todas as coisas são criaturas de Deus e que foram criadas para a salvação do homem. Pois está ao alcance do homem ter uma justa concepção de todas as coisas e sobre todas elas possuir uma fé justa. Este homem sabe então com toda certeza que aqueles que desprezam as coisas do mundo não precisam fazer muito esforço, mas recebem de Deus depois da morte as delícias e o repouso eternos.


131. Assim como o corpo sem a alma é morto, também a alma que não é dotada de inteligência é estéril e não pode ser herdeira de Deus.


132. Deus só escuta o homem. É somente ao homem que Deus se revela. Deus ama o homem, até o ponto de fazer dele um deus. Somente o homem é digno de adorar a Deus. É para o homem que Deus se transfigura.


133. É para o homem que Deus fez o céu adornado de estrelas. Para o homem ele fez a terra. E os homens a cultivam para si mesmos. Os que não percebem esta providência de Deus têm a alma desprovida de inteligência.


134. O bem não é visível, assim como as coisas do céu. Mas o mal é visível, como as coisas da terra. O bem é aquilo que não se pode comparar. Assim, o homem que possui inteligência escolhe o melhor. Pois somente ao homem Deus e suas criaturas são inteligíveis.


135. O intelecto se manifesta na alma, e a natureza no corpo. A inteligência é a deificação da alma, mas a natureza do corpo é a dissolução. Assim, em todo corpo existe uma natureza. Mas nem toda alma possui inteligência, e é por isso que nem toda alma é salva.


136. A alma está no mundo, pois foi engendrada. Mas o intelecto está acima do mundo, pois ele não foi engendrado. A alma que conhece o mundo e que quer ser salva traz em si constantemente uma lei inviolável. Ela toma consciência de que o combate e a provação acontecem agora, de que não lhe é permitida uma conciliação no Juízo e de que ela se perde ou se salva por causa do menor prazer perverso.


137. Deus fundou sobre a terra o nascimento e a morte. E ele fundou no céu a providência e o destino. A tudo ele fez para o homem e sua salvação. Dispondo de todos os bens, Deus criou para os homens o céu, a terra e seus elementos, por meio dos quais lhe é facultado o usufruto destes bens.


138. O que é mortal está subordinado ao que é imortal. Mas o que é imortal está a serviço do mortal, ou seja, os elementos do mundo estão a serviço do homem graças ao amor que, em sua natural bondade, o Deus criador leva ao homem.


139. Aqueles que nasceram pobres e que não têm o poder de prejudicar ninguém, não poderão ser contados dentre os que traduzem a piedade em obras. Mas aquele que tem o poder de prejudicar e se recusa espontaneamente a empregá-lo para fazer o mal, e que, ao contrário, trata com doçura os mais humildes por amor a Deus, este receberá os bens em retorno, logo após a morte.


140. Graças ao amor que leva o homem a Deus que nos criou, são numerosas as vias que levam o homem à salvação, que atraem as almas e as elevam até os céus. Pois as almas humanas recebem as recompensas pela virtude, e os castigos por suas faltas.


141. O Filho está no Pai, o Espírito Santo está no Filho, e o Pai está em um e no outro. É pela fé que o homem conhece tudo o que é invisível e inteligível. A fé é o assentimento voluntário da alma.


142. Aqueles a quem uma necessidade ou as circunstâncias obrigaram a se atirar num rio caudaloso serão salvos se forem sóbrios e vigilantes. Pois mesmo que estejam a ponto de se perder, e ainda que as correntes sejam violentas, eles poderão se salvar agarrando-se a qualquer coisa na margem. Mas os que estão embriagados, ainda que saibam nadar com perfeição, vencidos pelo vinho afogam-se na correnteza e desaparecem do mundo dos vivos. Da mesma forma, a alma atirada aos redemoinhos e aos turbilhões das correntezas desta vida, se ela não se conhece ao emergir do mal da matéria, se ela, que é divina e imortal, não sabe que não está ligada à matéria efêmera, frágil e mortal senão com o intuito de ser aí provada, e se em sua perdição ela se deixa arrastar pelos prazeres do corpo, então, desprezando a si mesma, ébria de ignorância, incapaz de se assumir, ela se perde e é levada para longe dos que se salvam. Como um rio, de fato, o corpo muitas vezes nos leva a prazeres que não têm cabimento.


143. A alma dotada de razão, que mantém firmemente sua boa resolução, conduz como um cavalo o ardor e o desejo, suas paixões privadas de razão. Se ela as domina, pressiona, se assenhora delas, ela é coroada e julgada digna da vida no céu. Ela recebe de Deus que a criou a recompensa por sua vitória e suas provações.


144. A alma verdadeiramente dotada de razão, quando vê a felicidade dos bandidos e a prosperidade dos indignos, não se perturba imaginando aquilo que eles desfrutam nesta vida, como aqueles que, dentre os homens, são desprovidos de razão. Pois ela conhece claramente a instabilidade da fortuna, a incerteza da vida presente, a brevidade da existência e a integridade do Juízo. Esta alma crê que Deus não a esquecerá e lhe dará o alimento de que ela necessita.


145. A vida do corpo e o desfrute dos bens terrestres obtidos pelas riquezas e poder, são a morte da alma. Mas o sofrimento, a paciência, a pobreza assumida com ação de graças, estas são a vida e as delícias eternas da alma.


146. A alma dotada de razão não concebe senão desdém pela criação material e por esta vida efêmera. Ela escolhe as delícias do céu e a vida eterna, que ela recebe de Deus por sua conduta virtuosa.


147. Quem usa uma roupa suja de barro, suja assim a roupa de quem se encosta nela. Da mesma forma, os desonestos cuja intenção e conduta não são direitos, quando se encostam nas pessoas simples e lhes dizem o que não deve ser dito, sujam suas almas como a lama, com aquilo que lhes fazem ouvir.

148. O começo do pecado é a cobiça com a qual se perde a alma dotada de razão. Mas o começo da salvação e do Reino dos céus é o amor que surge na alma.


149. Se o ferro é negligenciado e não recebe a manutenção devida, à força de permanecer sempre abandonado sem servir a nada, acaba comido pela ferrugem e já não tem mais nem utilidade nem beleza. O mesmo acontece com a alma. Se ela permanece inerte, se não se dedica a viver na virtude e a se voltar para Deus, se ela se priva da proteção divina por causa de suas más ações, em sua negligência ela se destrói sob o efeito do mal que ataca a matéria do corpo como o ferro se destrói sob o efeito da ferrugem, e não possui mais nem beleza nem utilidade em vista da salvação.


150. Deus é bom, impassível, imutável. Mas se nós consideramos razoável e verdadeiro que Deus não muda, podemos nos perguntar como ele se alegra com os bons e se zanga com os maus, como se irrita com os pecadores e é benevolente quando homenageado. A resposta é que Deus não se alegra nem se irrita, pois alegrar-se e entristecer-se são paixões. Da mesma forma, não há como homenageá-lo com presentes, pois então ele seria dominado pelo prazer. Ora, é impossível, a partir das coisas humanas, ver no divino o bem e o mal. Deus é bom, e ele não nos faz senão o bem, jamais o mal, pois em tudo isto ele permanece sempre igual. Também nós, se, por nossa semelhança, perseveramos no bem, também nós nos unimos a Deus. Mas se, por dissenso, nos entregamos ao mal, nós nos separamos de Deus. Vivendo na virtude, ligamo-nos a Deus; mas levados ao mal, fazemos dele nosso inimigo, cuja irritação não é gratuita, uma vez que os pecados impedem a Deus de brilhar em nós e nos atiram aos demônios que nos castigam. Se, pelas orações e pelo bem que fazemos, obtemos a absolvição de nossas faltas, não é por termos honrado a Deus ou tê-lo feito mudar, mas porque, curando nosso próprio mal com nossas ações e nosso retorno ao divino, desfrutamos novamente de sua bondade. Isto equivale a dizer então que Deus se afasta dos desonestos, e que o sol se esconde diante dos que são privados de visão.


151. A alma dotada de piedade conhece o Deus do universo. Pois a piedade não é outra coisa do que cumprir a vontade de Deus, vale dizer, conhecê-lo sendo generoso, sábio, doce, benevolente tanto quanto possível, afável, cordato, em suma, fazendo tudo o que agrada à sua vontade.


152. O conhecimento de Deus e o temor a Deus são o remédio para as paixões da matéria. De fato, quando a alma é habitada pela ignorância de Deus, as paixões não podem ser curadas; elas permanecem nela e a corrompem. É como uma ferida inveterada carcomida pelo mal. Mas Deus não é a causa disto, ele que transmitiu ao homem a ciência e o conhecimento.


153. Deus cumulou o homem de ciência e conhecimento. Pois ele se dedica a purificá-lo das paixões e do mal voluntário, e ele quer, em sua bondade, fazer o mortal alcançar a imortalidade.


154. Em uma alma pura cativa de Deus, o intelecto vê verdadeiramente o Deus que não foi engendrado, o Deus invisível e inefável, o único puro para os corações puros.


155. A coroa da incorruptibilidade, a virtude, a salvação do homem, consiste em suportar as adversidades com coragem e gratidão. Dominar a cólera, a língua, o ventre e os prazeres, é também um grande auxílio para a alma.


156. É a providência divina que dirige o mundo. Nenhum lugar está privado dela. A providência é a razão absoluta que modelou a matéria para dela fazer o mundo. Ela é o criador e o artesão de tudo o que existe. Pois é impossível que a matéria tenha sido organizada sem o poder decisivo da razão, que é a imagem, a inteligência, a sabedoria e a providência de Deus.


157. A cobiça consciente é a raiz das paixões daqueles aparentados às trevas. A alma que tem esta visão da cobiça não conhece a si mesma. Ela ignora ter sido formada pelo sopro de Deus. Ela assim é arrastada ao pecado, sem considerar, por falta de inteligência, os males que se seguirão à morte.


158. A recusa de Deus e o amor à vanglória são uma grave e incurável doença da alma, e sua perdição. Pois o desejo do mal é a privação do bem. Ora, o bem consiste em fazer abundantemente tudo o que é bom e agrada ao Deus do universo.


159. O homem é o único ser capaz de receber a Deus. Ele é o único, dentre os seres vivos, com quem Deus conversa, à noite por meio dos sonhos, de dia através da inteligência. Assim, continuamente, ele anuncia e apresenta previamente aos homens que são dignos disto os bens que os esperam.


160. Nada é difícil para quem crê e quer compreender a Deus. Se você deseja contemplá-lo, observe a ordem do mundo e a providência que rege por meio da razão divina tudo o que foi criado e tudo o que existe. Observe que tudo foi feito para o homem.


161. É chamado de santo aquele que é puro de todo mal e de todas as faltas. Não haver nenhum mal no homem é de fato um alto grau de virtude, que agrada a Deus.


162. O nome designa o ser dentre todo os demais. Seria inconcebível que Deus, sendo um só, tivesse outro nome. Pois o nome de Deus significa: “Aquele que não teve começo e que a tudo fez para o homem”.


163. Se você tem más ações na consciência, expulse-as da alma, à espera do bem. Pois Deus é justo e ama o homem.


164. O homem conhece a Deus e é conhecido por Deus na medida em que se esforça para jamais separar-se dele. E o homem não se separa de Deus quando é bom e domina todo prazer, não por falta de recursos, mas por vontade e temperança.


165. Faça o bem a quem lhe fez o mal, e você terá a afeição de Deus. Não acuse seu inimigo diante de ninguém. Pratique a caridade, a reserva, a temperança, e as virtudes análogas. Pois nisto consiste o conhecimento de Deus: seguir seu exemplo, pela humildade e as virtudes desta ordem. Porém estas obras não estão ao alcance de qualquer um, mas apenas das almas dotadas de inteligência.


166. Por causa daqueles que, em sua impiedade, ousam dizer que existe uma alma nas plantas naturais e nas cultivadas, eu escrevo este capítulo endereçado aos mais simples. As plantas tem vida física, mas não alma. O homem é chamado de animal dotado de razão, porque ele possui o intelecto que é capaz de receber a ciência. Quanto aos outros animais, que vivem sobre a terra e nos ares, eles são dotados de voz, porque eles possuem um espírito e uma alma. Todos os seres que crescem e declinam são seres vivos, a partir do momento em que vivem e crescem, mas nem todos possuem alma. Existem quatro espécies dentre os seres vivos. Uns são imortais e possuem alma, como os anjos; outros possuem um intelecto, uma alma e um espírito, como os homens; outros possuem um espírito e uma alma, como os animais. E outros possuem apenas a vida, como as plantas. Nestas, a vida se organiza sem alma, nem espírito, nem intelecto, nem imortalidade. Mas as demais espécies não poderiam existir sem a vida. Por outro lado, toda alma, e inclusive toda alma humana, está em permanente movimento de um lugar para outro.

167. Quando a idéia de um prazer se apoderar da sua imaginação, vigie para não se deixar invadir por ela. Apresse-se a se lembrar da morte e observe o quanto será melhor para você saber que superou mais esta perdição do prazer.


168. Assim como a paixão é inerente ao nascimento – pois tudo o que vem à vida está destinado à corrupção – também o mal é inerente à paixão. Portanto, não diga que Deus não pode extirpar o mal: os que dizem isto não passam de insensatos e tolos. Pois seria preciso que Deus suprimisse a própria matéria, porque as paixões são feitas de matéria. Deus suprimiu o mal entre os homens dando-lhes o intelecto, a ciência, o conhecimento, o discernimento do bem, a fim de que, sabendo o quanto o mal nos é nocivo, possamos dele fugir. Mas se o homem se separa de seu intelecto, então ele passa a seguir o mal e a nele se glorificar, como se estivesse lutando apanhado numa rede, incapaz de levantar a cabeça, e de ver e conhecer a Deus, que criou todas as coisas para a salvação e a deificação do homem.


169. Os seres mortais se recusam a conhecer antecipadamente sua morte. A imortalidade é dada à alma santa pelo bem que ela traz em si. Mas a alma insensata e infeliz encontra a morte por abrigar em si o mal.


170. Quando você se recolhe à sua cela dando graças, relembrando as benesses de Deus e de toda sua Providência, você se regozija por estar cheio de bons pensamentos, e o sono do seu corpo é a vigilância da sua alma.  Fechar os olhos é uma verdadeira visão de Deus. E o seu silêncio, que é a gestação do bem, fazendo-o ouvir o louvor que você ergue a ele, dá glórias ao Senhor do universo. De fato, quando o homem se separa do mal, sua simples ação de graças agrada mais a Deus do que todos os sacrifícios preciosos. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.









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