Filocalia Tomo I Volume 2: Hesíquio de Bathos


HESÍQUIO DE BATOS

CAPÍTULOS SOBRE A SOBRIEDADE E A VIGILÂNCIA



 
Hesíquio de Batos


Nosso santo Padre Hesíquio de Batos, sacerdote da Igreja de Jerusalém, viveu sob Teodósio do Jovem, prodigou seu ensinamento e faleceu em 333. De seus numerosos escritos, só inserimos aqui o tratado, dividido em 203 capítulos, sobre a nepsis sobre a atenção do intelecto e sobre a guarda do coração. Um tratado de grande proveito, inclusive para os noviços. Eis o que diz dele Photius:


“O vigésimo segundo capítulo de Hesíquio, sacerdote de Jerusalém, contém em si todo o tema do livro, um livro muito útil para aqueles que levam a vida na ascese em vista da herança dos céus. Tudo aí é exposto com grande clareza. De resto, ele está composto de tal maneira que pode convir tanto aos homens que não estão voltados para combate exigido pela razão, como para aqueles que claramente optaram pelo sofrimento e as penas e que se esforçam para trabalhar a ascese.”


 
Para Nicodemo o Hagiorita, assim como para a Patrologia de Migne, o autor das duas centúrias “sobre a vigilância e a virtude” seria Hesíquio de Jerusalém, que viveu no século V. Ora, em vista do título de certos manuscritos e diante das influências manifestas dos Padres do século VII, tais como João Clímaco e Máximo o Confessor, admite-se hoje em dia que o homem que escreveu  estes capítulos, provavelmente entre os séculos VII e VIII, foi um monge – sem dúvida um higoumeno, um abade – do mosteiro da Sarça Ardente no Sinai. Daí provém seu nome Hesíquio o Sinaíta, ou Hesíquio de Batos, palavra grega que significa “sarça”.


De resto, estamos aqui menos diante do testemunho de um homem do que diante do ensinamento de uma escola monástica, indubitavelmente a do Sinai, escola-mãe dos mosteiros cenobíticos, que aliava o conhecimento do deserto à experiência da comunidade. Não bastava mais ao monge dedicar-se às virtudes do deserto – a renúncia, a solidão, o silêncio –, era preciso viver estas virtudes junto com os outros, diante deles, portanto enraizando-as em pleno coração, como o nome e a graça de Jesus implantados no próprio lugar em que foi dada a Lei. Esta é a origem e o alcance de tal ensinamento.


A obra é exemplar: de uma simplicidade transparente. Toda a Filocalia é como que recolhida na cripta da purificação do coração. A ascese do corpo se afina em ascese do intelecto. Tornar monge o homem exterior é, no limite, coisa fácil, coisa da lei, assumida pela natureza ou pela instituição. Mas tornar duravelmente monge o homem interior implica um estado de graça e de confiança, o apelo contínuo a Deus e, antes de tudo, o exercício da real humildade: amplificar em tudo as virtudes do outro e considerar a si mesmo como terra e cinzas. As finalidades (a beleza, o arrebatamento) são indicadas sem mais. Elas estão implícitas, mas estão como que fora do campo que pode ser trabalhado. Tudo é concentrado na “guarda do intelecto” às “portas do coração”.


Os capítulos de Hesíquio vão ilustrar, como facetas correspondentes, um “método espiritual” de purificação, fundamental na Filocalia. Neles acham-se claramente descritos os três modos da ascese – a nepsis, a hesíquia e a oração de Jesus – perfeitamente distintos e perfeitamente solidários, porque engendram-se mutuamente, sendo que nenhum é possível, concebível ou praticável sem os outros. Nenhuma técnica, mas uma lei espiritual que faz corpo com a graça do nome de Jesus. Eis como:


1) A nepsis – aqui traduzida como vigilância, mas que também significa sobriedade – é a virtude crucial da inteligência que não apenas evita toda sobrecarga, mas volta-se sobre si mesma (é o arrependimento, a metanoia) para se tornar nada mais que a total atenção à pureza do coração e chegar à transparência original e última, este novo Éden de onde o olho exercitado poderá ver daí em diante vindo de longe os começos da queda. São refutados, sufocados no ovo e rejeitados todos os pensamentos que o intelecto ativado pelos rudimentos do mundo destila.


2) A nepsis do intelecto conduz à hesíquia do coração, este repouso tranqüilo, este silêncio, o sinal em nós do estado divino que precede e segue a criação. Caminho de salvação impossível aos homens, mas possível a Deus. Daí a única coisa necessária:


3) Na hesíquia do coração vem subir e descer a prece de Jesus, o Kyrie eleison, “Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim”. O intelecto, partido por ser privado do sustentáculo natural – e do derivativo – dos pensamentos, se transforma em invocação, “respira Cristo”, faz girar no “espaço do coração” o nome de Jesus, envolve o corpo, envolve o universo pelo nome d'Aquele que criou o mundo e o salva. O giro cósmico é aqui abarcado por outra rotação, interior, invisível, envolvente: o próprio amor.


A obra de Hesíquio é assim uma apologia da interioridade. Só nascemos no mundo para renascermos no coração, para fazermos “de cada dia, de cada hora, no mistério e na alegria, uma festa do coração”. Através do mundo se abre para cada um desde a origem a via real da ascese filocálica, mas também a porta estreita: “ser monge no coração”.




DE HESÍQUIO, SACERDOTE, A TEÓDULO



DISCURSO, EM FORMA DE CAPÍTULOS, SOBRE A SOBRIEDADE, A VIGILÂNCIA E A VIRTUDE PARA O BEM DA ALMA E SUA SALVAÇÃO

PRINCÍPIO E FUNDAMENTO VERDADEIRO DA ILUMINAÇÃO DA ALMA

A REFUTAÇÃO E A PRECE



 
1. A nepsis, sobriedade e vigilância, constitui um método espiritual que, com a ajuda de Deus, liberta inteiramente o homem dos pensamentos e das palavras apaixonadas e também das más ações, se for praticada por um bom tempo e arduamente. Ela fornece também, na medida do possível, um conhecimento seguro de Deus o Incompreensível, e abre os mistérios divinos e ocultos. Ela conduz ao cumprimento de todos os mandamentos de Deus, do Antigo e do Novo Testamento, e propicia todos os bens do século futuro. Ela consiste propriamente na pureza do coração, a qual, por causa de sua grandeza e de sua beleza (ou mais exatamente devido à nossa negligência), é tão rara entre os monges hoje em dia. É ela que Cristo beatificou quando disse: “Bem-aventurados os puros de coração, pois eles verão a Deus[1]”. Tal é a sua eminência. Ela se adquire a um alto preço. Praticada longamente, ela se torna um guia que nos conduz à via direita e que agrada a Deus. Ademais, ela nos permite acessar a contemplação, nos ensina a por em movimento como convém as três partes da alma e a vigiar com segurança nossos sentidos. E ela aumenta a cada dia as quatro virtudes cardinais fazendo-as participar de sua ação.


2. Moisés, o grande Legislador, ou melhor, o Espírito Santo, querendo nos mostrar o quanto esta virtude é excelente, pura, universal e nos eleva, e querendo nos ensinar como colocá-la em movimento inicialmente para a seguir levá-la à perfeição, disse: “Vigie a si mesmo, para que uma palavra secreta não se torne um pecado em seu coração[2]”. Ele denomina palavra secreta a aparição de um único pensamento que possa refletir qualquer má ação que desagrade a Deus, justamente esta palavra que o diabo insinua em nosso coração e que os Padres chamam de sugestão. Nossos próprios pensamentos a seguem, uma vez que ela entre o campo do intelecto, e se carregam de paixão ao dialogar com ela.


3. A vigilância e a sobriedade constituem o caminho de todas as virtudes e de todos os mandamentos de Deus. A nepsis também é chamada de hesíquia do coração e, levada à perfeição, quando não mais é afetada por nenhuma imagem, torna-se a própria guarda do intelecto.

4. O cego de nascença não vê a luz do sol. Também aquele que não caminha na sobriedade e na vigilância não vê em toda sua riqueza as cintilações da graça do alto. Ele tampouco se livrará das ações, palavras e pensamentos maus e desagradáveis a Deus. Estes homens, ao deixar esta vida, não passarão impunemente diante dos príncipes do inferno.


5. A atenção é uma permanente hesíquia do coração, fora de qualquer pensamento. Sem se esgotar nem interromper-se, a alma respira e invoca sempre Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, e nada além dele. Ela se alinha a ele para combater validamente os inimigos. Ela Lhe confessa seus pecados, a ele, o único que tem poder para perdoá-los. Com sua invocação, ela abraça continuamente Cristo que conhece os segredos dos corações. E ela se esforça por esconder totalmente dos homens a doçura que experimenta neste combate interior, para que o maligno não faça penetrar nela a malícia contra sua vontade e não destrua uma obra tão bela.


6. A nepsis, sobriedade e vigilância, é a concentração perseverante de um pensamento de sentinela à porta do coração. Este pensamento capta os pensamentos que sobrevêm, os observa, escuta o que eles dizem, o que fazem esses assassinos, e as formas que os demônios gravaram sobre eles e ergueram como uma estela, buscando enganar o intelecto por meio da imaginação. Este trabalho, se nos dedicarmos a ele, nos dará, se o quisermos, a experiência do combate espiritual que o intelecto deve manter ciosamente.


7. O duplo temor[3], os abandonos nos quais Deus nos deixa e as tentações que sobrevêm para nos instruir, sabem engendrar a nepsis, como uma firme continuidade da atenção na razão do homem que se esforça para obstruir a fonte dos pensamentos e das más ações. É para nos permitir adquirir a sobriedade e a vigilância, e corrigir nossas vidas, que Deus nos deixa no abandono e nos envia tentações imprevistas, sobretudo àqueles dentre nós que já provaram o repouso deste bem e o negligenciaram. A continuidade gera o hábito. Este dá à nepsis uma certa densidade natural. E esta densidade engendra pacificamente a contemplação durante o combate, que recebe assim a incessante prece de Jesus, a doce serenidade do intelecto fora de qualquer imaginação, e o estado de calma suscitado por Jesus.


8. A reflexão que se imobiliza, que invoca a Cristo contra os adversários e que se refugia junto a ele, é como um animal selvagem cercado por cãs e que resiste como uma fortaleza. Ela prevê de longe no intelecto as emboscadas inteligíveis dos inimigos invisíveis. E como ela não cessa de invocar contra eles a Jesus dispensador da paz, ela permanece invulnerável.


9. Se você possui a experiência e se lhe foi dado estar desde a manhã diante de Deus na vigília[4], mas também em contemplação, você sabe o que quero dizer. Senão, seja sóbrio e vigilante – seja néptico – e você compreenderá.


10. Os mares são feitos de quantidades de água. O que faz e alimenta a nepsis, a moderação, a profunda hesíquia da alma, este abismo de contemplações extraordinárias e inefáveis, de humildade consciente, de retidão e de amor, é uma extrema atenção e a prece de Jesus Cristo, sem pensamentos. Tudo isto com fervor e continuidade, jamais cedendo ao desencorajamento.


11. Cristo disse: “Não é aquele que diz: 'Senhor, Senhor”, que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai[5]”. Ora, a vontade de seu Pai é esta: “Vocês que amam ao Senhor, odeiem o mal[6]”. Pela oração de Jesus Cristo, detestemos também os maus pensamentos. Assim, teremos feito a vontade de Deus.


12. Nosso Mestre e Deus encarnado nos deu um modelo[7] de toda virtude, um exemplo para a raça dos homens e nos fez retornar da queda primeira, carregando diretamente em sua carne o próprio significado da vida virtuosa. Ele nos revelou todas as suas boas obras, e foi com elas que eles se dirigiu ao deserto depois do batismo, começando lá, pelo jejum, o combate do intelecto, quando o diabo se aproximou dele como de um simples homem[8]. Pelo modo como o venceu, o Mestre nos ensinou, a nós também, os inúteis, como sustentar a luta contra os espíritos o mal: com a humildade, o jejum, a prece[9], a sobriedade e a vigilância. Mas ele próprio não tinha nenhuma necessidade,  disto, por ser Deus e Deus dos deuses.


13. Quanto às diferentes maneiras pelas quais, segundo penso, podemos purificar aos poucos o intelecto dos pensamentos passionais enquanto durarem a sobriedade e a vigilância, não tardarei mais em expressá-los numa linguagem sem refinamentos nem floreios. Pois não achei conveniente, neste tratado, ocultar nas palavras aquilo que pode ser útil  quando o combate vier, e especialmente aos mais simples. Pois foi dito: “Meu irmão Timóteo, fique atento ao que você lê[10]”.


14. Um primeiro modo da sobriedade e da vigilância consiste em vigiar estreitamente a imaginação, ou a sugestão, porque Satanás não pode, sem a imaginação, suscitar pensamentos e os expor ao intelecto para enganá-lo com suas mentiras.


15. Outro modo consiste em manter sempre o coração num profundo silêncio, em estado de hesíquia, fora de qualquer pensamento, e em oração.


16.  Um outro consiste em pedir continuamente a ajuda do Senhor Jesus Cristo, com toda a humildade.


17. Um outro ainda é ter na alma a lembrança constante da morte.


18. Todas estas ações, bem-amado, afastam como guardiões da porta os maus pensamentos. Quanto a olhar para o céu e considerar a terra como nada, eu explicarei mais longamente adiante, se Deus quiser, no que esta ação é igualmente eficaz.


19. Se afastarmos pouco as causas das paixões, e nos dedicarmos às contemplações espirituais sem lhes dedicar todo nosso tempo e sem fazer delas nosso próprio trabalho, com facilidade recairemos nas paixões da carne. Não colheremos então outro fruto do que o entenebrecimento do intelecto e uma perdição em meios às coisas materiais.


20. Quem sustenta o combate interior deve ter a cada instante estas quatro coisas: a humildade, uma atenção extrema, a refutação e a prece. A humildade, porque o combate se opõe aos demônios orgulhosos, e para ter a ajuda de Cristo ao alcance do coração, pois “o Senhor detesta os orgulhosos[11]”. A atenção, a fim de manter sempre o coração puro de todo pensamento, mesmo que este pareça ser bom. A refutação, a fim de contestar o maligno imediatamente com cólera, assim que ele surgir chegando. Foi dito: “Eu responderei aos que me ultrajam: Não está minha alma submetida a Deus?[12]” Enfim, a oração, a fim de chamar por Cristo com “gemidos inefáveis[13]”, logo após a refutação. Então aquele que combate verá o inimigo se dissipar ante a aparição de sua imagem, como a poeria ao vento ou a fumaça que evanesce, expulso pelo nome adorável de Jesus.


21. Aquele cuja prece não é pura de pensamentos não tem armas para o combate. Falo da prece que age infatigavelmente nas profundezas inacessíveis da alma a fim de que, pela invocação de Cristo, o adversário que nos combate em segredo seja fustigado e queimado.


22. Você deve observar com o olhar penetrante e intenso do intelecto aqueles que entram. Quando você os reconhecer, você deve imediatamente cortar a cabeça da serpente pela refutação. Ao mesmo tempo, chame a Cristo com gemidos. Então você terá a experiência do socorro invisível de Deus, e verá claramente a retidão do coração.


23. Assim como alguém que tem um espelho em mãos e o mira em meio a outras pessoas vê seu próprio rosto e também os de todos os que se inclinam para o mesmo espelho, também aquele que não cessa de se inclinar sobre seu coração vê nele seu próprio estado, mas também enxerga os rostos negros do Etíopes inteligíveis.


24. Mas o intelecto não consegue vencer sozinho a imaginação demoníaca. Que ele não tenha esta audácia! Pois, astuciosos como são, os demônios fingem ser vencidos, depois o farão estrebuchar pela vanglória. Mas diante da invocação de Jesus Cristo eles não resistem, não conseguem se manter nem enganar, ainda que por um instante.


25. Vigie para não pensar como a velha Israel, para não ser também atirado aos inimigos inteligíveis. Libertado dos Egípcios pelo Deus do universo, ela imaginou que um ídolo fundido poderia socorrê-la[14].


26. Como ídolo fundido você deve entender o intelecto enfermo. Enquanto  invocar a Jesus Cristo contra os espíritos do mal, o intelecto os expulsará facilmente e, com arte confirmada, porá em fuga as potências invisíveis e hostis do inimigo. Mas se ele depositar tolamente toda sua confiança em si mesmo, mergulhará para baixo como ave de rapina de asas rápidas. Foi dito: “Meu coração esperou em Deus; eu fui socorrido e minha carne refloresceu[15]”. E quem, senão o Senhor, me perdoará e se colocará ao meu lado para combater os inumeráveis maus pensamentos[16]? Quem coloca sua confiança em si mesmo e não em Deus cairá vertiginosamente.


27. E você, se quiser lutar, tome sempre como exemplo a aranha, pois este pequeno animal é a imagem e a ordem da hesíquia do coração. Senão, você ainda não se encontrará num estado conveniente de hesíquia em seu intelecto. A aranha caça pequenas moscas. E você, se estiver em estado de hesíquia e como ela penar em sua alma, não cessará jamais de exterminar as crias da Babilônia. Por esta imolação o Espírito Santo o denominará bem-aventurado pela boca de Davi[17].


28. Como é impossível que o Mar Vermelho apareça no firmamento em meio às estrelas, e como não é possível a um homem que caminha sobre a terra deixar de respirar seus ares, também é impossível purificar nosso coração dos pensamentos passionais e dele expulsar os inimigos inteligíveis sem a invocação contínua de Jesus Cristo.


29. Se, humildemente, lembrando-se da morte, condenando a si mesmo, refutando o diabo e invocando a Jesus Cristo, você passar todo o seu tempo dentro do seu coração, e se, revestido com esta armadura, você caminhar sobriamente cada dia da sua vida sobre a via estreita e segura, mas alegre e doce da reflexão, você alcançará as santas contemplações dos santos mistérios, e Cristo iluminará suas profundezas, ele que traz “os tesouros ocultos da sabedoria e do conhecimento[18]” e “em quem habita corporalmente a plenitude da Divindade[19]”. Pois Jesus lhe permitirá sentir que ele estabeleceu o Espírito Santo sobre a sua alma, ele que ilumina o intelecto do homem para que este veja, com os olhos descobertos. Está escrito: “Ninguém diz: ‘Senhor Jesus’ se não for no Espírito Santo[20]”, ou seja, quando ele descobre misticamente, com toda certeza, Aquele a quem procura.


30. Aqueles que gostam de se instruir devem também saber o seguinte: de tempos em tempos os demônios ciumentos escondem e afastam para longe de nós o combate inteligível. Pois estes seres malvados invejam o benefício que extraímos do combate, uma vez que este nos permite adquirir conhecimento e nos aproximar de Deus. Então eles se aproveitam de nosso descuido para se apoderar bruscamente de nosso intelecto, e conseguem levar alguns a negligenciar novamente a reflexão. Seu combate tem sempre um único objetivo: impedir nosso coração de estar atento, pois eles sabem o quanto isto o enriquece. Portanto nós, com a ajuda da lembrança de nosso Senhor Jesus Cristo, inclinemo-nos sempre para as contemplações espirituais, e a guerra se reacenderá em nosso intelecto. Mas façamos tudo isto tomando conselho, por assim dizer, com o próprio Senhor, e com muita humildade.


31. Nós, que vivemos em mosteiros, devemos, com efeito, com boa vontade e coração fervoroso, suprimir toda vontade diante do superior. Com a ajuda de Deus, nos tornaremos dóceis, também nós, e sem vontade própria. Esta é a arte que nos convém, a fim de não sermos perturbados pela cólera e não excitarmos nosso ardor irracionalmente e contra a natureza, ou não teremos mais a liberdade para sustentar o combate invisível. Com efeito, nossa vontade, se não a suprimimos de bom grado, tem o costume de se irritar contra aqueles que tentam quebrá-la contra nossa vontade. Furioso, excitado pelo mal, o ardor perde a seguir o conhecimento do combate, este conhecimento que adquirimos com tanto sofrimento. Pois o ardor é, por natureza, destrutivo. Excitado contra os pensamentos demoníacos, ele os arruína e destrói. Mas se, ao contrário, ele troveja contra os homens, ele destrói do mesmo modo os bons pensamentos que existem em nós. Vemos assim que o ardor destrói todos os tipos de pensamentos, tanto bons quanto ruins, quando os encontra. Pois ele nos foi dado por Deus como uma armadura e um arco, com a condição de não atirar nas duas direções. Se o fizer, ele conduzirá à ruína, como um cão que, tão arrogante como os lobos, ataca o rebanho das ovelhas.


32. É preciso fugir da familiaridade como do veneno da áspide, e evitar, tanto quanto as serpentes e as áspides[21], os encontros freqüentes. Estas coisas podem levar rapidamente ao esquecimento total do combate interior, e derrubar a alma das alegrias do alto, que provêm da pureza do coração. Pois o maldito esquecimento se opõe à atenção com a água se opõe ao fogo: ele a combate a cada instante com toda sua força. Pois do esquecimento caímos ma negligência, da negligência no desdém, na despreocupação e nas concupiscências deslocadas. E assim andamos para trás, como o cachorro que vomita e volta ao seu vômito[22]. Fujamos, portanto, da familiaridade como de um veneno mortal. Pois o mal trazido pelo esquecimento e as conseqüências que ele encerra podem ser curados por uma guarda rigorosa do intelecto e uma contínua invocação de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois sem ele nada podemos fazer[23].


33. Nem é permitido nem é possível ter amizade com uma serpente e levá-la no colo. Tampouco é possível acalentar o corpo de todas as maneiras, cuidar dele e amá-lo além de seus cuidados e necessidades, e ao mesmo tempo dedicar-se às virtudes celestes. Pois a serpente fere naturalmente aquele que a aquece. E o corpo suja no prazer aquele que prodiga cuidados com ele. Quando ele vacilar, que seja dura e impiedosamente castigado e fustigado, como um escravo fugitivo cheio de vinho doce, que pela flagelação conhece seu Senhor, o qual por sua vez também foi fustigado. Que esta lama perecível, escrava e noturna, não corra atrás dos mercadores de vinho, que ela não ignore a vida incorruptível que a dirige. Não se fie na carne até a morte. Foi dito: “A vontade da carne é inimiga de Deus. Ela não está submetida à lei de Deus. E a carne deseja contra o Espírito. Aqueles que vivem para a carne não podem agradar a Deus. Ora, nós não estamos na carne, mas no Espírito[24]”.


34. A obra da prudência consiste em sempre trazer o ardor ao engajamento no combate interior e na condenação de si. A obra da sabedoria é de levar a razão à sobriedade e à vigilância estritas e contínuas e à contemplação espiritual. A obra da justiça é dirigir o desejo para a virtude e para Deus. A obra da coragem é de governar e conter os cinco sentidos, a fim de que eles não sujem nem nosso homem interior, ou seja, o coração, nem o homem exterior, o corpo.


35. “Sobre Israel seu esplendor[25]”: vale dizer, sobre o intelecto que vê, tanto quanto possível, a beleza da glória do próprio Deus. “E nas nuvens seu poder[26]”: vale dizer, nas almas luminosas que contemplam na manhã Aquele que está à direita do Pai e que as cobre com sua irradiação, como o sol que atravessa com seus raios as nuvens puras e revela ao olhar uma beleza que encanta.


36. Aquele que peca, diz a Escritura, perde uma grande justiça. O intelecto que peca destrói as bebidas e comidas da eternidade de que falamos.

37. Não somos mais fortes do que Sansão, nem mais sábios do que Salomão. Também não possuímos mais conhecimento do que o divino Davi. Tampouco amamos mais a Deus do que Pedro do Corifeu[27]. Portanto, não coloquemos nossa confiança em nós mesmos. Pois a Escritura diz: “Quem coloca sua confiança em si mesmo tombará numa queda vertiginosa”.


38. Aprendamos com Cristo a humildade, com Davi a humilhação, com Pedro a chorar com o que nos acontece. Mas não aprendamos a recusar reconhecer nossa falta, como Sansão, Judas e Salomão o sábio.


39. Pois, com estes poderes, o diabo ronda, qual leão que ruge, buscando a quem devorar[28]. Que jamais cessem, portanto, a constante atenção do coração, a sobriedade e a vigilância – a nepsis – a contestação e a prece de Jesus Cristo nosso Deus. Pois você não encontrará mais em sua vida socorro mais forte fora Jesus. Somente o próprio Senhor, por ser Deus, conhece os truques, as fraudes e as espertezas dos demônios.


40. Assim, que a alma coloque sua confiança em Cristo, que ela o invoque e que não tenha nunca medo. Pois ela não combate só, mas com o Rei terrível, Jesus Cristo, Criador de todos os seres, incorpóreos e corpóreos, ou seja, invisíveis e visíveis.


41. Quanto mais a chuva cai, mais ela molha o solo. Da mesma forma, o santo nome de Cristo enche de alegria e regozijo a terra de nosso coração, quando o chamamos e invocamos frequentemente.


42. É bom que aqueles que não têm experiência saibam igualmente o seguinte: nós temos inimigos incorpóreos, invisíveis, malfeitores, hábeis em fazer o mal, ágeis, rápidos, dedicados ao combate desde os tempos de Adão até nossos dias. E nós, que somos pesados e nos inclinamos para a terra com todo nosso corpo e todo nosso pensamento, não podemos vencê-los de modo algum, se não por uma sobriedade e vigilância contínuas do intelecto e pela invocação de Jesus Cristo, nosso Deus e nosso Criador. Para aqueles que não têm a experiência, que a prece de Jesus seja também um convite a provar e conhecer o bem; e para aqueles que têm a experiência, que ela seja a prática, a pedra de toque e o repouso no bem, a melhor maneira e o melhor mestre.


43. Assim como uma criança, que não tem malícia, sente prazer em ver um ilusionista e o segue em sua inocência, também nossa alma, que é simples e boa tal como foi criada por seu bom Mestre, sente prazer nas sugestões das imagens que o diabo suscita e, enganada, corre para o pior como se fosse para um bem, como a pomba que corre para quem coloca armadilhas para seus filhotes. A alma mistura assim seus pensamentos às imagens suscitadas pela sugestão demoníaca. Se acontece de aparecer o rosto de uma bela mulher, ou outra coisa estritamente proibida pelos mandamentos de Cristo, ela deseja segui-la a fim de captar para si aquilo que viu de belo. Ela chega assim ao consentimento, e não lhe resta mais do que passar ao ato, cometendo em seu corpo  a falta que ela viu em pensamento, para sua própria condenação.


44. Tal é a arte do maligno. É com estas flechas que ele envenena a alma. É por isso que não é prudente, enquanto o intelecto ainda não adquiriu uma grande experiência no combate, deixar entrar os pensamentos em nosso coração, sobretudo no início. Pois no começo, nossa alma fica encantada com as sugestões demoníacas e se compraz em segui-las. Mas basta percebê-las e imediatamente afastá-las, assim que elas brotam e atacam. Porém, uma vez que o intelecto passou algum tempo nesta obra admirável, que ele se exercitou, que ele compreendeu e adquiriu o hábito incessante do combate que lhe permite conhecer verdadeiramente os pensamentos, e que, como diz o Profeta, ele aprendeu a capturar facilmente a raposinhas[29], então ele pode deixar os pensamentos entrarem, com conhecimento de causa, e denunciá-los.


45. Assim como é impossível o fogo e a água passarem juntos por um mesmo conduto, também o pecado não pode penetrar no coração sem antes bater à sua porta servindo-se de uma imagem má projetada pela sugestão.


46. Primeiramente chega a sugestão. Em segundo lugar a ligação, vale dizer, quando nossos pensamentos se misturam aos dos demônios maus. Em terceiro lugar vem o consentimento, examinando o que fazer entre os dois pensamentos que desejam o mal. Em quarto lugar vem o ato sensível, ou seja, o pecado. Porém, se o intelecto estiver atento, sóbrio e vigilante, e se, pela contestação e a invocação do Senhor Jesus ele põe em fuga a sugestão assim que ela brota, as coisas ficam por aí. Pois o maligno é uma inteligência incorpórea: ele não pode enganar as almas senão pelas imaginações e os pensamentos. Davi fala a respeito da sugestão: “De manhã a matei[30]”, etc.; e o grande Moisés diz do consentimento: “Não pactuarei com eles[31]”.


47. O combate faz com que se atraquem invisivelmente dois intelectos: o do demônio e o nosso. É por isso que é preciso a cada instante chamar desde as profundezas por Cristo[32], porque ele expulsa a inteligência do demônio e nos dá o prêmio da vitória, por seu amor ao homem.


48. Que aquele que segura um espelho e nele coloca seu olhar seja para você uma imagem da hesíquia do coração; você então verá em seu coração, inscritos pela mesma inteligência, o mal e o bem.


49. Vigie sempre para nunca ter em seu coração nenhum pensamento, nem racional, nem irracional, a fim de que lhe seja mais fácil reconhecer os estrangeiros, ou seja, os primogênitos dos Egípcios.


50. Que boa e deliciosa virtude é a nepsis, unindo a sobriedade à vigilância, luminosa e doce, toda bela, resplendente e cheia de encanto. Com que facilidade nos abre seu caminho, Cristo Deus! Assim o intelecto desperto do homem avança com grande humildade. Pois ele estende seus ramos até o mar e o abismo das contemplações, e seus brotos até os rios dos divinos mistérios gozosos[33]. Ela rega o intelecto há tanto tempo queimado de impiedade pelos tormentos dos maus pensamentos dos espíritos e pela hostilidade da carne, ou seja, pela morte


51. A nepsis é semelhante à escada de Jacó sobre a qual está Deus e pela qual sobem os anjos[34]. Pois ela elimina todo mal que está em nós. Ela afasta a tagarelice, a injúria, a maledicência e toda a série de males sensíveis. Ela não suporta ser privada por eles de sua própria doçura, mesmo que seja um pouco só.


52. Busquemo-la, meus irmãos, com todo nosso coração, voemos naquilo que lhe permite ver o puro reflexo de nosso intelecto em Jesus Cristo. Dirijamos nosso olhar para nossos pecados e nossa vida anterior, a fim de que, contritos e humilhados pela lembrança de nossos pecados, possamos receber neste combate invisível o socorro incessante de Jesus Cristo nosso Deus. Pois, privados do socorro de Jesus pelo orgulho, a vanglória e o amor próprio, perdemos a pureza de coração por meio da qual Deus se deu a conhecer ao homem. Segundo a promessa, de fato, a causa do conhecimento é a pureza[35].


53. Além das benesses que recebe do trabalho contínuo da guarda do coração, o intelecto que não negligencia sua obra secreta verá igualmente os cinco sentidos do corpo desembaraçados dos males exteriores. Pois aquele que se aplica totalmente à virtude interior, à sobriedade e à vigilância, e que deseja se dedicar às delícias dos belos pensamentos, não suporta ser roubado pelos cinco sentidos, quando lhe chegam pensamentos materiais e vãos. Mas, sabendo bem como eles são enganosos, ele os reprime fortemente dentro de si.

54[36]. Permaneça na reflexão do intelecto e você não terá que penar nas tentações. Mas se você se afastar, agüente o que vier.


55. Assim como o absinto amargo faz bem aos que tem pouco apetite, também é bom, para os que se comportam mal, sofrer o mal.


56. Se você não quiser sofrer o mal, recuse-se a fazer o mal. Pois uma coisa se segue à outra inevitavelmente. Cada qual colherá aquilo que semeou[37]. Quando semeamos voluntariamente o mal e o colhemos contra nossa vontade, devemos nos admirar da justiça de Deus.


57. O intelecto é cegado por estas três paixões, o amor ao dinheiro, a vanglória e o prazer.


58. O conhecimento e a fé, estes dois companheiros da nossa natureza, não são  empanados por outra coisa do que estas três paixões.


59. Por causa delas, o furor, a cólera, a guerra, os assassinatos e toda a série dos outros males têm predominado gravemente entre os homens.


60. Quem não conhece a verdade não pode crer verdadeiramente, pois o conhecimento precede naturalmente a fé. O que é dito nas Escrituras não é dito apenas para que o compreendamos, mas para que o coloquemos em prática.


61. Ponhamo-nos, portanto, a trabalhar. Assim progredindo constantemente, encontraremos a esperança em Deus, a lei firme, o conhecimento interior, a libertação das tentações, o sentido dos carismas, a confissão do coração e as lágrimas abundantes chegarão aos fiéis através da prece. E não apenas isto, mas também a paciência nas tribulações, o perdão sincero concedido ao próximo, o conhecimento da lei espiritual, a descoberta da justiça de Deus, a vinda do Espírito Santo, o dom dos tesouros espirituais e tudo o mais que Deus prometeu aos homens fiéis daqui de baixo e também no século futuro, em uma palavra, a revelação da alma à imagem de Deus – tudo isto é impossível se não for pela graça de Deus e pela fé do homem que, com muita humildade e uma oração constante, persevera na reflexão do intelecto.


62. Recebemos da experiência um bem verdadeiramente grande: aquele que quer purificar seu coração deve invocar continuamente o senhor Jesus contra os inimigos inteligíveis. E veja como o termo ‘experiência’ concorda com os testemunhos da Escritura. Ela diz: “Prepare-se, Israel, para invocar o nome do Senhor seu Deus[38]”. E o Apóstolo: “Orai sem cessar[39]”. E nosso Senhor diz: “Vocês nada podem sem mim. Quem permanece em mim, e eu nele, este dará muitos frutos.” E também: “Se ele não permanecer em mim, será atirado fora como o ramo seco da vinha[40]”. A prece é um grande bem, e ela contém todos os outros bens, pois ela purifica o coração no qual Deus se faz ver aos fiéis.


63. Como o bem da humildade nos eleva por natureza, e porque ele é amado por Deus, destruindo quase tudo o que é mau e desagrada a Deus, ele é naturalmente difícil de adquirir. Podemos facilmente encontrar em um homem os brotos parciais de muitas virtudes, mas se procurarmos nele o perfume da humildade, dificilmente encontraremos. É por isso que é preciso muita atenção para adquirir este bem. A Escritura diz que o diabo é impuro. Pois desde a origem ele repugnou a humildade e amou o orgulho; assim, em todas as Escrituras ele é chamado de espírito impuro[41]. Mas que impureza corporal poderia cometer um espírito totalmente sem corpo, sem carne, sem lugar definido, para que seja chamado de impuro? É claro que ele é chamado de impuro por causa de seu orgulho e que, de anjo luminoso que era, sujou-se manifestamente. Todo homem que eleva a si mesmo em seu coração é impuro diante do Senhor[42]. Com efeito, foi dito: “O primeiro pecado é o orgulho[43]”. Assim falava o Faraó orgulhoso: “Eu não conheço seu Deus e não deixarei que parta Israel[44]”.


64. Entretanto, se não negligenciarmos nossa salvação, existem muitas operações do intelecto capazes de nos fornecer o dom precioso da humildade: por exemplo, a lembrança dos pecados cometidos em palavras, atos e pensamentos, recolhidos pela contemplação, concorrem para a humildade. Também isto engendra uma humildade verdadeira: repassar a cada dia em nosso intelecto as boas obras de nossos próximos, magnificar diante de nós mesmos suas vantagens naturais e compará-las com as nossas Vendo assim o intelecto sua própria mediocridade e o quanto está distante da perfeição dos irmãos, o homem considera a si mesmo como terra e cinzas[45], não um homem mas um cão, o último dos últimos de todos os homens racionais sobre a terra, e muito distante deles.


65. A boca de Cristo, a coluna da Igreja, nosso Pai Basílio o Grande, disse: “Para não pecar, nem cair no dia seguinte nas mesmas faltas, é bom, ao final de cada dia, interrogar a nós mesmo em nossa consciência sobre nossa conduta, sobre o mal que cometemos e o bem que fizemos[46]”. É o que Jacó fazia para si e seus filhos[47]. O exame cotidiano da consciência esclarece de fato o dever de cada hora.


66. Outro dentre os sábios que conhecem as coisas de Deus disse também: “O começo do fruto é a flor e o começo da ascese é a temperança[48]”. Sejamos, portanto, moderados, com critério e ponderação, como os Padres nos ensinaram. Passemos as doze horas do dia vigiando o intelecto. Se agirmos assim, poderemos, com a graça de Deus e nos impondo alguma violência, reduzir e extinguir o mal. Pois esta violência forçará à conduta virtuosa por meio da qual nos é dado o Reino dos céus[49].


67[50]. O caminho que leva ao conhecimento é a impassibilidade e a humildade, sem as quais ninguém verá o Senhor.


68. Aquele que está permanentemente ocupado com seu mundo interior não apenas é casto, como contempla, é um teólogo e ora. É o que diz o Apóstolo: “Caminhem no Espírito, e vocês não cumprirão os desejos da carne[51]”.


69. Aquele que não sabe caminhar sobre a via espiritual não se preocupa com os pensamentos passionais: ele só se ocupa da carne. Ou ele se abandona à gulodice e ao deboche, ou fica triste, ou se encoleriza e guarda rancor. Com isso ele entenebrece o intelecto. Ou então ele se atira a uma ascese sem medida e perturba a reflexão.


70. Quem renunciou a coisas tais como possuir uma mulher, riquezas e tudo mais, fez monge seu homem exterior, mas não ainda o interior. Mas quem renunciou aos pensamentos passionais do homem interior – ou seja, do intelecto – é um verdadeiro monge. É fácil tornar-se monge exteriormente, quando se quer. Mas não é um pequeno combate tornar monge o homem interior.


71. Mas quem, nesta geração, está totalmente liberto dos pensamentos passionais e se tornou digno de ter em si continuamente a oração pura e imaterial? Ora, este é o sinal do monge interior.


72. Numerosas paixões se escondem em nossas almas. Nós só as denunciamos realmente quando aparecem as suas causas.


73. Não se ocupe apenas com sua carne. Mas dedique-lhe uma ascese na medida do seu possível, e volte todo o seu intelecto para o interior. “Pois o exercício corporal tem pouca utilidade, enquanto a piedade é útil a tudo[52]”.


74. O orgulho chega quando as paixões deixam de se levantar, seja porque suas causas foram afastadas, seja porque os demônios insidiosamente fingiram se retirar.


75. A humildade e a vida dura libertam o homem de todos os pecados. Uma afasta as paixões da alma, a outra as do corpo. É por isso que o Senhor disse: “Bem-aventurados os corações puros, porque eles verão a Deus[53]”, ele e os tesouros que estão nele, quando eles forem purificados pelo amor e a temperança, e eles o verão na mesma medida em que tiverem cultivado e feito crescer em si a purificação.


76. O lugar de onde se podem observar tudo o que diz respeito à virtude é a guarda do intelecto. Assim outrora a sentinela de Davi significava antes de tudo a circuncisão do coração[54].


77. Assim como morremos em nossos sentidos quando observamos algo que nos é nocivo, também morremos em nossa inteligência.


78. Quem fere o coração de uma planta seca-a por inteiro. Observe que o mesmo acontece com o coração do homem. É neste instante que é mais necessário vigiar, pois os ladrões não repousam jamais.


79[55]. Querendo mostrar que todo mandamento obriga, mas que a filiação adotiva foi dada aos homens pelo seu próprio sangue, o Senhor disse: “Quando vocês tiverem feito o que foi prescrito, digam: Somos servidores inúteis, pois fizemos o que devíamos fazer[56]”. É por isso que o Reino dos céus não é o salário das obras, mas uma graça do Mestre preparada para os servidores fiéis. O escravo não reclama a liberdade como um salário, mas o recebe como uma graça, e testemunha seu reconhecimento porque é devedor.

80. Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras[57], e concedeu o dom da liberdade àqueles que o servem bem. Com efeito, ele disse: “Servidor bom e fiel, você foi fiel nas pequenas coisas e eu o estabelecerei sobre muitas. Participe da alegria do seu Senhor.[58]” Aquele que se apóia sobre o simples conhecimento não é ainda um servidor fiel; o servidor fiel é aquele que, pela obediência, se entrega ao Cristo que ordena.


81. Aquele que honra o Mestre faz o que ele lhe ordena. Mas se cair ou desobedecer, deve agüentar as conseqüências de seus atos. Se você ama aprender, goste também do sofrimento. Pois o simples conhecimento infla o homem[59].


82. As provações que nos chegam sem que as esperemos nos ensinam providencialmente a amar o sofrimento voluntariamente.


83. É próprio da estrela a luz com a qual ela se envolve. É próprio do homem que venera e teme a Deus a simplicidade e a humildade. Pois não há outro sinal que dê a conhecer os discípulos de Cristo do que um sentimento humilde e um exterior simples. É isto que não cessam de proclamar os quatro Evangelhos. Quem não vive assim, ou seja, humildemente, perde a parte d'Aquele que humilhou a si mesmo até a cruz e a morte[60], ele que deu e pôs em prática a lei dos divinos Evangelhos.


84. Ele disse: “Vocês que têm sede, venham até a água[61]”. Vocês que têm sede de Deus, venham para a pureza da reflexão. Porém aquele que, por meio dela, voa alto, deve também olhar para a terra de sua própria simplicidade. Pois ninguém é mais elevado do que o humilde. Assim como tudo é escuro e tenebroso quando falta a luz, da mesma forma, quando falta a humildade tudo o que nos esforçamos para fazer no sentido de agradar a Deus é vão e fútil.


85. Escute o fim do discurso, seu todo: tema a Deus e guarde seus mandamentos[62] em seu intelecto e nos seus sentidos. Se você violenta seu intelecto para os observar, você terá poucas ocasiões para sofrer nos seus sentidos por sua causa. É o que disse Davi: “Eu quis realizar em meu seio a sua vontade e a sua lei[63]”.


86. Se o homem não cumpriu em seu seio, ou seja, dentro de seu coração, a vontade de Deus e a lei, ele tampouco conseguirá colocar estas coisas em prática no seu exterior. Aquele que não é sóbrio e vigilante, mas indiferente, dirá a Deus: “Eu não quero conhecer os seus caminhos[64]”, e o dirá com toda segurança, porque lhe falta a iluminação divina. Mas aquele que participa da iluminação, por pouco que seja e sem nenhuma incerteza, será sempre capaz de assumir as coisas de Deus.


87. O sal sensível dá sabor ao pão e a todos os alimentos, impede que certas carnes apodreçam e as conserva por muito tempo. Observe que o mesmo acontece com a guarda do intelecto, com a doçura inteligível e a obra maravilhosa. Pois ela cumula de sabor divino tanto o homem interior como o homem exterior, expulsa o odor fétido dos maus pensamentos e nos permite perseverar no bem.


88. Da mesma sugestão nascem numerosos pensamentos, e destes nasce a má ação sensível. Mas aquele que, com Jesus, extingue imediatamente a primeira, escapará aos seguintes e será enriquecido com o doce conhecimento divino por meio do qual encontrará Deus que está presente em toda parte. Mantendo diante de Deus o espelho do intelecto, ele estará continuamente iluminado, à imagem do cristal puro e do sol sensível. Então, tendo alcançado o cume último dos desejos, o intelecto ali repousará de todas as outras contemplações.


89. Todo pensamento penetra no coração pela imagem das coisas sensíveis. Mas quando o intelecto é despojado de todos os pensamentos e das formas que estes lhe impõem, então brilha a bem-aventurada luz da Divindade, se neste momento, graças ao vazio de todos os pensamentos, este esplendor se revelar subitamente ao intelecto puro.


90. Quanto mais profundamente atento você estiver à reflexão do seu intelecto, mais você rezará a Jesus com todo o seu desejo. Ao contrário, quanto mais negligente você for em vigiar a reflexão, mais você se afastará de Jesus. E assim como a atenção ilumina ao extremo o espaço da reflexão, também o abandono da nepsis – a sobriedade e a vigilância – e da doce invocação de Jesus o entenebrecerá inteiramente. Estas coisas são da ordem da natureza, como já dissemos, e não podem ser de outro modo. Você compreenderá isto pela experiência e quando o tiver provado pela ação. Pois a virtude é singularmente esta obra deliciosa que gera a luz, e só pode ser aprendida pela experiência.


91. A invocação contínua de Jesus, quando acompanhada de um desejo cheio de doçura e alegria, permite ao espaço do coração se encher sozinho de alegria e serenidade pela graça da atenção extrema. Mas quem leva até o fim a purificação do coração é Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, que é a origem e o criador de todos os bens. Pois ele disse: “Eu sou o Deus que dá a paz[65]”.


92. A alma cheia de benesses e de doçura por Jesus, responde ao Benfeitor pela ação da graça na exultação e no amor. Ela agradece e chama com alegria Àquele que a pacifica. Ela o vê pelo intelecto dissipar em seu interior as imaginações dos espíritos maus.


93. Davi disse: “O olho do meu intelecto viu meus inimigos inteligíveis. E meu ouvido escutou aqueles que se levantaram contra mim para me fazer mal[66]”. E: “Eu vi em mim o salário que os pecadores receberam de Deus[67]”. Quando não existem mais imaginações no coração, o intelecto encontra-se em seu estado natural, pronto a se voltar para toda contemplação deliciosa, espiritual e amada por Deus.


94. Assim, portanto, como eu lhe disse, a nepsis e a prece de Jesus se fundamentam naturalmente. A atenção extrema fundamenta a prece contínua e, reciprocamente, a prece fundamenta a inteligência na sobriedade, na vigilância e na atenção extrema.


95. Um bom pedagogo do corpo e da alma é a lembrança contante da morte. E, ultrapassando tudo o que, neste ínterim, nos separa dela, vê-la sempre por antecipado, enxergar o próprio leito em que agonizaremos, e todo o resto.

96. Irmãos, não é possível que o sono tome aquele que quer sempre escapar aos ferimentos. Das duas uma: ou bem caímos e perecemos, despojados das virtudes; ou, com o intelecto sempre armado, nos mantemos atentos. Pois nosso inimigo está também sempre em pé com suas tropas armadas para o combate.


97. A lembrança e a invocação contínua de nosso Senhor Jesus Cristo suscitam em nossa inteligência um certo estado divino, se não negligenciarmos nem esta prece constante que dirigimos ao Senhor em nosso intelecto, nem a estrita sobriedade unida à vigilância, nem o trabalho da supervisão. Agarremo-nos à obra da invocação de Jesus Cristo nosso Senhor, esta obra sempre recomeçada, chamando com um coração de fogo, a fim de comungar com o santo nome de Jesus. Pois, pela virtude como pelo vício, a repetição é mãe do hábito, e este, como uma segunda natureza, dirige o resto. Chegando a um tal estado, o intelecto procura os adversários, como um cão de caça busca a lebre nos campos. Mas o cão procura para comer; e o intelecto para destruir.


98. Assim que acontecer de os maus pensamentos se multiplicarem em nós, lancemos em meio deles a invocação de nosso Senhor Jesus Cristo. Nós então os veremos dissipar-se imediatamente como a fumaça no ar, tal como nos ensinou a experiência. E com o intelecto enfim só. Retomemos a atenção contínua e a invocação. Tão logo a tentação nos faça sofrer tais coisas, é assim que devemos agir.


99. Assim como não é possível nos dirigirmos ao combate com o corpo nu, ou nadarmos no mar inteiramente vestidos, ou vivermos sem respirar, também sem nos humilharmos, sem suplicarmos continuamente a Cristo, é impossível aprender o combate espiritual e o segredo do intelecto, é impossível nos tornarmos hábeis na arte de perseguir e afastar o diabo.


100. O grande Davi, que possuía uma profunda experiência na ação, disse ao Senhor: “Eu guardarei para ti a minha força[68]”. Assim, manter em nós a força da hesíquia do coração e do intelecto, da qual nascem todas as demais virtudes, só nos é possível porque o Senhor nos ajuda, ele que deu os mandamentos, que afasta de nós a sujeira do esquecimento quando o chamamos continuamente, este esquecimento que destrói sobretudo a hesíquia do coração, tanto quanto a água extingue o fogo. É por isso, monge, que você não deve adormecer na morte[69] pela negligência, mas fustigar os inimigos com o nome de Jesus. Como disse um sábio: “Que o nome de Jesus cole em sua respiração. Então você conhecerá o socorro da hesíquia[70]”.


101. Quando a nós, os indignos, é permitido aproximar com temor e tremor dos Mistérios divinos e puros de Cristo nosso Deus e nosso Rei, é sobretudo nesta hora que devemos dar provas de sobriedade, de vigilância, de rigor e guardarmos o intelecto, a fim de que o fogo divino, vale dizer, o Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, consuma nosso pecados e nossas sujidades, pequenas e grandes. Pois quando ele penetra em nós, ele imediatamente expulsa do coração os pérfidos espíritos do mal, e perdoa nossos pecados passados. Então o intelecto se livra da perturbação dos maus pensamentos. Se depois de tudo isso guardarmos rigorosamente nosso intelecto e nos mantivermos à porta de nosso coração quando novamente nos for dado nos aproximar dos Mistérios, o Corpo divino iluminará cada vez mais o intelecto, tornando-o semelhante às estrelas.


102. O esquecimento é capaz de extinguir a guarda do intelecto, como a água extingue o fogo. Mas a prece contínua de Jesus, unida à nepsis constante, acaba por expulsá-lo totalmente do coração. Pois a oração tem necessidade da sobriedade e da vigilância, como a mecha precisa da luz da lâmpada.


103. É preciso nos esforçarmos para manter aquilo que nos é precioso. Ora, o que nos é mais precioso, na verdade, é aquilo que nos guarda de todo mal sensível ou inteligível. São: a guarda do intelecto, unida à invocação de Jesus Cristo; observar sempre o fundo do coração; manter a reflexão do intelecto sem cessar em estado de hesíquia a fim de permanecer separado, por assim dizer, até mesmo dos pensamentos que parecem bons; suportar manter-se vazio de pensamentos, para que neles não se escondam os ladrões. E se assim trabalharmos para permanecer em nosso coração, próxima estará a consolação.


104. Pois o coração que é guardado sem relaxamento e que não consente em receber as formas, as imagens e os fantasmas dos espíritos tenebrosos e maus, engendra naturalmente pensamentos luminosos. De fato, assim como o carvão faz nascer a chama, também – e bem mais – Deus, que permanece no coração desde o batismo, ao encontrar o espaço de nossa reflexão puro dos ventos da malícia e preservado pela guarda do intelecto, ilumina nossa faculdade de refletir para abri-lo à contemplação, como a chama ilumina a vela.


105. É necessário que façamos girar sempre no espaço de nosso coração o nome de Jesus Cristo, como o relâmpago sulca o firmamento quando a chuva está prestes a cair. Isto sabem-no muito bem aqueles que tiveram a experiência do intelecto e do combate interior. Portanto, devemos conduzir o combate interior na seguinte ordem: primeiro a atenção; depois, tendo reconhecido o inimigo quando nos atira um pensamento, atacá-lo com cólera em nosso coração, com palavras de maldição; enfim, em terceiro lugar, orar imediatamente para nos opormos a ele, reunindo o coração pela invocação de Jesus Cristo, a fim de que seja dissipada a imagem demoníaca, para que o intelecto não siga o fantasma, como uma criança enganada pelo ilusionista.


106. Esforcemo-nos, como Davi, em gritar “Senhor Jesus Cristo”. Que nossa garganta fique rouca. E que os olhos de nosso intelecto não deixem de esperar no Senhor nosso Deus[71].


107. Se nos lembrarmos constantemente da parábola do juiz iníquo, pela qual o Senhor nos diz que devemos orar continuamente e sem descanso[72], encontraremos nosso ganho e nossa justiça.


108. É impossível que aquele que olha para o sol não tenha seus olhos inundados de luz. Também aquele que se inclina sempre sobre o espaço de seu coração não pode deixar de ser iluminado.


109. Assim como é impossível viver a vida presente sem comer e sem beber, também sem a guarda do intelecto e a pureza do coração – que é o que chamamos de nepsis, a vigilância e a sobriedade – é impossível que a alma alcance seja lá o que for de espiritual e que agrade a Deus, que ela se libere do pecado que ela comete bem pensamento, ainda que nos violentemos para não pecar por medo dos castigos.


110. Porém, aqueles que, violentando-se, se abstêm do pecado em ato, são também bem-aventurados diante de Deus, dos anjos e dos homens, pois eles são os violentos que se apoderam do Reino dos Céus[73].


111. Tal é o admirável socorro que o intelecto recebe da hesíquia: todos os pecados ferem primeiro o intelecto sob a forma simples de pensamentos, que só se tornam pecados sensíveis e consistentes se forem acolhidos pela reflexão. As virtudes da reflexão, da sobriedade e da vigilância afastam todos os pecados e, pela influência e assistência de nosso Senhor Jesus Cristo, não lhes permitem penetrar em nosso interior e se transformar em maus pensamentos.

112. O Antigo Testamento é a imagem da ascese corporal, exterior e sensível. Mas o santo Evangelho – ou o Novo Testamento – é a imagem da atenção, ou seja, da pureza do coração. O Antigo Testamento não tornou perfeito o homem interior, nem lhe deu a plena medida do culto a Deus. É o que disse o Apóstolo: “A lei não tornou ninguém perfeito[74]”. Ela apenas proibia os pecados consistentes. Mas afastar do coração os pensamentos e os desejos maus – que é o mandamento do Evangelho – vale mais para a pureza da alma do que proibir de arrancar o olho ou o dente do próximo. O mesmo acontece com a justiça e a ascese corporais, ou seja, o jejum, a temperança, dormir em leito duro, permanecer em pé, a vigília e todas as demais coisas que afetam naturalmente o corpo e acalmam sua parte passional livrando-o do pecado ativo. Estas coisas também eram consideradas boas no Antigo Testamento. Pois elas educam nosso homem exterior e nos guardam das paixões ativas. Mas esta pedagogia  não nos protege, nem nos interdita pecar em pensamento, de maneira a nos libertar do ciúme, da cólera e de todo o resto, com a ajuda de Deus.


113. Mas se a observarmos como se deve, a pureza do oração, ou seja a vigilância e a guarda do intelecto, cujo signo é o Novo Testamento, afasta do coração todas as paixões e todo mal até a raiz; e coloca em seu lugar a alegria, a confiança, a compunção, o luto, as lágrimas, o conhecimento de nós mesmos e de nossos pecados, a lembrança da morte, a verdadeira humildade, um amor sem limites por Deus e pelos homens e o eros divino do coração.


114. Assim como não é possível caminhar sobre a terra sem cortar o ar, também é impossível que o coração do homem não seja continuamente atacado pelos demônios ou secretamente operado por eles, mesmo se ele se dedicar a uma grande ascese corporal.


115. Se você quiser, no Senhor, ser além de um bom monge na aparência, comedido, sempre unido a Deus, se você o quiser verdadeiramente, busque om todas as suas forças a virtude da atenção, que é a guarda e a supervisão do intelecto, a perfeição do coração obtida pela doce hesíquia, o estado bem-aventurado da alma fora de toda imaginação, coisa que só encontramos em poucos.


116. Isto é o que chamamos de filosofia do Intelecto. Siga seu caminho com muita sobriedade e vigilância, com um zelo ardente e com a prece de Jesus, com humildade e concentração, no silêncio dos lábios sensíveis e inteligíveis, comendo e bebendo moderadamente, e guardando-se de qualquer coisa que possa levar ao pecado. Siga seu caminho, o caminho da reflexão, com ciência e prudência. E a própria reflexão lhe ensinará com a ajuda de Deus aquilo que você não sabe. Ela o ensinará, esclarecerá, explicará e lhe dará a conhecer o que até então sua inteligência não era capaz de conhecer, quando você caminhava na obscuridade das paixões e das obras tenebrosas, quando você estava coberto por um abismo de esquecimento e confusão.


117. Assim como o trigo dá em abundância nos vales, também a virtude da atenção produz em abundância todos os bens no coração. Ou melhor, quem lhe dará estas coisas será nosso Senhor Jesus Cristo, sem quem nós nada podemos fazer[75]. Você encontrará esta virtude primeiramente como uma escada, depois como um livro lido. Progredindo mais, você a descobrirá como a Jerusalém celeste e verá claramente em seu intelecto a Cristo, o Rei dos poderes de Israel, com seu Pai consubstancial e o adorável Espírito Santo.


118. Os demônios nos incitam sempre a pecar pela imaginação enganadora. De fato, foi pela imaginação da avareza e do ganho que eles prepararam o infeliz Judas a entregar o Senhor e Deus do universo. Por um falso conforto material ínfimo, por uma falsa honraria, um falso ganho, uma falsa glória, eles colocaram a corda em seu pescoço[76] e o entregaram à morte eterna. Foi assim que eles o recompensaram, exatamente ao contrário do que haviam prometido, ou seja, da sugestão que lhe haviam feito.


119. Veja como pela imaginação, a mentira e as promessas vãs os inimigos de nossa salvação nos fazem cair. O próprio Satanás foi precipitado das alturas como um raio[77] por ter-se imaginado igual a Deus. Foi igualmente assim que ele separou Adão de Deus, fazendo-o imaginar que ele possuía a dignidade divina[78]. E é assim que o inimigo ardiloso e mentiroso continua a enganar os pecadores[79].


120. Nós enchemos de amargura o coração com o veneno e a malícia dos pensamentos quando, na negligência a que somos levados pelo esquecimento, nos afastamos por demasiado tempo da atenção e da prece de Jesus. Mas somos cumulados da doçura de sentir e experimentar como um encantamento a benfazeja exultação quando, no lugar em que opera a reflexão, alcançamos harmoniosamente, pelo eros divino, a atenção e a prece, com força e fervor. Pois então nós nos apressamos em caminhar na hesíquia do coração, por nada além do que o doce prazer e as delícias com que é preenchida toda a alma.


121. A ciência das ciências e a arte das artes consistem em combater os maus pensamentos. A melhor maneira e a arte de combatê-los consiste em ver no Senhor a imagem que eles nos sugerem e de guardar a reflexão e o intelecto, assim como guardamos os olhos da carne, servindo-nos deles para distinguir o que pode feri-los, afastando deles toda palha, na medida em que o possamos.


122. Assim como a neve jamais poderá gerar a chama, nem a água poderá gerar o fogo, nem o espinheiro poderá dar figos, também o coração do homem não será liberto dos pensamentos, das palavras e das obras demoníacas se não for purificado por dentro, se não tiver unido a sobriedade e a vigilância à prece de Jesus, se não tiver obtido a humildade e a hesíquia da alma, se não tiver buscado e caminhado com muito fervor. Ao contrário, é inevitável que a alma desatenta seja privada dos pensamentos bons e perfeitos, como uma mula estéril que não tem o senso da prudência espiritual[80]. A verdadeira paz espiritual consiste na obra doce, no nome de Jesus e na kénose – a vacuidade, o despojamento de si – dos pensamentos passionais.


123. Quando a alma se entende com o corpo para fazer o mal, juntos eles constroem uma cidadela de vanglória e uma torre para o orgulho[81], aonde vão habitar os pensamentos ímpios. Mas pelo temor à Geena, o Senhor queima e destrói seu acordo, obrigando a alma soberana a falar e pensar de modo diferente do corpo e contrário a ele. Deste temor provém a dissensão, pois o cuidado da carne é inimigo de Deus e não se submete à sua lei[82].


124. É preciso que a cada instante avaliemos nossas obras de todo dia e que as vigiemos, forçando-nos, ao final da tarde, em torná-las o mais leves possível pelo arrependimento, se quisermos, com Cristo, dominar o mal. E devemos examinar se cumprimos com todas as nossas ações sensíveis e aparentes segundo Deus, diante de Deus e por Deus apenas, a fim de que não sejamos roubados pelos sentidos e desprovidos da razão.


125. Se, com a ajuda de Deus e por nossa sobriedade e nossa vigilância, tiramos proveito de cada hora do dia, devemos evitar o ir e vir sem discernimento, bem como nos expor a encontros perigosos que só podem nos prejudicar. É precisa antes desprezar as coisas vãs, para ganharmos a virtude com sua doce e desejável beleza.


126. Devemos colocar para trabalhar as três partes da alma de uma maneira justa, segundo a natureza, tais como foram elas criadas por Deus. Primeiro o ardor, contra nosso homem exterior e Satanás, a serpente. Está escrito: “Levantem-se contra o pecado”, ou seja: levantem-se contra si próprios e contra o diabo, a fim de não pecar contra Deus. Depois é preciso voltar o desejo para Deus e a virtude. Enfim, com sabedoria e ciência, estabelecer a razão entre as outras duas partes – o ardor e o desejo – para regrá-las, adverti-las, repreende-las, comandá-las, como um rei comanda seus servidores. Então a razão que está em nós as governará conforme a Deus, mesmo se as paixões se revoltarem contra ela. Vigiemos para que a razão as dirija. Com efeito, o irmão do Senhor disse: “Se um homem não falhar em sua razão, será um homem perfeito, capaz de refrear todo seu corpo[83]”. Esta é a evidência: por estas três são colocadas em marcha toda virtude e toda justiça.


127. O intelecto se cobre de trevas e permanece sem fruto quando fala das coisas deste mundo, ou quando ele reflete e se liga a elas, ou quando o corpo se une à inteligência para se ocupar vaidosamente das coisas sensíveis, ou quando o monge se dedica a futilidades. Pois, rapidamente e por si sós, estas coisas destroem o fervor, a compunção, a liberdade e o conhecimento que temos em Deus. Na medida em que estamos atentos ao intelecto, somos iluminados; mas na medida em que somos desatentos, permanecemos nas trevas.


128. Aquele que a cada dia persegue e busca a paz e a hesíquia do intelecto, deverá desprezar facilmente todas as coisas sensíveis, a fim de não trabalhar em vão. Mas se ele enganar sua própria consciência, ele adormecerá amargamente na morte do esquecimento, aquele de o divino Davi suplicou ser preservado[84]. O Apóstolo disse: “Aquele que sabe o que deve fazer e não o faz, comete um pecado[85]”.


129. O intelecto regressa da negligência por sua própria ordem, e retorna à sobriedade e à vigilância se retoma sua supervisão e se restabelecemos em nós seu exercício com zelo ardente.


130. O asno que gira o moinho não irá além do círculo ao qual está amarrado. Da mesma forma, o intelecto que não recolocou em ordem aquilo que está nele, não alcançará a virtude que leva à perfeição. Pois os olhos de seu coração estarão sempre cegos. Ele será incapaz de ver a virtude e a Jesus resplendente de luz.


131. Um cavalo vigoroso e fiel salta de alegria quando recebe seu cavaleiro. Do mesmo modo o intelecto alegre receberá suas delícias na luz do Senhor, na qual, pela manhã, ele penetra, livre de pensamentos. Depois, renunciando a si mesmo, ele irá da potência de sua filosofia prática à indizível potência que contempla os mistérios inefáveis e as virtudes. E quando ele tiver recebido no coração a profundidade dos altos pensamentos divinos, na medida em que seu coração o suportar revelar-se-á diante de seus olhos o Deus dos deuses. O intelecto maravilhado agradecerá amorosamente a Deus que ele vê e que o vê, e que, por uma ou outra destas visões, salva aquele que volta para ele seu olhar.


132. Bem trabalhada, a hesíquia do coração contemplará com todo conhecimento um abismo de alturas, e, de Deus, o ouvido da hesíquia do intelecto escutará maravilhas.


133. O viajante que se prepara para partir em uma longa viagem, difícil e penosa, temendo perder-se na volta, plantará ao longo do caminho sinais para guiá-lo. Estes sinais facilitarão seu regresso. Temendo a mesma coisa, o homem que faz seu caminho na nepsis colocará palavras em seu caminho como se fossem marcos.


134. Para o viajante, regressar ao ponto de partida é motivo de alegria. Mas para o homem sóbrio e vigilante, voltar atrás é a morte da alma dotada de razão, e o sinal de que ele renunciou às ações, às palavras e aos pensamentos que agradam a Deus. Quando sua alma adormecer na morte, ele carregará os pensamentos como aguilhões para despertar à lembrança da grande paralisia e da indolência a que o levou sua negligência.


135. Se cairmos na aflição, no desencorajamento e no desespero, é preciso que façamos conosco o que fez Davi: transbordar nosso coração diante de Deus, repetir ao Senhor, tais como são, nossa necessidade e nossa aflição[86]. Pois confessamos a Deus como a alguém que pode sabiamente dirigir as coisas de nossa vida, consolar nossa aflição se isto nos for útil, e nos libertar da tristeza corporal e corruptora.


136. A cólera dirigida contra a natureza para os homens, a tristeza que não é conforme a Deus e a acídia destroem igualmente os pensamentos bons e carregados de conhecimento. Mas quando o Senhor as dispersa pela confissão, ele traz a alegria.


137. A prece de Jesus unida à sobriedade e à vigilância apaga naturalmente das profundezas da reflexão do coração os pensamentos que, malgrado nossa vontade, aí foram plantados e aí residem.


138. Quando formos afligidos por pensamentos irracionais, encontraremos o consolo e a alegria se nos envergonharmos em verdade e com desembaraço, ou se nos confessarmos ao Senhor como a um homem. Por estas duas vias encontraremos sempre e em tudo o repouso.


139. Moisés o Legislador é considerado pelos Padres como uma imagem do intelecto. Ele viu a Deus na sarsa[87]. Seu rosto trazia a glória[88]. E o Deus dos deuses fez dele um deus para o Faraó[89]. Ele fustigou o Egito[90]. Ele fez partir Israel[91] e lhe deu a lei[92]. Tomados num sentido espiritual, estes eventos são as operações e as prerrogativas do intelecto.


140. A imagem do homem exterior é Aarão, o irmão do Legislador. Acusando com cólera o homem exterior, como Moisés acusou Aarão quando este falhou, dizemos: “Que mal lhe fez Israel para que você procure assim se afastar do Senhor, Deus vivo e todo-poderoso?[93]


141. Quando ressuscitou Lázaro de entre os mortos, o Senhor nos mostrou entre todos os outros bens o seguinte: segurar com um tremor[94] o transbordamento feminino da alma e buscar endurecer o caráter conhecedor, quer dizer, acusar a si mesmo para libertar a alma do egoísmo, da vanglória e do orgulho.


142. Assim como não é possível atravessar a imensidão do mar sem um grande navio, também é impossível afastar a sugestão do mau pensamento sem a invocação de Jesus Cristo.


143. Normalmente, a refutação reduz os pensamentos ao silêncio, mas a invocação os expulsa do coração. Com efeito, a sugestão toma forma na alma sob a aparência de uma coisa sensível, como o rosto de alguém que nos contristou, ou a imagem de uma beleza feminina, ou do ouro e da prata. A partir do momento em que estas imagens penetram no campo da reflexão, os pensamentos de rancor, de prostituição ou de avareza que se formam em nosso coração devem ser repelidos um por um. Se nosso intelecto for experiente, se foi instruído, se estiver em estado de guardar a si próprio e de ver com toda pureza, como num céu sereno, as imagens sedutoras e as ilusões dos maus espíritos, ele extinguirá no mesmo instante e com facilidade, pelo desejo, pela refutação, pela prece de Jesus Cristo, as flechas incendiárias do diabo[95]. Ele recusará deixar-se levar pela imaginação passional. E ele não aceitará que nossos pensamentos, abandonando-se à paixão, se conformem à imagem que lhes apareceu, ou que eles se entretenham amigavelmente com ela, ou que nela se demorem ou a consintam. Pois aos pensamentos que assim se abandonam sucedem-se logo as más obras, como os dias sucedem às noites.


144. Se nosso intelecto não possui a experiência de uma sobriedade e de uma vigilância assíduas, ele rapidamente se misturará ao fantasma apaixonado que lhe aparece, qualquer que seja. Ele lhe fala; recebe dele questões descabidas e dá respostas. Então nossos pensamentos se unem à imagem demoníaca. Esta vai crescendo, e se dilata até parecer desejável, bela e agradável ao intelecto, que se deixa tomar e pilhar. O intelecto sofre então aquilo que acontece aos cordeiros sem malícia quando, na planície em que se encontram, surge um cachorro.  Muitas vezes eles correm para aquele que acaba de surgir como se fosse para sua própria mãe. Mas eles não ganham nada em se aproximar do cão. Eles não recebem senão sua indelicadeza e se mau cheiro. Da mesma maneira, nossos pensamentos ignorantes acorrem para todos os fantasmas demoníacos que aparecem no intelecto. A partir do momento em que se misturam a eles, como já disse, podemos vê-los, uns e outros, combinarem entre si para destruir a cidade de Tróia, como Agamenon e Menelau. Pois eles decidem o que virá, para que o corpo coloque em movimento aquilo que, em sua mentira, a sugestão demoníaca fez parecer tão bom e agradável. É assim que se forma desde dentro as quedas da alma. É necessário a partir daí, que aquilo que está dentro do coração seja levado também ao exterior.


145. O intelecto é uma coisa fácil de seduzir e desprovido de malícia. Ele não tem nenhuma dificuldade em correr atrás das imagens, e ele se protege mal dos fantasmas do pecado, se não tiver a seu lado constantemente, para contê-los e refreá-los, o pensamento que domina as paixões.


146. A contemplação e o conhecimento são por natureza os guias e os provedores da vida rigorosa. Pois, elevada por eles, a reflexão chega, considerando seu baixo prêmio, a desprezar os prazeres, as demais coisas sensíveis e as doçuras da existência.


147. Um modo de vida atento levado em Cristo Jesus é por sua vez o pai da contemplação e do conhecimento. Unido à humildade como se fosse sua esposa, ele engendra as ascensões divinas e os pensamentos sábios, como diz Isaías o profeta divino: “Aqueles que esperam o Senhor renovarão suas forças. Pelo Senhor eles voarão, eles abrirão suas asas[96]”.

 
148. Parece duro e difícil aos homens manter a hesíquia na alma, fora de todo pensamento. Com efeito, trata-se de uma coisa laboriosa e penosa. Pois encerrar e manter o incorpóreo dentro dos limites da morada de um corpo não apenas é complicado para aqueles que não foram iniciados na guerra, mas até para os que adquiriram a experiência do combate interior imaterial. Mas aquele que, pela oração contínua, aperta o Senhor Jesus em seu coração, não sofrerá por segui-lo, como diz o Profeta[97]. Ele não desejará mais as luzes do homem, por causa da beleza, do encantamento e da doçura de Jesus. E ele não será confundido pelos seus inimigos, os demônios ímpios que circulam ao seu redor. Ele lhes falará da porta de seu coração, e por Jesus os fará fugir.


149. A alma que, pela morte, voou pelos ares, e que tem a Cristo com ela e por ela às portas do céu, também aí não Será confundida pelos seus inimigos, mas agora como então ela lhes falará da porta com segurança. Apenas é preciso que ela nunca cesse, até seu êxodo, de chamar noite e dia pelo Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus. Segundo sua divina promessa, que nunca engana, ele próprio fará pronta justiça, como ele disse a respeito do juiz iníquo[98]. Ora, eu lhes afirmo, ele o fará, tanto na vida presente quanto depois que a alma deixar seu corpo.


150. Você que navega no mar inteligível, coloque sua confiança em Jesus. Pois ele diz secretamente em seu coração: “Não tema, Jacó meu filho, Israel meu pequenino. Não tema, Israel, vermezinho. Eu o protegerei[99]”, e: “Se Deus é por nós, que malfeitor será contra nós?[100]”. É ele, com efeito, o doce Jesus, o único puro, quem beatificou os corações puros[101] e deu sua lei: é neles, nos corações puros, que ele quer divinamente penetrar e residir. Assim, não cessemos, conforme o divino Paulo, de exercitar o intelecto na piedade[102]. Pois é verdadeiramente com todo direito que é chamada de piedade a virtude que arranca até as raízes aquilo que o maligno semeou. Esta piedade é o próprio caminho da palavra, ou seja, a via da razão, ou a via do pensamento. Em dialeto ático, a via é chamada de caminho e rota; isto é o pensamento.


151. Segundo Davi[103], aquele que não faz acepção de pessoas ao julgar a injustiça em seu coração desfrutará de uma grande paz, ou seja, não acolhe as formas dos maus espíritos quem considera o pecado através destas formas, quem julga com rigor e faz justiça no terreno de seu próprio coração, dando ao pecado o que ele merece. Com efeito, os grandes, os Padres gnósticos, em alguns de seus escritos, e por causa da razão, chamaram os próprios demônios de homens, o que é igualmente ilustrado pela passagem do Evangelho na qual o Senhor diz que um homem mal fez aquilo e que ele misturou a erva daninha ao bom grão[104]. Não existe refutação rápida entre aqueles que fazem o mal. É também por isso que somos devorados pelos pensamentos.


152. A partir do momento em que começamos a trazer para nossa vida a atenção do intelecto, se unirmos a humildade à nepsis e se unirmos a prece à refutação, caminharemos como se deve sobre o caminho do arrependimento. Com efeito, graças à chama da luz, o nome adorável e santo de Jesus Cristo, por amor à beleza nós curamos, varremos, ornamos, purificamos de toda malícia a morada de nosso coração. Mas se confiarmos apenas em nossa sobriedade e nossa vigilância – em nossa nepsis – logo seremos derrubados pelos inimigos, seremos revirados e tombaremos. Os pérfidos e os mentirosos nos abaterão por terra. Seremos logo enlaçados por suas redes: os maus pensamentos. Ou então eles nos imolarão facilmente. Pois estaremos sem a lança poderosa: o nome de Jesus Cristo. Somente esta espada venerável girando constantemente em um coração simples é capaz de envolvê-los, cortar, queimar, reduzi-los a nada, como o fogo que consome a palha.


153. O objetivo último da nepsis incessante – o benefício da alma, seu imenso ganho – consiste em ver, tão logo se formam, os fantasmas dos pensamentos no intelecto. O objetivo da refutação é o de denunciar e revelar o pensamento que tenta penetrar no espaço de nosso intelecto sob a imagem de alguma coisa sensível. Mas aquilo que extingue e dissolve instantaneamente toda palavra,  todo pensamento, todo fantasma, toda imagem, todo o mal erigido em nós pelos adversários, é a invocação do Senhor. Com efeito, nós mesmos vemos no intelecto a derrota infligida a eles por Jesus, nosso grande Deus, e o castigo que nos faz justiça, a nós os humildes, os simples, os inúteis.


154. A maior parte de nós ignora que os pensamentos não são mais do que simples imagens das coisas sensíveis e mundanas. Mas se perseverarmos na sobriedade e na vigilância na oração, esta despojará a reflexão de todas as imagens materiais dos maus pensamentos. A reflexão também nos mostrará os cálculos dos adversários, e o grande proveito da oração, da sobriedade e da vigilância. “Você contemplará com seus próprios olhos a retribuição dos pecadores inteligíveis[105]”, diz Davi o divino Salmista. Também você o verá em seu intelecto e então compreenderá.


155. Lembremo-nos sem cessar da morte, tanto quanto pudermos. Com esta lembrança nasce em nós o abandono das preocupações e de todas as vaidades, a guarda do intelecto e a prece contínua, o desligamento das paixões do corpo e o desgosto pelo pecado. A bem dizer, quase todas as virtudes escorrem da lembrança da morte como de uma fonte. É por isso que, se o pudermos, devemos servir-nos dela como de nossa própria respiração.


156. O coração inteiramente vazio de imagens engendrará em si pensamentos fluidos, divinos e misteriosos, como fluem os peixes e nadam os delfins quando o mar está calmo. O mar tremula sob a brisa leve, e o abismo do coração sob o Espírito Santo. Foi dito: “Porque vocês são filhos, Deus enviou aos seus corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai[106]”.


157. O monge viverá na incerteza e não saberá o que pensar da obra espiritual antes de adquirir a sobriedade e a vigilância do intelecto, seja porque ignora sua beleza, seja porque, conhecendo-a, é incapaz de assumi-la, em sua negligência. Mas sem dúvida ele será libertado da incerteza a partir do momento em que alcançar a guarda do intelecto, que é e é chamado de filosofia da reflexão ou filosofia prática do intelecto. Pois ele terá encontrado o caminho que diz: “Eu sou a via, a ressurreição e a vida[107]”.


158. Mas ele cairá novamente na incerteza ao ver o abismo dos pensamentos e a multidão dos pequenos filhos da Babilônia. Mas Cristo dissipará esta incerteza, se nele colocarmos continuamente o próprio fundamento da reflexão. Nós nos separaremos dos filhotes da Babilônia empurrando-os contra este rochedo[108], e cumpriremos assim com nossa promessa, conforme as palavras da Escritura, pois está dito: “Aquele que observa os mandamentos não conhecerá o mal[109]”, e “Sem mim vocês nada podem fazer[110]”.


159. Este será um verdadeiro monge, que cumprirá com sucesso a sobriedade e a vigilância. E o que é verdadeiramente sóbrio e vigilante – neptikos – é monge em seu coração.


160. A vida em meio aos homens se desenrola segundo um ciclo de anos, meses, semanas, dias e noites, horas e instantes. É preciso que façamos desenvolverem-se dentro deste ciclo as obras virtuosas, ou seja, a sobriedade e a vigilância, a oração, a doçura do coração, numa hesíquia harmoniosa, até o nosso êxodo.


161. Ele chegará para nós, no momento da morte, ele virá e não é possível escapar-lhe. Possa então o príncipe do mundo e do espaço[111], que então virá também, encontrar em nós poucas e pouco graves iniqüidades pelas quais nos acusar, ou teremos chorado em vão. Com efeito, é dito do servidor que, conhecendo a vontade do seu senhor e não a tendo cumprido em sua qualidade de servidor, que ele será duramente castigado[112].


162. Foi dito: “Infelizes daqueles que pereceram em seu coração. Que farão eles quando o Senhor os visitar?[113]” É por isso, irmãos, que devemos ser fervorosos.


163. Os pensamentos apaixonados seguem de perto os pensamentos simples e aparentemente desembaraçados de paixões, como nos ensinou uma longa experiência e a observação. Os últimos, que são desembaraçados de paixões, abrem o caminho aos primeiros, que são apaixonados.


164. É preciso que o homem seja realmente dividido em dois em sua resolução, que ele seja desmembrado no mais sábio projeto de seu intelecto, como eu já disse, e que ele chegue a ser verdadeiramente um inimigo irreconciliável de si mesmo. A atitude que ele teria para com um homem que o houvesse gravemente e repetidamente afligido e lesado, é a mesma que ele deve ter, daqui para frente, se quiser cumprir o grande e primeiro mandamento, ou seja, a conduta de Cristo, a bem-aventurada humildade, a vida de Deus na carne. É por isso que o Apóstolo diz: “Quem me libertará deste corpo de morte?[114]” Pois ele não está submetido à lei de Deus[115]. Mas, mostrando que cabe a nós submeter este corpo à vontade de Deus, ele diz: “Se examinarmos a nos mesmos, não seremos julgados[116]”. Mas o Senhor nos corrige por seus julgamentos.


165. O começo da frutificação é a flor. O começo da guarda do intelecto é a temperança nos alimentos e bebidas, a recusa e a separação de todo pensamento, e a hesíquia do coração.


166. Quando nos fortalecemos em Jesus Cristo, e começamos a correr com uma sobriedade e vigilância seguras, primeiramente nos aparece no intelecto como que uma lâmpada, que, se a pegarmos, por assim dizer com a mão da inteligência, nos conduzirá sobre o caminho da reflexão. Depois surgirá como que uma lua luminosa que gira no firmamento do coração. Enfim, Jesus nos aparecerá como um sol que irradia justiça, ou seja, ele se mostrará e a suas próprias luzes flamejantes, as luzes daquilo que contemplaremos.


167. Isto é, com efeito, aquilo que ele revela misticamente ao intelecto, quando este persevera em seu mandamento que ordena: “Circuncidem a dureza dos seus corações[117]”. Com já foi dito, a sobriedade e a vigilância atenta mostram ao homem pensamentos que ultrapassam toda medida. Pois o divino não faz acepção de pessoas[118]. É por isso que o Senhor diz: “Escutem-me e compreendam. Àquele a quem foi dado, será dado em maior abundância; mas àquele que nada tem, será tirado até aquilo que acreditava ter[119]”. E: “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus[120]”. Quanto mais ainda serão eles assistidos pelas virtudes.


168. Um navio não irá longe se faltar água. Da mesma forma a guarda do intelecto não progredirá se lhe faltarem inteiramente a sobriedade e a vigilância unidas à humildade e à prece de Jesus Cristo.


169. As fundações de uma casa são pedras. Mas a fundação e a cumeeira desta virtude é o nome adorável e santo de nosso Senhor Jesus Cristo. O piloto insensato que adormece no momento da tempestade naufragará facilmente, depois que a tripulação se lançar ao mar com os remos e as velas. Mas será ainda mais facilmente engolida pelos demônios, quando sobrevierem as sugestões, a alma que negligencia a sobriedade e a vigilância, e a invocação do nome de Jesus Cristo.


170. Aquilo que sabemos é o que escrevemos. E o que vimos no caminho é o que testemunhamos, se por acaso vocês quiserem receber o que dizemos. Pois ele mesmo disse: “Se alguém não permanece em mim, será lançado fora como a palha que é amassada e atirada ao fogo para queimar. Mas aquele que permanece em mi, eu estarei com ele[121]”. Assim como não é possível que o sol brilhe sem irradiar sua luz, também o coração não pode ser purificado da sujeira dos pensamentos de perdição sem a prece do nome de Jesus. Se isto é verdade – e é o que eu vi – confiemo-nos a este nome como à nossa própria respiração. Pois o nome é luz, e os pensamentos são trevas. O nome de Deus é Mestre, mas os pensamentos são escravos dos demônios.


171. Que a guarda do intelecto seja chamada pelos nomes que lhe são próprios e lhe dão todo o sentido: fonte de luz, fonte de relâmpagos, efusão luminosa, portadora do fogo. Pois, a bem dizer, ela ultrapassa incontavelmente o corporal e todas as virtudes. Por estas luzes fulgurantes que nascem dela, devemos chamar por nomes preciosos esta virtude. Por pecadores e inúteis, imundos e ignorantes, insensatos e injustos que fossem, aqueles que a amam podem se tornar, por Jesus Cristo, justos, bons, puros, santos e sábios. E não apenas isto, mas ainda contemplar os mistérios e se tornarem teólogos. Tornados contemplativos, eles passam a nadar nesta luz puríssima e infinita, eles a tocam com inefáveis intuições, permanecem e vivem nela, pois enfim experimentaram como o Senhor é bom[122]. É assim que nestes príncipes dos anjos se cumpre claramente a palavra do divino Davi: “Os justos confessarão seu nome e os homens direitos permanecerão diante de sua face[123]”. Pois somente tais homens invocam e confessam a Deus sinceramente. Eles o amam e desejam viver sempre com ele.

 
172. Infelicidade interna, quando se é atacado pelas coisas de fora. Pois o homem interior é profundamente afligido pelos sentidos do corpo, mas em sua aflição ele os deve fustigar: aquele que age assim já conheceu as coisas que só podem ser vistas pela contemplação.


173. Segundo os Padres, se nosso homem interior é sóbrio e vigilante, ele é igualmente capaz de proteger o homem exterior. Pois nós e os demônios malfeitores, ambos cometemos juntos os pecados. Eles, pelos simples pensamentos, quando, desenhando imagens a seu bel-prazer, conformam o pecado no intelecto. E nós, pelos pensamentos internamente e pelos nossos atos externamente. É, portanto, pelos simples pensamentos, pela mentira e a enganação, que os demônios, que não possuem o volume de um corpo, atraem sobre e si e sobre nós os castigos. Enquanto estes criminosos não forem privados do volume do corpo, eles não deixarão de pecar em ato, pois eles mantém sua vontade sempre pronta para ultrajar.


174. A oração do simples nome de Deus mata e reduz a cinzas suas mentiras. Pois Jesus Deus e Filho de Deus, contínua e diligentemente invocado por nós, não lhes permite mostrarem ao intelecto, no espelho da reflexão, o menor esboço deste ataque chamado sugestão, nem a menor forma, nem dizer ao coração uma palavra que seja. A forma demoníaca que não penetra no coração permanecerá igualmente vazia de todo pensamento, com já dissemos. Pois é através dos pensamentos que os demônios costumam freqüentar a alma e ensiná-la secretamente a fazer o mal.


175. É, portanto, pela prece contínua que o espaço da reflexão se purifica das nuvens tenebrosas e dos sopros dos espíritos do mal. E quando o espaço do coração é purificado, é impossível que não brilhe nele a divina luz de Jesus, desde que não estejamos inchados de vanglória, orgulho e ostentação, e se não nos elevamos ao inatingível: pois então nos privaríamos do socorro de Jesus, pois o Cristo detesta estas coisas, ele que nos deu o exemplo da humildade.


176. Agarremo-nos então à oração e à humildade, a estas duas coisas que, com a sobriedade e a vigilância, nos armam contra o demônio como uma espada de fogo. Pois se vivermos assim, ser-nos-á possível fazer de cada dia e de cada hora, no mistério e na alegria, uma festa do coração.


177. Os oito pensamentos fundamentais do vício, que contêm todos os pensamentos, e dos quais todos nascem (como de Hera e Zeus nasceram todos os deuses malditos dos gregos, segundo suas fábulas), chegam juntos às portas do coração. Se eles encontram o intelecto sem guarda, eles entram cada um a seu tempo. Mas além disso, cada um dos oito pensamentos, penetrando no coração após aí chegar, faz entrar consigo uma multidão de pensamentos infamantes. Depois de assim entenebrecer o intelecto, ele provoca o corpo incitando-o a cometer ações que o desonrarão.


178. Entretanto, aquele que vigia a cabeça da serpente[124] e que, por meio de uma refutação resoluta, lhe dirige palavras duras como um soco, este a faz recuar. Cortando sua cabeça, ele escapa a muitos pensamentos e obras de grande mal. A partir daí a reflexão permanece em calma, pois Deus acolhe sua vigília que a protege dos pensamentos. Ele lhe concede saber como dominar os adversários, e como purificar pouco a pouco o coração dos pensamentos que sujam o homem interior. Como diz o Senhor Jesus: “É do coração que saem os maus pensamentos, as prostituições e os adultérios; são estas coisas que sujam o homem[125]”.


179. É assim que a alma pode permanecer no Senhor em sua beleza, seu esplendor e sua retidão, tal como foi criada por Deus no princípio, bela e direita. É o que diz o grande servidor de Deus, Antônio: “Quando a alma é dotada de inteligência conforme a natureza, a virtude está assegurada”. Ele diz ainda: “A alma é direita, quando dotada de inteligência segundo a natureza, tal como foi criada”. Pouco depois ele acrescenta: “Purifiquemos a reflexão. De fato, eu creio que, totalmente purificada e devolvida ao seu estado natural, ela pode se tornar clarividente, enxergar de longe os demônios e antes que eles cheguem, pois terá em si o Senhor a revelá-lo”. Eis o que disse o glorioso Antônio, como nos reporta Atanásio na Vida de Antônio.[126]


180. Todo pensamento suscita no intelecto a imagem de uma coisa sensível. Pois o intelecto é o Assírio: ele não pode enganar senão servindo-se das coisas que nos são sensíveis e habituais.


181. Assim como nos é impossível perseguir os pássaros que voam pelos ares, porque somos homens, ou voarmos como eles, coisa que nossa natureza não pode fazer, também nos é impossível dominar os pensamentos demoníacos incorpóreos sem uma prece sóbria, vigilante e contínua, e se os olhos do intelecto não estiverem inteiramente voltados para Deus. Caso contrário, é a terra que você está buscando.


182. Assim, se você quiser verdadeiramente cobrir de vergonha os pensamentos, viver na bem-aventurada hesíquia e conhecer facilmente a sobriedade e a vigilância do coração, cole a prece de Jesus à sua respiração, e em poucos dias você receberá o que procura.


183. Do mesmo modo como é impossível escrever letras no ar (pois é preciso que elas sejam traçadas sobre algum corpo para se conservar duradouramente), também devemos colar à nossa nepsis a prece de Jesus Cristo, a fim de que a bela virtude da sobriedade não deixe de permanecer com ele e nos seja sempre protegida por ele sem que nos possam roubá-la.


184. Foi dito: “Coloque suas obras diante do Senhor, e você encontrará a graça[127]”, para que o profeta não diga de nós: “o Senhor está perto da sua boca, mas longe dos seus rins[128]”. Ninguém além de Jesus poderá fixar seu coração na paz, fora das paixões, ninguém senão o próprio Jesus Cristo, que reuniu o que estava separado[129].


185. Duas coisas entenebrecem igualmente a alma: o diálogo com os pensamentos no intelecto que reflete e, do lado de fora, as conversas e discussões vãs. Aqueles que querem afastar do intelecto todo dano devem assim mortificar esta dupla que gosta de falar em vão: os pensamentos e os homens. E mortificá-los por uma razão fundamentada em Deus, a fim de que o intelecto entenebrecido não relaxe sua nepsis. Pois quando caímos nas trevas do esquecimento, levamos o intelecto à sua perda.


186. Quem guarda a pureza de seu coração com todo fervor terá como mestre o legislador desta pureza, Cristo, que lhe dirá secretamente sua vontade. É o que Davi nos revela quando afirma: “Eu escutarei o que diz em mim o Senhor Deus[130]”. Quanto ao combate do intelecto, mostrando com este deve examinar a si mesmo e qual a proteção que Deus lhe concede em retorno, ele dizia: “O homem diz: Haverá fruto para o justo?[131]” E na seqüência de sua busca, expressando uma reflexão que compreende tanto a pureza quanto o combate, ele disse: “É então Deus quem os julga, os demônios malignos, na terra de nosso coração[132]”. E adiante: “O homem irá às profundezas de seu coração, e Deus será exaltado[133]”. Então consideraremos seus golpes como flechas infantis.


187. Vivamos sempre com o coração instruído pela sabedoria[134], segundo o Salmista, respirando continuamente Jesus Cristo que é o próprio poder de Deus Pai e a sabedoria mesma de Deus[135]. Se, por qualquer circunstância, relaxarmos, se negligenciarmos o que deve fazer o intelecto, na manhã seguinte cinjamos os rins como se deve e ponhamo-nos corajosamente ao trabalho, sabendo que não temos desculpa se não fazemos o bem, uma vez que o conhecemos.


188. Os alimentos nocivos desarranjam o corpo uma vez que os ingerimos, mas quem comeu pouco pode, graças a algum remédio, vomitá-los logo que se sentir mal e não ser mais afetado; da mesma forma, o intelecto, quando recebe e absorve maus pensamentos e sente seu amargor, pode vomitá-los com facilidade e rejeitá-los imediatamente, pela prece de Jesus dita do fundo do coração. É isto que, graças a Deus, nos permitiram a entender aqueles que vivem na sobriedade e na vigilância, a respeito da instrução e, pela instrução, da experiência.


189. Junte ao sopro que passa por suas narinas a sobriedade, a vigilância e o nome de Jesus, ou ainda a incessante meditação da morte a humildade. Sabemos que ambos são de grande auxílio.


190. O Senhor disse: “Aprendam comigo que sou doce e humilde, e vocês encontrarão o repouso de suas almas[136]”.


191. O Senhor disse: “Quem se rebaixa como esta criança será elevado; mas quem se eleva será rebaixado[137]”. Ele disse: “Aprendam comigo”. Vêem que ensinamento é a humildade? Ora, seu mandamento é a vida eterna[138] e é a humildade. Portanto, aquele que não é humilde escorrega para fora da vida. Vale dizer, ele se achará nos antípodas.


192. Toda virtude é construída sobre a alma e o corpo. Ora, a alma e o corpo são criaturas de Deus, e é por intermédio deles que se forma a virtude, como se diz. Como não seríamos nós no cúmulo da loucura gabando-nos de vestes estranhas à alma e ao corpo, enchendo-nos de vanglória, apoiando-nos sobre o orgulho como sobre um junco, e, o mais espantoso de tudo, em nossa total iniqüidade e inconsciência, dirigindo contra nossa elevação o Deus que nos ultrapassa com sua grandeza infinita? Pois o Senhor se opõe aos orgulhosos[139]. Ora, ao invés de imitarmos a Deus na humildade, por um sentimento de vanglória e orgulho, ligamo-nos amigavelmente ao demônio orgulhoso e hostil ao Senhor. É por isso que o Apóstolo dizia: “O que você possui que não tenha recebido?” Você criou a si mesmo? E se você recebeu de Deus o corpo e a alma dos quais, nos quais e pelos quais se forma toda virtude, “porque se glorificar como se não o tivesse recebido[140]”? Foi o Senhor quem lhe fez dom de tais coisas.


193. Em uma palavra, a purificação do coração, por meio da qual a humildade e todo bem descem do alto até nós[141], não é outra coisa do que recusar absolutamente que entrem na alma os pensamentos que se acotovelam.


194. Pois quando a guarda do intelecto persevera na alma com Deus e por Deus apenas, ela dá à razão a sabedoria nos combates dedicados a Deus. E não é pequena a vantagem que ela oferece a quem a assume, tornando-o capaz de organizar as obras e as palavras segundo uma escolha que agrade a Deus.


195. Os ornamentos visíveis do Grande Sacerdote no Antigo Testamento eram os sinais de um coração puro. Da mesma forma, devemos estar atentos à gola de nosso coração[142]. Devemos evitar que ela seja enegrecida pelo pecado e vigiar para enxugá-la com lágrimas, arrependimento e preces. Pois o intelecto é uma coisa que se deixa facilmente levar pelos pensamentos ímpios, e difícil de segurar. Ele segue da mesma forma tanto as más como as boas imaginações da razão.


196. Verdadeiramente feliz é aquele que colou a prece de Jesus a toda reflexão de seu intelecto, e que chama por Jesus continuamente em seu coração, como o espaço está unido aos nossos corpos e a chama ao pavio. Quando passa sobre a terra, o sol nos dá o dia; da mesma forma, quando o santo e venerável nome do Senhor Jesus não deixa de brilhar na reflexão do intelecto, ele engendra pensamentos luminosos como o sol.


197. Quando as nuvens se dissipam, a ar se torna puro. Da mesma forma, quando, sob o sol de justiça, Jesus Cristo, de dissipam os fantasmas da paixão, não cessam de nascer no coração pensamentos luminosos, semelhantes às estrelas. Pois Jesus ilumina o espaço do coração. Com efeito, diz o Eclesiástico: “Aqueles que colocam sua confiança no Senhor compreenderão a verdade e aqueles que são fiéis no amor permanecerão junto a ele[143]”.


198. Um dos Santos disse: guarde rancor dos demônios e seja sempre inimigo do corpo. A carne é um amigo enganador. Quando bem cuidada, ela nos combate em seguida. Uma vez mais: deteste o corpo e lute contra o ventre.


199. Nos discursos que escrevemos na primeira e na segunda centúrias, tratamos das penas da santa hesíquia e do intelecto. Estes discursos não foram somente fruto de nossa reflexão, mas também do que as divinas palavras dos Padres cheios da sabedoria de Deus nos ensinaram sobre a pureza do intelecto. E agora que já dissemos o pouco que tínhamos a dizer para mostrar a vantagem da guarda do intelecto, cessaremos de falar.


200. Daqui para frente venha, siga-me para se unir à bem-aventurada guarda do intelecto, quem quer que seja você que deseja em espírito ver bons dias[144] e eu lhe ensinarei no Senhor a obra que temos em vista e como vivem as Potências intelectuais. Pois os anjos jamais se saciarão de louvar o Senhor, nem o intelecto de rivalizar santamente com eles. E assim como os seres imateriais não se preocupam com alimentos, também os seres que são simultaneamente materiais e imateriais tampouco se preocuparão, se entrarem no céu da hesíquia do intelecto.


201. Assim como as Potências do alto não se preocupam nem com dinheiro nem com riquezas, também aqueles que purificaram o olho da alma e adquiriram o hábito da virtude não se preocupam com as malfeitorias dos espíritos malignos. E assim como para as primeiras é evidente a riqueza que constitui sua proximidade de Deus, para os segundos serão evidentes seu desejo ardente e seu amor, sua tensão e sua elevação para o divino. Amorosa e insaciavelmente levados sempre mais alto nesta elevação pelo gosto de Deus e o desejo que os coloca fora de si, eles não se deterão até terem alcançado os Serafins, nem relaxarão a nepsis do intelecto e a exaltação do amor até que se tenham tornado anjos em Jesus Cristo nosso Senhor.


202. Não há veneno mais potente do que o da áspide e o basilisco. E não há mal maior do que o mal do amor próprio. Ao redor do amor próprio voejam seus filhos, que são o auto-elogio endereçado ao coração, a suficiência, a gula, a prostituição, a vanglória, a inveja e o coroamento de todos os vícios: o orgulho, que é capaz de fazer cair dos céus não apenas os homens, mas também os anjos, e lhes envolver em trevas ao invés da luz[145].


203. Eis, Teódulo, o que lhe escreveu aquele que traz o nome de hesíquia, mesmo se, na prática, ele não mereça este nome. É verdade que tudo isto não vem de nós, mas de Deus que no-lo deu, ele que, no Pai, no Filho e no Espírito Santo é louvado e glorificado por toda natureza de razão, pelos anjos, pelos homens, por toda a criação formada pela Trindade inefável, o Deus único. Possamos nós descobrir o esplendor de seu Reino, pelas preces da Mãe de Deus puríssima e de nossos santos Padres. A Deus inacessível, a glória eterna. Amém.



[1]      Mateus, V, 8.
[2]    Deuteronômio XV, 9.
[3] Aquele que nasce do temor do castigo e o que é ligado ao amor, cf. Máximo o Confessor, Sobre o Amor, I, 81.
[4]      Cf. Salmo V, 4.
[5]      Mateus, VII, 21.
[6]      Salmo XCVI, 10.
[7]      Cf. I Pedro, II, 21.
[8]      Cf. Mateus, IV, 3.
[9]      Cf. Mateus, XVII, 21.
[10]    I Timóteo, IV, 13.
[11]  Provérbios III, 34.
[12]    Salmo LXII, 2.
[13]    Romanos VIII, 26.
[14]    Cf. Êxodo, XXXII, 4.
[15]    Salmo XXVIII, 7.
[16]    Cf. Salmo XCIV, 16.
[17]    Cf. Salmo CXXXVII, 9. Cristo é o rochedo contra o qual o monge deve destruir os “filhos da Babilônia”, ou seja os filhos do diabo, os maus pensamentos.
[18]    Colossenses, II, 3.
[19]    Colossenses, II, 9.
[20]    I Coríntios, XII, 3.
[21]    Cf. Mateus, III, 7.
[22]    Cf. II Pedro, II, 22.
[23]    Cf. João XV, 5.
[24]    Romanos VIII, 7-8 e Gálatas V, 17.
[25]  Salmo LXVIII, 35.
[26]  Ibid.
[27]  O Corifeu, o cabeça, o cume: designa Pedro, o apóstolo capital
[28]    Cf. I Pedro, V, 8.
[29]  Cf. Cânticos, II, 15.
[30]    Salmo CI, 8.
[31]    Êxodo, XXIII, 32.
[32]    Cf. Salmo CXXX, 1.
[33]    Cf. Salmo LXXX, 12.
[34]    Cf. Gênese XXVIII, 12.
[35]  Cf. Mateus, V, 8.
[36]    As sentenças de 54 a 60 retomam Marcos o Asceta, Sobre a lei espiritual 163, 115ª, 116-117, 101, 103, 104 e 110.
[37]    Cf. Gálatas VI, 7.
[38]    Amós, IV, 12.
[39]    I Tessalonicenses, V, 17.
[40]    João XV, 5-6.
[41]  Cf. Mateus X, 1; XII, 43, etc.
[42]    Cf. Provérbios XVI, 5.
[43]    Eclesiástico, X, 13.
[44]    Êxodo V, 2.
[45]    Cf. Gênese XVIII, 27.
[46]    Grande Regra 37.
[47]    Cf. I, 5.
[48]    Nilo o Asceta, Sobre os oito espíritos de malícia.
[49]    Cf. Mateus XI, 12.
[50]    As sentenças de 67 a 75 retomam Máximo o Confessor, Sobre o Amor , IV,  58.64. 65.50-52 e 63; II, 40; I, 76; IV, 72.
[51]  Gálatas, V, 16.
[52]  I Timóteo IV, 8.
[53]    Mateus V, 8.
[54]    Cf. II Samuel XIII, 34 e XVIII, 24.
[55]  As sentenças de 79 a 82 retomam Marcos o Asceta, Daqueles que pensam ser justificados, 2-8.
[56]    Lucas XVII, 10.
[57]    Cf. I Coríntios XV, 3.
[58]    Mateus XXV, 21.
[59]    Cf. I Coríntios VIII, 1.
[60]    Cf. Filipenses II, 8.
[61]   Isaías LV, 1.
[62]    Eclesiastes XII, 13.
[63]  Salmo XL, 9.
[64]    XXI, 14.
[65]    Isaías XLV, 7.
[66]    Salmo XCII, 12.
[67]    Salmo XCI, 8
[68]  Salmo LIX, 10.
[69]    Salmo XIII, 4.
[70]    João Clímaco, A escada santa, XXVII, 62.
[71]    Cf. Salmo LXIX, 4.
[72]    Cf. Lucas XVIII, 1.
[73]  Cf. Mateus XI, 12.
[74]    Hebreus VII, 8.
[75]    Cf. João XV, 5.
[76]    Cf. Mateus XXVII, 5.
[77]    Cf. Lucas X, 18.
[78]    Cf. Gênese III, 5.
[79]    Cf. II Coríntios XI, 3.
[80]  Cf. Salmo XXXII, 9.
[81]    Cf. Gênese XI, 1-9.
[82]  Cf. Romanos VIII, 7.
[83]    Tiago III, 2.
[84]    Cf. Salmo XIII, 4.
[85]    Tiago IV, 17.
[86]    Cf. Salmo CXLII, 3.
[87]    Cf. Êxodo III, 2.
[88]    Cf. Êxodo XXXIV, 30.
[89]    Cf. Êxodo VI, 1.
[90]    Êxodo VII e ss.
[91]    Cf. Êxodo XII.
[92]    Cf. Êxodo XX.
[93]    Êxodo XXXII, 21.
[94]  Cf. João XI, 33.
[95]    Cf. Efésios VI, 16.
[96]  Isaías XL, 31.
[97]  Cf. Jeremias XVII, 16.
[98]    Cf. Lucas XVIII, 1-8.
[99]    Isaías XLI, 13.
[100]           Romanos VIII, 31.
[101]           Cf. Mateus V, 9.
[102]           Cf. I Timóteo IV, 7.
[103]           Cf. Salmo XXXVII, 11.
[104]         Cf. Mateus XIII, 28.
[105]           Salmo XCI, 8.
[106]           Gálatas IV, 6.
[107]           João XI, 25; XIV, 6.
[108]           Cf. Salmo CXXXVII, 9. Ver nota da sentença 27.
[109]           Eclesiastes VIII, 5.
[110]           João XV, 5.
[111]           Cf. João XIV, 30; Efésios II, 2.
[112]           Cf. Lucas XII, 47.
[113]           Cf. Eclesiástico II, 14.
[114]           Romanos VII, 24.
[115]           Cf. Romanos VIII, 7.
[116]           I Coríntios XI, 31.
[117]           Deuteronômio X, 16.
[118]           Cf. Romanos II, 11.
[119]           Lucas VIII, 18.
[120]           Romanos VIII, 28.
[121]           João XV, 16.
[122]           Cf. Salmo XXXIV, 9.
[123]           Salmo CXL, 14.
[124]           Cf. Gênese III, 15.
[125]           Mateus XV, 19.
[126]           Vida e conduta de nosso Pai santo Antônio, 20 e 34.
[127]           Provérbios III, 3-4.
[128]           Jeremias XII, 2.
[129]           Cf. Efésios II, 14.
[130]           Salmo LXXXV, 9.
[131]           Salmo LVIII, 12.
[132]           Cf. Salmo LIII, 12.
[133]           Salmo LXIV, 7.
[134]           Cf. Salmo XC, 12.
[135]           Cf. I Coríntios I, 24.
[136]           Mateus XI, 29.
[137]           Mateus XVIII, 4; XXIII, 12.
[138]           Cf. João XII, 50.
[139]           Cf. Provérbios III, 4; Tiago IV, 6.
[140]           I Coríntios IV, 7.
[141]           Cf. Tiago I, 17.
[142]         Cf. Êxodo XXVIII, 32.
[143]           Sabedoria III, 9.
[144]         Cf. Salmo XXXIV, 13
[145]           Cf. II Pedro II, 4; Judas VI.

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