HESÍQUIO DE BATOS
CAPÍTULOS SOBRE A SOBRIEDADE E A VIGILÂNCIA
Hesíquio de Batos
Nosso santo Padre Hesíquio de Batos, sacerdote da
Igreja de Jerusalém, viveu sob Teodósio do Jovem, prodigou seu ensinamento e
faleceu em 333. De seus numerosos escritos, só inserimos aqui o tratado,
dividido em 203 capítulos, sobre a nepsis
sobre a atenção do intelecto e sobre a guarda do coração. Um tratado de
grande proveito, inclusive para os noviços. Eis o que diz dele Photius:
“O vigésimo segundo capítulo de Hesíquio, sacerdote de
Jerusalém, contém em si todo o tema do livro, um livro muito útil para aqueles
que levam a vida na ascese em vista da herança dos céus. Tudo aí é exposto com
grande clareza. De resto, ele está composto de tal maneira que pode convir
tanto aos homens que não estão voltados para combate exigido pela razão, como
para aqueles que claramente optaram pelo sofrimento e as penas e que se
esforçam para trabalhar a ascese.”
Para Nicodemo o Hagiorita, assim como para a
Patrologia de Migne, o autor das duas centúrias “sobre a vigilância e a
virtude” seria Hesíquio de Jerusalém, que viveu no século V. Ora, em vista do
título de certos manuscritos e diante das influências manifestas dos Padres do
século VII, tais como João Clímaco e Máximo o Confessor, admite-se hoje em dia
que o homem que escreveu estes
capítulos, provavelmente entre os séculos VII e VIII, foi um monge – sem dúvida
um higoumeno, um abade – do mosteiro da Sarça Ardente no Sinai. Daí provém seu
nome Hesíquio o Sinaíta, ou Hesíquio de Batos, palavra grega que significa
“sarça”.
De resto, estamos aqui menos diante do testemunho de
um homem do que diante do ensinamento de uma escola monástica, indubitavelmente
a do Sinai, escola-mãe dos mosteiros cenobíticos, que aliava o conhecimento do
deserto à experiência da comunidade. Não bastava mais ao monge dedicar-se às
virtudes do deserto – a renúncia, a solidão, o silêncio –, era preciso viver
estas virtudes junto com os outros, diante deles, portanto enraizando-as em
pleno coração, como o nome e a graça de Jesus implantados no próprio lugar em
que foi dada a Lei. Esta é a origem e o alcance de tal ensinamento.
A obra é exemplar: de uma simplicidade transparente.
Toda a Filocalia é como que recolhida na cripta da purificação do coração. A
ascese do corpo se afina em ascese do intelecto. Tornar monge o homem exterior
é, no limite, coisa fácil, coisa da lei, assumida pela natureza ou pela
instituição. Mas tornar duravelmente monge o homem interior implica um estado
de graça e de confiança, o apelo contínuo a Deus e, antes de tudo, o exercício
da real humildade: amplificar em tudo as virtudes do outro e considerar a si
mesmo como terra e cinzas. As finalidades (a beleza, o arrebatamento) são
indicadas sem mais. Elas estão implícitas, mas estão como que fora do campo que
pode ser trabalhado. Tudo é concentrado na “guarda do intelecto” às “portas do
coração”.
Os capítulos de Hesíquio vão ilustrar, como facetas
correspondentes, um “método espiritual” de purificação, fundamental na
Filocalia. Neles acham-se claramente descritos os três modos da ascese – a nepsis,
a hesíquia e a oração de Jesus – perfeitamente distintos e perfeitamente
solidários, porque engendram-se mutuamente, sendo que nenhum é possível,
concebível ou praticável sem os outros. Nenhuma técnica, mas uma lei espiritual
que faz corpo com a graça do nome de Jesus. Eis como:
1) A nepsis – aqui traduzida como vigilância,
mas que também significa sobriedade – é a virtude crucial da inteligência que
não apenas evita toda sobrecarga, mas volta-se sobre si mesma (é o
arrependimento, a metanoia) para se tornar nada mais que a total atenção
à pureza do coração e chegar à transparência original e última, este novo Éden
de onde o olho exercitado poderá ver daí em diante vindo de longe os começos da
queda. São refutados, sufocados no ovo e rejeitados todos os pensamentos que o
intelecto ativado pelos rudimentos do mundo destila.
2) A nepsis do intelecto conduz à hesíquia do
coração, este repouso tranqüilo, este silêncio, o sinal em nós do estado divino
que precede e segue a criação. Caminho de salvação impossível aos homens, mas
possível a Deus. Daí a única coisa necessária:
3) Na hesíquia do coração vem subir e descer a prece
de Jesus, o Kyrie eleison, “Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem
piedade de mim”. O intelecto, partido por ser privado do sustentáculo natural –
e do derivativo – dos pensamentos, se transforma em invocação, “respira
Cristo”, faz girar no “espaço do coração” o nome de Jesus, envolve o corpo,
envolve o universo pelo nome d'Aquele que criou o mundo e o salva. O giro
cósmico é aqui abarcado por outra rotação, interior, invisível, envolvente: o
próprio amor.
A obra de Hesíquio é assim uma apologia da interioridade.
Só nascemos no mundo para renascermos no coração, para fazermos “de cada dia,
de cada hora, no mistério e na alegria, uma festa do coração”. Através do mundo
se abre para cada um desde a origem a via real da ascese filocálica, mas também
a porta estreita: “ser monge no coração”.
DE HESÍQUIO, SACERDOTE, A TEÓDULO
DISCURSO, EM FORMA DE CAPÍTULOS, SOBRE A SOBRIEDADE, A
VIGILÂNCIA E A VIRTUDE PARA O BEM DA ALMA E SUA
SALVAÇÃO
PRINCÍPIO E FUNDAMENTO VERDADEIRO DA ILUMINAÇÃO DA ALMA
A REFUTAÇÃO E A PRECE
1. A nepsis, sobriedade e vigilância, constitui
um método espiritual que, com a ajuda de Deus, liberta inteiramente o homem dos
pensamentos e das palavras apaixonadas e também das más ações, se for praticada
por um bom tempo e arduamente. Ela fornece também, na medida do possível, um
conhecimento seguro de Deus o Incompreensível, e abre os mistérios divinos e
ocultos. Ela conduz ao cumprimento de todos os mandamentos de Deus, do Antigo e
do Novo Testamento, e propicia todos os bens do século futuro. Ela consiste
propriamente na pureza do coração, a qual, por causa de sua grandeza e de sua
beleza (ou mais exatamente devido à nossa negligência), é tão rara entre os
monges hoje em dia. É ela que Cristo beatificou quando disse: “Bem-aventurados
os puros de coração, pois eles verão a Deus[1]”.
Tal é a sua eminência. Ela se adquire a um alto preço. Praticada longamente,
ela se torna um guia que nos conduz à via direita e que agrada a Deus. Ademais,
ela nos permite acessar a contemplação, nos ensina a por em movimento como
convém as três partes da alma e a vigiar com segurança nossos sentidos. E ela
aumenta a cada dia as quatro virtudes cardinais fazendo-as participar de sua
ação.
2. Moisés, o grande Legislador, ou melhor, o Espírito
Santo, querendo nos mostrar o quanto esta virtude é excelente, pura, universal
e nos eleva, e querendo nos ensinar como colocá-la em movimento inicialmente
para a seguir levá-la à perfeição, disse: “Vigie a si mesmo, para que uma
palavra secreta não se torne um pecado em seu coração[2]”.
Ele denomina palavra secreta a aparição de um único pensamento que possa
refletir qualquer má ação que desagrade a Deus, justamente esta palavra que o
diabo insinua em nosso coração e que os Padres chamam de sugestão. Nossos
próprios pensamentos a seguem, uma vez que ela entre o campo do intelecto, e se
carregam de paixão ao dialogar com ela.
3. A vigilância e a sobriedade constituem o caminho de
todas as virtudes e de todos os mandamentos de Deus. A nepsis também é
chamada de hesíquia do coração e, levada à perfeição, quando não mais é afetada
por nenhuma imagem, torna-se a própria guarda do intelecto.
4. O cego de nascença não vê a luz do sol. Também
aquele que não caminha na sobriedade e na vigilância não vê em toda sua riqueza
as cintilações da graça do alto. Ele tampouco se livrará das ações, palavras e
pensamentos maus e desagradáveis a Deus. Estes homens, ao deixar esta vida, não
passarão impunemente diante dos príncipes do inferno.
5. A atenção é uma permanente hesíquia do coração,
fora de qualquer pensamento. Sem se esgotar nem interromper-se, a alma respira
e invoca sempre Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, e nada além dele. Ela se
alinha a ele para combater validamente os inimigos. Ela Lhe confessa seus
pecados, a ele, o único que tem poder para perdoá-los. Com sua invocação, ela
abraça continuamente Cristo que conhece os segredos dos corações. E ela se
esforça por esconder totalmente dos homens a doçura que experimenta neste
combate interior, para que o maligno não faça penetrar nela a malícia contra
sua vontade e não destrua uma obra tão bela.
6. A nepsis, sobriedade e vigilância, é a
concentração perseverante de um pensamento de sentinela à porta do coração.
Este pensamento capta os pensamentos que sobrevêm, os observa, escuta o que
eles dizem, o que fazem esses assassinos, e as formas que os demônios gravaram
sobre eles e ergueram como uma estela, buscando enganar o intelecto por meio da
imaginação. Este trabalho, se nos dedicarmos a ele, nos dará, se o quisermos, a
experiência do combate espiritual que o intelecto deve manter ciosamente.
7. O duplo temor[3],
os abandonos nos quais Deus nos deixa e as tentações que sobrevêm para nos
instruir, sabem engendrar a nepsis, como uma firme continuidade da
atenção na razão do homem que se esforça para obstruir a fonte dos pensamentos
e das más ações. É para nos permitir adquirir a sobriedade e a vigilância, e
corrigir nossas vidas, que Deus nos deixa no abandono e nos envia tentações
imprevistas, sobretudo àqueles dentre nós que já provaram o repouso deste bem e
o negligenciaram. A continuidade gera o hábito. Este dá à nepsis uma
certa densidade natural. E esta densidade engendra pacificamente a contemplação
durante o combate, que recebe assim a incessante prece de Jesus, a doce
serenidade do intelecto fora de qualquer imaginação, e o estado de calma
suscitado por Jesus.
8. A reflexão que se imobiliza, que invoca a Cristo
contra os adversários e que se refugia junto a ele, é como um animal selvagem
cercado por cãs e que resiste como uma fortaleza. Ela prevê de longe no
intelecto as emboscadas inteligíveis dos inimigos invisíveis. E como ela não
cessa de invocar contra eles a Jesus dispensador da paz, ela permanece
invulnerável.
9. Se você possui a experiência e se lhe foi dado
estar desde a manhã diante de Deus na vigília[4],
mas também em contemplação, você sabe o que quero dizer. Senão, seja sóbrio e
vigilante – seja néptico – e você compreenderá.
10. Os mares são feitos de quantidades de água. O que
faz e alimenta a nepsis, a moderação, a profunda hesíquia da alma, este
abismo de contemplações extraordinárias e inefáveis, de humildade consciente,
de retidão e de amor, é uma extrema atenção e a prece de Jesus Cristo, sem
pensamentos. Tudo isto com fervor e continuidade, jamais cedendo ao
desencorajamento.
11. Cristo disse: “Não é aquele que diz: 'Senhor,
Senhor”, que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai[5]”.
Ora, a vontade de seu Pai é esta: “Vocês que amam ao Senhor, odeiem o mal[6]”.
Pela oração de Jesus Cristo, detestemos também os maus pensamentos. Assim,
teremos feito a vontade de Deus.
12. Nosso Mestre e Deus encarnado nos deu um modelo[7]
de toda virtude, um exemplo para a raça dos homens e nos fez retornar da queda
primeira, carregando diretamente em sua carne o próprio significado da vida
virtuosa. Ele nos revelou todas as suas boas obras, e foi com elas que eles se
dirigiu ao deserto depois do batismo, começando lá, pelo jejum, o combate do
intelecto, quando o diabo se aproximou dele como de um simples homem[8].
Pelo modo como o venceu, o Mestre nos ensinou, a nós também, os inúteis, como
sustentar a luta contra os espíritos o mal: com a humildade, o jejum, a prece[9],
a sobriedade e a vigilância. Mas ele próprio não tinha nenhuma
necessidade, disto, por ser Deus e Deus
dos deuses.
13. Quanto às diferentes maneiras pelas quais, segundo
penso, podemos purificar aos poucos o intelecto dos pensamentos passionais
enquanto durarem a sobriedade e a vigilância, não tardarei mais em expressá-los
numa linguagem sem refinamentos nem floreios. Pois não achei conveniente, neste
tratado, ocultar nas palavras aquilo que pode ser útil quando o combate vier, e especialmente aos
mais simples. Pois foi dito: “Meu irmão Timóteo, fique atento ao que você lê[10]”.
14. Um primeiro modo da sobriedade e da vigilância
consiste em vigiar estreitamente a imaginação, ou a sugestão, porque Satanás
não pode, sem a imaginação, suscitar pensamentos e os expor ao intelecto para
enganá-lo com suas mentiras.
15. Outro modo consiste em manter sempre o coração num
profundo silêncio, em estado de hesíquia, fora de qualquer pensamento, e em
oração.
16. Um outro
consiste em pedir continuamente a ajuda do Senhor Jesus Cristo, com toda a
humildade.
17. Um outro ainda é ter na alma a lembrança constante
da morte.
18. Todas estas ações, bem-amado, afastam como
guardiões da porta os maus pensamentos. Quanto a olhar para o céu e considerar
a terra como nada, eu explicarei mais longamente adiante, se Deus quiser, no
que esta ação é igualmente eficaz.
19. Se afastarmos pouco as causas das paixões, e nos
dedicarmos às contemplações espirituais sem lhes dedicar todo nosso tempo e sem
fazer delas nosso próprio trabalho, com facilidade recairemos nas paixões da
carne. Não colheremos então outro fruto do que o entenebrecimento do intelecto
e uma perdição em meios às coisas materiais.
20. Quem sustenta o combate interior deve ter a cada
instante estas quatro coisas: a humildade, uma atenção extrema, a refutação e a
prece. A humildade, porque o combate se opõe aos demônios orgulhosos, e para
ter a ajuda de Cristo ao alcance do coração, pois “o Senhor detesta os
orgulhosos[11]”.
A atenção, a fim de manter sempre o coração puro de todo pensamento, mesmo que
este pareça ser bom. A refutação, a fim de contestar o maligno imediatamente
com cólera, assim que ele surgir chegando. Foi dito: “Eu responderei aos que me
ultrajam: Não está minha alma submetida a Deus?[12]”
Enfim, a oração, a fim de chamar por Cristo com “gemidos inefáveis[13]”,
logo após a refutação. Então aquele que combate verá o inimigo se dissipar ante
a aparição de sua imagem, como a poeria ao vento ou a fumaça que evanesce,
expulso pelo nome adorável de Jesus.
21. Aquele cuja prece não é pura de pensamentos não
tem armas para o combate. Falo da prece que age infatigavelmente nas
profundezas inacessíveis da alma a fim de que, pela invocação de Cristo, o
adversário que nos combate em segredo seja fustigado e queimado.
22. Você deve observar com o olhar penetrante e
intenso do intelecto aqueles que entram. Quando você os reconhecer, você deve
imediatamente cortar a cabeça da serpente pela refutação. Ao mesmo tempo, chame
a Cristo com gemidos. Então você terá a experiência do socorro invisível de
Deus, e verá claramente a retidão do coração.
23. Assim como alguém que tem um espelho em mãos e o
mira em meio a outras pessoas vê seu próprio rosto e também os de todos os que
se inclinam para o mesmo espelho, também aquele que não cessa de se inclinar
sobre seu coração vê nele seu próprio estado, mas também enxerga os rostos
negros do Etíopes inteligíveis.
24. Mas o intelecto não consegue vencer sozinho a
imaginação demoníaca. Que ele não tenha esta audácia! Pois, astuciosos como
são, os demônios fingem ser vencidos, depois o farão estrebuchar pela
vanglória. Mas diante da invocação de Jesus Cristo eles não resistem, não
conseguem se manter nem enganar, ainda que por um instante.
25. Vigie para não pensar como a velha Israel, para
não ser também atirado aos inimigos inteligíveis. Libertado dos Egípcios pelo
Deus do universo, ela imaginou que um ídolo fundido poderia socorrê-la[14].
26. Como ídolo fundido você deve entender o intelecto
enfermo. Enquanto invocar a Jesus Cristo
contra os espíritos do mal, o intelecto os expulsará facilmente e, com arte
confirmada, porá em fuga as potências invisíveis e hostis do inimigo. Mas se
ele depositar tolamente toda sua confiança em si mesmo, mergulhará para baixo
como ave de rapina de asas rápidas. Foi dito: “Meu coração esperou em Deus; eu
fui socorrido e minha carne refloresceu[15]”.
E quem, senão o Senhor, me perdoará e se colocará ao meu lado para combater os
inumeráveis maus pensamentos[16]?
Quem coloca sua confiança em si mesmo e não em Deus cairá vertiginosamente.
27. E você, se quiser lutar, tome sempre como exemplo
a aranha, pois este pequeno animal é a imagem e a ordem da hesíquia do coração.
Senão, você ainda não se encontrará num estado conveniente de hesíquia em seu
intelecto. A aranha caça pequenas moscas. E você, se estiver em estado de
hesíquia e como ela penar em sua alma, não cessará jamais de exterminar as
crias da Babilônia. Por esta imolação o Espírito Santo o denominará
bem-aventurado pela boca de Davi[17].
28. Como é impossível que o Mar Vermelho apareça no
firmamento em meio às estrelas, e como não é possível a um homem que caminha
sobre a terra deixar de respirar seus ares, também é impossível purificar nosso
coração dos pensamentos passionais e dele expulsar os inimigos inteligíveis sem
a invocação contínua de Jesus Cristo.
29. Se, humildemente, lembrando-se da morte,
condenando a si mesmo, refutando o diabo e invocando a Jesus Cristo, você
passar todo o seu tempo dentro do seu coração, e se, revestido com esta
armadura, você caminhar sobriamente cada dia da sua vida sobre a via estreita e
segura, mas alegre e doce da reflexão, você alcançará as santas contemplações
dos santos mistérios, e Cristo iluminará suas profundezas, ele que traz “os
tesouros ocultos da sabedoria e do conhecimento[18]”
e “em quem habita corporalmente a plenitude da Divindade[19]”.
Pois Jesus lhe permitirá sentir que ele estabeleceu o Espírito Santo sobre a
sua alma, ele que ilumina o intelecto do homem para que este veja, com os olhos
descobertos. Está escrito: “Ninguém diz: ‘Senhor Jesus’ se não for no Espírito
Santo[20]”,
ou seja, quando ele descobre misticamente, com toda certeza, Aquele a quem
procura.
30. Aqueles que gostam de se instruir devem também
saber o seguinte: de tempos em tempos os demônios ciumentos escondem e afastam
para longe de nós o combate inteligível. Pois estes seres malvados invejam o
benefício que extraímos do combate, uma vez que este nos permite adquirir conhecimento
e nos aproximar de Deus. Então eles se aproveitam de nosso descuido para se
apoderar bruscamente de nosso intelecto, e conseguem levar alguns a
negligenciar novamente a reflexão. Seu combate tem sempre um único objetivo:
impedir nosso coração de estar atento, pois eles sabem o quanto isto o
enriquece. Portanto nós, com a ajuda da lembrança de nosso Senhor Jesus Cristo,
inclinemo-nos sempre para as contemplações espirituais, e a guerra se
reacenderá em nosso intelecto. Mas façamos tudo isto tomando conselho, por
assim dizer, com o próprio Senhor, e com muita humildade.
31. Nós, que vivemos em mosteiros, devemos, com
efeito, com boa vontade e coração fervoroso, suprimir toda vontade diante do
superior. Com a ajuda de Deus, nos tornaremos dóceis, também nós, e sem vontade
própria. Esta é a arte que nos convém, a fim de não sermos perturbados pela
cólera e não excitarmos nosso ardor irracionalmente e contra a natureza, ou não
teremos mais a liberdade para sustentar o combate invisível. Com efeito, nossa
vontade, se não a suprimimos de bom grado, tem o costume de se irritar contra
aqueles que tentam quebrá-la contra nossa vontade. Furioso, excitado pelo mal,
o ardor perde a seguir o conhecimento do combate, este conhecimento que
adquirimos com tanto sofrimento. Pois o ardor é, por natureza, destrutivo.
Excitado contra os pensamentos demoníacos, ele os arruína e destrói. Mas se, ao
contrário, ele troveja contra os homens, ele destrói do mesmo modo os bons
pensamentos que existem em nós. Vemos assim que o ardor destrói todos os tipos
de pensamentos, tanto bons quanto ruins, quando os encontra. Pois ele nos foi
dado por Deus como uma armadura e um arco, com a condição de não atirar nas
duas direções. Se o fizer, ele conduzirá à ruína, como um cão que, tão arrogante
como os lobos, ataca o rebanho das ovelhas.
32. É preciso fugir da familiaridade como do veneno da
áspide, e evitar, tanto quanto as serpentes e as áspides[21],
os encontros freqüentes. Estas coisas podem levar rapidamente ao esquecimento
total do combate interior, e derrubar a alma das alegrias do alto, que provêm
da pureza do coração. Pois o maldito esquecimento se opõe à atenção com a água
se opõe ao fogo: ele a combate a cada instante com toda sua força. Pois do
esquecimento caímos ma negligência, da negligência no desdém, na despreocupação
e nas concupiscências deslocadas. E assim andamos para trás, como o cachorro
que vomita e volta ao seu vômito[22].
Fujamos, portanto, da familiaridade como de um veneno mortal. Pois o mal
trazido pelo esquecimento e as conseqüências que ele encerra podem ser curados
por uma guarda rigorosa do intelecto e uma contínua invocação de nosso Senhor
Jesus Cristo. Pois sem ele nada podemos fazer[23].
33. Nem é permitido nem é possível ter amizade com uma
serpente e levá-la no colo. Tampouco é possível acalentar o corpo de todas as
maneiras, cuidar dele e amá-lo além de seus cuidados e necessidades, e ao mesmo
tempo dedicar-se às virtudes celestes. Pois a serpente fere naturalmente aquele
que a aquece. E o corpo suja no prazer aquele que prodiga cuidados com ele.
Quando ele vacilar, que seja dura e impiedosamente castigado e fustigado, como
um escravo fugitivo cheio de vinho doce, que pela flagelação conhece seu
Senhor, o qual por sua vez também foi fustigado. Que esta lama perecível,
escrava e noturna, não corra atrás dos mercadores de vinho, que ela não ignore
a vida incorruptível que a dirige. Não se fie na carne até a morte. Foi dito:
“A vontade da carne é inimiga de Deus. Ela não está submetida à lei de Deus. E
a carne deseja contra o Espírito. Aqueles que vivem para a carne não podem
agradar a Deus. Ora, nós não estamos na carne, mas no Espírito[24]”.
34. A obra da prudência consiste em sempre trazer o
ardor ao engajamento no combate interior e na condenação de si. A obra da sabedoria
é de levar a razão à sobriedade e à vigilância estritas e contínuas e à
contemplação espiritual. A obra da justiça é dirigir o desejo para a virtude e
para Deus. A obra da coragem é de governar e conter os cinco sentidos, a fim de
que eles não sujem nem nosso homem interior, ou seja, o coração, nem o homem
exterior, o corpo.
35. “Sobre Israel seu esplendor[25]”:
vale dizer, sobre o intelecto que vê, tanto quanto possível, a beleza da glória
do próprio Deus. “E nas nuvens seu poder[26]”:
vale dizer, nas almas luminosas que contemplam na manhã Aquele que está à
direita do Pai e que as cobre com sua irradiação, como o sol que atravessa com
seus raios as nuvens puras e revela ao olhar uma beleza que encanta.
36. Aquele que peca, diz a Escritura, perde uma grande
justiça. O intelecto que peca destrói as bebidas e comidas da eternidade de que
falamos.
37. Não somos mais fortes do que Sansão, nem mais
sábios do que Salomão. Também não possuímos mais conhecimento do que o divino
Davi. Tampouco amamos mais a Deus do que Pedro do Corifeu[27].
Portanto, não coloquemos nossa confiança em nós mesmos. Pois a Escritura diz:
“Quem coloca sua confiança em si mesmo tombará numa queda vertiginosa”.
38. Aprendamos com Cristo a humildade, com Davi a
humilhação, com Pedro a chorar com o que nos acontece. Mas não aprendamos a
recusar reconhecer nossa falta, como Sansão, Judas e Salomão o sábio.
39. Pois, com estes poderes, o diabo ronda, qual leão
que ruge, buscando a quem devorar[28].
Que jamais cessem, portanto, a constante atenção do coração, a sobriedade e a
vigilância – a nepsis – a contestação e a prece de Jesus Cristo nosso
Deus. Pois você não encontrará mais em sua vida socorro mais forte fora Jesus.
Somente o próprio Senhor, por ser Deus, conhece os truques, as fraudes e as espertezas
dos demônios.
40. Assim, que a alma coloque sua confiança em Cristo,
que ela o invoque e que não tenha nunca medo. Pois ela não combate só, mas com
o Rei terrível, Jesus Cristo, Criador de todos os seres, incorpóreos e
corpóreos, ou seja, invisíveis e visíveis.
41. Quanto mais a chuva cai, mais ela molha o solo. Da
mesma forma, o santo nome de Cristo enche de alegria e regozijo a terra de
nosso coração, quando o chamamos e invocamos frequentemente.
42. É bom que aqueles que não têm experiência saibam
igualmente o seguinte: nós temos inimigos incorpóreos, invisíveis, malfeitores,
hábeis em fazer o mal, ágeis, rápidos, dedicados ao combate desde os tempos de
Adão até nossos dias. E nós, que somos pesados e nos inclinamos para a terra
com todo nosso corpo e todo nosso pensamento, não podemos vencê-los de modo
algum, se não por uma sobriedade e vigilância contínuas do intelecto e pela
invocação de Jesus Cristo, nosso Deus e nosso Criador. Para aqueles que não têm
a experiência, que a prece de Jesus seja também um convite a provar e conhecer
o bem; e para aqueles que têm a experiência, que ela seja a prática, a pedra de
toque e o repouso no bem, a melhor maneira e o melhor mestre.
43. Assim como uma criança, que não tem malícia, sente
prazer em ver um ilusionista e o segue em sua inocência, também nossa alma, que
é simples e boa tal como foi criada por seu bom Mestre, sente prazer nas
sugestões das imagens que o diabo suscita e, enganada, corre para o pior como
se fosse para um bem, como a pomba que corre para quem coloca armadilhas para
seus filhotes. A alma mistura assim seus pensamentos às imagens suscitadas pela
sugestão demoníaca. Se acontece de aparecer o rosto de uma bela mulher, ou
outra coisa estritamente proibida pelos mandamentos de Cristo, ela deseja
segui-la a fim de captar para si aquilo que viu de belo. Ela chega assim ao
consentimento, e não lhe resta mais do que passar ao ato, cometendo em seu
corpo a falta que ela viu em pensamento,
para sua própria condenação.
44. Tal é a arte do maligno. É com estas flechas que
ele envenena a alma. É por isso que não é prudente, enquanto o intelecto ainda
não adquiriu uma grande experiência no combate, deixar entrar os pensamentos em
nosso coração, sobretudo no início. Pois no começo, nossa alma fica encantada
com as sugestões demoníacas e se compraz em segui-las. Mas basta percebê-las e
imediatamente afastá-las, assim que elas brotam e atacam. Porém, uma vez que o
intelecto passou algum tempo nesta obra admirável, que ele se exercitou, que
ele compreendeu e adquiriu o hábito incessante do combate que lhe permite
conhecer verdadeiramente os pensamentos, e que, como diz o Profeta, ele
aprendeu a capturar facilmente a raposinhas[29],
então ele pode deixar os pensamentos entrarem, com conhecimento de causa, e denunciá-los.
45. Assim como é impossível o fogo e a água passarem
juntos por um mesmo conduto, também o pecado não pode penetrar no coração sem
antes bater à sua porta servindo-se de uma imagem má projetada pela sugestão.
46. Primeiramente chega a sugestão. Em segundo lugar a
ligação, vale dizer, quando nossos pensamentos se misturam aos dos demônios
maus. Em terceiro lugar vem o consentimento, examinando o que fazer entre os
dois pensamentos que desejam o mal. Em quarto lugar vem o ato sensível, ou seja,
o pecado. Porém, se o intelecto estiver atento, sóbrio e vigilante, e se, pela
contestação e a invocação do Senhor Jesus ele põe em fuga a sugestão assim que
ela brota, as coisas ficam por aí. Pois o maligno é uma inteligência
incorpórea: ele não pode enganar as almas senão pelas imaginações e os
pensamentos. Davi fala a respeito da sugestão: “De manhã a matei[30]”,
etc.; e o grande Moisés diz do consentimento: “Não pactuarei com eles[31]”.
47. O combate faz com que se atraquem invisivelmente
dois intelectos: o do demônio e o nosso. É por isso que é preciso a cada
instante chamar desde as profundezas por Cristo[32],
porque ele expulsa a inteligência do demônio e nos dá o prêmio da vitória, por
seu amor ao homem.
48. Que aquele que segura um espelho e nele coloca seu
olhar seja para você uma imagem da hesíquia do coração; você então verá em seu
coração, inscritos pela mesma inteligência, o mal e o bem.
49. Vigie sempre para nunca ter em seu coração nenhum
pensamento, nem racional, nem irracional, a fim de que lhe seja mais fácil
reconhecer os estrangeiros, ou seja, os primogênitos dos Egípcios.
50. Que boa e deliciosa virtude é a nepsis, unindo
a sobriedade à vigilância, luminosa e doce, toda bela, resplendente e cheia de
encanto. Com que facilidade nos abre seu caminho, Cristo Deus! Assim o
intelecto desperto do homem avança com grande humildade. Pois ele estende seus
ramos até o mar e o abismo das contemplações, e seus brotos até os rios dos
divinos mistérios gozosos[33].
Ela rega o intelecto há tanto tempo queimado de impiedade pelos tormentos dos
maus pensamentos dos espíritos e pela hostilidade da carne, ou seja, pela morte
51. A nepsis é semelhante à escada de Jacó
sobre a qual está Deus e pela qual sobem os anjos[34].
Pois ela elimina todo mal que está em nós. Ela afasta a tagarelice, a injúria,
a maledicência e toda a série de males sensíveis. Ela não suporta ser privada
por eles de sua própria doçura, mesmo que seja um pouco só.
52. Busquemo-la, meus irmãos, com todo nosso coração,
voemos naquilo que lhe permite ver o puro reflexo de nosso intelecto em Jesus
Cristo. Dirijamos nosso olhar para nossos pecados e nossa vida anterior, a fim
de que, contritos e humilhados pela lembrança de nossos pecados, possamos
receber neste combate invisível o socorro incessante de Jesus Cristo nosso
Deus. Pois, privados do socorro de Jesus pelo orgulho, a vanglória e o amor
próprio, perdemos a pureza de coração por meio da qual Deus se deu a conhecer
ao homem. Segundo a promessa, de fato, a causa do conhecimento é a pureza[35].
53. Além das benesses que recebe do trabalho contínuo
da guarda do coração, o intelecto que não negligencia sua obra secreta verá
igualmente os cinco sentidos do corpo desembaraçados dos males exteriores. Pois
aquele que se aplica totalmente à virtude interior, à sobriedade e à
vigilância, e que deseja se dedicar às delícias dos belos pensamentos, não
suporta ser roubado pelos cinco sentidos, quando lhe chegam pensamentos
materiais e vãos. Mas, sabendo bem como eles são enganosos, ele os reprime
fortemente dentro de si.
54[36].
Permaneça na reflexão do intelecto e você não terá que penar nas tentações. Mas
se você se afastar, agüente o que vier.
55. Assim como o absinto amargo faz bem aos que tem
pouco apetite, também é bom, para os que se comportam mal, sofrer o mal.
56. Se você não quiser sofrer o mal, recuse-se a fazer
o mal. Pois uma coisa se segue à outra inevitavelmente. Cada qual colherá
aquilo que semeou[37].
Quando semeamos voluntariamente o mal e o colhemos contra nossa vontade,
devemos nos admirar da justiça de Deus.
57. O intelecto é cegado por estas três paixões, o
amor ao dinheiro, a vanglória e o prazer.
58. O conhecimento e a fé, estes dois companheiros da
nossa natureza, não são empanados por
outra coisa do que estas três paixões.
59. Por causa delas, o furor, a cólera, a guerra, os
assassinatos e toda a série dos outros males têm predominado gravemente entre
os homens.
60. Quem não conhece a verdade não pode crer
verdadeiramente, pois o conhecimento precede naturalmente a fé. O que é dito
nas Escrituras não é dito apenas para que o compreendamos, mas para que o
coloquemos em prática.
61. Ponhamo-nos, portanto, a trabalhar. Assim
progredindo constantemente, encontraremos a esperança em Deus, a lei firme, o
conhecimento interior, a libertação das tentações, o sentido dos carismas, a
confissão do coração e as lágrimas abundantes chegarão aos fiéis através da
prece. E não apenas isto, mas também a paciência nas tribulações, o perdão
sincero concedido ao próximo, o conhecimento da lei espiritual, a descoberta da
justiça de Deus, a vinda do Espírito Santo, o dom dos tesouros espirituais e
tudo o mais que Deus prometeu aos homens fiéis daqui de baixo e também no
século futuro, em uma palavra, a revelação da alma à imagem de Deus – tudo isto
é impossível se não for pela graça de Deus e pela fé do homem que, com muita
humildade e uma oração constante, persevera na reflexão do intelecto.
62. Recebemos da experiência um bem verdadeiramente
grande: aquele que quer purificar seu coração deve invocar continuamente o
senhor Jesus contra os inimigos inteligíveis. E veja como o termo ‘experiência’
concorda com os testemunhos da Escritura. Ela diz: “Prepare-se, Israel, para
invocar o nome do Senhor seu Deus[38]”.
E o Apóstolo: “Orai sem cessar[39]”.
E nosso Senhor diz: “Vocês nada podem sem mim. Quem permanece em mim, e eu
nele, este dará muitos frutos.” E também: “Se ele não permanecer em mim, será
atirado fora como o ramo seco da vinha[40]”.
A prece é um grande bem, e ela contém todos os outros bens, pois ela purifica o
coração no qual Deus se faz ver aos fiéis.
63. Como o bem da humildade nos eleva por natureza, e
porque ele é amado por Deus, destruindo quase tudo o que é mau e desagrada a
Deus, ele é naturalmente difícil de adquirir. Podemos facilmente encontrar em
um homem os brotos parciais de muitas virtudes, mas se procurarmos nele o
perfume da humildade, dificilmente encontraremos. É por isso que é preciso
muita atenção para adquirir este bem. A Escritura diz que o diabo é impuro.
Pois desde a origem ele repugnou a humildade e amou o orgulho; assim, em todas
as Escrituras ele é chamado de espírito impuro[41].
Mas que impureza corporal poderia cometer um espírito totalmente sem corpo, sem
carne, sem lugar definido, para que seja chamado de impuro? É claro que ele é
chamado de impuro por causa de seu orgulho e que, de anjo luminoso que era,
sujou-se manifestamente. Todo homem que eleva a si mesmo em seu coração é
impuro diante do Senhor[42].
Com efeito, foi dito: “O primeiro pecado é o orgulho[43]”.
Assim falava o Faraó orgulhoso: “Eu não conheço seu Deus e não deixarei que
parta Israel[44]”.
64. Entretanto, se não negligenciarmos nossa salvação,
existem muitas operações do intelecto capazes de nos fornecer o dom precioso da
humildade: por exemplo, a lembrança dos pecados cometidos em palavras, atos e
pensamentos, recolhidos pela contemplação, concorrem para a humildade. Também
isto engendra uma humildade verdadeira: repassar a cada dia em nosso intelecto
as boas obras de nossos próximos, magnificar diante de nós mesmos suas vantagens
naturais e compará-las com as nossas Vendo assim o intelecto sua própria
mediocridade e o quanto está distante da perfeição dos irmãos, o homem
considera a si mesmo como terra e cinzas[45],
não um homem mas um cão, o último dos últimos de todos os homens racionais
sobre a terra, e muito distante deles.
65. A boca de Cristo, a coluna da Igreja, nosso Pai
Basílio o Grande, disse: “Para não pecar, nem cair no dia seguinte nas mesmas
faltas, é bom, ao final de cada dia, interrogar a nós mesmo em nossa
consciência sobre nossa conduta, sobre o mal que cometemos e o bem que fizemos[46]”.
É o que Jacó fazia para si e seus filhos[47].
O exame cotidiano da consciência esclarece de fato o dever de cada hora.
66. Outro dentre os sábios que conhecem as coisas de
Deus disse também: “O começo do fruto é a flor e o começo da ascese é a
temperança[48]”.
Sejamos, portanto, moderados, com critério e ponderação, como os Padres nos
ensinaram. Passemos as doze horas do dia vigiando o intelecto. Se agirmos
assim, poderemos, com a graça de Deus e nos impondo alguma violência, reduzir e
extinguir o mal. Pois esta violência forçará à conduta virtuosa por meio da
qual nos é dado o Reino dos céus[49].
67[50].
O caminho que leva ao conhecimento é a impassibilidade e a humildade, sem as
quais ninguém verá o Senhor.
68. Aquele que está permanentemente ocupado com seu
mundo interior não apenas é casto, como contempla, é um teólogo e ora. É o que
diz o Apóstolo: “Caminhem no Espírito, e vocês não cumprirão os desejos da
carne[51]”.
69. Aquele que não sabe caminhar sobre a via
espiritual não se preocupa com os pensamentos passionais: ele só se ocupa da
carne. Ou ele se abandona à gulodice e ao deboche, ou fica triste, ou se
encoleriza e guarda rancor. Com isso ele entenebrece o intelecto. Ou então ele
se atira a uma ascese sem medida e perturba a reflexão.
70. Quem renunciou a coisas tais como possuir uma
mulher, riquezas e tudo mais, fez monge seu homem exterior, mas não ainda o
interior. Mas quem renunciou aos pensamentos passionais do homem interior – ou
seja, do intelecto – é um verdadeiro monge. É fácil tornar-se monge
exteriormente, quando se quer. Mas não é um pequeno combate tornar monge o
homem interior.
71. Mas quem, nesta geração, está totalmente liberto
dos pensamentos passionais e se tornou digno de ter em si continuamente a
oração pura e imaterial? Ora, este é o sinal do monge interior.
72. Numerosas paixões se escondem em nossas almas. Nós
só as denunciamos realmente quando aparecem as suas causas.
73. Não se ocupe apenas com sua carne. Mas dedique-lhe
uma ascese na medida do seu possível, e volte todo o seu intelecto para o
interior. “Pois o exercício corporal tem pouca utilidade, enquanto a piedade é
útil a tudo[52]”.
74. O orgulho chega quando as paixões deixam de se
levantar, seja porque suas causas foram afastadas, seja porque os demônios
insidiosamente fingiram se retirar.
75. A humildade e a vida dura libertam o homem de
todos os pecados. Uma afasta as paixões da alma, a outra as do corpo. É por
isso que o Senhor disse: “Bem-aventurados os corações puros, porque eles verão
a Deus[53]”,
ele e os tesouros que estão nele, quando eles forem purificados pelo amor e a
temperança, e eles o verão na mesma medida em que tiverem cultivado e feito
crescer em si a purificação.
76. O lugar de onde se podem observar tudo o que diz
respeito à virtude é a guarda do intelecto. Assim outrora a sentinela de Davi
significava antes de tudo a circuncisão do coração[54].
77. Assim como morremos em nossos sentidos quando
observamos algo que nos é nocivo, também morremos em nossa inteligência.
78. Quem fere o coração de uma planta seca-a por
inteiro. Observe que o mesmo acontece com o coração do homem. É neste instante
que é mais necessário vigiar, pois os ladrões não repousam jamais.
79[55].
Querendo mostrar que todo mandamento obriga, mas que a filiação adotiva foi
dada aos homens pelo seu próprio sangue, o Senhor disse: “Quando vocês tiverem
feito o que foi prescrito, digam: Somos servidores inúteis, pois fizemos o que
devíamos fazer[56]”.
É por isso que o Reino dos céus não é o salário das obras, mas uma graça do
Mestre preparada para os servidores fiéis. O escravo não reclama a liberdade
como um salário, mas o recebe como uma graça, e testemunha seu reconhecimento
porque é devedor.
80. Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras[57],
e concedeu o dom da liberdade àqueles que o servem bem. Com efeito, ele disse:
“Servidor bom e fiel, você foi fiel nas pequenas coisas e eu o estabelecerei
sobre muitas. Participe da alegria do seu Senhor.[58]”
Aquele que se apóia sobre o simples conhecimento não é ainda um servidor fiel;
o servidor fiel é aquele que, pela obediência, se entrega ao Cristo que ordena.
81. Aquele que honra o Mestre faz o que ele lhe
ordena. Mas se cair ou desobedecer, deve agüentar as conseqüências de seus
atos. Se você ama aprender, goste também do sofrimento. Pois o simples
conhecimento infla o homem[59].
82. As provações que nos chegam sem que as esperemos
nos ensinam providencialmente a amar o sofrimento voluntariamente.
83. É próprio da estrela a luz com a qual ela se
envolve. É próprio do homem que venera e teme a Deus a simplicidade e a
humildade. Pois não há outro sinal que dê a conhecer os discípulos de Cristo do
que um sentimento humilde e um exterior simples. É isto que não cessam de
proclamar os quatro Evangelhos. Quem não vive assim, ou seja, humildemente,
perde a parte d'Aquele que humilhou a si mesmo até a cruz e a morte[60],
ele que deu e pôs em prática a lei dos divinos Evangelhos.
84. Ele disse: “Vocês que têm sede, venham até a água[61]”.
Vocês que têm sede de Deus, venham para a pureza da reflexão. Porém aquele que,
por meio dela, voa alto, deve também olhar para a terra de sua própria
simplicidade. Pois ninguém é mais elevado do que o humilde. Assim como tudo é
escuro e tenebroso quando falta a luz, da mesma forma, quando falta a humildade
tudo o que nos esforçamos para fazer no sentido de agradar a Deus é vão e
fútil.
85. Escute o fim do discurso, seu todo: tema a Deus e
guarde seus mandamentos[62]
em seu intelecto e nos seus sentidos. Se você violenta seu intelecto para os
observar, você terá poucas ocasiões para sofrer nos seus sentidos por sua
causa. É o que disse Davi: “Eu quis realizar em meu seio a sua vontade e a sua
lei[63]”.
86. Se o homem não cumpriu em seu seio, ou seja,
dentro de seu coração, a vontade de Deus e a lei, ele tampouco conseguirá
colocar estas coisas em prática no seu exterior. Aquele que não é sóbrio e
vigilante, mas indiferente, dirá a Deus: “Eu não quero conhecer os seus
caminhos[64]”,
e o dirá com toda segurança, porque lhe falta a iluminação divina. Mas aquele
que participa da iluminação, por pouco que seja e sem nenhuma incerteza, será
sempre capaz de assumir as coisas de Deus.
87. O sal sensível dá sabor ao pão e a todos os
alimentos, impede que certas carnes apodreçam e as conserva por muito tempo.
Observe que o mesmo acontece com a guarda do intelecto, com a doçura
inteligível e a obra maravilhosa. Pois ela cumula de sabor divino tanto o homem
interior como o homem exterior, expulsa o odor fétido dos maus pensamentos e nos
permite perseverar no bem.
88. Da mesma sugestão nascem numerosos pensamentos, e
destes nasce a má ação sensível. Mas aquele que, com Jesus, extingue
imediatamente a primeira, escapará aos seguintes e será enriquecido com o doce
conhecimento divino por meio do qual encontrará Deus que está presente em toda
parte. Mantendo diante de Deus o espelho do intelecto, ele estará continuamente
iluminado, à imagem do cristal puro e do sol sensível. Então, tendo alcançado o
cume último dos desejos, o intelecto ali repousará de todas as outras
contemplações.
89. Todo pensamento penetra no coração pela imagem das
coisas sensíveis. Mas quando o intelecto é despojado de todos os pensamentos e
das formas que estes lhe impõem, então brilha a bem-aventurada luz da Divindade,
se neste momento, graças ao vazio de todos os pensamentos, este esplendor se
revelar subitamente ao intelecto puro.
90. Quanto mais profundamente atento você estiver à
reflexão do seu intelecto, mais você rezará a Jesus com todo o seu desejo. Ao
contrário, quanto mais negligente você for em vigiar a reflexão, mais você se
afastará de Jesus. E assim como a atenção ilumina ao extremo o espaço da
reflexão, também o abandono da nepsis – a sobriedade e a vigilância – e
da doce invocação de Jesus o entenebrecerá inteiramente. Estas coisas são da
ordem da natureza, como já dissemos, e não podem ser de outro modo. Você
compreenderá isto pela experiência e quando o tiver provado pela ação. Pois a
virtude é singularmente esta obra deliciosa que gera a luz, e só pode ser
aprendida pela experiência.
91. A invocação contínua de Jesus, quando acompanhada
de um desejo cheio de doçura e alegria, permite ao espaço do coração se encher
sozinho de alegria e serenidade pela graça da atenção extrema. Mas quem leva
até o fim a purificação do coração é Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, que é
a origem e o criador de todos os bens. Pois ele disse: “Eu sou o Deus que dá a
paz[65]”.
92. A alma cheia de benesses e de doçura por Jesus,
responde ao Benfeitor pela ação da graça na exultação e no amor. Ela agradece e
chama com alegria Àquele que a pacifica. Ela o vê pelo intelecto dissipar em
seu interior as imaginações dos espíritos maus.
93. Davi disse: “O olho do meu intelecto viu meus
inimigos inteligíveis. E meu ouvido escutou aqueles que se levantaram contra
mim para me fazer mal[66]”.
E: “Eu vi em mim o salário que os pecadores receberam de Deus[67]”.
Quando não existem mais imaginações no coração, o intelecto encontra-se em seu
estado natural, pronto a se voltar para toda contemplação deliciosa, espiritual
e amada por Deus.
94. Assim, portanto, como eu lhe disse, a nepsis
e a prece de Jesus se fundamentam naturalmente. A atenção extrema fundamenta a
prece contínua e, reciprocamente, a prece fundamenta a inteligência na
sobriedade, na vigilância e na atenção extrema.
95. Um bom pedagogo do corpo e da alma é a lembrança
contante da morte. E, ultrapassando tudo o que, neste ínterim, nos separa dela,
vê-la sempre por antecipado, enxergar o próprio leito em que agonizaremos, e
todo o resto.
96. Irmãos, não é possível que o sono tome aquele que
quer sempre escapar aos ferimentos. Das duas uma: ou bem caímos e perecemos,
despojados das virtudes; ou, com o intelecto sempre armado, nos mantemos
atentos. Pois nosso inimigo está também sempre em pé com suas tropas armadas
para o combate.
97. A lembrança e a invocação contínua de nosso Senhor
Jesus Cristo suscitam em nossa inteligência um certo estado divino, se não
negligenciarmos nem esta prece constante que dirigimos ao Senhor em nosso
intelecto, nem a estrita sobriedade unida à vigilância, nem o trabalho da
supervisão. Agarremo-nos à obra da invocação de Jesus Cristo nosso Senhor, esta
obra sempre recomeçada, chamando com um coração de fogo, a fim de comungar com
o santo nome de Jesus. Pois, pela virtude como pelo vício, a repetição é mãe do
hábito, e este, como uma segunda natureza, dirige o resto. Chegando a um tal
estado, o intelecto procura os adversários, como um cão de caça busca a lebre
nos campos. Mas o cão procura para comer; e o intelecto para destruir.
98. Assim que acontecer de os maus pensamentos se
multiplicarem em nós, lancemos em meio deles a invocação de nosso Senhor Jesus
Cristo. Nós então os veremos dissipar-se imediatamente como a fumaça no ar, tal
como nos ensinou a experiência. E com o intelecto enfim só. Retomemos a atenção
contínua e a invocação. Tão logo a tentação nos faça sofrer tais coisas, é
assim que devemos agir.
99. Assim como não é possível nos dirigirmos ao
combate com o corpo nu, ou nadarmos no mar inteiramente vestidos, ou vivermos
sem respirar, também sem nos humilharmos, sem suplicarmos continuamente a
Cristo, é impossível aprender o combate espiritual e o segredo do intelecto, é
impossível nos tornarmos hábeis na arte de perseguir e afastar o diabo.
100. O grande Davi, que possuía uma profunda
experiência na ação, disse ao Senhor: “Eu guardarei para ti a minha força[68]”.
Assim, manter em nós a força da hesíquia do coração e do intelecto, da qual
nascem todas as demais virtudes, só nos é possível porque o Senhor nos ajuda,
ele que deu os mandamentos, que afasta de nós a sujeira do esquecimento quando
o chamamos continuamente, este esquecimento que destrói sobretudo a hesíquia do
coração, tanto quanto a água extingue o fogo. É por isso, monge, que você não
deve adormecer na morte[69]
pela negligência, mas fustigar os inimigos com o nome de Jesus. Como disse um
sábio: “Que o nome de Jesus cole em sua respiração. Então você conhecerá o
socorro da hesíquia[70]”.
101. Quando a nós, os indignos, é permitido aproximar
com temor e tremor dos Mistérios divinos e puros de Cristo nosso Deus e nosso
Rei, é sobretudo nesta hora que devemos dar provas de sobriedade, de
vigilância, de rigor e guardarmos o intelecto, a fim de que o fogo divino, vale
dizer, o Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, consuma nosso pecados e nossas
sujidades, pequenas e grandes. Pois quando ele penetra em nós, ele
imediatamente expulsa do coração os pérfidos espíritos do mal, e perdoa nossos
pecados passados. Então o intelecto se livra da perturbação dos maus
pensamentos. Se depois de tudo isso guardarmos rigorosamente nosso intelecto e
nos mantivermos à porta de nosso coração quando novamente nos for dado nos
aproximar dos Mistérios, o Corpo divino iluminará cada vez mais o intelecto,
tornando-o semelhante às estrelas.
102. O esquecimento é capaz de extinguir a guarda do
intelecto, como a água extingue o fogo. Mas a prece contínua de Jesus, unida à nepsis
constante, acaba por expulsá-lo totalmente do coração. Pois a oração tem
necessidade da sobriedade e da vigilância, como a mecha precisa da luz da
lâmpada.
103. É preciso nos esforçarmos para manter aquilo que
nos é precioso. Ora, o que nos é mais precioso, na verdade, é aquilo que nos
guarda de todo mal sensível ou inteligível. São: a guarda do intelecto, unida à
invocação de Jesus Cristo; observar sempre o fundo do coração; manter a
reflexão do intelecto sem cessar em estado de hesíquia a fim de permanecer
separado, por assim dizer, até mesmo dos pensamentos que parecem bons; suportar
manter-se vazio de pensamentos, para que neles não se escondam os ladrões. E se
assim trabalharmos para permanecer em nosso coração, próxima estará a
consolação.
104. Pois o coração que é guardado sem relaxamento e
que não consente em receber as formas, as imagens e os fantasmas dos espíritos
tenebrosos e maus, engendra naturalmente pensamentos luminosos. De fato, assim
como o carvão faz nascer a chama, também – e bem mais – Deus, que permanece no
coração desde o batismo, ao encontrar o espaço de nossa reflexão puro dos ventos
da malícia e preservado pela guarda do intelecto, ilumina nossa faculdade de
refletir para abri-lo à contemplação, como a chama ilumina a vela.
105. É necessário que façamos girar sempre no espaço
de nosso coração o nome de Jesus Cristo, como o relâmpago sulca o firmamento
quando a chuva está prestes a cair. Isto sabem-no muito bem aqueles que tiveram
a experiência do intelecto e do combate interior. Portanto, devemos conduzir o
combate interior na seguinte ordem: primeiro a atenção; depois, tendo reconhecido
o inimigo quando nos atira um pensamento, atacá-lo com cólera em nosso coração,
com palavras de maldição; enfim, em terceiro lugar, orar imediatamente para nos
opormos a ele, reunindo o coração pela invocação de Jesus Cristo, a fim de que
seja dissipada a imagem demoníaca, para que o intelecto não siga o fantasma,
como uma criança enganada pelo ilusionista.
106. Esforcemo-nos, como Davi, em gritar “Senhor Jesus
Cristo”. Que nossa garganta fique rouca. E que os olhos de nosso intelecto não
deixem de esperar no Senhor nosso Deus[71].
107. Se nos lembrarmos constantemente da parábola do
juiz iníquo, pela qual o Senhor nos diz que devemos orar continuamente e sem
descanso[72],
encontraremos nosso ganho e nossa justiça.
108. É impossível que aquele que olha para o sol não
tenha seus olhos inundados de luz. Também aquele que se inclina sempre sobre o
espaço de seu coração não pode deixar de ser iluminado.
109. Assim como é impossível viver a vida presente sem
comer e sem beber, também sem a guarda do intelecto e a pureza do coração – que
é o que chamamos de nepsis, a vigilância e a sobriedade – é impossível
que a alma alcance seja lá o que for de espiritual e que agrade a Deus, que ela
se libere do pecado que ela comete bem pensamento, ainda que nos violentemos para
não pecar por medo dos castigos.
110. Porém, aqueles que, violentando-se, se abstêm do
pecado em ato, são também bem-aventurados diante de Deus, dos anjos e dos
homens, pois eles são os violentos que se apoderam do Reino dos Céus[73].
111. Tal é o admirável socorro que o intelecto recebe
da hesíquia: todos os pecados ferem primeiro o intelecto sob a forma simples de
pensamentos, que só se tornam pecados sensíveis e consistentes se forem
acolhidos pela reflexão. As virtudes da reflexão, da sobriedade e da vigilância
afastam todos os pecados e, pela influência e assistência de nosso Senhor Jesus
Cristo, não lhes permitem penetrar em nosso interior e se transformar em maus
pensamentos.
112. O Antigo Testamento é a imagem da ascese
corporal, exterior e sensível. Mas o santo Evangelho – ou o Novo Testamento – é
a imagem da atenção, ou seja, da pureza do coração. O Antigo Testamento não
tornou perfeito o homem interior, nem lhe deu a plena medida do culto a Deus. É
o que disse o Apóstolo: “A lei não tornou ninguém perfeito[74]”.
Ela apenas proibia os pecados consistentes. Mas afastar do coração os
pensamentos e os desejos maus – que é o mandamento do Evangelho – vale mais
para a pureza da alma do que proibir de arrancar o olho ou o dente do próximo.
O mesmo acontece com a justiça e a ascese corporais, ou seja, o jejum, a
temperança, dormir em leito duro, permanecer em pé, a vigília e todas as demais
coisas que afetam naturalmente o corpo e acalmam sua parte passional livrando-o
do pecado ativo. Estas coisas também eram consideradas boas no Antigo
Testamento. Pois elas educam nosso homem exterior e nos guardam das paixões
ativas. Mas esta pedagogia não nos
protege, nem nos interdita pecar em pensamento, de maneira a nos libertar do
ciúme, da cólera e de todo o resto, com a ajuda de Deus.
113. Mas se a observarmos como se deve, a pureza do
oração, ou seja a vigilância e a guarda do intelecto, cujo signo é o Novo
Testamento, afasta do coração todas as paixões e todo mal até a raiz; e coloca
em seu lugar a alegria, a confiança, a compunção, o luto, as lágrimas, o
conhecimento de nós mesmos e de nossos pecados, a lembrança da morte, a
verdadeira humildade, um amor sem limites por Deus e pelos homens e o eros
divino do coração.
114. Assim como não é possível caminhar sobre a terra
sem cortar o ar, também é impossível que o coração do homem não seja
continuamente atacado pelos demônios ou secretamente operado por eles, mesmo se
ele se dedicar a uma grande ascese corporal.
115. Se você quiser, no Senhor, ser além de um bom monge
na aparência, comedido, sempre unido a Deus, se você o quiser verdadeiramente,
busque om todas as suas forças a virtude da atenção, que é a guarda e a
supervisão do intelecto, a perfeição do coração obtida pela doce hesíquia, o
estado bem-aventurado da alma fora de toda imaginação, coisa que só encontramos
em poucos.
116. Isto é o que chamamos de filosofia do Intelecto.
Siga seu caminho com muita sobriedade e vigilância, com um zelo ardente e com a
prece de Jesus, com humildade e concentração, no silêncio dos lábios sensíveis
e inteligíveis, comendo e bebendo moderadamente, e guardando-se de qualquer
coisa que possa levar ao pecado. Siga seu caminho, o caminho da reflexão, com
ciência e prudência. E a própria reflexão lhe ensinará com a ajuda de Deus aquilo
que você não sabe. Ela o ensinará, esclarecerá, explicará e lhe dará a conhecer
o que até então sua inteligência não era capaz de conhecer, quando você
caminhava na obscuridade das paixões e das obras tenebrosas, quando você estava
coberto por um abismo de esquecimento e confusão.
117. Assim como o trigo dá em abundância nos vales,
também a virtude da atenção produz em abundância todos os bens no coração. Ou
melhor, quem lhe dará estas coisas será nosso Senhor Jesus Cristo, sem quem nós
nada podemos fazer[75].
Você encontrará esta virtude primeiramente como uma escada, depois como um
livro lido. Progredindo mais, você a descobrirá como a Jerusalém celeste e verá
claramente em seu intelecto a Cristo, o Rei dos poderes de Israel, com seu Pai
consubstancial e o adorável Espírito Santo.
118. Os demônios nos incitam sempre a pecar pela
imaginação enganadora. De fato, foi pela imaginação da avareza e do ganho que
eles prepararam o infeliz Judas a entregar o Senhor e Deus do universo. Por um
falso conforto material ínfimo, por uma falsa honraria, um falso ganho, uma
falsa glória, eles colocaram a corda em seu pescoço[76]
e o entregaram à morte eterna. Foi assim que eles o recompensaram, exatamente
ao contrário do que haviam prometido, ou seja, da sugestão que lhe haviam
feito.
119. Veja como pela imaginação, a mentira e as
promessas vãs os inimigos de nossa salvação nos fazem cair. O próprio Satanás
foi precipitado das alturas como um raio[77]
por ter-se imaginado igual a Deus. Foi igualmente assim que ele separou Adão de
Deus, fazendo-o imaginar que ele possuía a dignidade divina[78].
E é assim que o inimigo ardiloso e mentiroso continua a enganar os pecadores[79].
120. Nós enchemos de amargura o coração com o veneno e
a malícia dos pensamentos quando, na negligência a que somos levados pelo
esquecimento, nos afastamos por demasiado tempo da atenção e da prece de Jesus.
Mas somos cumulados da doçura de sentir e experimentar como um encantamento a
benfazeja exultação quando, no lugar em que opera a reflexão, alcançamos harmoniosamente,
pelo eros divino, a atenção e a
prece, com força e fervor. Pois então nós nos apressamos em caminhar na
hesíquia do coração, por nada além do que o doce prazer e as delícias com que é
preenchida toda a alma.
121. A ciência das ciências e a arte das artes
consistem em combater os maus pensamentos. A melhor maneira e a arte de
combatê-los consiste em ver no Senhor a imagem que eles nos sugerem e de
guardar a reflexão e o intelecto, assim como guardamos os olhos da carne,
servindo-nos deles para distinguir o que pode feri-los, afastando deles toda
palha, na medida em que o possamos.
122. Assim como a neve jamais poderá gerar a chama,
nem a água poderá gerar o fogo, nem o espinheiro poderá dar figos, também o
coração do homem não será liberto dos pensamentos, das palavras e das obras
demoníacas se não for purificado por dentro, se não tiver unido a sobriedade e
a vigilância à prece de Jesus, se não tiver obtido a humildade e a hesíquia da
alma, se não tiver buscado e caminhado com muito fervor. Ao contrário, é
inevitável que a alma desatenta seja privada dos pensamentos bons e perfeitos,
como uma mula estéril que não tem o senso da prudência espiritual[80].
A verdadeira paz espiritual consiste na obra doce, no nome de Jesus e na kénose – a vacuidade, o despojamento de
si – dos pensamentos passionais.
123. Quando a alma se entende com o corpo para fazer o
mal, juntos eles constroem uma cidadela de vanglória e uma torre para o orgulho[81],
aonde vão habitar os pensamentos ímpios. Mas pelo temor à Geena, o Senhor
queima e destrói seu acordo, obrigando a alma soberana a falar e pensar de modo
diferente do corpo e contrário a ele. Deste temor provém a dissensão, pois o
cuidado da carne é inimigo de Deus e não se submete à sua lei[82].
124. É preciso que a cada instante avaliemos nossas
obras de todo dia e que as vigiemos, forçando-nos, ao final da tarde, em
torná-las o mais leves possível pelo arrependimento, se quisermos, com Cristo,
dominar o mal. E devemos examinar se cumprimos com todas as nossas ações sensíveis
e aparentes segundo Deus, diante de Deus e por Deus apenas, a fim de que não
sejamos roubados pelos sentidos e desprovidos da razão.
125. Se, com a ajuda de Deus e por nossa sobriedade e
nossa vigilância, tiramos proveito de cada hora do dia, devemos evitar o ir e
vir sem discernimento, bem como nos expor a encontros perigosos que só podem
nos prejudicar. É precisa antes desprezar as coisas vãs, para ganharmos a
virtude com sua doce e desejável beleza.
126. Devemos colocar para trabalhar as três partes da
alma de uma maneira justa, segundo a natureza, tais como foram elas criadas por
Deus. Primeiro o ardor, contra nosso homem exterior e Satanás, a serpente. Está
escrito: “Levantem-se contra o pecado”, ou seja: levantem-se contra si próprios
e contra o diabo, a fim de não pecar contra Deus. Depois é preciso voltar o
desejo para Deus e a virtude. Enfim, com sabedoria e ciência, estabelecer a
razão entre as outras duas partes – o ardor e o desejo – para regrá-las,
adverti-las, repreende-las, comandá-las, como um rei comanda seus servidores.
Então a razão que está em nós as governará conforme a Deus, mesmo se as paixões
se revoltarem contra ela. Vigiemos para que a razão as dirija. Com efeito, o
irmão do Senhor disse: “Se um homem não falhar em sua razão, será um homem
perfeito, capaz de refrear todo seu corpo[83]”.
Esta é a evidência: por estas três são colocadas em marcha toda virtude e toda
justiça.
127. O intelecto se cobre de trevas e permanece sem
fruto quando fala das coisas deste mundo, ou quando ele reflete e se liga a
elas, ou quando o corpo se une à inteligência para se ocupar vaidosamente das
coisas sensíveis, ou quando o monge se dedica a futilidades. Pois, rapidamente
e por si sós, estas coisas destroem o fervor, a compunção, a liberdade e o
conhecimento que temos em Deus. Na medida em que estamos atentos ao intelecto,
somos iluminados; mas na medida em que somos desatentos, permanecemos nas
trevas.
128. Aquele que a cada dia persegue e busca a paz e a
hesíquia do intelecto, deverá desprezar facilmente todas as coisas sensíveis, a
fim de não trabalhar em vão. Mas se ele enganar sua própria consciência, ele
adormecerá amargamente na morte do esquecimento, aquele de o divino Davi
suplicou ser preservado[84].
O Apóstolo disse: “Aquele que sabe o que deve fazer e não o faz, comete um
pecado[85]”.
129. O intelecto regressa da negligência por sua
própria ordem, e retorna à sobriedade e à vigilância se retoma sua supervisão e
se restabelecemos em nós seu exercício com zelo ardente.
130. O asno que gira o moinho não irá além do círculo
ao qual está amarrado. Da mesma forma, o intelecto que não recolocou em ordem
aquilo que está nele, não alcançará a virtude que leva à perfeição. Pois os
olhos de seu coração estarão sempre cegos. Ele será incapaz de ver a virtude e a
Jesus resplendente de luz.
131. Um cavalo vigoroso e fiel salta de alegria quando
recebe seu cavaleiro. Do mesmo modo o intelecto alegre receberá suas delícias
na luz do Senhor, na qual, pela manhã, ele penetra, livre de pensamentos.
Depois, renunciando a si mesmo, ele irá da potência de sua filosofia prática à
indizível potência que contempla os mistérios inefáveis e as virtudes. E quando
ele tiver recebido no coração a profundidade dos altos pensamentos divinos, na
medida em que seu coração o suportar revelar-se-á diante de seus olhos o Deus
dos deuses. O intelecto maravilhado agradecerá amorosamente a Deus que ele vê e
que o vê, e que, por uma ou outra destas visões, salva aquele que volta para
ele seu olhar.
132. Bem trabalhada, a hesíquia do coração contemplará
com todo conhecimento um abismo de alturas, e, de Deus, o ouvido da hesíquia do
intelecto escutará maravilhas.
133. O viajante que se prepara para partir em uma
longa viagem, difícil e penosa, temendo perder-se na volta, plantará ao longo
do caminho sinais para guiá-lo. Estes sinais facilitarão seu regresso. Temendo
a mesma coisa, o homem que faz seu caminho na nepsis colocará palavras
em seu caminho como se fossem marcos.
134. Para o viajante, regressar ao ponto de partida é
motivo de alegria. Mas para o homem sóbrio e vigilante, voltar atrás é a morte
da alma dotada de razão, e o sinal de que ele renunciou às ações, às palavras e
aos pensamentos que agradam a Deus. Quando sua alma adormecer na morte, ele
carregará os pensamentos como aguilhões para despertar à lembrança da grande
paralisia e da indolência a que o levou sua negligência.
135. Se cairmos na aflição, no desencorajamento e no
desespero, é preciso que façamos conosco o que fez Davi: transbordar nosso
coração diante de Deus, repetir ao Senhor, tais como são, nossa necessidade e
nossa aflição[86].
Pois confessamos a Deus como a alguém que pode sabiamente dirigir as coisas de
nossa vida, consolar nossa aflição se isto nos for útil, e nos libertar da
tristeza corporal e corruptora.
136. A cólera dirigida contra a natureza para os
homens, a tristeza que não é conforme a Deus e a acídia destroem igualmente os
pensamentos bons e carregados de conhecimento. Mas quando o Senhor as dispersa
pela confissão, ele traz a alegria.
137. A prece de Jesus unida à sobriedade e à
vigilância apaga naturalmente das profundezas da reflexão do coração os
pensamentos que, malgrado nossa vontade, aí foram plantados e aí residem.
138. Quando formos afligidos por pensamentos
irracionais, encontraremos o consolo e a alegria se nos envergonharmos em
verdade e com desembaraço, ou se nos confessarmos ao Senhor como a um homem.
Por estas duas vias encontraremos sempre e em tudo o repouso.
139. Moisés o Legislador é considerado pelos Padres
como uma imagem do intelecto. Ele viu a Deus na sarsa[87].
Seu rosto trazia a glória[88].
E o Deus dos deuses fez dele um deus para o Faraó[89].
Ele fustigou o Egito[90].
Ele fez partir Israel[91] e
lhe deu a lei[92].
Tomados num sentido espiritual, estes eventos são as operações e as
prerrogativas do intelecto.
140. A imagem do homem exterior é Aarão, o irmão do
Legislador. Acusando com cólera o homem exterior, como Moisés acusou Aarão
quando este falhou, dizemos: “Que mal lhe fez Israel para que você procure
assim se afastar do Senhor, Deus vivo e todo-poderoso?[93]”
141. Quando ressuscitou Lázaro de entre os mortos, o
Senhor nos mostrou entre todos os outros bens o seguinte: segurar com um tremor[94]
o transbordamento feminino da alma e buscar endurecer o caráter conhecedor,
quer dizer, acusar a si mesmo para libertar a alma do egoísmo, da vanglória e
do orgulho.
142. Assim como não é possível atravessar a imensidão
do mar sem um grande navio, também é impossível afastar a sugestão do mau
pensamento sem a invocação de Jesus Cristo.
143. Normalmente,
a refutação reduz os pensamentos ao silêncio, mas a invocação os expulsa do
coração. Com efeito, a sugestão toma forma na alma sob a aparência de uma coisa
sensível, como o rosto de alguém que nos contristou, ou a imagem de uma beleza
feminina, ou do ouro e da prata. A partir do momento em que estas imagens
penetram no campo da reflexão, os pensamentos de rancor, de prostituição ou de
avareza que se formam em nosso coração devem ser repelidos um por um. Se nosso
intelecto for experiente, se foi instruído, se estiver em estado de guardar a
si próprio e de ver com toda pureza, como num céu sereno, as imagens sedutoras
e as ilusões dos maus espíritos, ele extinguirá no mesmo instante e com
facilidade, pelo desejo, pela refutação, pela prece de Jesus Cristo, as flechas
incendiárias do diabo[95].
Ele recusará deixar-se levar pela imaginação passional. E ele não aceitará que
nossos pensamentos, abandonando-se à paixão, se conformem à imagem que lhes
apareceu, ou que eles se entretenham amigavelmente com ela, ou que nela se
demorem ou a consintam. Pois aos pensamentos que assim se abandonam sucedem-se
logo as más obras, como os dias sucedem às noites.
144. Se nosso intelecto não possui a experiência de
uma sobriedade e de uma vigilância assíduas, ele rapidamente se misturará ao
fantasma apaixonado que lhe aparece, qualquer que seja. Ele lhe fala; recebe
dele questões descabidas e dá respostas. Então nossos pensamentos se unem à
imagem demoníaca. Esta vai crescendo, e se dilata até parecer desejável, bela e
agradável ao intelecto, que se deixa tomar e pilhar. O intelecto sofre então
aquilo que acontece aos cordeiros sem malícia quando, na planície em que se
encontram, surge um cachorro. Muitas
vezes eles correm para aquele que acaba de surgir como se fosse para sua própria
mãe. Mas eles não ganham nada em se aproximar do cão. Eles não recebem senão
sua indelicadeza e se mau cheiro. Da mesma maneira, nossos pensamentos
ignorantes acorrem para todos os fantasmas demoníacos que aparecem no
intelecto. A partir do momento em que se misturam a eles, como já disse,
podemos vê-los, uns e outros, combinarem entre si para destruir a cidade de
Tróia, como Agamenon e Menelau. Pois eles decidem o que virá, para que o corpo
coloque em movimento aquilo que, em sua mentira, a sugestão demoníaca fez
parecer tão bom e agradável. É assim que se forma desde dentro as quedas da
alma. É necessário a partir daí, que aquilo que está dentro do coração seja
levado também ao exterior.
145. O intelecto é uma coisa fácil de seduzir e
desprovido de malícia. Ele não tem nenhuma dificuldade em correr atrás das
imagens, e ele se protege mal dos fantasmas do pecado, se não tiver a seu lado
constantemente, para contê-los e refreá-los, o pensamento que domina as
paixões.
146. A contemplação e o conhecimento são por natureza
os guias e os provedores da vida rigorosa. Pois, elevada por eles, a reflexão
chega, considerando seu baixo prêmio, a desprezar os prazeres, as demais coisas
sensíveis e as doçuras da existência.
147. Um modo de vida atento levado em Cristo Jesus é
por sua vez o pai da contemplação e do conhecimento. Unido à humildade como se
fosse sua esposa, ele engendra as ascensões divinas e os pensamentos sábios,
como diz Isaías o profeta divino: “Aqueles que esperam o Senhor renovarão suas
forças. Pelo Senhor eles voarão, eles abrirão suas asas[96]”.
148. Parece duro e difícil aos homens manter a
hesíquia na alma, fora de todo pensamento. Com efeito, trata-se de uma coisa
laboriosa e penosa. Pois encerrar e manter o incorpóreo dentro dos limites da
morada de um corpo não apenas é complicado para aqueles que não foram iniciados
na guerra, mas até para os que adquiriram a experiência do combate interior
imaterial. Mas aquele que, pela oração contínua, aperta o Senhor Jesus em seu
coração, não sofrerá por segui-lo, como diz o Profeta[97].
Ele não desejará mais as luzes do homem, por causa da beleza, do encantamento e
da doçura de Jesus. E ele não será confundido pelos seus inimigos, os demônios
ímpios que circulam ao seu redor. Ele lhes falará da porta de seu coração, e
por Jesus os fará fugir.
149. A alma que, pela morte, voou pelos ares, e que
tem a Cristo com ela e por ela às portas do céu, também aí não Será confundida
pelos seus inimigos, mas agora como então ela lhes falará da porta com
segurança. Apenas é preciso que ela nunca cesse, até seu êxodo, de chamar noite
e dia pelo Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus. Segundo sua divina promessa,
que nunca engana, ele próprio fará pronta justiça, como ele disse a respeito do
juiz iníquo[98].
Ora, eu lhes afirmo, ele o fará, tanto na vida presente quanto depois que a
alma deixar seu corpo.
150. Você que navega no mar inteligível, coloque sua
confiança em Jesus. Pois ele diz secretamente em seu coração: “Não tema, Jacó
meu filho, Israel meu pequenino. Não tema, Israel, vermezinho. Eu o protegerei[99]”,
e: “Se Deus é por nós, que malfeitor será contra nós?[100]”.
É ele, com efeito, o doce Jesus, o único puro, quem beatificou os corações
puros[101]
e deu sua lei: é neles, nos corações puros, que ele quer divinamente penetrar e
residir. Assim, não cessemos, conforme o divino Paulo, de exercitar o intelecto
na piedade[102].
Pois é verdadeiramente com todo direito que é chamada de piedade a virtude que
arranca até as raízes aquilo que o maligno semeou. Esta piedade é o próprio
caminho da palavra, ou seja, a via da razão, ou a via do pensamento. Em dialeto
ático, a via é chamada de caminho e rota; isto é o pensamento.
151. Segundo Davi[103],
aquele que não faz acepção de pessoas ao julgar a injustiça em seu coração
desfrutará de uma grande paz, ou seja, não acolhe as formas dos maus espíritos
quem considera o pecado através destas formas, quem julga com rigor e faz
justiça no terreno de seu próprio coração, dando ao pecado o que ele merece.
Com efeito, os grandes, os Padres gnósticos, em alguns de seus escritos, e por
causa da razão, chamaram os próprios demônios de homens, o que é igualmente
ilustrado pela passagem do Evangelho na qual o Senhor diz que um homem mal fez
aquilo e que ele misturou a erva daninha ao bom grão[104].
Não existe refutação rápida entre aqueles que fazem o mal. É também por isso
que somos devorados pelos pensamentos.
152. A partir do momento em que começamos a trazer
para nossa vida a atenção do intelecto, se unirmos a humildade à nepsis e se unirmos a prece à refutação,
caminharemos como se deve sobre o caminho do arrependimento. Com efeito, graças
à chama da luz, o nome adorável e santo de Jesus Cristo, por amor à beleza nós
curamos, varremos, ornamos, purificamos de toda malícia a morada de nosso
coração. Mas se confiarmos apenas em nossa sobriedade e nossa vigilância – em
nossa nepsis – logo seremos
derrubados pelos inimigos, seremos revirados e tombaremos. Os pérfidos e os
mentirosos nos abaterão por terra. Seremos logo enlaçados por suas redes: os
maus pensamentos. Ou então eles nos imolarão facilmente. Pois estaremos sem a
lança poderosa: o nome de Jesus Cristo. Somente esta espada venerável girando
constantemente em um coração simples é capaz de envolvê-los, cortar, queimar,
reduzi-los a nada, como o fogo que consome a palha.
153. O objetivo último da nepsis incessante – o benefício da alma, seu imenso ganho –
consiste em ver, tão logo se formam, os fantasmas dos pensamentos no intelecto.
O objetivo da refutação é o de denunciar e revelar o pensamento que tenta
penetrar no espaço de nosso intelecto sob a imagem de alguma coisa sensível.
Mas aquilo que extingue e dissolve instantaneamente toda palavra, todo pensamento, todo fantasma, toda imagem,
todo o mal erigido em nós pelos adversários, é a invocação do Senhor. Com efeito,
nós mesmos vemos no intelecto a derrota infligida a eles por Jesus, nosso
grande Deus, e o castigo que nos faz justiça, a nós os humildes, os simples, os
inúteis.
154. A maior parte de nós ignora que os pensamentos
não são mais do que simples imagens das coisas sensíveis e mundanas. Mas se
perseverarmos na sobriedade e na vigilância na oração, esta despojará a
reflexão de todas as imagens materiais dos maus pensamentos. A reflexão também
nos mostrará os cálculos dos adversários, e o grande proveito da oração, da
sobriedade e da vigilância. “Você contemplará com seus próprios olhos a
retribuição dos pecadores inteligíveis[105]”,
diz Davi o divino Salmista. Também você o verá em seu intelecto e então
compreenderá.
155. Lembremo-nos sem cessar da morte, tanto quanto
pudermos. Com esta lembrança nasce em nós o abandono das preocupações e de
todas as vaidades, a guarda do intelecto e a prece contínua, o desligamento das
paixões do corpo e o desgosto pelo pecado. A bem dizer, quase todas as virtudes
escorrem da lembrança da morte como de uma fonte. É por isso que, se o
pudermos, devemos servir-nos dela como de nossa própria respiração.
156. O coração inteiramente vazio de imagens
engendrará em si pensamentos fluidos, divinos e misteriosos, como fluem os
peixes e nadam os delfins quando o mar está calmo. O mar tremula sob a brisa
leve, e o abismo do coração sob o Espírito Santo. Foi dito: “Porque vocês são
filhos, Deus enviou aos seus corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba,
Pai[106]”.
157. O monge viverá na incerteza e não saberá o que
pensar da obra espiritual antes de adquirir a sobriedade e a vigilância do
intelecto, seja porque ignora sua beleza, seja porque, conhecendo-a, é incapaz
de assumi-la, em sua negligência. Mas sem dúvida ele será libertado da
incerteza a partir do momento em que alcançar a guarda do intelecto, que é e é
chamado de filosofia da reflexão ou filosofia prática do intelecto. Pois ele
terá encontrado o caminho que diz: “Eu sou a via, a ressurreição e a vida[107]”.
158. Mas ele cairá novamente na incerteza ao ver o
abismo dos pensamentos e a multidão dos pequenos filhos da Babilônia. Mas
Cristo dissipará esta incerteza, se nele colocarmos continuamente o próprio
fundamento da reflexão. Nós nos separaremos dos filhotes da Babilônia empurrando-os
contra este rochedo[108],
e cumpriremos assim com nossa promessa, conforme as palavras da Escritura, pois
está dito: “Aquele que observa os mandamentos não conhecerá o mal[109]”,
e “Sem mim vocês nada podem fazer[110]”.
159. Este será um verdadeiro monge, que cumprirá com
sucesso a sobriedade e a vigilância. E o que é verdadeiramente sóbrio e
vigilante – neptikos – é monge em seu
coração.
160. A vida em meio aos homens se desenrola segundo um
ciclo de anos, meses, semanas, dias e noites, horas e instantes. É preciso que
façamos desenvolverem-se dentro deste ciclo as obras virtuosas, ou seja, a
sobriedade e a vigilância, a oração, a doçura do coração, numa hesíquia
harmoniosa, até o nosso êxodo.
161. Ele chegará para nós, no momento da morte, ele
virá e não é possível escapar-lhe. Possa então o príncipe do mundo e do espaço[111],
que então virá também, encontrar em nós poucas e pouco graves iniqüidades pelas
quais nos acusar, ou teremos chorado em vão. Com efeito, é dito do servidor
que, conhecendo a vontade do seu senhor e não a tendo cumprido em sua qualidade
de servidor, que ele será duramente castigado[112].
162. Foi dito: “Infelizes daqueles que pereceram em
seu coração. Que farão eles quando o Senhor os visitar?[113]”
É por isso, irmãos, que devemos ser fervorosos.
163. Os pensamentos apaixonados seguem de perto os
pensamentos simples e aparentemente desembaraçados de paixões, como nos ensinou
uma longa experiência e a observação. Os últimos, que são desembaraçados de
paixões, abrem o caminho aos primeiros, que são apaixonados.
164. É preciso que o homem seja realmente dividido em
dois em sua resolução, que ele seja desmembrado no mais sábio projeto de seu
intelecto, como eu já disse, e que ele chegue a ser verdadeiramente um inimigo
irreconciliável de si mesmo. A atitude que ele teria para com um homem que o
houvesse gravemente e repetidamente afligido e lesado, é a mesma que ele deve
ter, daqui para frente, se quiser cumprir o grande e primeiro mandamento, ou
seja, a conduta de Cristo, a bem-aventurada humildade, a vida de Deus na carne.
É por isso que o Apóstolo diz: “Quem me libertará deste corpo de morte?[114]”
Pois ele não está submetido à lei de Deus[115].
Mas, mostrando que cabe a nós submeter este corpo à vontade de Deus, ele diz:
“Se examinarmos a nos mesmos, não seremos julgados[116]”.
Mas o Senhor nos corrige por seus julgamentos.
165. O começo da frutificação é a flor. O começo da
guarda do intelecto é a temperança nos alimentos e bebidas, a recusa e a
separação de todo pensamento, e a hesíquia do coração.
166. Quando nos fortalecemos em Jesus Cristo, e
começamos a correr com uma sobriedade e vigilância seguras, primeiramente nos
aparece no intelecto como que uma lâmpada, que, se a pegarmos, por assim dizer
com a mão da inteligência, nos conduzirá sobre o caminho da reflexão. Depois
surgirá como que uma lua luminosa que gira no firmamento do coração. Enfim,
Jesus nos aparecerá como um sol que irradia justiça, ou seja, ele se mostrará e
a suas próprias luzes flamejantes, as luzes daquilo que contemplaremos.
167. Isto é, com efeito, aquilo que ele revela
misticamente ao intelecto, quando este persevera em seu mandamento que ordena:
“Circuncidem a dureza dos seus corações[117]”.
Com já foi dito, a sobriedade e a vigilância atenta mostram ao homem
pensamentos que ultrapassam toda medida. Pois o divino não faz acepção de
pessoas[118].
É por isso que o Senhor diz: “Escutem-me e compreendam. Àquele a quem foi dado,
será dado em maior abundância; mas àquele que nada tem, será tirado até aquilo
que acreditava ter[119]”.
E: “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus[120]”.
Quanto mais ainda serão eles assistidos pelas virtudes.
168. Um navio não irá longe se faltar água. Da mesma
forma a guarda do intelecto não progredirá se lhe faltarem inteiramente a
sobriedade e a vigilância unidas à humildade e à prece de Jesus Cristo.
169. As fundações de uma casa são pedras. Mas a
fundação e a cumeeira desta virtude é o nome adorável e santo de nosso Senhor
Jesus Cristo. O piloto insensato que adormece no momento da tempestade
naufragará facilmente, depois que a tripulação se lançar ao mar com os remos e
as velas. Mas será ainda mais facilmente engolida pelos demônios, quando
sobrevierem as sugestões, a alma que negligencia a sobriedade e a vigilância, e
a invocação do nome de Jesus Cristo.
170. Aquilo que sabemos é o que escrevemos. E o que
vimos no caminho é o que testemunhamos, se por acaso vocês quiserem receber o
que dizemos. Pois ele mesmo disse: “Se alguém não permanece em mim, será
lançado fora como a palha que é amassada e atirada ao fogo para queimar. Mas
aquele que permanece em mi, eu estarei com ele[121]”.
Assim
como não é possível que o sol brilhe sem irradiar sua luz, também o coração não
pode ser purificado da sujeira dos pensamentos de perdição sem a prece do nome
de Jesus. Se isto é verdade – e é o que eu vi – confiemo-nos a este nome como à
nossa própria respiração. Pois o nome é luz, e os pensamentos são trevas. O
nome de Deus é Mestre, mas os pensamentos são escravos dos demônios.
171. Que a guarda do intelecto seja chamada pelos nomes
que lhe são próprios e lhe dão todo o sentido: fonte de luz, fonte de
relâmpagos, efusão luminosa, portadora do fogo. Pois, a bem dizer, ela
ultrapassa incontavelmente o corporal e todas as virtudes. Por estas luzes
fulgurantes que nascem dela, devemos chamar por nomes preciosos esta virtude.
Por pecadores e inúteis, imundos e ignorantes, insensatos e injustos que
fossem, aqueles que a amam podem se tornar, por Jesus Cristo, justos, bons,
puros, santos e sábios. E não apenas isto, mas ainda contemplar os mistérios e
se tornarem teólogos. Tornados contemplativos, eles passam a nadar nesta luz
puríssima e infinita, eles a tocam com inefáveis intuições, permanecem e vivem
nela, pois enfim experimentaram como o Senhor é bom[122]. É assim que nestes príncipes dos anjos se cumpre
claramente a palavra do divino Davi: “Os justos confessarão seu nome e os
homens direitos permanecerão diante de sua face[123]”. Pois somente tais homens invocam e confessam a Deus
sinceramente. Eles o amam e desejam viver sempre com ele.
172. Infelicidade interna, quando se é atacado pelas
coisas de fora. Pois o homem interior é profundamente afligido pelos sentidos
do corpo, mas em sua aflição ele os deve fustigar: aquele que age assim já
conheceu as coisas que só podem ser vistas pela contemplação.
173. Segundo os Padres, se nosso homem interior é
sóbrio e vigilante, ele é igualmente capaz de proteger o homem exterior. Pois
nós e os demônios malfeitores, ambos cometemos juntos os pecados. Eles, pelos
simples pensamentos, quando, desenhando imagens a seu bel-prazer, conformam o
pecado no intelecto. E nós, pelos pensamentos internamente e pelos nossos atos
externamente. É, portanto, pelos simples pensamentos, pela mentira e a
enganação, que os demônios, que não possuem o volume de um corpo, atraem sobre
e si e sobre nós os castigos. Enquanto estes criminosos não forem privados do
volume do corpo, eles não deixarão de pecar em ato, pois eles mantém sua
vontade sempre pronta para ultrajar.
174. A oração do simples nome de Deus mata e reduz a
cinzas suas mentiras. Pois Jesus Deus e Filho de Deus, contínua e
diligentemente invocado por nós, não lhes permite mostrarem ao intelecto, no
espelho da reflexão, o menor esboço deste ataque chamado sugestão, nem a menor
forma, nem dizer ao coração uma palavra que seja. A forma demoníaca que não
penetra no coração permanecerá igualmente vazia de todo pensamento, com já
dissemos. Pois é através dos pensamentos que os demônios costumam freqüentar a
alma e ensiná-la secretamente a fazer o mal.
175. É, portanto, pela prece contínua que o espaço da
reflexão se purifica das nuvens tenebrosas e dos sopros dos espíritos do mal. E
quando o espaço do coração é purificado, é impossível que não brilhe nele a
divina luz de Jesus, desde que não estejamos inchados de vanglória, orgulho e
ostentação, e se não nos elevamos ao inatingível: pois então nos privaríamos do
socorro de Jesus, pois o Cristo detesta estas coisas, ele que nos deu o exemplo
da humildade.
176. Agarremo-nos então à oração e à humildade, a
estas duas coisas que, com a sobriedade e a vigilância, nos armam contra o
demônio como uma espada de fogo. Pois se vivermos assim, ser-nos-á possível
fazer de cada dia e de cada hora, no mistério e na alegria, uma festa do
coração.
177. Os oito pensamentos fundamentais do vício, que
contêm todos os pensamentos, e dos quais todos nascem (como de Hera e Zeus
nasceram todos os deuses malditos dos gregos, segundo suas fábulas), chegam
juntos às portas do coração. Se eles encontram o intelecto sem guarda, eles
entram cada um a seu tempo. Mas além disso, cada um dos oito pensamentos,
penetrando no coração após aí chegar, faz entrar consigo uma multidão de
pensamentos infamantes. Depois de assim entenebrecer o intelecto, ele provoca o
corpo incitando-o a cometer ações que o desonrarão.
178. Entretanto, aquele que vigia a cabeça da serpente[124]
e que, por meio de uma refutação resoluta, lhe dirige palavras duras como um
soco, este a faz recuar. Cortando sua cabeça, ele escapa a muitos pensamentos e
obras de grande mal. A partir daí a reflexão permanece em calma, pois Deus
acolhe sua vigília que a protege dos pensamentos. Ele lhe concede saber como
dominar os adversários, e como purificar pouco a pouco o coração dos
pensamentos que sujam o homem interior. Como diz o Senhor Jesus: “É do coração
que saem os maus pensamentos, as prostituições e os adultérios; são estas
coisas que sujam o homem[125]”.
179. É assim que a alma pode permanecer no Senhor em
sua beleza, seu esplendor e sua retidão, tal como foi criada por Deus no
princípio, bela e direita. É o que diz o grande servidor de Deus, Antônio:
“Quando a alma é dotada de inteligência conforme a natureza, a virtude está
assegurada”. Ele diz ainda: “A alma é direita, quando dotada de inteligência
segundo a natureza, tal como foi criada”. Pouco depois ele acrescenta:
“Purifiquemos a reflexão. De fato, eu creio que, totalmente purificada e
devolvida ao seu estado natural, ela pode se tornar clarividente, enxergar de
longe os demônios e antes que eles cheguem, pois terá em si o Senhor a revelá-lo”.
Eis o que disse o glorioso Antônio, como nos reporta Atanásio na Vida de Antônio.[126]
180. Todo pensamento suscita no intelecto a imagem de
uma coisa sensível. Pois o intelecto é o Assírio: ele não pode enganar senão
servindo-se das coisas que nos são sensíveis e habituais.
181. Assim como nos é impossível perseguir os pássaros
que voam pelos ares, porque somos homens, ou voarmos como eles, coisa que nossa
natureza não pode fazer, também nos é impossível dominar os pensamentos
demoníacos incorpóreos sem uma prece sóbria, vigilante e contínua, e se os
olhos do intelecto não estiverem inteiramente voltados para Deus. Caso
contrário, é a terra que você está buscando.
182. Assim, se você quiser verdadeiramente cobrir de
vergonha os pensamentos, viver na bem-aventurada hesíquia e conhecer facilmente
a sobriedade e a vigilância do coração, cole a prece de Jesus à sua respiração,
e em poucos dias você receberá o que procura.
183. Do mesmo modo como é impossível escrever letras
no ar (pois é preciso que elas sejam traçadas sobre algum corpo para se
conservar duradouramente), também devemos colar à nossa nepsis a prece de Jesus Cristo, a fim de que a bela virtude da
sobriedade não deixe de permanecer com ele e nos seja sempre protegida por ele
sem que nos possam roubá-la.
184. Foi dito: “Coloque suas obras diante do Senhor, e
você encontrará a graça[127]”,
para que o profeta não diga de nós: “o Senhor está perto da sua boca, mas longe
dos seus rins[128]”.
Ninguém além de Jesus poderá fixar seu coração na paz, fora das paixões,
ninguém senão o próprio Jesus Cristo, que reuniu o que estava separado[129].
185. Duas coisas entenebrecem igualmente a alma: o
diálogo com os pensamentos no intelecto que reflete e, do lado de fora, as
conversas e discussões vãs. Aqueles que querem afastar do intelecto todo dano
devem assim mortificar esta dupla que gosta de falar em vão: os pensamentos e
os homens. E mortificá-los por uma razão fundamentada em Deus, a fim de que o
intelecto entenebrecido não relaxe sua nepsis.
Pois quando caímos nas trevas do esquecimento, levamos o intelecto à sua perda.
186. Quem guarda a pureza de seu coração com todo
fervor terá como mestre o legislador desta pureza, Cristo, que lhe dirá
secretamente sua vontade. É o que Davi nos revela quando afirma: “Eu escutarei
o que diz em mim o Senhor Deus[130]”.
Quanto ao combate do intelecto, mostrando com este deve examinar a si mesmo e
qual a proteção que Deus lhe concede em retorno, ele dizia: “O homem diz:
Haverá fruto para o justo?[131]”
E na seqüência de sua busca, expressando uma reflexão que compreende tanto a
pureza quanto o combate, ele disse: “É então Deus quem os julga, os demônios
malignos, na terra de nosso coração[132]”.
E adiante: “O homem irá às profundezas de seu coração, e Deus será exaltado[133]”.
Então consideraremos seus golpes como flechas infantis.
187. Vivamos sempre com o coração instruído pela
sabedoria[134],
segundo o Salmista, respirando continuamente Jesus Cristo que é o próprio poder
de Deus Pai e a sabedoria mesma de Deus[135].
Se, por qualquer circunstância, relaxarmos, se negligenciarmos o que deve fazer
o intelecto, na manhã seguinte cinjamos os rins como se deve e ponhamo-nos
corajosamente ao trabalho, sabendo que não temos desculpa se não fazemos o bem,
uma vez que o conhecemos.
188. Os alimentos nocivos desarranjam o corpo uma vez
que os ingerimos, mas quem comeu pouco pode, graças a algum remédio, vomitá-los
logo que se sentir mal e não ser mais afetado; da mesma forma, o intelecto,
quando recebe e absorve maus pensamentos e sente seu amargor, pode vomitá-los com
facilidade e rejeitá-los imediatamente, pela prece de Jesus dita do fundo do
coração. É isto que, graças a Deus, nos permitiram a entender aqueles que vivem
na sobriedade e na vigilância, a respeito da instrução e, pela instrução, da
experiência.
189. Junte ao sopro que passa por suas narinas a
sobriedade, a vigilância e o nome de Jesus, ou ainda a incessante meditação da
morte a humildade. Sabemos que ambos são de grande auxílio.
190. O Senhor disse: “Aprendam comigo que sou doce e
humilde, e vocês encontrarão o repouso de suas almas[136]”.
191. O Senhor disse: “Quem se rebaixa como esta
criança será elevado; mas quem se eleva será rebaixado[137]”.
Ele disse: “Aprendam comigo”. Vêem que ensinamento é a humildade? Ora, seu
mandamento é a vida eterna[138]
e é a humildade. Portanto, aquele que não é humilde escorrega para fora da
vida. Vale dizer, ele se achará nos antípodas.
192. Toda virtude é construída sobre a alma e o corpo.
Ora, a alma e o corpo são criaturas de Deus, e é por intermédio deles que se
forma a virtude, como se diz. Como não seríamos nós no cúmulo da loucura
gabando-nos de vestes estranhas à alma e ao corpo, enchendo-nos de vanglória,
apoiando-nos sobre o orgulho como sobre um junco, e, o mais espantoso de tudo,
em nossa total iniqüidade e inconsciência, dirigindo contra nossa elevação o
Deus que nos ultrapassa com sua grandeza infinita? Pois o Senhor se opõe aos
orgulhosos[139].
Ora, ao invés de imitarmos a Deus na humildade, por um sentimento de vanglória
e orgulho, ligamo-nos amigavelmente ao demônio orgulhoso e hostil ao Senhor. É
por isso que o Apóstolo dizia: “O que você possui que não tenha recebido?” Você
criou a si mesmo? E se você recebeu de Deus o corpo e a alma dos quais, nos
quais e pelos quais se forma toda virtude, “porque se glorificar como se não o
tivesse recebido[140]”?
Foi o Senhor quem lhe fez dom de tais coisas.
193. Em uma palavra, a purificação do coração, por
meio da qual a humildade e todo bem descem do alto até nós[141],
não é outra coisa do que recusar absolutamente que entrem na alma os
pensamentos que se acotovelam.
194. Pois quando a guarda do intelecto persevera na
alma com Deus e por Deus apenas, ela dá à razão a sabedoria nos combates
dedicados a Deus. E não é pequena a vantagem que ela oferece a quem a assume,
tornando-o capaz de organizar as obras e as palavras segundo uma escolha que
agrade a Deus.
195. Os ornamentos visíveis do Grande Sacerdote no
Antigo Testamento eram os sinais de um coração puro. Da mesma forma, devemos
estar atentos à gola de nosso coração[142].
Devemos evitar que ela seja enegrecida pelo pecado e vigiar para enxugá-la com
lágrimas, arrependimento e preces. Pois o intelecto é uma coisa que se deixa
facilmente levar pelos pensamentos ímpios, e difícil de segurar. Ele segue da
mesma forma tanto as más como as boas imaginações da razão.
196. Verdadeiramente feliz é aquele que colou a prece
de Jesus a toda reflexão de seu intelecto, e que chama por Jesus continuamente
em seu coração, como o espaço está unido aos nossos corpos e a chama ao pavio.
Quando passa sobre a terra, o sol nos dá o dia; da mesma forma, quando o santo
e venerável nome do Senhor Jesus não deixa de brilhar na reflexão do intelecto,
ele engendra pensamentos luminosos como o sol.
197. Quando as nuvens se dissipam, a ar se torna puro.
Da mesma forma, quando, sob o sol de justiça, Jesus Cristo, de dissipam os
fantasmas da paixão, não cessam de nascer no coração pensamentos luminosos,
semelhantes às estrelas. Pois Jesus ilumina o espaço do coração. Com efeito,
diz o Eclesiástico: “Aqueles que colocam sua confiança no Senhor compreenderão
a verdade e aqueles que são fiéis no amor permanecerão junto a ele[143]”.
198. Um dos Santos disse: guarde rancor dos demônios e
seja sempre inimigo do corpo. A carne é um amigo enganador. Quando bem cuidada,
ela nos combate em seguida. Uma vez mais: deteste o corpo e lute contra o
ventre.
199. Nos discursos que escrevemos na primeira e na
segunda centúrias, tratamos das penas da santa hesíquia e do intelecto. Estes
discursos não foram somente fruto de nossa reflexão, mas também do que as
divinas palavras dos Padres cheios da sabedoria de Deus nos ensinaram sobre a
pureza do intelecto. E agora que já dissemos o pouco que tínhamos a dizer para
mostrar a vantagem da guarda do intelecto, cessaremos de falar.
200. Daqui para frente venha, siga-me para se unir à
bem-aventurada guarda do intelecto, quem quer que seja você que deseja em
espírito ver bons dias[144]
e eu lhe ensinarei no Senhor a obra que temos em vista e como vivem as
Potências intelectuais. Pois os anjos jamais se saciarão de louvar o Senhor,
nem o intelecto de rivalizar santamente com eles. E assim como os seres
imateriais não se preocupam com alimentos, também os seres que são
simultaneamente materiais e imateriais tampouco se preocuparão, se entrarem no
céu da hesíquia do intelecto.
201. Assim como as Potências do alto não se preocupam
nem com dinheiro nem com riquezas, também aqueles que purificaram o olho da
alma e adquiriram o hábito da virtude não se preocupam com as malfeitorias dos
espíritos malignos. E assim como para as primeiras é evidente a riqueza que
constitui sua proximidade de Deus, para os segundos serão evidentes seu desejo
ardente e seu amor, sua tensão e sua elevação para o divino. Amorosa e
insaciavelmente levados sempre mais alto nesta elevação pelo gosto de Deus e o
desejo que os coloca fora de si, eles não se deterão até terem alcançado os
Serafins, nem relaxarão a nepsis do intelecto e a exaltação do amor até
que se tenham tornado anjos em Jesus Cristo nosso Senhor.
202. Não há veneno mais potente do que o da áspide e o
basilisco. E não há mal maior do que o mal do amor próprio. Ao redor do amor
próprio voejam seus filhos, que são o auto-elogio endereçado ao coração, a
suficiência, a gula, a prostituição, a vanglória, a inveja e o coroamento de
todos os vícios: o orgulho, que é capaz de fazer cair dos céus não apenas os
homens, mas também os anjos, e lhes envolver em trevas ao invés da luz[145].
203. Eis, Teódulo, o que lhe escreveu aquele que traz
o nome de hesíquia, mesmo se, na prática, ele não mereça este nome. É verdade
que tudo isto não vem de nós, mas de Deus que no-lo deu, ele que, no Pai, no
Filho e no Espírito Santo é louvado e glorificado por toda natureza de razão,
pelos anjos, pelos homens, por toda a criação formada pela Trindade inefável, o
Deus único. Possamos nós descobrir o esplendor de seu Reino, pelas preces da
Mãe de Deus puríssima e de nossos santos Padres. A Deus inacessível, a glória
eterna. Amém.
[1] Mateus,
V, 8.
[2] Deuteronômio XV, 9.
[3] Aquele que nasce
do temor do castigo e o que é ligado ao amor, cf. Máximo o Confessor, Sobre o Amor, I, 81.
[4] Cf. Salmo
V, 4.
[5] Mateus,
VII, 21.
[6] Salmo
XCVI, 10.
[7] Cf. I Pedro,
II, 21.
[8] Cf. Mateus,
IV, 3.
[9] Cf. Mateus,
XVII, 21.
[10] I Timóteo,
IV, 13.
[11] Provérbios III, 34.
[12] Salmo
LXII, 2.
[13] Romanos
VIII, 26.
[14] Cf. Êxodo,
XXXII, 4.
[15] Salmo
XXVIII, 7.
[16] Cf. Salmo
XCIV, 16.
[17] Cf. Salmo
CXXXVII, 9. Cristo é o rochedo contra o qual o monge deve destruir os “filhos
da Babilônia”, ou seja os filhos do diabo, os maus pensamentos.
[18] Colossenses,
II, 3.
[19] Colossenses,
II, 9.
[20] I Coríntios,
XII, 3.
[21] Cf. Mateus,
III, 7.
[22] Cf. II Pedro,
II, 22.
[23] Cf. João
XV, 5.
[24] Romanos
VIII, 7-8 e Gálatas V, 17.
[25] Salmo LXVIII, 35.
[26] Ibid.
[27] O Corifeu, o
cabeça, o cume: designa Pedro, o apóstolo capital
[28] Cf. I Pedro,
V, 8.
[29] Cf. Cânticos, II, 15.
[30] Salmo
CI, 8.
[31] Êxodo,
XXIII, 32.
[32] Cf. Salmo
CXXX, 1.
[33] Cf. Salmo
LXXX, 12.
[34] Cf. Gênese
XXVIII, 12.
[35] Cf. Mateus, V, 8.
[36] As sentenças de 54 a 60 retomam Marcos o
Asceta, Sobre a lei espiritual 163,
115ª, 116-117, 101, 103, 104 e 110.
[37] Cf. Gálatas
VI, 7.
[38] Amós,
IV, 12.
[39] I Tessalonicenses,
V, 17.
[40] João
XV, 5-6.
[41] Cf. Mateus X, 1; XII, 43, etc.
[42] Cf. Provérbios
XVI, 5.
[43] Eclesiástico,
X, 13.
[44] Êxodo
V, 2.
[45] Cf. Gênese
XVIII, 27.
[46] Grande
Regra 37.
[47] Cf. Jó I,
5.
[49] Cf. Mateus
XI, 12.
[50] As sentenças de 67 a 75 retomam Máximo o
Confessor, Sobre o Amor , IV, 58.64. 65.50-52 e 63; II, 40; I, 76; IV, 72.
[51] Gálatas, V, 16.
[52] I Timóteo IV, 8.
[53] Mateus
V, 8.
[54] Cf. II Samuel
XIII, 34 e XVIII, 24.
[55] As sentenças de
79 a 82 retomam Marcos o Asceta, Daqueles
que pensam ser justificados, 2-8.
[56] Lucas
XVII, 10.
[57] Cf. I Coríntios
XV, 3.
[58] Mateus
XXV, 21.
[59] Cf. I Coríntios
VIII, 1.
[60] Cf. Filipenses II, 8.
[61] Isaías LV, 1.
[62] Eclesiastes
XII, 13.
[63] Salmo XL, 9.
[64] Jó
XXI, 14.
[65] Isaías
XLV, 7.
[66] Salmo
XCII, 12.
[67] Salmo
XCI, 8
[68] Salmo LIX, 10.
[69] Salmo
XIII, 4.
[70] João Clímaco, A escada santa, XXVII, 62.
[71] Cf. Salmo
LXIX, 4.
[72] Cf. Lucas
XVIII, 1.
[73] Cf. Mateus XI, 12.
[74] Hebreus
VII, 8.
[75] Cf. João
XV, 5.
[76] Cf. Mateus
XXVII, 5.
[77] Cf. Lucas
X, 18.
[78] Cf. Gênese
III, 5.
[79] Cf. II Coríntios
XI, 3.
[80] Cf. Salmo XXXII, 9.
[81] Cf. Gênese
XI, 1-9.
[82] Cf. Romanos VIII, 7.
[83] Tiago
III, 2.
[84] Cf. Salmo
XIII, 4.
[85] Tiago
IV, 17.
[86] Cf. Salmo
CXLII, 3.
[87] Cf. Êxodo
III, 2.
[88] Cf. Êxodo
XXXIV, 30.
[89] Cf. Êxodo
VI, 1.
[90] Êxodo
VII e ss.
[91] Cf. Êxodo
XII.
[92] Cf. Êxodo
XX.
[93] Êxodo
XXXII, 21.
[94] Cf. João XI, 33.
[95] Cf. Efésios
VI, 16.
[97] Cf. Jeremias XVII, 16.
[98] Cf. Lucas
XVIII, 1-8.
[99] Isaías
XLI, 13.
[100] Romanos
VIII, 31.
[101] Cf. Mateus
V, 9.
[102] Cf. I Timóteo
IV, 7.
[103] Cf. Salmo
XXXVII, 11.
[104] Cf. Mateus XIII, 28.
[105] Salmo
XCI, 8.
[106] Gálatas
IV, 6.
[107] João
XI, 25; XIV, 6.
[108] Cf. Salmo
CXXXVII, 9. Ver nota da sentença 27.
[109] Eclesiastes
VIII, 5.
[110] João
XV, 5.
[111] Cf. João
XIV, 30; Efésios II, 2.
[112] Cf. Lucas
XII, 47.
[113] Cf. Eclesiástico
II, 14.
[114] Romanos
VII, 24.
[115] Cf. Romanos
VIII, 7.
[116] I Coríntios
XI, 31.
[117] Deuteronômio
X, 16.
[118] Cf. Romanos
II, 11.
[119] Lucas VIII,
18.
[120] Romanos
VIII, 28.
[121] João
XV, 16.
[122] Cf. Salmo
XXXIV, 9.
[123] Salmo
CXL, 14.
[124] Cf. Gênese
III, 15.
[125] Mateus
XV, 19.
[126] Vida e
conduta de nosso Pai santo Antônio, 20 e 34.
[127] Provérbios
III, 3-4.
[128] Jeremias
XII, 2.
[129] Cf. Efésios
II, 14.
[130] Salmo LXXXV,
9.
[131] Salmo
LVIII, 12.
[132] Cf. Salmo
LIII, 12.
[133] Salmo
LXIV, 7.
[134] Cf. Salmo
XC, 12.
[135] Cf. I Coríntios
I, 24.
[136] Mateus
XI, 29.
[137] Mateus
XVIII, 4; XXIII, 12.
[138] Cf. João
XII, 50.
[139] Cf. Provérbios
III, 4; Tiago IV, 6.
[140] I Coríntios
IV, 7.
[141] Cf. Tiago
I, 17.
[142] Cf. Êxodo XXVIII, 32.
[143] Sabedoria
III, 9.
[144] Cf. Salmo XXXIV, 13
[145] Cf. II Pedro
II, 4; Judas VI.
Excelente!
ResponderExcluir