ISAÍAS O ANACORETA
CAPÍTULOS SOBRE A GUARDA DO INTELECTO
Isaías
o Anacoreta
Nosso santo Padre Isaías o anacoreta
viveu ao redor do ano 370. Ele foi contemporâneo do Abade Macário o Grande.
Noite e dia ele meditava sobre as sagradas Escrituras e, bebendo das fontes da salvação
a água abundante da sabedoria espiritual, ele redigiu muitos textos belíssimos
que, sob diferentes aspectos sempre úteis à alma, constituem todo um livro.
Tomando à parte este pequeno tratado, nós o propomos àqueles que desejam
trabalhar a guarda de seu intelecto. Pois ele ensina em termos breves como
refutar as sugestões dos pensamentos, como possuir uma consciência
irreprochável, como meditar em segredo e manter em perfeita impassibilidade e
conhecimento de causa as três partes da alma.
De
todos os Isaías mencionados nas fontes monásticas egípcias dos séculos IV e V,
o mais célebre é o autor de tratados ascéticos que se espalharam por todo o
Oriente cristão. Infelizmente, não encontramos nestes tratados muitas
informações autobiográficas. Sabemos apenas que o abade Isaías começou sua vida
monástica no Egito, provavelmente em Sceta, aonde esteve em relação com
diversos personagens mencionados nas Sentenças dos Padres do Deserto:
João, Anoub, Poêmio, Paphnúcio, Amoun, Pedro, Lot, Agatão, Abrahão, Sisoés, Or,
Atreu. Talvez tenha sido discípulo e Ammoés e Aquilas. Quando se tornou ele
mesmo um ancião, já estava cercado de discípulos, dentre os quais destacou-se
um de nome Pedro que recolheu cuidadosamente seus ensinamentos para por sua vez
transmiti-los aos seus próprios discípulos. Do Egito, onde se achava ainda em
431, Isaías foi para a Palestina, vindo a morrer recluso num mosteiro perto de
Gaza em 11 de Agosto de 491, sem haver aderido ao Concílio de Calcedônia[1].
A
obra escrita de Isaías é apresentada em seções ou capítulos denominados logoi, cujo número e ordem variam
bastante nos manuscritos e edições. Também o conteúdo de cada qual às vezes
varia de uma coletânea a outra. É porque a maior parte dos logoi são compilações de trechos díspares nos quais reconhecemos
sentenças, apoftegmas, exortações morais ou cartas endereçadas seja a um
discípulo, seja a um grupo de monges. É provável que o conjunto que possuímos
tenha sido reunido e colocado em ordem por Pedro no fim da vida do mestre ou
logo após sua morte.
R.
Draguet apontou na obra de Isaías diversos copticismos, mas se certas palavras
do mestre foram pronunciadas em copta, é quase certo que o conjunto dos
escritos tenha sido redigido em grego. Em todo caso, o Ascéticon copta que conhecemos
foi seguramente traduzido do grego, assim como o Ascéticon siríaco.
Estreitamente
ligada e aparentada a toda a literatura apoftegmática, a obra de Isaías é
interessante, em primeiro lugar porque ela nos traz um eco fiel do ensinamento
dos grandes monges do Egito, mas com um caráter mais didático e mais sintético.
Através das diversas recomendações do ancião, percebemos como uma filigrana o
motivo que os inspira e a preocupação essencial do anacoreta do deserto: como
encontrar e manter continuamente a hesychia,
a bem-aventurada quietude indispensável ao monge? Luta contra os pensamentos,
leitura e meditação das Escrituras, trabalho manual e austeridades, todas as
observâncias e ocupações prescritas são regradas e medidas de modo a assegurar
ao solitário as condições mais favoráveis à verdadeira liberdade do coração.
Isaías não desdenha descer até os detalhes mais minuciosos da vida cotidiana,
mas tampouco teme abordar as realidades mais profundas da vida espiritual. Ele
insiste constantemente nas disposições interiores: tudo deve ser feito “com
ciência”, ou seja, com discernimento, retidão e pureza de intenções. A
humildade, virtude primeira e fundamental, é mencionada muitas vezes, mas é
mais freqüentemente designada por seus efeitos, em especial pela “não-estima”
de si e o afastamento da vontade própria.
Tudo
isto já constava do ensinamento dos Padres do deserto, mas encontramo-lo em
Isaías sob uma forma original e com um cunho pessoal que revelam um discípulo
que se tornou um mestre eminente da espiritualidade. Podemos admirar
especialmente sua discrição e seu equilíbrio, seja nas relações entre o
corporal e o espiritual ou nas exigências respectivas da vida solitária e da
vida comunitária.
Enfim,
notaremos o lugar central ocupado por Cristo na ascese, concebida como uma
imitação fiel de Jesus em sua vida, sua paixão e sua morte. O tema de “subir na
cruz”, que parece ser uma descoberta de Isaías, pois não o encontramos em parte
alguma antes dele, é ligado ao ensinamento de são Paulo sobre o batismo que nos
identifica ao Cristo crucificado. Toda ascese leva a uma libertação das paixões
que, em Isaías, nada tem de estóico, pois se trata do desabrochar pleno da vida
do Espírito naquele que ama o Senhor Jesus com “inteiro amor”.
A
obra de Isaías é o fruto de uma rica meditação das Escrituras com um recurso
freqüente às interpretações alegóricas. Além Ada influência predominante dos
Padres do deserto, notaremos ainda a de Evagro, que é inegável. Isaías
certamente irradiou poderosamente em todas as Igrejas do Oriente. Quando em
vida, ele teve amigos tanto nos meios que haviam aderido ao Concílio de
Calcedônia como entre os que não o haviam aceitado. Para todos os cristãos, ele
permanece um mestre da autêntica espiritualidade.
Todos
os textos de Isaías inseridos na Filocalia
acham-se na tradução grega de Augustinos.
CAPÍTULOS SOBRE A GUARDA DO INTELECTO
1.
Existe no intelecto a cólera conforme a natureza (que é perdoada) contra as
paixões. Sem a cólera, não haveria pureza no homem, se ele não se irritasse
contra tudo o que nele é semeado pelo Inimigo. Quando Jó passou por isto, ele
injuriou seus inimigos dizendo-lhes: “Infames e desprezíveis, desprovidos de
todo bem, vocês que eu considero indignos de se misturar aos cães de meus
rebanhos.[2]”
Quem deseja obter a cólera conforme a natureza, deve afastar todas as suas
vontades, até que ela se estabeleça no estado natural do intelecto.
2.
Se, estando a ponto de afastar o Inimigo, você o vê fraquejar e bater em
retirada, não deixe que seu coração se rejubile, pois a malícia dos demônios
vem depois deles. De fato, eles preparam uma guerra pior do que a primeira:
eles a deixam na retaguarda da cidadela, com ordens para não se mexer; se você
se levantar para marchar de encontro a eles, eles fogem mostrando fraqueza. Se
neste momento seu coração se gloria por tê-los perseguido, e se você deixar a
cidadela, levantar-se-ão alguns que estavam na retaguarda e outros adiante, que
cercarão a pobre alma sem fuga possível[3].
A cidadela é a oração. A resistência, a resposta de Jesus Cristo. A marcha é a
cólera.
3.
Devemos nos manter, bem-amados, no temor a Deus, guardando e observando a
prática das virtudes, sem escandalizar nossa consciência, mas vigiando-nos no
temor a Deus, até que a própria consciência se liberte conosco para realizar a
união entre ela e nós; então ela se tornará nossa guardiã, mostrando-nos cada
ponto em que falhamos. Se não a obedecermos, ela se afastará de nós e nos
abandonará, e nós cairemos nas mãos dos inimigos, que não terão mais piedade,
como ensina nosso Mestre quando diz: “Entre
em acordo com seu adversário enquanto você ainda está a caminho[4]”,
etc. Diz-se que a consciência é um adversário, porque ela se opõe ao homem
quando ele quer satisfazer as vontades da carne, e se o homem não a escuta, ela
o entrega aos seus inimigos.
4.
Quando Deus quer que o intelecto se submeta a ele com todas as suas forças e
que ele não tenha outro sustento do que ele, ele o fortalece, dizendo: “Não
tema, Jacó, meu filho, pequeno Israel[5]”,
e também: “Não tema, pois eu o resgatei, eu o chamei por seu nome, você é meu.
Se você atravessar os rios, eu estarei com você, e as águas não o submergirão.
Se você atravessar o fogo, você não será queimado, as chamas não o consumirão,
pois eu sou o Senhor seu Deus, o Santo de Israel, Aquele que salva.[6]”
5.
Se então o intelecto escutar estas palavras de incentivo, ele desafiará o
Inimigo, dizendo: “Quem é este que me dá combate? Que se apresente diante de
mim! Quem é este que me julga? Que se aproxime de mim! Eis que o Senhor é meu
socorro, quem me prejudicará? Pois todos se desgastarão, como uma roupa velha
comida de vermes.[7]”
6.
Se seu coração realmente detesta o pecado, ele é um vencedor que se afastou de
tudo o que faz nascer o pecado. Coloque o castigo diante de seus olhos e saiba
que seu defensor permanece com você. Se você não o entristecer, mas chorar em
sua presença dizendo: “Só você possui a misericórdia para me redimir, Senhor,
pois eu sou incapaz de escapar das mãos dos inimigos sem seu auxílio”, e se
você vigiar seu coração, ele o preservará de todo mal.
7. O monge deve fechar todas as portas de sua alma, ou seja, seus sentidos, para não cair por sua causa. E quando o intelecto percebe que ele não está mais sob o poder de ninguém, ele se prepara para a imortalidade reunindo seus sentidos e fazendo deles um só corpo.
8.
Se o intelecto se liberta de todas as esperanças do mundo das coisas visíveis,
é o sinal de que o pecado está morto em você.
9.
Se o intelecto é libertado, aquilo que o separa de Deus desaparece.
10.
Se o intelecto é libertado de todos os seus inimigos e celebra o sétimo dia,
ele está em outro mundo, pensando nas coisas novas e incorruptíveis. Daí em
diante, “aonde o corpo estiver, aí se reunirão as águias.[8]”
11.
Os demônios contêm suas enganações por um tempo, esperando que o homem relaxe
seu coração imaginando ter um descanso, e assim, de um só golpe, eles se
precipitam sobre a pobre alma e a capturam como um pardal[9],
e se apoderam dela humilhando-a sem piedade com todos os pecados cujo perdão é
mais difícil do que aqueles pelos quais ela rogava inicialmente. Permaneçamos
assim no temor a Deus e vigiemos nosso coração, cumprindo com nossa ascese e
guardando as virtudes que fazem obstáculo à malícia dos inimigos.
12.
Nosso Senhor Jesus Cristo, conhecendo a grande crueldade [do demônio] e cheio
de piedade pela raça dos homens, ordenou com firmeza de coração: “Estejam
prontos a toda hora, pois vocês não sabem a que horas virá o ladrão[10],
para que ele não os encontre adormecidos.[11]”
E também: “Vigiem para que seus corações não fiquem pesados pela glutoneria, a
embriaguez e as preocupações da vida, e para que a hora não chegue de surpresa.[12]”
Domine seu coração vigiando seus sentidos, e se sua memória estiver em paz com
você, você capturará os ladrões que a roubam, pois aquele que examina
rigorosamente seus pensamentos reconhece aqueles que querem entrar apenas para
sujar tudo. Com efeito, eles perturbam o intelecto para torná-lo distraído e
preguiçoso. Mas aqueles que compreendem sua malícia permanecem imperturbáveis,
orando ao Senhor.
13.
Se o homem não odeia toda atividade deste mundo, ele não poderá servir a Deus.
Este serviço não é outra coisa do que não ter nada estranho no intelecto quando
rezamos para ele, nenhum prazer sensível quando o louvamos, nenhuma malícia
quando o cantamos, nenhum ódio quando o adoramos, nenhuma inveja má que nos
entrave quando conversamos com ele ou quando nos lembramos dele. Pois todas
estas trevas formam uma muralha que envolve a pobre alma impedindo-a de servir
a Deus com pureza enquanto permanecer aí. Elas a seguram no ar e não a deixam
ir ao encontro de Deus para louvá-lo em segredo, orando na suavidade do coração a
fim de ser iluminada por ele. É por isso que o intelecto fica obscurecido e não
consegue progredir conforme a Deus, por não ter tido o cuidado de afastar estas
coisas com ciência.
14.
Quando o intelecto resgatar as faculdades da alma das vontades da carne e as
fizer atravessar o mar, a coluna da divindade separará a alma das vontades da
carne; então, se Deus permitir que a arrogância das paixões se lance sobre a alma
tentando manter em pecado suas faculdades, e se o intelecto suplicar a Deus em
segredo incessantemente, ele enviará seu socorro e dissipará tudo de um só
golpe.
15.
Eu lhe suplico, enquanto você viver num corpo, não relaxe o coração. Pois,
assim como o cultivador não pode confiar na semente que cresce em seu campo,
pois ele não sabe o que advirá antes de ter colhido e armazenado, também o
homem não pode relaxar o coração enquanto houver um sopro em suas narinas[13].
E assim como o homem ignora até o último suspiro se alguma enfermidade o
afligirá, também é impossível a ele relaxar o coração enquanto respirar; assim,
ele deverá sempre pedir a Deus com grandes lamentos para obter sua ajuda e sua
misericórdia.
16.
Quem não encontra socorro no momento do combate não pode confiar na paz.
17.
Quando alguém se separa daqueles da mão esquerda, passa a conhecer exatamente
todos os pecados que cometeu contra Deus, porque ninguém vê seus pecados se não
estiver distanciado deles por uma dolorosa separação. São os que chegaram até
aí que encontram as lágrimas, as súplicas e a vergonha diante de Deus
lembrando-se de sua ligação perversa com as paixões. Lutemos, assim, na medida
de nossas forças, irmãos, e Deus nos assistirá segundo a abundância de sua
misericórdia. E se nós não guardamos nossos corações como nossos pais, ao menos
façamos o possível para guardarmos nossos corpos sem pecado, como o quer Deus, e acreditemos que, quando a fome nos assaltar, ele terá piedade de nós como teve
de seus santos.
18.
Aquele que entrega seu coração à verdadeira procura de Deus na piedade não pode
pensar que ele agrada a Deus, pois enquanto sua consciência reprovar-lhe seja
lá o que for contra a natureza, ele não terá obtido a liberdade. De fato, enquanto
houver alguém que desaprova, existirá alguém que acusa, e, enquanto houver uma
acusação, não haverá liberdade. Se enfim você perceber que, enquanto você ora,
absolutamente nenhuma malícia o acusa, então você está verdadeiramente liberto
e penetrou no santo repouso segundo sua vontade. Se você perceber que o bom
fruto se fortalece e que a embriaguez do inimigo não o sufoca mais[14],
que os adversários recuaram - não por si mesmos, seguros de sua esperteza, mas por que você já não luta contra os sentidos -, se a nuvem encobriu a tenda[15]
e o sol já não o queima de dia nem a lua à noite[16],
se você tem em si todo o necessário para erguer e manter a tenda segundo a
vontade de Deus[17],
então a vitória chegou a você vinda dele. E daqui em diante ele mesmo cobrirá a
tenda, porque ela lhe pertence.
Enquanto
durar a guerra, o homem permanecerá no temor e no tremor, vencedor ou vencido
hoje, vencido ou vencedor amanhã, pois a luta aperta o coração. Ao contrário, a
impassibilidade não tem mais o que combater, pois ela recebeu o prêmio, e ela
não precisa mais se inquietar com a sorte dos três que são distintos, porque
eles fizeram as pazes entre si graças a Deus. Estes três são o corpo, a alma e
o espírito, segundo o Apóstolo[18].
Assim, quando os três se tornam um pela operação do Espírito Santo, eles não
podem mais ser separados. Não pense, portanto, que você está morto para o
pecado enquanto você seguir sendo assaltado pelos inimigos, seja na vigília,
seja no sono. Pois enquanto o pobre homem estiver neste estado, ele nunca
estará seguro da vitória.
19. Quando o intelecto se fortalece e se prepara para acompanhar a caridade que
extingue todas as paixões do corpo[19] - da alma e do corpo -, então este se torna paciente e solícito, ele odeia a inveja e o orgulho, ele não pensa no mal, pois isto é o amor. A cólera se torna conforme à natureza, dentro do coração, ela não permite que nada contra a natureza oprima o espírito, e, com sua força,
o intelecto resiste às coisas que são contra a natureza, até conseguir
afastá-las das coisas conformes à natureza.
20.
Examine-se a cada dia, irmão, observando seu coração: que paixões existem nele
perante Deus? Rejeite tudo isso de seu coração, a fim de que nenhuma sentença
nefasta caia sobre você.
21.
Vigie assim seu coração, irmão, e tome cuidado com os inimigos, pois eles são
espertos em sua malícia. E em seu coração fique certo destas palavras: “É
impossível ao homem fazer o bem enquanto ele faz o mal, ao passo que o homem
pode fazer o mal sob pretexto de fazer o bem.” Por isso nosso Salvador nos
ensinou a vigiar, dizendo: “Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz
à vida, e são poucos os que o encontram.[20]”
22.
Portanto, vigie a si mesmo, para que nada da perdição o desvie do amor a Deus,
e domine seu coração. Nas se deixe desencorajar, dizendo: “Como posso
guardá-lo, sendo um pecador?”. Pois quando um homem abandona seus pecados e se
volta para Deus, sua penitência o regenera e o faz inteiramente novo.
23.
Em toda parte a divina Escritura, a antiga como a nova, fala da guarda do
coração. Primeiro Davi o Salmista exclama: “Filhos dos homens, até quando terão
vocês o coração tão pesado?[21]”. E também: “Seu coração é vão.[22]”
De todos aqueles cujos pensamentos são vãos, ele diz: “Pois ele diz em seu
coração: jamais estremecerei![23]”
E ainda: “Pois ele diz em seu coração: Deus esquece[24].”,
e outras coisas do tipo. Com efeito, o monge deve considerar o objetivo da
Escritura, a quem ela fala e quando ela fala; ele deve sustentar continuamente
o combate da ascese e tomar cuidado com os ataques do Adversário. Como um
piloto, ele deve navegar sobre as ondas conduzido pela graça, sem se afastar da
via reta, atento apenas ao caminho e entretendo-se com Deus na hesíquia, com sua razão inquebrantável e
o intelecto liberto de todas as confusões.
24.
O tempo, com efeito, exige de nós a oração, como se fôssemos pilotos diante dos ventos,
da tripla borrasca e das tempestades dos espíritos. Pois nós estamos expostos
aos ataques dos pensamentos da virtude e do vício, e é dito que o mestre das
paixões é o pensamento piedoso e amigo de Deus. De fato, convém aos
hesiquiastas que somos, discernir e separar com sabedoria, sobriedade e
vigilância as virtudes dos vícios, nos aplicarmos a esta ou àquela virtude em
presença dos irmãos e dos padres, a trabalhar uma ou outra quando estamos a
sós; convém examinarmos qual é a primeira virtude, a segunda e a terceira;
quais paixões são psíquicas, quais corpóreas; a partir de qual virtude o
orgulho golpeia o intelecto; qual é acompanhada da vanglória, qual leva à
cólera e qual engendra a gula. Devemos destruir “os pensamentos e toda potência
altaneira que se levanta contra o conhecimento de Deus.[25]”
25.
A primeira virtude é a ausência de preocupações, ou seja, a morte perante todos os
homens e perante todas as coisas. Então nasce o desejo por Deus e este engendra a
cólera conforme à natureza, que vai opor-se a tudo o que o inimigo semeia. A
partir daí o temor a Deus encontra no homem um lugar de eleição, e pelo temor manifesta-se
a caridade.
26.
É preciso rejeitar os assaltos do pensamento ao coração por uma recusa piedosa
no momento da prece, para que não deixemos os lábios ocupados em falar com Deus
enquanto o coração se dedica a coisas inconvenientes. Pois Deus não aceita uma
prece suja e desprezível de um hesiquiasta. Assim é que Escritura atesta que
devemos supervisionar os sentidos da alma. Se a vontade do monge está submetida
à lei de Deus e se seu intelecto conduz segundo a lei tudo o que está em seu
poder, vale dizer todos os movimentos da alma, em especial a cólera e a cobiça,
submetendo-as à razão, então praticamos a virtude e cumprimos a justiça. A
cobiça volta-se para Deus e para as suas vontades, a cólera é exercida contra o
diabo e o pecado. O que estamos buscando? A meditação secreta.
27.
Se uma obscenidade for semeada em seu coração, mantenha-se na sua cela e vigie
para resistir à malícia, para que ela não se apodere de você. Apresse-se em se
lembrar de Deus que o vê e diante de quem estão a descoberto os pensamentos de
seu coração. Diga à sua alma: “Se você teme
que pecadores como você vejam seus pecados, quanto mais a Deus, que tem
os olhos sobre tudo?”; desta reflexão nascerá em sua alma o temor a Deus, e se
você permanecer com ele, você se manterá bom, imperturbável em meio às paixões,
segundo está escrito: “Aqueles que confiam no Senhor são como o monte Sião:
aquele que habita Jerusalém jamais estremecerá.” Em tudo o que você fizer,
lembre-se de que Deus vê tudo o que você pensa e você não pecará mais.
A
ele a glória por todos os séculos. Amém.
EVAGRO O PÔNTICO
ESBOÇO MONÁSTICO
SOBRE O DISCERNIMENTO DAS PAIXÕES
CAPÍTULOS NÉPTICOS
CAPÍTULOS SOBRE A ORAÇÃO
Evagro
o Pôntico
Evagro, este homem sábio e admirável
viveu por volta do ano 350. Ele recebeu do grande Basílio o cargo de leitor.
Ele foi ordenado diácono pelo irmão de Basílio, Gregório de Nice. Ele foi
iniciado nos textos sagrados por Gregório o Teólogo, que fez dele arquidiácono,
quando ele recebeu a administração da Igreja de Constantinopla, segundo
Nicéforas Calixto. Depois, tendo renunciado às coisas do mundo, ele mergulhou
na vida solitária. Dotado de uma real sutileza de inteligência e de uma grande
habilidade em expressar seu pensamento, ele deixou numerosos escritos, como o
tratado dirigido aos hesiquiastas e os capítulos, de grande valia, sobre o
discernimento das paixões e dos pensamentos, que escolhemos para expor neste
livro.
Evagro,
dito o Pôntico por ser originário da província do Ponto na Ásia Menor, nasceu
cerca de 345 em Ibora, não distante de Anésia aonde Basílio e Gregório
iniciaram sua vida solitária em 357. Ordenado leitor por são Basílio, Evagro
foi em seguida elevado ao diaconato por são Gregório de Nazianze, que o levou
consigo para Constantinopla em 380. Mas logo, a fim de fugir a uma violenta
paixão que teve pela esposa de um alto funcionário, ele se expatriou e foi para
Jerusalém, onde Melânia a Velha o convenceu a renunciar ao mundo e se fazer monge
no Egito. Depois de passar dois anos em Nitria, Evagro retirou-se para o
deserto das Kellia, onde viveu até sua morte em 399. Ele foi discípulo de
Macário de Alexandria e também se relacionou com o outro Macário, fundador de
Sceta. Ele fez parte de um grupo de monges letrados que se distinguiram pela
fervorosa aderência às doutrinas origenistas.
A
obra escrita que ele deixou testemunha esta dupla herança. Os extratos que nos
fornece a Filocalia foram tirados
sobretudo dos tratados ascéticos, nos quais não encontramos nenhuma das
opiniões controversas que levaram à condenação do autor das Centúrias gnósticas no Concílio de
Constantinopla em 553.
Encabeçando
esta antologia vem o Esboço ou Hypotypose, ou ainda, com outro título, Bases para a vida monástica. Destinado,
com efeito, aos iniciantes, este tratado descreve os traços específicos do
estado monástico e de suas condições essenciais: celibato, renúncia do mundo,
pobreza, solidão, trabalho manual e meditação sobre os fins últimos.
O
livro seguinte, Capítulos sobre o
discernimento das paixões e dos pensamentos ou Dos diversos pensamentos, trata do combate espiritual. Ele expõe
com sutileza e profundidade a estratégia por meio da qual os demônios suscitam
no monge os maus pensamentos e a maneira de detectar e repelir os ataques. Sob
o título de Capítulos Népticos, a Filocalia acrescenta a seguir cinco
extratos do Tratado prático ou O monge, dos quais dois se referem aos
ensinamentos dos anciãos do deserto, em especial Macário.
A
este florilégio apresentado na Filocalia
grega sob o nome de Evagro, convém acrescentar o tratado Da prece, atribuído a são Nilo pela tradição grega e que deve ser
restituído a Evagro, como I. Hausherr demonstrou de forma decisiva. Este
tratado constitui uma das obras mais extraordinárias de Evagro, e nele
encontramos os elementos mais valiosos de seu ensinamento místico.
ESBOÇO MONÁSTICO QUE ENSINA O MODO DE
EXERCER A ASCESE E A HESÍQUIA
1.
Está dito em Jeremias: “Você, não tome esposa neste lugar, pois eis o que o
Senhor disse dos filhos e filhas engendrados neste lugar: ‘Eles perecerão de
enfermidade mortal’[26]”.
Estas palavras mostram que, como diz o Apóstolo, “o homem casado se preocupa
com as coisas do mundo, do modo de agradar à sua esposa, e ele fica dividido. A
mulher casada também se preocupa com o mundo e com a maneira de agradar ao seu
marido[27]”.
E é claro que o que diz o Profeta: “Eles perecerão de uma enfermidade mortal”
não se refere apenas aos filhos e filhas nascidos da vida conjugal, mas também
dos filhos e filhas engendrados no coração, ou seja, os pensamentos e os
desejos carnais; também eles perecerão por assim dizer no entendimento doentio,
enfermo e lânguido deste mundo e não renascerão para a vida celeste. “Mas
aquele que não é casado, diz o Apóstolo, preocupa-se com as coisas do Senhor e
com o modo de agradar ao Senhor[28]”,
e este produzirá os frutos perpétuos e imortais da vida eterna.
2.
Assim é o monge e é assim que ele deve ser: abster-se de esposa, não procriando
nem filhos nem filhas neste lugar acima referido, acima de tudo um soldado de
Cristo, imaterial e sem preocupações, desembaraçado de todos os cuidados com
negócios e com atividades de qualquer tipo, como ainda diz o Apóstolo: “Ao se
alistar no exército, ninguém se deixará envolver pelas questões da vida civil,
se quiser satisfazer a quem o alistou no regimento[29]”.
Que
assim caminhe o monge, sobretudo o que abandonou toda a matéria deste mundo e
corre para os magníficos e esplêndidos troféus da hesíquia. Como é magnífica e
esplêndida a ascese da hesíquia, sim, verdadeiramente magnífica e esplêndida!
Pois seu jugo é doce e seu fardo é leve[30].
Doce é a vida e deleitosa a prática.
3.
Você quer mesmo, bem-amado, assumir a vida monástica tal como ela é e buscar os
troféus [esplêndidos e magníficos] da hesíquia? Deixe para trás as preocupações
do mundo, os príncipes e os poderes que dele se ocupam, ou seja, desembarace-se
da matéria e das paixões, sem nenhuma concupiscência, a fim de que, tornado
alheio a este embaraço, você possa bem praticar a hesíquia. Pois se não nos
subtrairmos a tudo isso, não teremos como levar a bom termo esta vida.
Contente-se
com uma alimentação frugal e barata, em pequena quantidade e fácil de achar. E
se, sob pretexto de hospitalidade, lhe vêm ao pensamento alimentos mais caros,
deixe-o ir-se e não o siga, pois com isto o Adversário coloca uma armadilha
para desviá-lo da hesíquia. Você sabe como o Senhor Jesus condena a alma que se
preocupa com essas coisas – Marta – dizendo a ela: “Porque perturbar-se com tantas
coisas? Apenas uma lhe é necessária”, a saber, disse ele, escutar a palavra
divina; e depois disto tudo fica fácil. É por isso que ele acrescenta a seguir:
“Pois Maria escolheu a melhor parte, a que não poderá ser-lhe tirada[31]”.
Você tem ainda o exemplo da viúva de Sarepta e dos alimentos que ela ofereceu
ao Profeta[32].
Se você só tiver pão, sal e água, você poderá com isto obter a recompensa por
sua hospitalidade. E se nem isto você possuir, receba seu hóspede com a melhor
das disposições e ofereça-lhe uma palavra edificante, de maneira a obter a
recompensa da hospitalidade. De fato, foi dito: “Uma palavra é melhor do que
aquilo que se dá[33]”.
Eis o que você deve meditar a respeito da esmola.
4.
Vigie, portanto, para não querer ter riquezas para distribuí-las aos pobres,
pois esta é mais uma artimanha do Maligno, que muitas vezes conduz à vanglória
e atira o intelecto numa multidão de preocupações. No Evangelho você encontra a
viúva de quem o Senhor Jesus deu testemunho que, com duas moedinhas, superou os
ricos no tocante à intenção e ao valor. Com efeito, “estes, disse o Senhor,
tiraram um pouco do supérfluo de seus tesouros, enquanto que ela ofereceu toda
a sua subsistência[34]”.
Quanto
às roupas, não deseje ter demais. Fique com aquelas que bastam para as necessidades
do corpo. “Coloque todas as suas preocupações no Senhor e ele tudo fará para
você[35]”.
“De fato, ele cuida pessoalmente de nós[36]”.
Se
você ficar sem comida nem vestes, não tenha vergonha de aceitar o que outros
lhe oferecem, pois esta vergonha é uma espécie de orgulho. Mas se você tiver o
bastante, dê a quem falta. É assim que Deus quer que suas crianças sejam
providas. Eis porque o Apóstolo, escrevendo aos Coríntios, disse a respeito dos
indigentes: “Que o seu supérfluo ajude na penúria destes, a fim de que o
supérfluo deles remedie a sua penúria e que assim haja uma equanimidade, como
está escrito: ‘Aquele que tinha muito não tem tanto, e o que tinha pouco não
ficou sem’.[37]”
Tendo
assim o necessário para o presente, não se preocupe com o futuro, quer se trate
de um dia, uma semana ou um mês. Quando amanhã chegar, ele mesmo fornecerá o
que é necessário, se você, acima de tudo, buscar o Reino dos céus e a justiça
de Deus. De fato, disse o Senhor: “Procurem o Reino de Deus e sua justiça, e
tudo o mais lhes será dado em acréscimo.[38]”
5. Não tenha servidor, para que através dele o Adversário não provoque um escândalo e não perturbe o seu pensamento com alimentos custosos, pois você não poderá mais, sozinho, cuidar dele. E se lhe ocorrer um pensamento relativo ao bem estar corporal, pense no que lhe é melhor, quero dizer o bem estar espiritual. Com efeito, e em verdade, o bem estar espiritual vale mais do que o corporal. E mesmo que o Adversário coloque em sua cabeça os benefícios que poderá auferir o rapaz, não o obedeça. De fato, não é trabalho para nós, mas para outros santos Padres que vivem em comunidade. Cuide apenas de seu próprio benefício e preserve a condição de hesíquia. Não queira viver com os homens que estão ligados às coisas materiais e amarrados de todos os lados. Viva só, ou com irmãos desembaraçados da matéria e que pensam como você. Pois quem vive com os homens que estão ligados às coisas materiais e tomados pelos negócios, partilhará necessariamente, ele também, dos embaraços e da escravidão das servidões humanas, tais como as conversas vãs e todas as outras calamidades: cólera, tristeza, loucura das coisas materiais, medo e escândalo.
Tampouco
se deixe prender pelos cuidados de famílias ou pelas afeições ao próximo, mas
antes evite sua freqüentação, para que eles não o façam perder a hesíquia da
cela e não o envolvam em seus próprios assuntos. Como diz o Senhor: “Deixe que
os mortos enterrem seus mortos[39];
você, venha e siga-me”. Inclusive, se sua própria cela é demasiado acessível,
fuja e não a conserve, não relaxe por estar ligado a ela. Faça tudo o que
puder, aja sempre de maneira a poder praticar a hesíquia e para ter tempo livre
para se dedicar a fazer as vontades de Deus e a se manter em luta contra as
potências invisíveis.
6.
Se você não consegue alcançar a hesíquia nas suas redondezas, dirija sua
intenção para o exílio e apresse-se em fixar aí seu pensamento. Faça como um
bom homem de negócios, avaliando tudo em função da hesíquia e retendo
principalmente as coisas que seja úteis e coerentes com ela. Quanto ao mais, eu
lhe digo, prefira o exílio. Pois ele o desembaraça dos incômodos de sua própria terra natal e tira partido apenas
daquilo que aproveita à hesíquia. Evite as estadias nas cidades e persevere no
deserto. “Eis, diz o santo rei, que fugi para longe e permaneci no deserto[40]”.
Tanto quanto possível, não vá nunca à cidade, pois você não verá ali nada que
lhe convenha, nada útil nem aproveitável para seu modo de vida. “Eu vi, diz
ainda o santo rei, a iniqüidade e as disputas na cidade[41]”.
Procure, portanto, os lugares afastados e tranqüilos. Não tema o eco. Se você
enxergar os espectros dos demônios, não tenha medo e não abandone o estado que
é todo nosso benefício. Persevere sem temor e você verá “as maravilhas de Deus[42]”,
o socorro, a solicitude e todas as demais certezas de salvação. Com efeito, é o
homem bem-aventurado que diz: “Eu esperei aquele que me salvou do
desencorajamento e da tempestade[43]”. Que nenhum desejo de agitação vença seu
propósito. Pois “a inconstância com a cobiça solapa um espírito inocente[44]”.
Daí sobrevêm inúmeras tentações. Tema a queda e mantenha-se sedentário em sua
cela.
7.
Se você tem amigos, evite estar constantemente com eles. Pois, vendo-os poucas
vezes, você extrairá mais proveito. Mas se você se der conta de que está se
prejudicando por eles, não se aproxime mais. É preciso, com efeito, que seus
amigos lhe sejam úteis e que compartilhem seu modo de vida. Fuja dos encontros
com amigos perversos ou polêmicos e não more com nenhum deles. Mais do que isto,
repila seus maus projetos, pois eles não estão ligados a Deus e não permanecem
com ele. Que seus amigos sejam homens pacíficos, os irmãos espirituais e os
santos Padres. É assim, realmente, que o Senhor os denominou quando disse:
“Minha mãe, meus irmãos e meus pais são aqueles que fazem a vontade de meu Pai
que está no céu[45]”.
Não freqüente pessoas agitadas nem vá festejar com elas, para que não o
arrastem em suas ilusões e o desviem da disciplina da hesíquia, pois é a paixão
que se encontra neles. Não dê ouvidos aos seus propósitos e não acolha os
pensamentos de seu coração, pois eles são verdadeiramente funestos. Que seu desejo se volte para os fiéis da terra e que o desejo de seu coração seja o de
invejar sua compunção. De fato, foi dito: “Meus olhos estão fixos nos fiéis da
terra para fazê-los assentarem-se comigo[46]”.
Mas se um daqueles que vivem segundo o amor de Deus convidá-lo a comer com ele,
e se você o quiser, faça-o, mas volte logo para a sua cela. Tanto quanto
possível, jamais durma fora dela, a fim de que sempre permaneça com você a
graça da hesíquia, e você poderá assim, sem empecilhos, permanecer fiel ao seu
propósito.
8. Não seja amante de bons pratos nem das ilusões da fruição, pois, como diz o Apóstolo “quem vive da fruição está morto[47]”. Não encha seu ventre com alimentos que são para os mundanos, para que sua concupiscência não o contamine e não o faça desejar a sua mesa. Com efeito, foi dito: “Não se perca locupletando o ventre[48]”. E se você for constantemente convidado a deixar sua cela, recuse. Pois a permanência prolongada fora da cela é nociva, ela desfaz a graça, obscurece o entendimento, extingue o fervor. Veja como uma jarra de vinho que permanece por longo tempo em seu lugar, sem ser remexida, torna o vinho claro, decantado, perfumado. Se, ao contrário, ela é transportada de um lugar para outro, ela produzirá um vinho opaco, misturado e que mostra todas as desagregações da borra. Compare-se a esta jarra e faça esta experiência tão útil, rompa relações com a maioria das pessoas para que seu intelecto não seja distraído e para que não se perturbe sua condição de hesíquia.
Tenha
o cuidado de trabalhar com as mãos noite e dia, se possível, a fim de não ser
um peso para ninguém e mais ainda para distribuir, como o recomenda o santo
apóstolo Paulo[49],
para triunfar com isto também sobre o demônio da acídia e para eliminar toda a
demais concupiscência do inimigo. Pois o demônio da acídia se faz acompanhar do
ócio e encontra-se “na concupiscência”, como foi dito[50].
Fazendo comércio, você não evitará o pecado. Vendendo ou comprando, ceda um
pouco, para sua própria desvantagem, sobre o preço justo, para que não aconteça
que, arrastado pelas negociações mesquinhas e minuciosas que a ganância
comercial inspira, você não caia nas causas de dano para a alma, nas disputas,
nos falsos juramentos, nos perjúrios, e que, por causa de tais procederes, você
não se desonre e não cubra de vergonha a santa dignidade de nossa profissão.
Adote esta idéia, evite comprar e vender por si mesmo. É preferível, se possível,
atribuir este assunto a algum outro, a um homem confiável, a fim de que,
estando com o espírito tranqüilo, você
desfrute das esperanças belas e felizes.
9.
Tais são as vantagens que lhe trará a vida da hesíquia. Vou agora expor a série
de coisas que ela contempla. Você, escute-me e faça o que eu lhe ordeno.
Sentado em sua cela, recolha seu intelecto, lembre-se do dia de sua morte, veja
o cadáver que será seu corpo, sinta suas penas, condene a vaidade deste mundo,
encha-se de cuidado e zelo para poder permanecer sempre dentro do mesmo firme
propósito da hesíquia sem fraquejar. Lembre-se também das condições presentes
no inferno, observe como estão as almas lá embaixo, em que amargo silêncio, em
que gemidos terríveis, em que horror, em que agonia, em que espera, a tortura
interminável e as lágrimas da alma que não podem ser secadas. Mas lembre-se
também do dia da ressurreição e do comparecimento diante de Deus. Imagine este
julgamento apavorante e temível, evoque o que está reservado aos pecadores: a
vergonha diante de Deus e de seu Cristo, dos anjos, dos arcanjos, das potências
e de todos os homens, todos os suplícios, o fogo eterno, o verme que não morre,
o tártaro, as trevas, e, além de tudo isto, o ranger de dentes, os terrores e
os tormentos. Mas evoque também os bens que estão reservados aos justos: a
segurança diante de Deus pai e de seu Cristo, dos anjos, dos arcanjos, das
potências e de todo o povo dos santos, o reino e seus dons, a alegria e a
felicidade. Destas duas perspectivas, guarde em sua memória: sobre a condenação
dos pecadores, chore, gema e coloque roupas de luto, temendo que também a você
isto aconteça. Mas quanto aos bens reservados aos justos, rejubile-se, exulte e
se alegre; esforce-se para poder desfrutá-los; quanto aos outros, trate de
escapar deles. Vigie para nunca se esquecer disto, quer você esteja dentro ou
fora de sua cela, não separe seu entendimento desta lembrança a fim de que, no
mínimo, você evite os pensamentos impróprios e nocivos.
10.
Jejue tanto quanto puder diante do Senhor. O jejum lava as transgressões e os
pecados, embeleza a alma, santifica o entendimento, põe em fuga os demônios e
predispõe à aproximação com Deus. Comendo uma vez ao dia, não deseje uma
segunda refeição, para não ser perdulário nem perturbar o entendimento. Assim
você terá em abundância para as obras de bem-aventurança e poderá mortificar as
paixões do corpo. Mas se chegam irmãos e você se vê obrigado a comer uma
segunda e uma terceira vezes, cuide para não gemer nem se afligir; regozije-se
e submeta-se à realidade, e, comendo pela segunda ou pela terceira vez, dê
graças a Deus por cumprir a lei da caridade e de ter o próprio Deus como
administrador de nossas vidas. Pode acontecer que o corpo esteja enfermo e que
seja preciso comer duas ou três vezes ou mesmo freqüentemente; [esteja pronto
para esta eventualidade] e não se aflija. Não devemos permitir que os labores
corporais do nosso estilo de vida sejam mantidos durante as doenças, mas
podemos renunciar a algumas coisas para recuperar a saúde mais depressa e
retomar os mesmos labores de nossa vida. A respeito da abstinência de
alimentos, a palavra divina não proibiu comer nada, mas ela diz: “Eu lhes dei
todas as coisas em forma de legumes[51]”,
“comam indistintamente[52]”
e “Não é o que entra pela boca que suja o homem[53]”.
A abstinência de alimentos deve ser um trabalho de nossa livre vontade e de
nossa alma.
11.
Suporte alegremente a vigília, o sono em leito duro e todas as demais
austeridades, considerando a glória futura que lhe será revelada com todos os
santos. É dito, com efeito, que “os sofrimentos do tempo presente não são nada
comparados com a glória que será revelada em nós[54]”. Se você estiver abatido, ore, como está
escrito[55],
mas ore com temor e com tremor, com esforço, sobriedade, vigilância e atenção.
É assim que se deve rezar, sobretudo por causa dos inimigos invisíveis,
perversos e enganadores, que querem sempre nos causar prejuízos. Cada vez que
eles nos vêem em oração, apressam-se a vir sugerir ao nosso intelecto aquilo
que não deve ser pensado nem meditado durante a prece, a fim de levar cativo
nosso intelecto e de tornar vãs, inúteis e ineficazes a demanda e a súplica
contidas na prece. Pois vãs e inúteis
são a prece, a demanda e a súplica que não são feitas como foi dito, como
temor, tremor, sobriedade, vigilância e atenção. De fato, se nos aproximamos de
um rei mortal, tremendo, com temor e circunspecção para lhe apresentar um
pedido, não seria conveniente sentirmos muito mais ao nos apresentarmos assim a
Deus, mestre do universo, e a Cristo, Rei dos reis e Príncipe dos príncipes[56],
e lhe dirigirmos igualmente nossas súplicas e demandas? Certamente, pois a ele também dirigem hinos
incessantes toda a multidão de espíritos angélicos que o temem e adoram em
coro, que tremendo o glorificam, tanto ao Pai sem começo quanto ao Espírito
santíssimo e coeterno, agora e para sempre, por todos os séculos. Amém.
CAPÍTULOS SOBRE O DISCERNIMENTO DAS PAIXÕES E DOS PENSAMENTOS
[I][57]
1. Dentre os demônios que se opõem à prática os primeiros a se apresentar ao
combate são aqueles encarregados dos apetites da gula, os que nos sugerem a
avareza e os que nos estimulam a procurar a glória humana. Todos os outros
caminham atrás destes, recolhendo aqueles que eles feriram. Com efeito, não é
possível cair nas mãos do espírito da fornicação, sem antes haver sucumbido à
gula; não é possível deter a parte irascível se não a combatermos por via dos
alimentos, das riquezas e da glória; não é possível fugir do demônio da
tristeza se nos sentirmos privados de tudo isto ou se não os pudermos adquirir;
tampouco escaparemos do orgulho, o primeiro broto do diabo, se não banirmos “a
avareza, raiz de todos os males” porque, como disse o sábio Salomão, “a pobreza
humilha o homem[58]”.
Em poucas palavras, não é possível que alguém sucumba ao demônio, sem antes ter
sido ferido pelos assaltantes da primeira fileira (protostátai). É por isso que foram estes os três pensamentos que o
diabo outrora apresentou ao Salvador, convidando-o primeiramente a transformar
as pedras em pães, prometendo-lhe em seguida o mundo inteiro se ele se
prosternasse para adorá-lo, e em terceiro lugar dizendo-lhe que, se ele o
obedecesse, ele seria glorificado por não sofrer dano algum de tal queda[59].
Mostrando-se superior a estas tentações, Nosso Senhor ordenou ao diabo que se
retirasse; com isto ele nos ensina que não é possível afastar o diabo sem antes
desprezar estes três pensamentos.
[II]
2. Todos os pensamentos demoníacos introduzem na alma representações de objetos
sensíveis: impressionado com eles, o intelecto carrega em si as formas destes
objetos; e assim, é conforme o próprio objeto que ele pode reconhecer o demônio
que se aproximou. Por exemplo, se em meu espírito forma-se o rosto de alguém
que me fez mal ou que me desonrou, é a prova de que o pensamento do rancor e do
ressentimento me fez uma visita; ou ainda, se sobrevierem lembranças de
riquezas ou de glória, é evidente que será a partir destes objetos que poderá
ser reconhecido aquele que nos atormenta. O mesmo acontece com relação aos
outros pensamentos: partindo dos objetos você descobrirá quem está presente e
faz essas sugestões. Não quero com isto dizer que todas as lembranças de tais
objetos venham dos demônios – pois o próprio intelecto, por ser movido pelo homem,
possui a faculdade natural de lembrar as imagens do que existe – mas apenas
aquelas que forçam contra a natureza as partes irascíveis e concupiscentes. De
fato, é por causa da perturbação destas potências que o intelecto comete em
espírito o adultério e a violência, tornando-se incapaz de receber a imagem de
Deus que lhe impôs sua lei, na medida em que esta claridade se manifesta à
faculdade diretora [da alma] no momento da prece com a supressão de todas as
demais representações ligadas aos objetos.
[III]
3. O homem não pode desembaraçar-se das lembranças apaixonadas senão tomando
cuidado com suas partes concupiscente e irascível, esgotando a primeira por
meio dos jejuns, das vigílias e do sono sobre leitos duros, aprisionando a
segunda através da longanimidade, da ausência de ressentimentos e das esmolas.
Com efeito, é a partir destas duas paixões que se formam quase todos os
pensamentos demoníacos que precipitam o intelecto “na ruína e na perdição”.
Ora, é impossível a alguém triunfar sobre estas paixões se não desdenhar
completamente as comidas, as riquezas e a glória, e até seu próprio corpo, por
causa daqueles que tantas vezes tentam inflá-lo.
É
assim absolutamente necessário imitar alguém que está em perigo no mar e que
atira a carga pela amurada, devido à violência dos ventos e às ondas
desenfreadas. Mas vigiem para não atirar a carga pela amurada diante dos
homens, fazendo-lhes espetáculos; pois já receberam a paga, e um outro
naufrágio, mais temível que o primeiro, seguir-se-á, com o demônio da vanglória
insuflando o vento contrário. É por isso que Nosso Senhor, nos Evangelhos,
instrui nestes termos o piloto, que é o intelecto: “Guardai-vos de fazer vossas
boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não
tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu[60]”;
e ainda: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de
pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em
verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa[61]”;
e ele diz também: “Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os
hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que
jejuam. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa.[62]”
Mas
é o médico das almas que devemos observar aqui: assim como pela esmola ele cura
a parte irascível, pela prece purifica o intelecto, e pelo jejum extenua a
parte concupiscente; desta maneira, “o homem novo renova-se à imagem de seu
Criador[63]”,
e nele, graças à santa impassibilidade, “não existe mais homem nem mulher”,
nele “não existe mais grego ou judeu, nem circuncisos ou incircuncisos, nem
bárbaro, nem cita, nem escravo, nem homem livre, mas somente o Cristo, que será
tudo em todos.[64]”
[IV]
4. É preciso procurar como, nas imaginações do adormecer, os demônios deixam
uma marca e uma figura em nossa faculdade diretora. Pois estas coisas, parece,
produzem-se no intelecto, seja por intermédio dos olhos quando ele vê, seja
pelo ouvido quando escuta, seja por um sentido qualquer, ou então pela memória,
que deixa marcas na faculdade diretora, não por meio do corpo, mas colocando em
movimento aquilo que ela obteve por intermédio do corpo. Pois bem, parece-me
que é colocando em movimento a memória que os demônios deixam marcas na
faculdade diretora, visto que o organismo se mantém inativo durante o sono. Mas
vejamos agora como eles colocam em movimento a memória: não seria por
intermédio das paixões? Sim, evidentemente, porque aqueles que são puros e
impassíveis não experimentam nada disso. Entretanto existe também um movimento
simples da memória, provocado por nós ou pelas santas potências, graças ao
qual, durante nosso sono, podemos reencontrar os santos, conversarmos e
comermos com eles. Para tanto é preciso lembrar que as imagens que a alma
recebe por meio do corpo são postas em movimento pela memória, sem o corpo; a
prova disto está no fato de que freqüentemente experimentamos essas coisas
mesmo dormindo, enquanto o corpo está em repouso. Assim como é possível
lembrarmo-nos da água quer estejamos ou não com sede, podemos lembrar do ouro
com ou sem cupidez, e do mesmo modo qualquer outra coisa. Que o intelecto
encontre tais ou tais variedades de imagens será o indício do trabalho
pernicioso daqueles lá. E é preciso ainda saber o seguinte: os demônios servem-se
também de objetos exteriores para produzir uma imagem, como por exemplo o ruído
das ondas para um navegador.
5.
Quando arrastada contra sua natureza, nossa irascibilidade fornece uma enorme
ajuda aos demônios para que atinjam seu objetivo, e se presta toda útil às suas
odiosas maquinações. É por isso que, dia e noite, nenhum deles deixa um
instante de perturbá-la; e quando eles a veem abraçada com a doçura,
apressam-se a encontrar justos pretextos para separá-las o mais depressa
possível, a fim de que, colocando-se em prontidão, ela sirva aos seus
pensamentos ferozes. Também é preciso não provocá-la sob nenhum pretexto, justo
ou injusto, e não atirar um funesto punhal contra os autores das sugestões.
Conheço muitos que agem assim frequentemente e se inflamam mais do que o
necessário pelas razões mais fúteis.
[V]
Em função de que, diga-me, “você se atira tão depressa numa discussão”, se é
verdade que você desprezou alimentos, riquezas e glória? E porque você alimenta
seu cão, se faz profissão de nada possuir? Se ele late e ataca as pessoas, é
evidente que você possui alguns bens no interior, que ele deve guardar. De
minha parte, estou convencido de que um tal homem está longe da oração pura,
sabendo que a irascibilidade é um flagelo para esta oração. E é de espantar que
ele esqueça assim os santos, como David que clama: “Põe fim à tua cólera e
renuncie à irascibilidade[65]”,
como o Eclesiastes que proclama: “Afasta a cólera de teu coração e a malícia da
tua carne[66]”,
e como o Apóstolo, que prescreve “erguer as mãos em todo lugar sem cóleras nem
disputas[67]”.
Porque não nos instruirmos pelo antigo costume dos homens, que consistia em
expulsar da casa os cachorros no momento da oração? Isto significa em termos
velados que a irascibilidade não deve estar presente entre aqueles que oram.
Vejam ainda: “A cólera dos dragões é seu vinho[68]”;
ora, assim os Nazireus abstinham-se de vinho. Acrescento que um sábio pagão
declarou que a vesícula biliar e a parte lombar não eram comestíveis pelos
deuses, sem saber, penso eu, o que dizia. Para mim, são símbolos, a primeira da
cólera e a segunda da concupiscência irrazoável.
Quanto
ao fato de que não devemos nos preocupar com as vestes nem com a alimentação,
penso que é supérfluo escrever a respeito, porque o próprio Salvador, nos Evangelhos,
profere esta proibição: “Não vos preocupeis consigo mesmos, com o que comereis
ou bebereis, ou o que vestireis[69]”.
Pois é isto o que fazem os pagãos e os descrentes que rejeitam a providência do
Mestre e renegam o Criador, mas esta atitude é inteiramente estranha aos
cristãos, uma vez que eles creem que até mesmo “os dois pardais que se vendem por um
centavo” estão sob a administração dos santos anjo. Entretanto os demônios têm
também o hábito de enviar os pensamentos impuros da preocupação, para que Jesus
se afaste devido à multidão de representações que ocupam o lugar do espírito e
para que sua palavra se torne estéril, sufocada pelos espinhos da preocupação[70].
[VI]
Portanto, depois de nos havermos desembaraçado dos pensamentos que provêm das
preocupações, “coloquemos nossas preocupações no Senhor[71]”,
contentando-nos com o que temos no presente[72];
e, adotando um modo de vida e vestimentas pobres, desnudemos em pleno dia os
autores da vanglória. Se alguém pensa faltar à decência pela pobreza de suas
vestes, que ele considere São Paulo que “no frio e na nudez[73]”
alcançou a coroa da justiça[74].
E como o Apóstolo chamou de teatro e de estádio o mundo em que vivemos[75],
vejamos se é possível, vestidos com os pensamentos da preocupação, correr “pelo
prêmio do chamado do alto trazido por Cristo[76]”
ou lutar contra “os principados, as potestades e as dominações destas trevas[77]”.
Da minha parte não sei nada disto, uma vez que fui instruído pelo que se passa
na realidade sensível: nela, com efeito, nosso lutador se verá atrapalhado por
sua túnica e será facilmente batido. É o que acontecerá também com o intelecto,
sob os efeitos dos pensamentos preocupados, se é verdadeira a palavra que diz
que o intelecto é firmemente ligado ao seu tesouro: “Aonde estiver seu tesouro,
ali estará seu coração[78].
[VII]
6. Dentre os pensamentos, há os que cortam e há os que são cortados: os maus
cortam os bons e são cortados por eles. Sendo assim, o Espírito Santo permanece
atento ao pensamento que primeiro foi colocado, e é a partir dele que ele nos
condena ou aprova. O que quero dizer é o seguinte: eu tenho um pensamento de
hospitalidade e o tenho por causa do Senhor, mas ele é cortado quando o
tentador chega e sugere que eu seja hospitaleiro pela glória que isto traz.
Outro exemplo: eu tenho um pensamento de hospitalidade tendo em vista
mostrar-me aos homens, mas ele também é cortado, quando se introduz um
pensamento melhor que orienta minha virtude para o Senhor constrangendo-me a
não agir assim em função dos homens. Se assim, por nossos atos, a partir daí
permanecermos com nossos primeiros pensamentos, ainda que postos à prova pelos
segundos, receberemos a paga pelos pensamentos colocados antes, porque, por
sermos homens, e por lutarmos contra os demônios, não termos a força para
guardar incólume um pensamento reto nem, inversamente, para mantermos um maus
pensamento sem tentação, por termos em nós as sementes da virtude. Mas se um
dos pensamentos que cortam se prolonga, ele se instala no lugar do que foi
cortado, e será segundo este segundo pensamento que daí em diante o homem
receberá o impulso que o fará agir.
7.
Após uma longa observação, aprendemos a conhecer a diferença que existe entre
os pensamentos angélicos, os pensamentos humanos e aqueles que provêm dos
demônios. Os dos anjos, para começar, perscrutam a natureza das coisas e buscam
suas razões espirituais. Por exemplo: porque o ouro foi criado, porque ele é
terroso e está disseminado nas profundezas do solo, e porque ele não é
descoberto senão com muito esforço e pena; e como, uma vez descoberto, ele é lavado
na água, colocado no fogo, e assim posto nas mãos dos artesãos que farão o
candelabro da Tenda, o queimador de perfumes, o incensório, as taças[79]
nas quais, pela graça de nosso Salvador, já não é um rei da Babilônia que bebe[80],
mas Cleófas, que traz um coração ardente destes mistérios[81].
O pensamento demoníaco não sabe nem quer saber de nada disto, mas sugere sem a
menor vergonha a simples aquisição do ouro sensível e prediz o desfrute e a
glória que resultarão disto. Quanto ao pensamento humano, ele tanto visa a
aquisição quanto perscruta o simbolismo do ouro, mas introduz no espírito
apenas a forma simples do ouro, fora de qualquer paixão de cupidez. O mesmo
vale para outros objetos, exercendo-se mentalmente a mesma regra.
[VIII]
8. Existe um demônio a que chamamos de “vagabundo” e que se aproxima dos irmãos
sobretudo nos começos da aurora; ele passeia o intelecto de cidade em cidade,
de aldeia em aldeia, de casa em casa; este é levado assim a simples encontros,
depois chega aos conhecidos, tagarela longamente, e deste modo arruína, no
contato destes encontros, seu próprio estado, distanciando-se insensivelmente
da ciência de Deus e da virtude, esquecendo-se até de sua profissão. É preciso
assim que o anacoreta observe este demônio: de onde ele parte e aonde ele
chega, pois não é ao acaso nem aventureiramente que ele cumpre este longo
circuito, mas é com a intenção de arruinar o estado do anacoreta que ele age
desta maneira, para que o intelecto, inflamado por tudo isso e embevecido por
esses encontros, caia rapidamente sob o demônio da fornicação, ou sob o da
cólera, ou da tristeza, que mais do que todos prejudicam a clareza de seu
estado. Mas nós, que temos como objetivo conhecer exatamente a engenhosidade
deste demônio, não lhe dirigimos a palavra em seguida nem lhe revelamos o que
se passa: como ele produz os encontros em pensamento e de que modo ele arrasta
insensivelmente o intelecto à morte, pois ele fugirá para longe: ele não admite
ser visto enquanto faz estas coisas; e assim não saberemos nada daquilo que nos
propomos a aprender. Mas deixemo-lo, dia após dia, chegar até o fim do seu
jogo, para que, depois de termos aprendido a conhecer em detalhe suas
maquinações, o coloquemos em fuga, desmascarando-o com uma palavra.
[IX]
Mas, como acontece de no momento da tentação o intelecto achar-se confundido e
não conseguir perceber com precisão o que se passa, eis o que você deve fazer
após a retirada do demônio: sente-se e rememore para si mesmo os eventos que
aconteceram, de onde você partiu e aonde você chegou, em que ponto você foi
tomado pelo espírito de fornicação, ou de cólera, ou de tristeza, e como,
ainda, aconteceu o que aconteceu; observe estes detalhes e entregue-os à
memória, a fim de poder desmascará-lo quando ele se aproximar; revele a ele o
lugar secreto que ele guarda, e também que você não o seguirá mais até ali. Se
você quiser enlouquece-lo de furor, desmascare-o assim que ele se apresente e,
numa palavra, denuncie o primeiro lugar por onde ele entrou, e o segundo, e o
terceiro: como ele não suporta a humilhação, isto será especialmente penoso
para ele.
A
fuga do pensamento para longe de você será a prova de que você lhe dirigiu a
palavra correta, pois é impossível a este demônio permanecer depois de ter sido
abertamente desmascarado. À retirada deste demônio sucede um sono pesado, uma
espécie de morte acompanhada de um grande esfriamento das pálpebras e bocejos
sem fim, costas pesadas e inchadas: todos fenômenos que, graças a uma intensa
prece, o Espírito Santo dissipará.
[X]
9. A aversão que apresentamos aos demônios contribui de modo especial para a
nossa salvação e favorece a prática da virtude; mas não temos a força para
nutri-la em nós como uma espécie de bom embrião, porque os espíritos amigos do
prazer a destroem e convidam a alma a voltar à sua amizade habitual; a esta
amizade – ou melhor, esta gangrena dificilmente curável – o médico das almas
cura com a solidão moral: de fato, ele permite que nós padeçamos certo terror
com isto noite e dia, para que a alma retorne depressa à aversão primitiva,
aprendendo com Davi a dizer ao Senhor: “Eu os odeio com uma aversão perfeita,
eles se tornaram inimigos para mim.[82]”
Pois ele odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em
ato nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade.
[XI]
10. Quanto ao demônio que torna a alma insensível, preciso falar dele? Pois, de
minha parte, temo até escrever a seu respeito: como a alma sai de seu próprio
estado quando ele chega e rejeita o temor a Deus e a piedade; ela deixa de
considerar o pecado como pecado, não mais estima a transgressão como
transgressão; o castigo e o julgamento eternos são lembrados por ela como
simples palavras e a alma “se ri”, realmente, “do cismo que abrasará tudo”. Ela
se diz temente a Deus, mas ignora o que ele prescreve; você arranha o peito
enquanto ela se volta para o pecado, mas ela permanece insensível; você
argumenta a partir das Escrituras, e ela permanece insensível; você lhe expõe a
culpa que vem dos homens, e ela não se dá conta da vergonha que ela causa entre
os irmãos; esta alma está privada de inteligência, como um porco com os olhos
vendados que destrói seu chiqueiro. Este demônio é atraído por persistentes
pensamentos de vanglória; é dele que foi dito: “Se aqueles dias não fossem
abreviados, nenhuma criatura se salvaria[83]”.
E, com efeito, ele se encontra entre aqueles que raramente visitam os irmãos, e
a razão é evidente: diante do sofrimento de outros que são acossados por
doenças, ou que vegetam nas prisões, ou sucumbem a uma morte súbita, este
demônio se põe em fuga, pois a alma é pouco a pouco penetrada pela compunção e
acede à compaixão quando a cegueira provocada por este demônio se dissipa. Tudo
isto nos falta, por causa do deserto e porque os doentes são raros entre nós.
[XII]
Foi principalmente este demônio que o Senhor quis por em fuga nos Evangelhos,
quando ele prescreveu ver os doentes e visitar os que estão na prisão: “Eu
estava doente, disse ele, e vocês vieram me visitar, estava preso e vieram até
mim[84]”.
Mas é preciso também saber o seguinte: se um dos anacoretas que caiu diante
deste demônio não concebeu pensamentos de fornicação, ou não deixou sua casa
sob os efeitos da acídia, é porque este homem recebeu a castidade e a
perseverança vindas do céu; bem-aventurado é ele por possuir uma tal
impassibilidade! Quanto aos que fazem votos de piedade e escolhem habitar com
os seculares, que se acautelem contra este demônio. Quanto a mim, eu ruborizo
diante dos homens só de falar dele ou de escrever daqui para frente a seu
respeito.
[XIII]
11. Todos os demônios ensinam a alma a gostar do prazer: apenas o demônio da
tristeza não quer fazê-lo, e ele chega até a destruir os pensamentos dos outros
que estão ali, destroçando e secando todo o prazer da alma por meio da tristeza,
se é verdade que “os ossos do homem triste secam[85]”.
E se ele combate moderadamente, ele torna o anacoreta experiente, pois o
convence a não se aproximar dos bens deste mundo e a evitar todo prazer; mas se
ele se implanta daí para frente, ele engendra pensamentos que aconselham a alma
a evadir-se, ou que a obrigam a fugir para longe. É o que o santo Jó sofreu e
meditou, quando foi atormentado por este demônio: “Se eu pudesse, disse ele,
dar a mão a mim mesmo, ou ao menos pedir a um outro que o fizesse por mim[86].”
Este demônio é simbolizado pela víbora, este animal cuja substância natural,
ministrada em dose suportável ao homem, destrói o veneno dos outros animais,
mas se tomado em estado puro destrói o próprio ser vivo. É a este demônio que
Paulo entregou o pecador de Corinto; é por isso que ele se apressou a escrever
novamente aos Coríntios estas palavras: “Assim deveis agora perdoar-lhe e
consolá-lo para que não sucumba por demasiada tristeza.[87]”
Mas ele sabia que este espírito que aflige os homens pode também trazer-lhes um
bom arrependimento: é a razão pela qual são João Batista chamava aos que são
picados por este demônio e se refugiam junto a Deus de “raça de víboras”,
dizendo-lhes: “Ao ver, porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu
batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera
vindoura? Dai, pois, frutos de verdadeira penitência. Não digais dentro de vós:
Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar
destas pedras filhos a Abraão.[88]”
Mas todo homem que, a exemplo de Abraão, deixou sua terra e sua família[89],
este se torna mais forte do que este demônio.
[XIV]
12. Quem dominou a irascibilidade dominou os demônios, mas quem é escravo deles
é totalmente estranho à vida monástica e está fora dos caminhos de nosso
Salvador, pois o próprio Senhor disse “ensinar o caminho aos mansos[90]”.
Assim o intelecto dos anacoretas se torna difícil de capturar, quando foge
pelas planícies da doçura. Pois quase nenhuma virtude é tão temida pelos demônios
como a mansidão; é ela que o grande Moisés possuía, ele que foi chamado de “o
mais manso dos homens[91]”;
e o santo Davi declarou ser digno da lembrança de Deus, ao dizer: “Lembre-se de
Davi e de toda a sua mansidão.[92]”
Por outro lado, o próprio Salvador nos ordenou sermos imitadores desta doçura,
quando ele disse: “Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu
sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas.[93]”
E se alguém se abstém de comidas e bebidas, mas excita sua parte irascível com
maus pensamentos, este se parece com um barco que se faz ao largo tendo um
demônio como piloto. Assim é preciso vigiar, tanto quanto possível, o cão que
mora em nós e ensiná-lo a não atacar senão os lobos e a não devorar as ovelhas,
mostrando toda a doçura para com todos os homens.
[XV]
13. Único dentre os pensamentos, o da vanglória possui muita matéria; ele
abarca quase toda a terra habitada e abre as portas a todos os demônios, como o
faria um reles traidor para uma cidade. Ele também humilha particularmente o
intelecto do anacoreta, enchendo-o com uma multitude de palavras e de objetos e
corrompendo suas orações, graças às quais ele se esforça por curar todas as
feridas de sua alma. É este pensamento que faz crescer todos os demônios que
haviam sido destruídos, e é graças a ele que eles todos encontram um acesso
para as almas, tornando realmente o “novo estado pior do que o primeiro[94]”.
Deste pensamento nasce também o do orgulho, que precipitou dos céus sobre a
terra “o selo da semelhança e a coroa da beleza”. “Vamos! Deixemos sem tardança este lugar[95]”,
de medo que abandonemos nossa vida a outros e nossa existência a pessoas sem
piedade. Este demônio é afugentado por uma prece intensa e pela recusa em fazer
ou dizer voluntariamente qualquer coisa que possa contribuir para a glória
maldita.
14.
Quando o intelecto dos anacoretas adquiriu um início de impassibilidade, então
ele adquire o cavalo da vanglória e rapidamente desfila pelas cidades,
locupletando-se com os elogios, vinho puro trazido pela glória. Por um desígnio
providencial, o espírito da fornicação que vem ao seu encontro e que o atira a alguma porcaria o ensina a não deixar seu leito antes de haver recuperado a
saúde perfeita, e a não imitar os doentes indisciplinados que, mesmo carregando
em si as sequelas da doença, metem-se em caminhadas e banhos inoportunos e têm
recaídas. É por isso que, permanecendo sentados, estejamos mais atentos a nós
mesmos; assim, progredindo na virtude, seremos difíceis de sermos arrastados
pelo mal; renovando-nos na ciência[96],
receberemos por outro lado uma abundância de contemplações variadas; e também
elevando-nos pela prece, receberemos uma visão mais clara da luz de nosso
Salvador.
[XVI]
15. Não posso escrever sobre todas as maquinações dos demônios e tenho vergonha
de enumerar seus estratagemas, temendo pelos meus leitores eventuais mais
simplórios. Escutem no entanto como é a engenhosidade do demônio da fornicação.
Quando alguém adquiriu a impassibilidade da parte concupiscente e fez com que
os pensamentos vergonhosos sejam doravante um pouco esfriados, este demônio
introduz homens e mulheres que se divertem juntos, e torna o anacoreta
espectador de ações e atitudes condenáveis. Mas esta tentação não é das que
mais duram, pois uma oração intensa e um regime estrito unido às vigílias e ao
exercício das contemplações espirituais a expulsam “como uma nuvem sem água”.
Às vezes, ele ataca a carne e faz o anacoreta ceder a um abrasamento animal. O
maligno demônio inventa ainda mil outros estratagemas que não precisamos
publicar e confiar à escrita.
Contra
tais pensamentos é extremamente eficaz a ebulição da parte irascível dirigida
contra o demônio, parte que ele teme mais do que tudo quando ela é perturbada a
propósito de pensamentos e destrói suas representações. É isto que significa:
“Encolerize-se e não peque mais.[97]”
Aplicado à alma, é um remédio útil nas tentações. Mas o demônio da cólera
também sabe imitar este outro: ele também inventa parentes, amigos e conhecidos
maltratados por celerados, e induz a parte irascível do anacoreta contra
aqueles que lhe aparecem em pensamento; é preciso estar atento a isto e
arrancar rapidamente do intelecto tais imagens, de medo que, ligando-se a elas,
ele não se torne na hora da prece um “tição fumegante”. Os irascíveis são
vítimas destas tentações, pois estão acima de tudo sujeitos às inflamações da
cólera; eles estão longe da prece pura e da ciência de Cristo nosso Salvador.
[XVII]
16. As representações deste século foram confiadas pelo Senhor ao homem como
ovelhas a um bom pastor, pois foi dito: “Ele deu ao mundo o seu coração[98]”;
para ajudá-lo, ele acrescentou-lhe a parte irascível e a parte concupiscente, a
fim de que pela primeira ele afugente as representações que são os lobos, e
pela segunda ele cuide das ovelhas, ainda que as chuvas e os ventos se abatam
sobre ele. Ele lhe deu também “um pasto”, para que as ovelhas possam pastar,
“um lugar de verdes pastagens e uma fonte de águas refrescantes[99]”,
“uma harpa e uma cítara”, “um bastão e um cajado”, para que ele retire do
rebanho alimento e vestes e para que, com seu rebanho, ele “pise as forrações nas montanhas”, pois
foi dito: “Quem apascenta um rebanho e não se alimenta de seu leite?[100]”
É preciso assim que o anacoreta guarde noite e dia este pequeno rebanho, de
medo que uma das representações se torne presa das bestas selvagens ou caia nas
mãos de algum ladrão, e, se qualquer coisa semelhante acontecer neste “valezinho
florido”, ele deve sem tardança arrancá-la “da goela do leão e do urso[101]”.
A representação concernente a um irmão se torna presa dos animais selvagens, se
a fazemos pastar em nós com antipatia; a que concerne à mulher, se a nutrimos
com concupiscência vergonhosa; a do ouro e da prata, se ela for guardada com
cupidez; e as representações dos santos carismas, se a fizermos passear no
espírito em companhia da vanglória. O mesmo acontecerá com as outras
representações, quando se tornam vítimas das paixões.
[XVIII]
O anacoreta não deve apenas vigiá-las de dia, mas ainda guardá-las à noite
velando, pois ele pode também perder seu bem em imaginações condenáveis e más.
É o que disse o santo Jacó: “Não lhe apresentei os animais despedaçados, mas eu
os compensava com os meus. Você me pedia contas do que era roubado de dia e de
noite. De dia, eu era devorado pelo calor, e de noite pelo frio, e não
conseguia pegar no sono.[102]”
Mas se, sob o efeito da fadiga, nos sobrevier uma certa acídia, refugiemo-nos
por um momento sobre o rochedo da ciência, tomemos nossa harpa e toquemos com
as virtudes as cordas da ciência; depois voltemos a apascentar nossa ovelhas ao
pé do monte Sinai, a fim de que o Deus de nossos pais nos chame, a nós também,
do interior do arbusto[103]
e nos faça, a nós também, a graça de conhecer as razões “dos sinais e dos
prodígios”.
17.
Pela contemplação de todos os mundos, Cristo devolve à vida a natureza racional
que o pecado havia levado à morte. Mas a alma desta natureza morta pela morte
de Cristo recebe do Pai a vida pelo conhecimento de si mesmo. É o que diz são
Paulo: “Se nós morremos com Cristo, acreditamos que também viveremos com ele[104]”.
18.
Quando o intelecto, depois de despir-se do velho homem, reveste-se daquele da
graça, então ele verá seu próprio estado no momento da oração semelhante à
safira ou a uma cor celeste, aquilo que a Escritura denomina o Lugar de Deus,
que foi visto pelos antigos sobre o monte Sinai[105].
[XXI]
19. Dentre os demônios impuros, alguns tentam o homem enquanto homem, enquanto
outros perturbam o homem enquanto animal não dotado de razão. Quando são os
primeiros que nos visitam, eles jogam em nós representações de vanglória, de
orgulho, de inveja ou de maledicência, todas coisas que não atingem os seres
desprovidos de razão. Quando são os segundos que se aproximam, eles arrastam
nossa irascibilidade e nossa concupiscência num movimento contrário à sua
natureza; pois temos estas partes passionais em comum com os animais sem razão,
embora dissimuladas por nossa natureza racional. É por isso que o Espírito
Santo diz àqueles que sucumbem aos pensamentos humanos: “Eu declaro: Embora
vocês sejam deuses, e todos filhos do Altíssimo, vocês morrerão como qualquer
homem. Vocês, príncipes, cairão como qualquer outro[106]”.
Aos que são arrastados num movimento animal, que diz ele? “Não seja como o
cavalo ou o jumento, que não compreendem nem rédea nem freio: deve-se avançar
para domá-los, sem o que eles não se aproximarão de você.[107]”
Se é verdade que “a alma pecadora morrerá[108]”,
é evidente que os homens que morrem como homens serão enterrados por homens,
enquanto que os que morrem ou tombam como animais serão devorados por abutres
ou corvos, cujos filhos tanto “invocam o Senhor[109]”
como “refestelam-se no sangue[110]”.
“Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça![111]”
[XIX]
20. Quando um dos inimigos o visitar para feri-lo e você quiser, como está
escrito, “voltar contra seu coração sua própria espada[112]”,
aja da seguinte maneira. Divida em você o pensamento que ele enviou: o que é
ele? De quantos elementos se compõe e dentre estes qual o que mais atormenta o
intelecto? Eis o que quero dizer: admitamos que ele tenha enviado a você um
pensamento de avareza; divida-o assim: o intelecto que o acolheu, a
representação do ouro, o ouro em si e a paixão da avareza; pergunte a si mesmo
qual destes elementos é um pecado. É o intelecto? Mas como? Ele é a imagem de
Deus. Não seria a representação do ouro? Que homem sensato ousaria dize-lo? Não
seria o próprio ouro o pecado? Mas com que finalidade ele foi criado? Segue-se
daí que é o quarto elemento a causa do pecado, o que não é nem um objeto
subsistindo essencialmente, nem a representação de um objeto e muito menos o
intelecto incorpóreo, mas um prazer inimigo do homem, engendrado pelo livre
arbítrio, que constrange o intelecto a fazer um mau uso das criaturas de Deus:
é este prazer que a lei de Deus está encarregada de circuncidar. No decurso de
sua investigação, o pensamento, reabsorvido no seu próprio exame, será
destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito terá sido
erguido nas alturas por esta ciência.
Se
você não quiser utilizar a espada do inimigo, mas antes quiser abatê-lo com sua
funda, lance, você também, uma pedra tirada de seu saco de pastor[113]
e faça o exame a seguir: considere como os anjos e os demônios visitam nosso mundo, mas
nós não visitamos seus mundos, porque não podemos nem unir os anjos a Deus nem
tornar os demônios mais impuros; considere ainda como Lúcifer, que se levanta antes da aurora,
caiu sobre a terra[114]
e como ele “considera o mar como um vidro de perfume e o Tártaro do abismo como
um prisioneiro, e faz ferver o abismo como uma caldeira[115]”,
perturbando todos os seres com sua malícia e tentando dominar a todos. A
contemplação dessas coisas fere gravemente o demônio e derrota todo seu
acampamento. Mas isto só acontece aos que atingiram um certo grau de pureza e
que começam a entrever as razões dos seres. Quanto aos impuros, eles ignoram a
contemplação dessas coisas, e ainda que eles as aprendam de outros e as repitam
como um encantamento, eles não se farão ouvir, devido à espessa poeira e ao
tumulto provocado pelas paixões nesta guerra. É preciso necessariamente que o acampamento
dos estrangeiros esteja em calma, para que Golias saia sozinho ao encontro do
nosso Davi[116].
Utilizemos do mesmo modo tanto a análise como esta forma de guerra em relação a
todos os pensamentos impuros.
21.
Quando certos pensamentos impuros são postos em fuga rapidamente, busquemos a
causa: de onde eles vieram? Será devido à raridade do objeto, pelo fato de ser
difícil encontrar a matéria necessária, ou devido à impassibilidade presente em
nós, que o inimigo nada pode fazer? Por exemplo: se um anacoreta que é
atormentado por um demônio põe na cabeça que lhe será confiado o governo
espiritual da capital, é evidente que ele não imaginará esta ideia por muito
tempo, e a razão disto é fácil de ver a partir do que já dissemos. Mas se se
tratar de qualquer cidade ou aldeia, e se ele ainda estiver na mesma disposição
de espírito, feliz ele será por sua impassibilidade! Da mesma maneira, para os
outros pensamentos, podemos encontrar um método semelhante a este que acabamos
de experimentar. É necessário, para nosso ardor e nossa força, conhecer estas
coisas, a fim de que saibamos se atravessamos o Jordão e estamos próximos da
cidade das palmeiras[117]
ou se continuamos a viver no deserto, expostos aos ataques dos estrangeiros.
O
demônio da avareza parece-me revestir-se de muitas formas e ser muito hábil em
enganar[118]:
encurralado pela suprema renúncia, ele finge ser econômico e amigo dos pobres;
ele acolhe generosamente os hóspedes que não são tão pobres assim, envia
auxílio a outros que são abandonados, visita as prisões da cidade, resgata os
que foram postos à venda; ele não larga as mulheres ricas e lhes indica aqueles
que devem ser bem tratados; aos que possuem uma bolsa rica ele exorta a que a
abandonem. E assim, após haver pouco a pouco enganado a alma, ele a encerra em
pensamentos de avareza e a entrega ao demônio da vanglória.
[XXIII]
Este último introduz uma multidão de pessoas que louvam o Senhor por tal
administração e, insensivelmente, introduz também algumas pessoas que começam a
falar entre si de uma prelazia; a seguir ele prediz a morte do prelado e
acrescenta que o homem não escapará [de ganhar a prelazia] depois de todo o bem
que fez. Assim, o infeliz intelecto, ligado nestes pensamentos, rechaça os que
não aceitaram a ideia e apressa-se a cumular de presentes os que aceitaram,
louvando-lhes o bom senso; aos que se revoltam, ele envia a lei e pede aos
juízes que sejam banidos da cidade. Agora que estes pensamentos vão e vêm nele,
eis que surge o demônio do orgulho que encena ininterruptos clarões no espaço
da cela e envia dragões alados até finalmente provocar a perda do espírito.
Quanto a nós, depois de termos pedido em nossas orações a desaparição desses
pensamentos, vivamos na pobreza rendendo graças: pois “nós evidentemente não
trouxemos nada a este mundo e dele nada levaremos; uma vez que temos alimentos
e vestes, contentemo-nos com isto[119]”,
lembrando-nos de Paulo, que disse que “a avareza é a raiz de todos os males[120]”.
22.
Todos os pensamentos impuros que persistem em nós por causa das paixões fazem o
intelecto decair “até a ruína e a perdição”. Pois assim como a representação do
pão persiste no esfomeado por causa da fome e a representação da sede persiste
no sedento por causa da sede, também as representações de riquezas e bens
persistem devido à cupidez, e as representações das comidas e dos pensamentos
condenáveis engendrados pelos alimentos persistem devido às paixões. A mesma
evidência se impõe no que tange aos pensamentos da vanglória e a outras
representações. Não é possível que um intelecto inchado por tais representações
se apresente diante de Deus e cinja-se da coroa da justiça[121].
É por ser puxado em todas as direções por esses pensamentos que este intelecto
triplamente desafortunado, nos Evangelhos, recusa a refeição da ciência de Deus[122];
e ainda, aquele cujas mãos e pés foram amarrados e que foi atirado às trevas
exteriores[123],
vestia uma roupa tecida com pensamentos: o que o convidara declarou que ele era
indigno de tais bodas, pois a veste nupcial é a impassibilidade da alma
racional que renunciou às ambições do mundo. A razão pela qual as persistentes
representações de objetos sensíveis destroem a ciência será apresentada nos
Capítulos sobre a oração.
[XXIV]
23. Dentre os demônios que se opõem à prática, existem três assaltantes de
primeira linha, aos quais segue todo o destacamento dos estrangeiros: são os
primeiros a se apresentar ao combate e convidam as almas ao mal por meio de
pensamentos impuros: são os encarregados dos apetites da gula, os que nos
sugerem a avareza e os que nos empurram a procurar a glória entre os homens.
Você
que aspira à prece pura vigie sua irascibilidade e você que ama a continência
domine seu ventre; não dê pão ao seu estômago até a saciedade e racione a água;
vigie durante a oração e afaste de você o rancor; que as palavras do Espírito
Santo não o abandonem e bata às portas da Escritura tendo as virtudes como
mãos. Então levantar-se-á para você a impassibilidade do coração e você verá na
oração seu intelecto semelhante a um astro.
CAPÍTULOS NÉPTICOS
1.[124]
[29] Eis o que dizia nosso mestre santo e prático: é preciso que o monge esteja
sempre pronto, como se ele fosse morrer amanhã, e, inversamente, que ele use
seu corpo como se tivesse que viver com ele por inúmeros anos. Isto, com
efeito, dizia ele, afasta os pensamentos da acídia e torna o monge mais zeloso
e, por outro lado, mantém seu corpo em boa saúde, e mantém sempre constante sua
abstinência.
2.
[32] Aquele que alcançou a ciência e que colheu o prazer que ela oferece não se
deixará mais convencer pelo demônio da vanglória, mesmo que ele lhe proponha
todos os prazeres do mundo. Com efeito, o que pode ser prometido de maior que a
contemplação espiritual? Mas, desde que ainda não experimentamos a ciência,
exerçamo-nos ardentemente à prática, mostrando a Deus que nosso objetivo é
fazer tudo em vista da ciência.
3.
[91] É preciso também consultar os caminhos dos monges que nos precederam no
bem e nos regrarmos por eles. Pois podemos encontrar muitas coisas bonitas
ditas ou feitas por eles, como, por exemplo, isto: que um regime seco e regular
unido à caridade conduz rapidamente o monge à impassibilidade.
4.
[94] Fui visitar, em pleno meio-dia, o santo padre Macário e, queimando de
sede, pedi para beber um pouco de água. “Contente-se com a sombra, disse-me
ele, pois muitos dos que agora caminham ou navegam não têm sequer isto”. Em
seguida, como eu lhe falasse da abstinência: “Coragem, meu jovem!, disse ele.
Durante vinte anos inteiros, eu não tive o bastante nem de pão, nem de água,
nem de sono. De fato, eu pesava o pão, media a água de beber e, apoiando-me contra a parede, roubava uma
pequena parte do sono.”
5.
[15] Quando o intelecto vagueia, a leitura, a vigília e a oração fixam-no.
Quando a concupiscência se inflama, a fome, a provação e a anacorese a
extinguem; quando a parte irascível está agitada, a salmódia, a paciência e a
misericórdia a acalmam. Tudo isso no momento e na medida conveniente; pois o
que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que dura pouco é mais nocivo do
que útil.
CAPÍTULOS SOBRE A PRECE
DE NOSSO SANTO PADRE NILO O ASCETA
Prólogo
Eu
queimava com a febre das paixões impuras quando, como de hábito, o contato com
sua piedosa carta me restabeleceu. Você reconfortou meu intelecto que era presa
das maiores vergonhas e você imitou assim com grande felicidade o grande
Preceptor e Mestre. Isto não é de espantar, pois a sua parte sempre foi
excelente, como a de Jacó o bendito[125].
De fato, depois de haver trabalhado por Raquel e recebido Lia, você obteve
também aquela a quem desejava, tendo cumprido os sete anos convencionados[126].
Quanto a mim, não negarei que, depois de haver penado toda a noite, não apanhei
nada[127].
Mas, com suas palavras, atirei a rede e pesquei uma quantidade de peixes, não
muito grandes, penso eu, mas em número de cento e cinqüenta e três[128],
e eu os envio a você na coroa da caridade, em outros tantos capítulos, para
cumprir as suas ordens.
Eu
o admiro e invejo o excelente propósito que o fez desejar estes capítulos sobre
a oração. Pois você não quer apenas os que estão ao alcance da mão e que
existem, graças à tinta, nos pergaminhos, mas aqueles que a caridade e a
ausência de ressentimentos fixam no intelecto. Como todas as coisas vêm aos
pares, face a face, segundo o sábio Jesus[129],
receba o que eu lhe envio ao pé da letra e também conforme o espírito, dado que
sempre a inteligência prevalece sobre a letra; se aquela faltar, a segunda nem
chega a existir. Assim, portanto, a oração comporta dois modos, um ativo e
outro contemplativo; como acontece com os números, existe aquilo que é
palpável, a quantidade, e o significado, a qualidade.
De
fato, nós dividimos o tratado sobre a oração em cento e cinqüenta e três
capítulos, oferecendo um conjunto bastante evangélico[130].
Você encontrará aqui o encanto de um número simbólico, uma figura triangular e
uma hexagonal, que representam ao mesmo tempo o conhecimento da Trindade e a
circunscrição do mundo presente. O número cem, em si mesmo, é quadrado;
cinqüenta e três, triangular e esférico; vinte e oito, à parte, é triangular, e
vinte e cinco, esférico; pois cinco vezes cinco é vinte e cinco. Você tem então
no número vinte e cinco não apenas a figura quadrada para o quaternário das
virtudes, mas também o círculo para o conhecimento verdadeiro deste mundo, por
causa do curso circular dos tempos. Pois eles se desenrolam semana após semana,
mês após mês, ano após ano, estação após estação, como vemos pelo movimento do
sol e da lua, da primavera, do verão, e assim por diante. O triângulo pode
significar também o conhecimento da Santíssima Trindade. Segundo outra
interpretação, se você tomar cento e cinqüenta e três como triangular de uma
multitude de números, você verá aí a prática, a contemplação natural e a
teologia; ou ainda a fé, a esperança e a caridade, ouro, prata e pedras
preciosas.
Isto
quanto ao número. Quanto aos capítulos, você não os desdenhará por sua
aparência humilde e saberá se adaptar tanto à abundância quanto à carência[131],
lembrando-se daquele que não desprezou os dois vinténs da viúva e que os
recebeu com mais contentamento do que a riqueza de muitos outros[132].
Reconhecendo assim o fruto da bem-aventurança e da caridade, você os guardará
para os seus verdadeiros irmãos, rogando-lhes que rezem pelo enfermo a fim de
que ele se cure e que, carregando sua maca, ele caminhe daí por diante pela
graça de Cristo [nosso verdadeiro Deus, a quem seja dada a glória pelos séculos
dos séculos]. Amém.
Capítulos sobre a prece
1.
Se quisermos preparar um perfume de bom odor, devemos misturar em partes
iguais, conforme a lei[133],
o incenso diáfano, a canela, o ônix e a mirra. Este é o quaternário das
virtudes. Se elas forem completas e iguais, o intelecto não será traído.
2. A alma purificada pelo cumprimento dos
mandamentos [pela plenitude das virtudes] torna inquebrável a atitude do
intelecto, e apto a receber o estado estável desejado.
3.
A prece é uma conversa do intelecto com Deus; quanta estabilidade não deve ter
a inteligência para tender, sem volta atrás, constantemente para o Senhor e
conversar com ele sem nenhum intermediário?
4.
Se Moisés, quando tentou se aproximar da sarsa ardente, foi impedido até que
tirasse as sandálias dos pés[134],
como pretende você ver Aquele que está acima de todo pensamento, sem se
desembaraçar de todo e qualquer pensamento apaixonado?
5.
Reze primeiro para receber o dom das lágrimas, a fim de amolecer pelo luto a
dureza inerente à sua alma e para que, confessando contra você mesmo suas
iniqüidades ao Senhor, você obtenha o seu perdão.
6.
Use as lágrimas para obter sucesso em todas as suas demandas, pois o seu Senhor
se alegra quando você ora com lágrimas.
7.
Quando você verte fontes de lágrimas em sua oração, não se coloque no alto,
como se você estivesse acima da maior parte dos seus semelhantes; o que houve
foi simplesmente que a sua oração recebeu uma ajuda para que você pudesse com
ardor confessar seus pecados e agradar ao Senhor com suas lágrimas. Não
transforme em paixão o antídoto das paixões, se você não quiser começar
irritando o doador da graça.
8.
Muitos daqueles que choraram sobre seus pecados, esquecendo-se do objetivo das
lágrimas, enlouqueceram ou se perderam pelo caminho.
9.
Mantenha-se valorosamente e reze energicamente; afaste as preocupações e as
cogitações que aparecerem, pois elas perturbam e agitam para enervar o seu
vigor.
10.
Quando os demônios o vêem cheio de ardor para a prece verdadeira, eles começam
então a lhe sugerir idéias sobre certos objetos pretensamente necessários; logo
eles excitam as lembranças ligadas a eles, forçando o intelecto a ir buscá-los;
depois, como este não os encontra, ele se entristece e se lamenta. Então, no
momento da prece, eles lhe rememoram os objetos de suas buscas e de suas
lembranças, a fim de que o intelecto, levado a deter-se neles, perca a oração
frutífera.
11.
Esforce-se por tornar seu intelecto surdo e mudo no momento da prece, e você
poderá orar.
12.
Se lhe sobrevier alguma provocação ou contradição e você se sentir irritado e
perceber a cólera se levantar para dar o troco ou replicar, lembre-se da oração
e do julgamento que o aguarda nela, e logo o movimento desordenado se acalmará
em você.
13.
Tudo o que você fizer para se vingar de um irmão que lhe fez mal, se tornará
uma pedra de tropeço no momento da oração.
14.
A prece é um broto da doçura e da ausência de cólera.
15.
A prece é o fruto da alegria e da ação de graças.
16.
A prece é a exclusão da tristeza e do desencorajamento.
17.
Vai, vende tudo o que você possui e dê aos pobres[135];
depois, tome a sua cruz e renegue a si mesmo[136]
para poder orar sem distração.
18.
Se você quiser orar dignamente, renegue a si próprio todo o tempo; e se você
suporta todo tipo de barulho e agitação, aceite isto sabiamente para a oração.
19.
Para cada pena que você suportar com sabedoria, você colherá o fruto no momento
da oração.
20.
Se você quer orar como se deve, não entristeça a ninguém, caso contrário será vã
a sua corrida.
21.
Deixe sua oferenda, como foi dito, diante do altar, e vá primeiro se
reconciliar com seu irmão[137],
para que depois, ao voltar, você possa orar sem perturbação. Pois a raiva cega
a razão daquele que ora e entenebrece sua oração.
22.
Aqueles que acumulam interiormente penas e rancores [e que pensam rezar]
assemelham-se a alguém que tenta encher com água um balde furado.
23.
Se você for perseverante, você rezará sempre com alegria.
24.
Enquanto você estiver orando como se deve, apresentar-se-ão a você coisas tais
que você considerará justo o uso da cólera. Ora, não existe cólera justa contra
o próximo, em hipótese alguma. Se você procurar, verá que sempre é possível
arrumar as coisas sem cólera. Portanto, use de todos os meios para não se
deixar explodir pela cólera.
25.
Cuidado para que, sob pretexto de curar alguém, não se torne você mesmo
incurável e não dê um golpe fatal à sua oração.
26.
Se você se abstiver da cólera, você obterá a misericórdia; você provará que é demasiado prudente para se deixar enganar, e poderá ser contado entre
aqueles que verdadeiramente oram.
27.
Armado contra a cólera, você não admitirá jamais a concupiscência; pois é ela
que fornece o material para a cólera, e esta perturba o olho do intelecto,
destruindo assim o estado de oração.
28.
Não ore somente nas atitudes exteriores, mas coloque sua inteligência no
sentimento da prece espiritual, com grande temor.
29.
Às vezes, mal iniciada a oração, você estará orando bem; às vezes, ao
contrário, malgrado todos os seus esforços, você não alcançará este objetivo. É
para que você procure sempre mais, pois, após obter este resultado, você o
possuirá ao abrigo de todos os predadores.
30.
Quando um anjo aparece, no mesmo instante todos aqueles que perturbavam
desaparecem, e o intelecto encontra-se numa grande calmaria na qual ele reza
alegremente. Às vezes, ao contrário, a guerra cotidiana nos acossa; o intelecto
se debate sem poder erguer os olhos. É porque ele foi afetado pelas paixões.
Porém, se procurar mais, ele encontrará; se bater vigorosamente, ser-lhe-á
aberto.
31.
Não ore para que se cumpram as suas vontades, pois elas não necessariamente
coincidem com a vontade de Deus. Antes, conforme o ensinamento, reze dizendo:
Que a sua vontade se cumpra em mim[138];
do mesmo modo, em todas as coisas, reze para que se faça a vontade de Deus,
pois ele sempre quer o bem e o que for mais proveitoso para a sua alma, e você
nem sempre busca a mesma coisa.
32.
Muitas vezes, em minhas orações, eu pedi que se cumprisse aquilo que eu
estimava bom para mim, e eu me obstinava em meu pedido, violentando tolamente a
vontade de Deus, sem dirigir-me a ele para que a respeito ele ordenasse aquilo
que soubesse ser o mais útil para mim; entretanto, ao receber a coisa, grande
era minha decepção por não ter solicitado o cumprimento da vontade de Deus de
preferência ao cumprimento do meu desejo, pois nada do que recebi de meu pleito
era tal como aquilo que eu havia imaginado.
33.
O que há de bom, senão Deus? Por conseguinte, deixemos com ele tudo o que nos
concerne e ficaremos bem. Pois quem é bom, é necessariamente provedor de dons
excelentes.
34.
Não se aflija se você não receber imediatamente de Deus aquilo que você pede; é
que ele quer ainda mais o seu bem, por sua perseverança em permanecer com ele
na oração. De fato, o que existe de mais elevado do que conversar com Deus e
recolher-se à sua intimidade?
35. A oração sem distração é a mais alta
compreensão do intelecto.
36.
A prece é uma ascensão do intelecto para Deus.
37.
Se você quer orar, renuncie a tudo para obter o todo.
38.
Reze primeiramente para ser purificado das paixões. Depois para ser libertado
da ignorância e do esquecimento, e finalmente para se livrar de toda tentação e
de todo o abandono espiritual.
39.
Na oração, procure unicamente a justiça e o reino, ou seja, a virtude e a
gnose, e todo o mais lhe será acrescentado[139].
40.
É justo orar não apenas por sua salvação, mas pela salvação de todo o seu povo,
a fim de imitar uma postura angélica.
41.
Verifique se você está realmente presente a Deus em sua oração, ou se você foi
vencido pelos elogios humanos e levado pelo desejo de obtê-los, sob pretexto da
duração de sua prece.
42.
Quer você reze com os irmãos, quer só, esforce-se para rezar, não por hábito,
mas com sentimento.
43.
O sentimento [o caráter próprio] da prece é uma gravidade respeitosa
acompanhada da compunção e da dor da alma no confessar as faltas, com gemidos
secretos.
44.
Se o seu intelecto divaga ainda durante o tempo da oração, é porque ele ainda
não ora como monge, mas ainda permanece no mundo, ocupado em decorar a tenda
exterior.
45.
Ao rezar, vigie fortemente a memória, de modo a que, ao invés de lhe sugerir
lembranças, ela o leve à consciência do seu exercício, pois o intelecto tem uma
terrível tendência a se deixar confundir pela memória no momento da oração.
46.
Quando você rezar, a memória lhe apresentará imagens de coisas antigas, ou de
novos assuntos, ou o rosto de alguém que lhe fez mal.
47.
O demônio é extremamente ciumento em relação ao homem que ora e ele usa de
todos os artifícios para fazê-lo perder o objetivo. Ele não cessa de reavivar
na memória o pensamento das coisas e de despertar na carne todas as paixões, a
fim de entravar seu curso tão belo e seu êxodo para Deus.
48.
Quando, depois de muitos gemidos, o demônio perverso não conseguiu entravar a
oração do justo[140],
ele então se retira um pouco, mas logo toma a revanche sobre aquele que ora.
Ele incendeia suas preces para destruir o estado excelente que se instalou nele
pela oração, ou então ele o excita a algum prazer descabido para ultrajar o
intelecto.
49.
Depois que você rezou como convém, espere por aquilo que não convém; coloque-se
virilmente em pé para vigiar o fruto da oração. A isto você foi predestinado
desde o princípio: trabalhar e vigiar[141].
Depois de haver trabalhado, portanto, não deixe sem guarda o seu trabalho, caso
contrário ele não terá lhe servido para nada.
50.
Toda a guerra travada entre nós e os demônios impuros não tem outra motivação
do que a prece espiritual. Pois esta lhes é hostil e odiosa; mas para nós, ela
é salutar e agradável.
51. O que têm em vista os demônios quando
despertam em nós a gulodice, a impureza, a inveja, a cólera, o rancor e as
outras paixões? Eles querem que o nosso intelecto, perturbado por elas, não
possa rezar como deveria, porque as paixões da parte irracional assumem a
liderança e o impedem de se mover segundo a razão; isto é, segundo as razões
dos seres enquanto objeto de contemplação, que o intelecto deveria usar para
atingir a Razão (o Logos: o Verbo) de
Deus.
52.
Nós atingimos as virtudes (primeiro grau: a vida ativa) em vista das razões dos
seres criados (segundo grau: contemplação inferior), e estas em vista do Verbo
que as estabeleceu (terceiro grau: teologia); quanto ao Senhor, ele costuma
aparecer no estado de oração.
53. O estado de oração é um hábito impassível
que, por um amor supremo, transporta aos cumes intelectuais a inteligência
ávida de sabedoria espiritual.
54.
Não é somente a cólera e a concupiscência que devem ser dominadas por quem
aspira a orar verdadeiramente; é preciso ainda desembaraçar-se de todo
pensamento apaixonado.
55.
Aquele que ama a Deus conversa incessantemente com Ele como com um Pai,
despojando-se de todo pensamento passional.
56.
Não é por termos atingido a apatheia (a impassibilidade) que iremos rezar verdadeiramente, pois podemos nos ater aos pensamentos simples
e, mesmo assim, nos distrairmos em sua meditação, ficando, portanto, longe de
Deus.
57.
Digamos que o intelecto não se detenha nos pensamentos simples; nem por isto
ele atingiu o lugar da oração, pois pode se encontrar na fase da contemplação
dos objetos, divagando sobre suas motivações; ora, essas motivações, mesmo
sendo expressões simples, imprimem, enquanto considerações de objetos, uma
marca no intelecto que o afastam muito de Deus.
58.
Suponhamos que o intelecto se eleve acima da contemplação da natureza corporal.
Ainda assim ele não terá uma visão completa de Deus, pois ele pode se encontrar
ainda sujeito à ciência das coisas inteligíveis, participando de sua
multiplicidade.
59.
Se você quiser orar, você precisará de Deus, que dá a oração a quem ora[142].
Invoque-o, portanto, dizendo: Santificado seja o seu nome, venha a nós o seu
reino[143],
vale dizer, o Espírito Santo e seu Filho único, pois é isto que ele ensinou
quando ordenou adorar ao Pai em espírito e verdade[144].
60.
Aquele que reza em espírito e em verdade, não busca nas criaturas os louvores
que dedica ao Criador: é em Deus mesmo que ele louva a Deus.
61.
Se você for um teólogo, rezará verdadeiramente; e se você rezar
verdadeiramente, será um teólogo .
62. Quando o seu intelecto, tomado por um
ardente amor a Deus, sai, por assim dizer, pouco a pouco da sua carne, quando
ele rejeita todos os pensamentos que provêm dos sentidos, da memória ou do
temperamento, ao mesmo tempo em que se enche de respeito e de alegria, então
você pode se considerar próximo dos confins da oração.
63.
O Espírito Santo, compadecido de nossa fraqueza, nos visita ainda que não
estejamos purificados; se por acaso ele encontrar nosso intelecto orando com
toda sinceridade, ele surgirá nele e dissipará toda a falange dos raciocínios e
os pensamentos que o assediam e o transportará ao amor da prece espiritual.
64.
Enquanto outros se servem das alterações do corpo para fornecer à inteligência
raciocínios, conceitos e reflexões, ele, o Senhor, faz o contrário: ele se
dirige diretamente ao intelecto para colocar aí a gnose conforme sua vontade;
e, pelo intelecto, ele acalma o desequilíbrio do corpo.
65.
Quem aspira à prece verdadeira mas explode em cólera ou guarda rancor, dá
mostras de demência. Assemelha-se a alguém que quer ter uma visão aguda e para
isto fura os olhos.
66.
Não imagine que a divindade está em você quando estiver rezando, nem permita
que seu intelecto aceite a impressão de uma forma qualquer; conserve-se
imaterial diante do Imaterial, e assim, você compreenderá.
67.
Tome cuidado com as armadilhas dos adversários: pode acontecer que, enquanto
você estiver rezando com pureza e sem perturbação, se apresente repentinamente
na sua frente uma forma desconhecida e estranha, para induzi-lo à presunção de
nela localizar Deus e fazer com que você tome pela Divindade o objeto
quantitativo que surgiu repentinamente aos seus olhos; ora, a Divindade não tem
quantidade nem imagem.
68.
Quando o demônio invejoso fracassa na tentativa de perturbar a memória durante
a oração, ele tenta violentar a compleição do corpo para despertar na
inteligência algum fantasma desconhecido e, assim, dar-lhe forma. O intelecto,
acostumado a ver tudo conceitualmente, é, assim, facilmente subjugado: aquele
que tendia apenas ao conhecimento imaterial e sem forma, se deixa iludir e toma
a fumaça pela luz.
69.
Mantenha-se em guarda, defendendo seu intelecto de todo e qualquer conceito, no
momento da oração, para que ele seja firme na sua tranqüilidade própria (de sua
natureza original). Então, Aquele que se compadece dos ignorantes virá em seu
auxílio, e assim você receberá um glorioso dom de oração.
70.
Você não poderá possuir a pureza da oração se estiver sobrecarregado de coisas
materiais e perturbado por preocupações contínuas, pois a oração é a supressão
dos pensamentos.
71.
É impossível correr travado. O intelecto submetido às paixões não consegue
encontrar o lugar da oração espiritual porque é arrastado em todas as direções
pelo pensamento apaixonado e não consegue se manter inflexível.
72.
Uma vez que o intelecto atingiu a prece pura, desembaraçada das paixões, os
demônios já não o atacam pela esquerda, mas pela direita. Eles lhe representam
uma visão ilusória de Deus em alguma imagem agradável aos sentidos, de modo a
fazê-lo acreditar ter obtido completamente a objetivo da oração. Ora, dizia um
admirável gnóstico, esta é a obra da paixão da vanglória e de um demônio cujo
toque faz palpitar as veias do cérebro.
73.
Eu penso que o demônio, ao tocar o local mencionado, configura à vontade a luz
ao redor do intelecto, e assim a paixão da vanglória é posta em um raciocínio
que o intelecto passa a moldar para localizar, aturdido, a ciência divina e
essencial. E como a esta altura ele não é mais atacado pelas paixões carnais e
impuras, mas ora verdadeiramente com pureza, ele imagina que nenhuma ação
inimiga se exercerá mais obre ele. Assim, ele é levado a considerar como divina
a aparição produzida nele pelo demônio por meio deste temível estratagema que
consiste, como dissemos, em provocar no cérebro certas reações na luz que está
ali presente, e assim apresentar uma forma ao intelecto.
74.
O anjo de Deus, chegando subitamente, expulsa de nosso interior, com uma só
palavra, toda ação adversa e devolve a luz do intelecto a uma atividade sem
desvios.
75.
Quando o Apocalipse fala dos anjos que tomam incenso para colocá-lo nas orações
dos santos[145],
creio que se trata desta graça operada pelos anjos. De fato, eles comunicam o
conhecimento da oração verdadeira, de sorte que o intelecto permaneça daí em
diante sem deflexões, desencorajamento ou acídia.
76.
Os perfumes das taças são considerados como as preces dos santos oferecidas
pelos vinte e quatro anciãos[146].
77.
Como taças, devemos entender o amor de Deus, ou seja, a caridade perfeita e
espiritual na qual a oração se cumpre em espírito e em verdade.
78.
Se lhe parece que em suas orações você não tem necessidade de lágrimas pelos
seus pecados, considere o quanto você está afastado de Deus quando você deveria
estar com ele sem cessar, e você chorará mais calorosamente.
79.
Certamente, se você tiver consciência dos seus limites, a compunção lhe será
mais fácil; você chamará a si mesmo de miserável, como Isaías[147],
porque, sendo impuro e tendo os lábios impuros, do meio do povo, quero dizer,
do povo inimigo, você ousará se apresentar ao Senhor dos Exércitos.
80.
Se você rezar verdadeiramente, atingirá uma grande plenitude, os anjos o
escoltarão como a Daniel e o iluminarão quanto às razões dos seres.
81.
Saiba que os santos anjos nos incitam à oração e que então eles se colocam ao
nosso lado, felizes e orando por nós. Assim, se formos negligentes e acolhermos
pensamentos estranhos, nós os irritaremos muito, por que, enquanto eles lutam
bravamente por nós, nós sequer suplicamos a Deus por nós mesmos; desprezando
seus serviços, nós abandonamos a Deus nosso Senhor para irmos ao encontro dos
demônios impuros.
82.
Reze como se deve e sem perturbação; salmodie com atenção[148]
e harmonia, e você será como uma pequena águia planando nas alturas.
83. O salmodiar acalma as paixões e apazigua a
intemperança do corpo; a oração faz o intelecto exercer sua atividade própria.
84.
A oração é a atividade que convém à dignidade do intelecto; ela é o seu hábito
mais excelente, adequado e completo.
85. A salmódia depende da sabedoria multiforme[149];
a oração é o prelúdio do conhecimento (gnose) imaterial e uniforme.
86.
O conhecimento (gnose) é excelente, pois ele colabora com a oração despertando
a potência intelectual do intelecto à contemplação da gnose divina.
87.
Se você não tiver ainda recebido o carisma da oração e da salmódia, persevere:
você o receberá.
88.
Ele lhes contou uma parábola para mostrar que se deve rezar sempre sem relaxar[150].
Portanto, não relaxe por esperar, não se desencoraje por não haver recebido;
você receberá em seguida. E ele concluiu a parábola assim: “Embora eu não tema
a Deus nem me preocupe com os homens, ao menos, por causa do embaraço que me
faz esta mulher, eu lhe farei justiça. Assim, Deus também fará justiça aos que
clamam por ele dia e noite, e prontamente.[151]”
Então, tenha coragem e persevere valorosamente na santa oração.
89.
Não queira que aquilo que lhe diz respeito se arranje segundo as suas idéias,
mas segundo o bel prazer de Deus; assim você não terá preocupações e estará
cheio de gratidão nas suas orações.
90.
Mesmo que lhe pareça estar com Deus, cuidado com o demônio da luxúria, pois ele
é muito enganador e extremamente ciumento. Ele é quase mais rápido do que o
movimento, a sobriedade e a vigilância do intelecto, a ponto de arrastá-lo para
longe de Deus ao mesmo tempo em que ele permanece ao lado deste último com
temor respeitoso.
91.
Se você se dedica à oração, prepare-se para os ataques dos demônios e suporte
valorosamente seus golpes; pois eles se atirarão como feras sobre você e farão
todo tipo de mal ao seu corpo.
92.
Prepare-se como um lutador experiente para não vacilar, mesmo se de repente
você vir um fantasma; para não se deixar perturbar, mesmo diante da figura de
uma espada brandida contra você ou um relâmpago disparado contra seu rosto;
para não deixar fraquejar minimamente sua coragem, mesmo diante de um espectro
medonho e sangrento; mantenha-se firme e busque a bela profissão de fé[152],
e você suportará com o coração leve a visão dos seus inimigos.
93.
Quem suportar a agitação obterá também as consolações; e a quem for constante
nos transes desagradáveis, não faltarão os agradáveis.
94.
Tome cuidado para que os demônios enganadores não o enganem com alguma visão;
esteja atento, recorra à oração e invoque a Deus, para que, se a representação vier dele, ela o esclareça
por si só; se não, que ele se apresse a expulsar de você o sedutor. Tenha
confiança: os cães não conseguirão ficar; se você se entregar a uma súplica
ardente, sem voltar atrás, invisivelmente e sem se mostrar, o poder de Deus os
fustigará e os expulsará para bem longe.
95.
É bom que você não ignore o seguinte truque: às vezes, os demônios se dividem,
e se você parece querer buscar auxílio [contra uns], os outros entram em cena
sob formas angélicas e expulsam os primeiros, para que você se engane pensando
serem verdadeiros anjos.
96.
Esforce-se para adquirir muita humildade e muita coragem, e os insultos dos
demônios não alcançarão a sua alma; nenhum flagelo se aproximará de sua tenda,
porque ele dará ordens em seu favor aos seus anjos para que eles o guardem[153];
e os anjos expulsarão invisivelmente para longe de você todas as empreitadas
hostis.
97.
Quem se dedica à oração pura escutará barulhos e agitações, vozes e insultos;
mas ele não fraquejará, nem perderá o sangue frio, dizendo a Deus: “Eu nada
temo, porque o Senhor está comigo[154]”,
e outras coisas assim.
98.
Quando você tiver tentações desse tipo, recorra a uma oração breve e veemente.
99.
Se os demônios ameaçam aparecer subitamente nos ares, derrubá-lo e saquear seu
intelecto, não se apavore; nem dê atenção às suas ameaças. Eles o amedrontam
para ver se, decididamente, você ainda se ocupa com eles, ou se já conseguiu
desprezá-los completamente.
100.
Se é na presença de Deus, o Todo-Poderoso, Criador e Providência, que você está
durante a prece, porque você traz a esta presença o absurdo de passar-lhe ao
largo para ir ter medo de mosquitos e gafanhotos? Você não ouviu Aquele que
disse: “Você temerá ao Senhor teu Deus”[155]?
E também: “Ele, diante de cujo poder tudo treme e teme”[156]?
101.
O corpo tem o pão como alimento, a alma, a virtude, o intelecto a oração
espiritual.
102.
Reze não como o fariseu, mas como o publicano no lugar sagrado da oração, para
que também você seja justificado por Deus[157].
103.
Faça todos os esforços para nada dizer contra ninguém durante a oração; será
demolir tudo o que você edificou, e tornará sua oração abominável.
104.
Que o devedor de mil talentos lhe sirva de lição: se você não se acertar com
seu devedor, você tampouco obterá a remissão, pois está escrito: “Ele o
entregou aos torturadores[158]”.
105.
Não escute as exigências do seu corpo durante o exercício da oração; não deixe
que a picada de uma pulga, de um mosquito ou de uma mosca o prive do maior
benefício da oração.
106.
Aconteceu que a um santo homem que orava, o maligno travou um combate tão
furioso que, mal ele erguera as mãos e o inimigo travestiu-se em um leão que se
levantou sobre as patas diante dele e cravou as garras nas pernas do atleta,
sem deixar a presa para que abaixasse os braços. Mas ele não os abaixou até que
tivesse terminado todas as suas orações habituais.
107.
Algo assim aconteceu, como o sabemos, com João o Pequeno, ou melhor, o
grandíssimo monge que levou a vida solitária num buraco: devido à sua
intimidade com Deus, ele se tornou inalterável enquanto um demônio, sob a forma de um dragão enrolado a seu corpo, lhe
torturava as carnes e arrotava em seu rosto.
108.
Você também leu certamente as vidas dos monges de Tabenesa, aonde, diz-se,
durante o sermão que o abade Teodoro fazia aos irmãos, duas víboras
arrastaram-se sobre os seus pés; ele então, sem se perturbar, fez um arco sob o
manto com as pernas para alojá-las até que terminasse a palestra. Então, ele as
mostrou a todos, contando o que havia ocorrido.
109.
A respeito de outro irmão espiritual, lemos que foi atacado por uma cobra
durante o exercício da oração. Mas ele não se moveu até ter acabado suas
orações habituais e não sofreu nada por isso, porque amou a Deus mais do que a
si próprio.
110. Mantenha os olhos baixos durante a sua
oração, renuncie à carne e à alma e viva segundo a sua inteligência.
111.
Um outro santo que levava a vida solitária e orava corajosamente, foi assaltado
por demônios que, por duas semanas, jogaram com ele como se fosse uma bola e
molestaram-no lançando-o pelos ares e amparando-o numa rede. Mas nem por um
instante eles lograram fazer seu intelecto descer de sua prece inflamada.
112.
Um outro santo, cheio do amor de Deus e de zelo pela oração, encontrou, quando
andava pelo deserto, dois anjos que o ladearam e caminharam com ele. Porém ele
não lhes deu a menor atenção para não perder o melhor, pois ele se lembrou da
palavra do Apóstolo: “Nem anjos, nem príncipes, nem potências poderão nos
separar da caridade de Cristo.[159]”
113.
O monge se torna igual aos anjos pela prece verdadeira.
114.
Você aspira ver a face do Pai que está no Céu[160]:
não procure, por nada deste mundo, ver uma forma ou uma figura no momento da
oração.
115.
Não deseje ver sensivelmente os anjos, nem as potências, nem Cristo, para não
perder totalmente o bom senso e não acolher o lobo ao invés do pastor, adorando
os demônios inimigos.
116.
A origem das ilusões do intelecto é a vanglória; é ela que incita o intelecto a
tentar circunscrever a divindade em imagens e formas.
117.
Quanto a mim, direi um pensamento meu que já expressei em outras ocasiões:
feliz é o espírito desligado de toda forma, no momento da oração.
118.
Feliz é o intelecto que, numa prece sem distração, adquire sempre novos
aumentos no amor a Deus.
119.
Bem-aventurado o intelecto que, no momento da oração, se torna imaterial e
desligado de tudo.
120. Feliz o intelecto que, durante a oração,
atinge a perfeita insensibilidade.
121.
Feliz o monge que toma todos os homens por Deus depois de Deus.
122.
Feliz é o monge que vê a salvação e o progresso de todos como se fossem seus,
com toda a alegria.
123.
Feliz o monge que se considera “o rejeito de todos[161]”.
124. Monge é aquele que é separado de tudo e unido a todos.
125.
É monge aquele que se sente um com todos, por ver a si mesmo em cada um.
126.
Leva a oração à sua perfeição quem faz frutificar, para Deus, toda sua
inteligência primordial [aquela do seu estado original].
127.
Evite toda mentira e todo juramento se você quiser orar como monge; do
contrário, é em vão que você prega o que não lhe convém.
128.
Se você quiser orar “em espírito”, não tenha aversão por ninguém e você não
terá nuvens a obscurecer sua vista durante a oração.
129.
Deixe nas mãos de Deus as necessidades do corpo; será mostrar que nas mesmas
mãos você também deixará as do espírito.
130.
Se você entrar na posse das promessas, você será um rei; volte seu olhar para
elas, e você carregará alegremente sua pobreza presente.
131.
Não recuse a pobreza e a aflição, alimentos da prece que não pesam.
132.
Que as virtudes corporais lhe sirvam para obter as da alma; que as da alma
sirvam às do espírito; e estas para a gnose imaterial e essencial.
133.
Quando você rezar contra um pensamento e ele ceder facilmente, examine de onde
ele veio, para não cair numa emboscada e trair a si mesmo pelo erro.
134.
Pode acontecer que os demônios lhe sugiram pensamentos e, de outro lado, o
estimulem, como justo, a rezar contra eles e repeli-los; depois eles se retiram
por conta própria para que, enganado, você seja crédulo imaginando que começou
a vencer os pensamentos e a colocar em fuga os demônios.
135.
Se você reza contra uma paixão ou contra um demônio inoportuno, lembre-se
daquele que disse: “Persegui e alcancei meus inimigos e não me detive enquanto
não se confessaram vencidos; eu os derrotei e eles não puderam se levantar, e
caíram sob meus pés...[162]”. Eis o que se deve dizer para se armar de humildade contra os adversários.
136.
Não creia ter adquirido a virtude enquanto você não lutar por ela até sangrar;
pois é preciso resistir ao pecado até a morte, como diz o divino Apóstolo, como
um lutador irreprochável[163].
137.
Quando você tiver sido útil a alguém, outro o prejudicará, para que o
sentimento de injustiça o faça dizer ou fazer algo de condenável contra o
próximo, e que assim você dissipe em infelicidade tudo o que você conseguiu
juntar de felicidade. Este é o objetivo dos demônios; é preciso vigiar sempre.
138.
Receba sempre os temíveis assaltos dos demônios tentando sempre escapar à sua
servidão.
139.
À noite, os demônios chamam o mestre espiritual para o perturbar; de dia, eles
se servem dos homens para rodeá-lo de vicissitudes, calúnias e perigos.
140.
Não recuse os espinhos, se eles arranham os pés ao caminhar e se eles crescem
para cardar; ao menos, assim, sua roupas se tornará de uma brancura brilhante.
141.
Enquanto você não renunciar às paixões, enquanto seu intelecto se opuser à
virtude e à verdade, você não sentirá em seu seio o perfume de bom odor.
142.
Você deseja a oração? Emigre aqui e tome domicílio no céu daí por diante[164],
não pela simples palavra, mas pela prática angélica e a gnose divina.
143.
Se somente nas aflições você se lembra do Juízo, de como ele é apavorante e
incorruptível, você ainda não aprendeu a servir ao Senhor com temor e a
regozijar-se nele com estremecimento[165].
Pois saiba que mesmo nos despertares e nos descansos espirituais, é preciso
ainda mais prestar-lhe um culto cheio de piedade e reverência.
144.
Prudente é o homem que, até alcançar a perfeita penitência, não se separa da
lembrança dolorosa de seus próprios pecados e das sanções do fogo eterno que os
castigará.
145.
Aquele que, ainda cheio de pecados, ou de acessos de cólera, ousa
impudentemente chegar ao conhecimento das coisas mais divinas [a um
conhecimento mais divino das coisas], ou mesmo penetrar na oração imaterial,
receba ele a reprimenda do Apóstolo e compreenda que é perigoso para si
orar com a cabeça descoberta, pois, está dito: uma alma assim deve levar sobre
a cabeça o sinal da dominação, por causa dos anjos presentes[166]”,
cobrindo-se do pudor e da humildade convenientes.
146.
Assim como de nada adianta, a quem está doente dos olhos, fixar a vista
insistentemente no sol do meio dia, quando ele está no seu máximo abrasamento,
tampouco de nada serve ao intelecto passional e impuro imitar a temível e
eminentíssima oração em espírito e em verdade; ao contrário, ele provocará
contra si a indignação da divindade.
147.
Se aquele que leva uma oferenda ao altar não for recebido pelo mestre
incorruptível que não precisa de nada, até que se reconcilie com o próximo que
está contra ele[167],
considere quanta sobriedade, vigilância e discernimento são precisos para
oferecer a Deus um incenso agradável sobre o altar imaterial.
148.
Não seja amigo nem da verborragia nem da gabolice, porque assim não serão suas
costas que serão lavradas pelos pecadores[168],
mas seu rosto; você servirá de diversão para eles no momento da oração, eles o
seduzirão e o arrastarão a pensamentos heteróclitos.
149.
A atenção, em busca da oração, encontrará a oração, porque se a oração visa
alguma coisa, é precisamente a atenção. Apliquemo-nos nisto.
150.
A vista é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas as
virtudes.
151.
A excelência da oração não está na simples quantidade, mas na qualidade, como
testemunham os dois que subiram ao templo[169],
bem como a palavra: “Nas vossas orações, não multiplicai as palavras.[170]”
152.
Enquanto você tiver ainda atenção para o que vem do corpo, enquanto sua
inteligência estiver voltada para os atrativos exteriores, você não terá ainda
vislumbrado o lugar da oração: estará mesmo longe do caminho bendito que o
levará a ela.
153.
Por que só quando você atingir, com suas orações, uma alegria acima de todas as
outras, é que, enfim, verdadeiramente, terá encontrado a oração.
[1]
Esta ao menos é a tese proposta por G. Krüger e normalmente admitida hoje em
dia, apesar das objeções formuladas por R. Draguet.
[2] Jó
XXX, 1.
[3] Cf. Josué
VIII.
[4] Mateus
V, 25.
[5] Isaías,
XLI, 14.
[6] Isaías,
XLIII, 1-3.
[7] Isaías,
L, 8-9.
[8] Mateus, XXIV, 28.
[9] Lamentações,
III, 51.
[10] Mateus,
XXIV, 42-43
[11] Marcos
XIII, 36.
[12] Lucas
XXI, 34.
[13] Jó, XXVII, 3.
[14] Mateus,
XIII, 25.
[15] Números
IX, 15.
[16] Salmo
CXX, 6.
[17] Esdras
II, 68.
[18] 1 Tessalonicenses
VII, 14.
[19] Texto de
Augustinos.
[20] Salmo
IV, 3.
[21] Salmo
V, 10.
[22] Salmo
IX, 27.
[23] Salmo
IX, 31.
[24] 2 Coríntios
X, 5.
[25] Salmo
CXXIV, 1.
[26] Jeremias XVI, 2-4.
[27] 1 Coríntios VII, 33-34.
[28] 1 Coríntios VII, 32.
[29] 2 Timóteo II, 4.
[30] Cf. Mateus
XI, 30.
[31] Lucas X, 41-42.
[32] Cf.
1 Reis XVII, 10-11.
[33] Eclesiástico
XVIII, 16.
[35] Salmo LIV, 23.
[36] 1 Pedro
V, 7.
[37] 2 Coríntios VIII, 14-15, cit. Êxodo XVI, 18.
[38] Mateus,
VI, 33.
[39] Mateus VIII, 22.
[40] Salmo
LIV, 8.
[41] Salmo
LIV, 10.
[42] Êxodo
XIV, 13
[43] Salmo
LIV, 9.
[44] Sabedoria
IV, 12.
[45] Mateus XII, 50.
[46] Salmo C, 6.
[47] 1 Timóteo
V, 6.
[48] Provérbios XXIV, 15.
[49] 1 Tessalonicenses
II, 9; Efésios IV, 28.
[50] Cf. Provérbios
XIII, 4.
[51] Gênesis IX, 3..
[52] 1 Coríntios X, 25-27.
[53] Mateus XV,
11.
[54] Romanos
VIII, 18.
[55] Cf. Tiago
V, 13.
[56] Cf. 1 Timóteo
VI, 15; Apocalipse XIX, 16.
[57] As
indicações entre colchetes referem-se às divisões da P.G. (Patrística
Grega) LXXIX, 1199-1234.
[69] Mateus
VI, 25.
[71] 1 Pedro
V, 7; cit. Salmo LIV, 22.
[78] Mateus
VI, 21.
[113] Cf. 1
Samuel XVII, 40.48 ss.
[124]
Indicamos entre colchetes o capítulo correspondente no Tratado Prático.
[125]
Cf. Gênesis XXX, 43.
[126]
Cf. Gênesis XXIX, 20-30.
[127] Cf. Lucas
V, 5.
[128] Cf. João
XXI, 11.
[129] Eclesiástico
XLII, 24; trata-se de Jesus, filho de Sirac, autor do livro do Eclesiástico (cf. LI, 30).
[130] Cf.
João XXI, 11.
[131] Cf. Filipenses
IV, 21.
[132] Cf. Lucas
XXI, 3.
[133] Êxodo
XXX, 34.
[134] Cf. Êxodo
III, 5.
[135] Cf. Mateus
XIX, 21.
[136] Cf. Mateus
XVI, 24.
[137] Cf.
Mateus V, 24.
[138] Cf. Mateus,
VI, 10.
[139] Cf. Mateus
VI, 33.
[140]
Cf. Tiago V, 16.
[141]
Cf. Gênesis II, 15.
[142] Cf. 1 Samuel
II, 9.
[143] Cf. Mateus
VI, 9.
[144] Cf. João
IV, 24.
[145] Cf. Apocalipse VIII, 3.
[146] Apocalipse
V, 8.
[147] Cf.
Isaías VI, 5.
[148] Cf. Salmo
XLVI, 8.
[149] Cf. Efésios
III, 10.
[150] Cf. Lucas
XVIII, 1-8.
[151] Lucas
XVIII, 4.
[152] Cf. 1
Timóteo VI, 12.
[153] Cf. Salmo
XC, 10-11.
[154] Salmo
XXII, 4.
[155] Deuteronômio
VI, 13 e X, 20.
[156] Cf. Daniel
VI, 26-27.
[157] Cf. Lucas
XVIII, 10-14.
[158] Mateus
XVIII, 24-35.
[159] Romanos VIII, 38.
[160] Cf. Mateus
XVIII, 10.
[161] 1 Coríntios
IV, 13.
[162] Salmo XVII, 38-39.
[163] Cf. Efésios
VI, 11; Hebreus XII, 4.
[164]
Cf. Filipenses III, 20.
[165]
Cf. Salmo II, 11.
[166] 1 Coríntios XI, 10.
[167] Mateus
V, 23.
[168] Cf. Salmo
CXXVIII, 3.
[169] Cf.
Lucas XVIII, 10.
[170] Mateus
VI, 7.
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ResponderExcluirExcelente.
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