Evagro o
Pôntico
GNÓSTICO
OU
ÀQUELE QUE SE TORNOU DIGNO DA CIÊNCIA
Tradução do grego e notas
Antoine e Claire
GUILLAUMONT
Tradução e adaptação
Tito Kehl
M M I X
A todos os mestres,
para retribuir e para transmitir.
AMARRA TEU BARQUINHO AO NAVIO DE
TEUS PAIS
INTRODUÇÃO
1. RELAÇÃO ENTRE O GNÓSTICO E O MONGE
Na
obra de Evagro, o Gnóstico segue ao Tratado prático ou O monge. Ele forma, junto com este tratado e com os Kephalaia gnóstica uma espécie de
trilogia, como o próprio Evagro indica em sua Carta a Anatolios, que serve de prólogo ao Tratado Prático: “Vamos agora expor, sobre a vida prática e a vida
gnóstica, não tudo aquilo que vimos e ouvimos, mas apenas o que aprendemos
deles [os “velhos” ou anciãos] para dizê-lo aos outros; nós condensamos e
dividimos o ensinamento prático em cem capítulos e o ensinamento gnóstico em cinquenta,
dentre mais de seiscentos”. Também redigido na forma de kephalaia ou “capítulos” curtos, este livrinho de 50 capítulos, uma
meia-centúria, faz de certo modo a transição entre o Tratado prático, composto por uma centúria, e as seis centúrias dos
Kephalaia gnóstica, extensa obra para
a qual parece servir de introdução. Assim como este, e diferentemente do Tratado prático, o Gnóstico não se conservou integralmente senão nas versões
orientais: uma versão armênia e três versões siríacas, uma chamada de “comum”,
uma segunda versão e uma terceira que é uma revisão da primeira; do texto grego
original não subsiste mais do que um pequeno número de fragmentos que
representam pouco mais da metade do livro.
A
ligação entre o Gnóstico e o Tratado prático é muito estreita. Nos
manuscritos da versão siríaca comum, editada por W. Frankenberg, o texto do Gnóstico segue-se imediatamente ao Tratado prático, a cuja numeração de
capítulos dá continuidade; um único título, salvo pequenas variações, nomeia o
conjunto: Ensinamento e instrução de Mar
Evagro aos irmãos monges que estão no deserto. Esta disposição parece ter
existido também na tradição manuscrita grega, pois os manuscritos que conservam
a maior quantidade de extratos do Gnóstico
os colocam na seqüência daqueles do Tratado
prático, sem separação nem título; um deles introduz o conjunto sob o
título de Diversos capítulos práticos e
gnósticos.
Entretanto,
o historiador Sócrates, no século V, conheceu estes dois livros sob a forma de
dois tratados distintos; após haver citado alguns capítulos do Tratado prático ele conclui: “Eis o que
Evagro disse literalmente em seu tratado intitulado O prático”; e ele acrescenta: “e no Gnóstico”, para introduzir as citações deste último. Mais adiante,
ao fornecer uma lista dos livros de Evagro que conhece, ele escreve: “dentre os
quais um é intitulado O monge ou Sobre a prática, e o outro O gnóstico ou Àquele que se tornou digno da ciência, em 50 capítulos”. Desta
forma Sócrates apresenta a obra como dois livros distintos, cada qual com seu
título, em especial o segundo. Este precioso testemunho é confirmado pelos
manuscritos da segunda versão siríaca, que é provavelmente também do século V.
Nesta, o Gnóstico não é precedido do Tratado prático e é introduzido por um
título que corresponde exatamente à segunda parte do título fornecida por
Sócrates, Àquele que se tornou digno da
ciência. O livro é assim apresentado como um tratado independente, provido
de um título próprio. Deste título, ou ao menos da primeira parte dele que é
dada pro Sócrates, a própria versão comum conservou vestígios; de fato, em
alguns manuscritos desta versão – em que, como vimos, o Tratado prático e o Gnóstico
formam um único livro – lemos transportado para antes do capítulo 54 do Tratado prático, o título Livro do
gnóstico. Mais do que isto, o título de Gnóstico
conservou-se, de certa maneira, em muitos manuscritos desta versão, antes do
primeiro capítulo do Gnóstico;
podemos ler, no texto editado por Frankenberg: “os gnósticos e os práticos...”
enquanto que o texto autêntico deste capítulo diz apenas: “Os práticos...”; o
termo O gnóstico era primitivamente o
título do livro, mas ele deixou de ser considerado assim quando os capítulos do
Gnóstico foram numerados na sequência
dos do Tratado prático e colocado no
plural para poder ser integrado à sintaxe do primeiro capítulo. Na edição
armênia, tal como foi editada por Sarghisian, os dois tratados são colocados
sob um título comum: O gnóstico e o
prático; mas o texto do Gnóstico
vem na frente, sem numeração de capítulos, seguido, após um novo título – De Evagro – da Carta a Anatolios e do Tratado
prático, cujos capítulos são numerados. Apesar do título em comum, os dois
tratados são bem diferenciados.
Embora
devam ser considerados como dois livros distintos, o Tratado prático e o Gnóstico
não deixam de estar estreitamente ligados. Alguns capítulos fazem a transição
de um para o outro: o capítulo 90 do Tratado
prático, que consiste numa conclusão ao que foi provavelmente a primeira
redação do livro, anuncia, depois das lágrimas e das penas da prática, as
alegrias que a ciência trará ao gnóstico; por outro lado, os três primeiros
capítulos do Gnóstico definem, por
oposição, o “prático”, ou seja, aquele que percorreu o caminho descrito no
livro precedente, e o “gnóstico”, que, graças à impassibilidade adquirida com a
prática, tem acesso à ciência. Por outro lado, existem correspondências
internas entre os dois livros: os capítulos 42 e 43 do Gnóstico, em que são definidos a tentação e o pecado do gnóstico,
fazem eco aos capítulos 74 e 75 do Tratado
prático, em que estão igualmente definidos a tentação e o pecado do
“monge”, ou seja, daquele que ainda se dedica à prática; da mesma forma, os
capítulos 89 do Tratado prático e 44
do Gnóstico se correspondem: ambos,
referindo-se ao ensinamento de Gregório de Nazianze, definem respectivamente as
virtudes do prático e as do gnóstico. Existe enfim, entre os dois livros, uma
certa analogia de estrutura: o Tratado
prático é formado por uma centúria, o Gnóstico
por uma meia centúria apenas, mas o primeiro termina com uma dezena de
capítulos que, com exceção do último, que serve de conclusão ao conjunto do
tratado, consistem em apotegmas ou ditos de monges, destinados, ao que parece,
a garantir, com a referência à tradição do deserto, a doutrina exposta no
livro; do mesmo modo, no final do Gnóstico
acham-se inseridos, antes dos últimos capítulos que formam a conclusão do
livro, cinco capítulos compostos por citações, não mais de monges fornecendo um
ensinamento prático, mas, dado o tema do livro, de teólogos que eram
autoridades em matéria de ciência espiritual.
Todos
esses indícios nos fazem pensar que o Gnóstico
foi composto na sequência da redação dos cem capítulos do Tratado prático, mas
antes de sua redação definitiva que incluiu o prólogo e o epílogo.
2. O ENSINAMENTO DO GNÓSTICO
Definição e função do gnóstico
A
“prática” (praktiké) é definida como
“o método espiritual que purifica a parte passional da alma”: ela visa a
libertar a alma das paixões, portanto a buscar a impassibilidade, que é a
condição necessária para entrar na vida gnóstica (gnostiké) e experimentar a “gnose[1]”,
a ciência da contemplação espiritual. Através disto, o monge, de “prático”,
torna-se um “gnóstico”.
Inicialmente
empregada como adjetivo, a palavra gnostikos
aparece em Platão que, no Político,
dividia o conjunto das ciências em duas partes, opondo à ciência “prática” (praktiké epistemé), a ciência “gnóstica”
(gnostiké epistemé); isto parece
característico da tradição platônica e pitagórica, e é quase ausente em
Aristóteles e nos estoicos que, ao praktikos
opõem de preferência o teologikos. O
emprego do termo como substantivo aparece com
referência àqueles a quem ainda hoje chamamos de “Gnósticos”, membros de
seitas filosófico-religiosas dos séculos II e III, e de início foi mais
especificamente aplicado a alguns dentre eles que se autodenominavam
“gnósticos”, como o atesta santo Irineu. Depois o termo ampliou-se, aplicado a
todos os sectários que pretendiam possuir a ciência por excelência, a “gnose”.
São estes que santo Irineu combate em seu Adversus
haereses: e a palavra adquiriu uma conotação pejorativa, passando a designar
os aderentes de uma “pseudo-gnose”, uma “gnose falsamente denominada” (pseudonomos gnosis). Foi com Clemente de
Alexandria que o termo gnostikos
recebeu seu título de nobreza na literatura cristã, em face daqueles que se
diziam falsamente “gnósticos”, o “verdadeiro gnóstico”, vale dizer o cristão
que, pela prática das virtudes e pelo estudo, alcançou um determinado
conhecimento espiritual que os simples fiéis, que se conservam dentro dos dados
da fé, não compartilhavam. Rara em Orígenes, que preferia a ela a palavra teleioi, “perfeitos”, para designar esta
mesma categoria de cristãos, palavra que foi recolhida diretamente por Evagro
depois que se tornou corrente na literatura monástica. O gnóstico de Evagro é
um broto, com filiação direta, do de Clemente de Alexandria.
Ora,
assim como o gnóstico de Clemente, o de Evagro tem como função básica o
ensinamento. Quando se torna um “gnóstico”, o monge não mais deve preocupar-se
simplesmente consigo mesmo e com sua própria purificação; ele deve vir em
auxílio aos demais, ensinar aqueles que ainda estão na prática o modo de se
purificarem das paixões e, por outro lado, iniciar nos mistérios da ciência
espiritual aqueles que, já suficientemente purificados, tornaram-se dignos
dela, ou seja, como diz Evagro, o gnóstico será “sal” para os primeiros e “luz”
para os segundos. O gnóstico será, portanto, um mestre, um doutor. O tema deste
pequeno livro é precisamente o ensinamento do gnóstico. Em que condições
ensinará o gnóstico? O que ensinará o gnóstico? Como ensinará o gnóstico? Estas
são as questões respondidas pelo livro.
Em que condições ensinará o gnóstico?
A
vida gnóstica pressupõe a aquisição da impassibilidade, ou no mínimo de uma
certa impassibilidade. Evagro possui, de fato, uma concepção da impassibilidade
com muitas nuanças: para ele, esta comporta graus, desde a “pequena
impassibilidade”, ou “impassibilidade imperfeita”, atingida quando foram
vencidas as paixões provindas da parte concupiscente da alma, ou “paixões do
corpo”, até a “impassibilidade perfeita”, obtida somente com a vitória sobre
todas as paixões, inclusive sobre as que provêm da parte irascível, ou “paixões
da alma”. A vida gnóstica começa quando se atinge os umbrais da impassibilidade
e se desenvolve na medida em que se obtém progresso em direção à
impassibilidade perfeita, que a bem da verdade jamais é obtida integralmente na
condição humana, pois ela é propriamente angélica. A prática, vale dizer a
purificação da alma, prossegue assim, numa certa medida, na vida gnóstica. O
gnóstico deve inclusive continuar a cultivar as virtudes da vida prática,
prosseguindo com os exercícios que as desenvolvem; permanecem válidas para ele
as recomendações que Evagro dirigia ao prático e ao iniciante em seu Bases da vida monástica: evitar as
distrações trazidas pela frequentação de muita gente (capítulo 10), evitar as
preocupações (cap. 10) – inclusive quanto ao comer e vestir (cap. 38) – , domar
o corpo por meio de um regime severo, como o fazia são Paulo (cap. 37). Mas, se
“todas as virtudes tocam o caminho do gnóstico” (cap. 5), este deve acima de tudo,
para se manter e progredir na via gnóstica, purificar-se das paixões que provêm
da parte irascível da alma, e em primeiro lugar da própria cólera, que é o
principal obstáculo à ciência espiritual: ela se opõe a esta como o erro se
opõe à ciência “exterior”, racional (cap. 4). Desta forma, o gnóstico deve ser
isento “de cólera, de rancor e de tristeza” (cap. 10), sendo a tristeza uma
paixão estreitamente ligada à cólera. Para tanto, ele evitará, em particular,
os processos, mesmo que ele deva sofrer injustiça (cap. 8); pela mesma razão,
ele permanecerá insensível às calúnias e aos críticos, sabendo que estas coisas
são tentações dos demônios que procuram suscitar nele a raiva e o rancor para
impedi-lo de saborear a ciência (cap. 32). Ele deve, portanto, alcançar a
ausência de cólera (aorgésia) (cap.
5); este estado apaziguado da parte irascível é o que Evagro chama em outro
lugar de “mansidão”, que está muito próxima da caridade. Esta, que é chamada de
“filha da impassibilidade” e “porta da ciência”, é a virtude por excelência do
gnóstico; para Evagro, com efeito, como para Clemente de Alexandria,
impassibilidade, caridade e ciência estão estreitamente unidas. A caridade é em
primeiro lugar a esmola: o gnóstico não pode dispensá-la, mas sua maneira de
exercer a esmola consiste precisamente no ensinamento (cap. 7). Assim ele
satisfará o dever de caridade ensinando, mas ensinando de modo desinteressado,
e não “em vista do ganho, do bem estar ou de uma glória passageira”, caso em
que ele seria semelhante aos mercadores expulsos do Templo (cap. 24). Afável e
acolhedor para com os que vêm a ele – mas sem condescendência excessiva, para
não destruir o equilíbrio das virtudes (cap. 6) – ele não terá outro objetivo
que o de conduzir os outros pela via da salvação, ensinando-lhes a verdade
(cap. 22). Toda busca, com efeito, inspirada por alguma paixão ou que não é
feita tendo apenas o bem em vista só pode desembocar na “falsa ciência” que é
por excelência o pecado do gnóstico (cap. 43).
O que ensinará o gnóstico?
Como
vimos, o gnóstico não deixará de ensinar aos que ainda estão na prática como
eles deverão continuar purificando suas paixões (caps. 3 e 31); mas a função do
gnóstico, tal como é apresentada neste livro, é acima de tudo ensinar, àqueles
que se tornaram capazes de a receber, a “gnose” ou ciência espiritual que ele
próprio adquiriu. Esta ciência, ou contemplação espiritual, à qual se chega
pela impassibilidade (cap. 45) e também pela graça de Deus (cap. 4), permite
compreender as naturezas criadas, corpóreas e incorpóreas, visíveis e
invisíveis, naquilo que Evagro – emprestando o termo aos estoicos – denomina
seus logoi, palavra que, na versão siríaca comum é traduzida, no mais
das vezes, de modo literal, por “palavras”, e mais corretamente, na versão
revisada, por “intelecções”. O logos de uma natureza, com efeito, é seu
princípio a um tempo ontológico e explicativo, sua razão de ser e sua razão; e
foi por este motivo que traduzimos logos por “razão” (caps. 4, 15, 25,
40, 44); contemplar o logos de uma natureza, é captá-la na ideia que
presidiu sua criação e portanto conhecê-la em sua essência. Dentre os logoi
existem aqueles que Evagro chama de “logoi da providência e do juízo”;
são os que se referem à constituição presente do mundo e às disposições tomadas
por Deus para assegurar a salvação de todos os seres racionais, conforme as
grandes teses da cosmologia e da escatologia evagrianas (caps. 36 e 48)
Da
ciência espiritual provém ainda a exegese das Escrituras, que ocupa um lugar de
destaque no ensinamento do gnóstico e à qual são consagrados diversos capítulos
do livro. Assim como a ciência das naturezas visava descobrir suas “razões”
para além de sua aparência visível, também a exegese que Evagro, fiel discípulo
de Orígenes, recomenda a seu gnóstico, consiste em descobrir, para além do
sentido direto do texto escriturário, seu sentido espiritual ou alegórico. O
gnóstico tentará assim estabelecer o sentido real do texto, levando em conta,
como já o recomendava Orígenes, os “costumes” das Escrituras (cap. 19),
determinando a que ordem ele pertence, se à da “prática” ou ética, se da
“física” ou ciência das naturezas, se da “teologia” ou ciência de Deus,
conforme a divisão tripartite familiar a Evagro (cap. 18); ele deverá tomar
cuidado, porque o sentido alegórico de um texto pode não ser da mesma ordem que
o sentido literal (cap. 20). Evagro impõe entretanto alguns limites à exegese
alegórica: ele recomenda ao gnóstico não buscar um significado espiritual em
todas as palavras reportadas pelo texto bíblico (cap. 21) e a não pretender
interpretar alegoricamente os menores detalhes do relato, o que o exporia ao
ridículo (cap. 34).
Como ensinará o gnóstico?
Em
seu ensinamento o gnóstico não terá outro objetivo que não a salvação daquele a
quem está encarregado de instruir; ele não deverá ensinar portanto nada que não
sirva a este exclusivo fim. Mas isto varia conforme a situação de cada um em
relação ao progresso espiritual: nem toda verdade é boa para ser dita a
qualquer um a qualquer hora. Da mesma forma o gnóstico, segundo a regra de ouro
de qualquer pedagogia, deverá se adaptar ao nível de cada um; para tanto é
preciso que ele conheça de forma exata o estado, o tipo de vida, de seus
auditores, a fim de poder “dizer a cada um aquilo que lhe é útil” (cap. 15). Enumerando
as virtudes próprias do gnóstico, segundo o que aprendeu de seu mestre Gregório
de Nazianze, Evagro define a justiça como a virtude cujo papel é o de
“distribuir a cada um segundo seu nível”; para tanto, o gnóstico deverá expor
claramente aquilo que for útil aos “simples”, os que ainda estão no início da
vida espiritual, mas irá formular de maneira obscura, até mesmo enigmática, as
doutrinas que podem ouvir apenas os que estão avançados o bastante (cap. 44). A
todos, notadamente aos seculares e aos jovens monges, convém o ensinamento da
ética ou “prática”, que visa a purificação da alma e a vitória sobre as
paixões; mas também aí existem graus: aos jovens o gnóstico ensinará como
vencer as paixões que, neles, provêm sobretudo da concupiscência e, aos mais
idosos, como lutar contra as que vêm principalmente da parte irascível da alma
(cap. 31). Mas aquilo que concerne à “física”, ou seja, à ciência espiritual
das naturezas, e à teologia, não convém expor aos que ainda são iniciantes aos
jovens e aos seculares nada além do suficiente para sua salvação (caps. 12 e
13). O ensino destas matérias é reservado àqueles que, tendo obtido suficiente
impassibilidade, são capazes de a receber; discutir aquilo que pertence à
ciência espiritual quando ainda se está sujeito às paixões, é assemelhar-se a
um doente pretendendo ensinar sobre saúde (cap. 25). Pior ainda, isto pode ser
perigoso, pois uma verdade mal compreendida pode ser causa de queda (id.).
As doutrinas referentes “às razões da providência e do juízo”, vale dizer as
teses da metafísica evagriana, da cosmologia e da escatologia, não deverão ser
ensinadas nem aos seculares nem aos jovens, pois eles não as poderão entender,
e, mal compreendidas, poderão se tornar um convite ao relaxamento: quem não
provou da ciência espiritual não pode compreender, com efeito, que a ignorância
seja, para os malsucedidos, um castigo (36). Desta forma o gnóstico vigiará
para que estas doutrinas não sejam expostas diante dos jovens e também para que
os livros que as expõem não caiam em suas mãos (cap. 25). Por conseguinte ele
observará, em seu ensinamento, uma rigorosa gradação, de modo a permanecer
sempre no nível de seu auditório; ele deverá colocar-se mesmo um pouco abaixo
deste nível, de modo a não elevar-se senão quando for estimulado por seus
auditores (cap. 29); se for interrogado a respeito de uma questão que ele
estima não dever responder, ele fingirá ignorância, o que, no caso, não será
considerado mentira (cap. 23). Ele
deverá organizar seu ensinamento em dois tempos: o a exposição e o da
discussão, e não admitirá a esta senão os que estiverem suficientemente
avançados, pois toda discussão sobre temas que ultrapassam os participantes só
pode ser coisa de polemistas ou de heréticos (cap. 26).
O
gnóstico usará, portanto, de prudência em seu ensinamento, silenciando sobre os
temas mais elevados da ciência espiritual, ou ao menos reservando-os àqueles
capacitados e exprimindo-os em termos obscuros e velados que só eles entendam,
assim como as próprias Escrituras só revelam as verdades mais elevadas sob a
forma de alegorias. Alguns temas serão reservados a poucos: assim, o sentido
simbólico da ação eucarística só será revelado aos padres, que são em princípio
gnósticos, e mesmo assim apenas aos melhores (cap. 14). Sobre a ciência de Deus
ou teologia, mais ainda do que sobre a ciência das naturezas, impõe-se a
reserva. Se a ciência das naturezas, assim como a que se aplica às realidades
da prática, deve necessariamente recorrer a definições (cap. 17), quando se
trata de Deus, não devemos tentar defini-la nem falar dela irresponsavelmente
(cap. 27); nada do que se aplica às naturezas criadas lhe convém; o silêncio se
impõe diante do Inefável (cap. 41). Entretanto o próprio gnóstico deve,
ultrapassando a ciência das naturezas – a física – alcançar, numa certa medida,
a teologia, que voltará seu olhar para a Causa primeira, pois é mantendo o
olhar voltado para o Arquétipo divino que ele modelará as “imagens” que são os
intelectos daqueles a quem ele encarregou de ensinar (cap. 49 e 50).
Situação do ensino no meio monástico
Em
que situação concreta podemos imaginar o ensinamento do gnóstico como descrito
por Evagro? Talvez devamos, para tanto, em primeiro lugar nos lembrarmos do
gênero de vida dos monges das Kellia, dentre os quais vivia Evagro; este gênero
de vida, de tipo semi-anacorético, era também o dos monges de Nitria e Sceta,
que conhecemos principalmente pelos Apophtegma Patrum; estes dão a
conhecer com precisão o ensinamento, essencialmente oral, que era transmitido
neste meio monástico. O apotegma é uma resposta, breve e concisa, dada por um
ancião, um “velho” como se dizia, a um jovem monge que vem procurá-lo e lhe faz
a pergunta habitual: “Diga-me uma palavra: como poderei ser salvo?” O
ensinamento dado e transmitido visa portanto essencialmente a salvação, assim
como o que é dado pelo gnóstico de Evagro, e é formulado num apotegma curto,
como os capítulos de Evagro. No mais das vezes trata-se de um ensinamento
individual, mas vemos às vezes um grupo de monges em consulta a um famoso
ancião; há ocasiões em que o ancião faz uma verdadeira conferência, como a
exposição feita por Paphnúcio na presença de Paládio, Albinus e do próprio
Evagro, sobre a delerição, ou abandono espiritual, do capítulo 47 da Histoire
lausiaque, à qual parece fazer eco o capítulo 28 do Gnóstico. Além
das visitas que os solitários podiam fazer uns aos outros durante a semana,
eles tinha ocasião de encontrar-se durante as sinaxes dos sábados e domingos e,
nestas oportunidades, os jovens monges tinham chance de ouvir as conferências
espirituais deitas por este ou aquele ancião. A crermos no longo relato da vida
Evagro conservada em copta, ele próprio tinha este costume: aos sábados e
domingos, os irmãos reuniam-se ao seu redor para interrogá-lo, noite adentro. A
mesma biografia relata que, a cada dia, ele recebia em sua cela de cinco a seis
pessoas que vinham de longe escutar seus ensinamentos. Sabemos por Paládio, por
outro lado, que se constituiu nas Kellia uma comunidade ao redor de Evagro e de
seu amigo Ammonius que era chamada de “a companhia de Evagro e Ammonius”, ou
simplesmente “a companhia do bem-aventurado Evagro”, ou ainda a “comunidade, synodia,
a fraternidade, etaireia, de Evagro”; desta comunidade, Evagro desponta
como sendo o mestre, didaskalos, como o chama Paládio que foi seu
discípulo. É plausível que Evagro tenha lhe ministrado algum ensinamento: o
próprio Paládio menciona o ensinamento, didaskalía, de Evagro, que era
mesmo objeto de crítica por parte de alguns monges; estes críticos visavam a
exegese alegórica preconizada por Evagro e por meio da qual ele fundamentava
nas Escrituras sua doutrina, em particular as grandes teses de sua metafísica;
isto se deu por ocasião da querela que opôs, àqueles a quem os adversários
chamaram “origenistas”, os que eram ditos “antropomorfistas”, porque atinham-se
a uma exegese literal da Escritura, especialmente do texto[2]
em que Deus cria o homem “à sua imagem e semelhança”.
Situação do ensino na tradição escolar
Podemos
assim encontrar no Gnóstico, apesar
de ser difícil determiná-la concretamente, a evocação de um ensinamento que
Evagro ministrava no deserto nas Kellia; podemos imaginá-lo na situação evocada
por alguns capítulos, em que vemos o gnóstico dar um ensinamento seja a monges
vindos de longe para vê-lo (cap. 35), seja a ouvintes sentados em círculo ao
seu redor, numa atmosfera familiar da qual risadas e brincadeiras não estavam
excluídas (caps. 29 e 34). Mas o livro deve ser visto desde uma perspectiva
mais ampla, a da tradição escolar e erudita que o próprio Evagro recebeu.
Infelizmente, estamos pouco informados sobre a formação escolar recebida por
Evagro, cuja obra testemunha uma profunda cultura retórica e filosófica.
Paládio, no capítulo de sua História
lausíaca consagrado a Evagro, menciona apenas as relações deste com Basílio
e com Gregório de Nazianze, que ele conheceu provavelmente, ainda adolescente,
no tempo em que os dois amigos passaram juntos em Annésoi, por volta de 360, no
Ponto, não distante de Ibora, aonde nascera Evagro. O próprio Evagro designa
Gregório de Nazianze como seu mestre: no Gnóstico
ele expõe os ensinamentos recebidos dele. Sozomeno está, portanto, bem
informado, quando afirma que Evagro “foi instruído por Gregório de Nazianze na
filosofia e nas ciências sagradas”. É provável que também sua formação em
retórica tenha igualmente provindo dele, pois sabemos que Gregório exerceu por
algum tempo, depois de seu retorno de Atenas, as atividades de reitor. Podemos
imaginar que ele beneficiou Evagro com toda a cultura que adquiriu nas escolas
em que estudou sucessivamente, primeiro em Cesaréia na Capadócia, célebre pro
seus professores, depois na Cesaréia da Palestina, na escola fundada por
Orígenes no século anterior, e enfim em Atenas. O texto do Gnóstico atesta que Evagro conhecia bem, não somente a obra dos
grandes teólogos cristãos, aos quais ele se refere em seu livro, a começar pelo
próprio Gregório de Nazianze e Basílio (caps. 44 e 45), e mais Atanásio,
Serapião de Thmuis e seu contemporâneo Dídimo (caps. 46, 47 e 48) – aos quais
podemos acrescentar Clemente de Alexandria e Orígenes, cuja influência é
perceptível em muitos capítulos – como também a dos filósofos neo-platônicos,
Plotino e sobretudo Porfírio, de quem ele parafraseia, no capítulo 41, o início
do Isagogo, que se tornara um manual
de ensinamento escolar tradicional[3]; a
própria forma de kephalaion que ele
adota neste livro, como em alguns outros, é emprestada à tradição escolar e ao
próprio Porfírio.
A
influência desta tradição escolar, a um tempo pagã e cristã, é percebida não
apenas na forma, mas no conteúdo mesmo do livro. O lugar importante reservado à
exegese configura-se como um traço característico do ensinamento: exegese dos
mestres fundadores de escolas na filosofia pós-clássica, exegese do texto bíblico
entre os teólogos cristãos. Por outro lado, que o mestre deva adaptar seu
ensinamento aos ouvintes, não ensinando indiferentemente tudo a todos, mas
reservando certas matérias ou explicações àqueles que as podem entender, é um
princípio da pedagogia tradicional, ao menos desde Platão[4].
Isto se tornou um lugar-comum na tradição neo-platônica, na qual, à herança
platônica, misturou-se a influência do pitagorismo e das religiões de
mistérios: as mais altas verdades não devem ser expostas senão diante dos que
possuem as disposições requeridas, ou seja, os que estão suficientemente
purificados, para recebê-las, que são em pequeno número (oi oligoi) em relação à multidão (oi polloi); daí as precauções que deve tomar o mestre, como um
recurso a um certo esoterismo. Esta atitude foi a de dois teólogos cuja obra
era familiar a Evagro, Clemente de Alexandria e Orígenes. Clemente, invocando
em primeiro lugar o exemplo das Escrituras e depois os ensinamentos de Platão,
Pitágoras e outros, afirma que nem tudo deve ser entregue sem reservas a
qualquer um; a exemplo do Pedagogo divino, o mestre que é o gnóstico, usando
seu discernimento, formulará de modo velado certas verdades e será responsável
pela queda daqueles a quem tiver ensinado verdades que eles não podiam compreender.
Do mesmo modo Orígenes é da opinião que alguns ensinamentos devem ser
reservados aos “perfeitos” e mantidos escondidos das massas, que não os
poderiam compreender; assim acontece, por exemplo, com a doutrina referente à
entrada das almas nos corpos ou o castigo dos pecadores no além; existe, de
fato, perigo, não apenas em mentir, mas também em dizer a verdade a quem não
está preparado para entender: não se deve “atirar pérolas aos porcos” nem “dar
aos cães as coisas santas”[5];
do mesmo modo, aquele que teve acesso aos mistérios, “deverá ter a sobriedade
na boca e saber a quem, quando e como convém falar dos mistérios divinos”.
Encontramos uma atitude análoga entre os mestres imediatos de Evagro, Basílio e
sobretudo Gregório de Nazianze. Em seu Tratado
do Espírito Santo, Basílio desenvolve a idéia, herdada de Clemente e
Orígenes, de que existe, na Igreja, ao lado do ensinamento escrito destinado a
todos, um ensinamento que é transmitido oralmente e que deve ser reservado a um
pequeno número de iniciados, seguindo o exemplo de Moisés que só abria o acesso
do santuário aos mais puros, deixando os profanos fora do recinto sagrado. Em
seu Discurso, 28, Gregório de
Nazianze explica o que deve ser o ensinamento referente às coisas divinas
parafraseando o relato da teofania de Êxodo,
24: apenas Moisés é convidado a penetrar na nuvem para conversar com Deus;
Aarão e os anciãos que o acompanhavam permaneceram retirados sobre os flancos
da montanha, conforme o grau de pureza de cada um; quanto aos impuros, eles
ficaram no pé da montanha ou mesmo foram mantidos à distância; ele acrescenta
que as tábuas trazendo os mandamentos dados por Deus a Moisés eram escritas dos
dois lados[6]:
um lado, a face visível, era para a multidão que ficou aos pés da montanha,
enquanto o outro, a face oculta, era para os poucos que subiram até o cume da
montanha.
A consequência
prática desta teoria foi a organização do ensino em dois graus: um destinado
aos mais numerosos, que não realizaram um purificação suficiente, ou, em termos
evagrianos, que não adquiriram uma perfeita impassibilidade, e outro, superior,
reservado àqueles puros o bastante para serem capazes de compreendê-lo e
recebê-lo. Acima do ensino propedêutico vinha um destinado a discípulos
escolhidos, que o mestre considerava suficientemente preparados e capazes de
segui-lo proveitosamente; neste nível, os discípulos possuíam um papel mais
ativo, pois eram convidados pelo mestre a fazer perguntas, e as lições tomavam
a forma de uma busca (zétesis) feita em comum: assim procedia Plotino, a
exemplo de seu mestre Ammonius, segundo o testemunho de Porfírio, que aliás
ressalta que não era sem alguma desordem que isto acontecia. Assim faziam
Orígenes e Clemente de Alexandria. Temos o direito de pensar que este era
também o método adotado por Evagro, a julgar pelos conselhos que ele dá ao seu
gnóstico a este respeito: o método consistia em convidar os que fossem capazes
de se tornar, por sua vez, gnósticos também – e apenas estes – para a busca e a
discussão os dogmata (cap. 35), vale dizer sobre pontos da doutrina
deixados à livre escolha, e sobre os textos das Escrituras, que, de acordo com
a exegese alegórica, pudessem ser interpretados de diferentes modos.
3. A COMPOSIÇÃO DO LIVRO
A
composição do Gnóstico parece bastante livre e não encontramos nela a
ordenação ou a progressão que pudemos perceber no Tratado prático. Uma
leitura mais atenta permite entretanto discernir, na série de cinquenta
capítulos que o constituem, um certo agrupamento por temas:
Capítulos
1 a 3: capítulos introdutórios, cujo objetivo é colocar a função própria do
gnóstico, o ensinamento;
Capítulos
4 a 11: as condições requeridas para que o gnóstico possa preencher as funções
de mestre, e as virtudes que ele deve adquirir;
Capítulos
12 a 15: necessidade do gnóstico de adaptar-se aos seus ouvintes;
Capítulos
16 a 21: a matéria do ensinamento, principalmente a exegese;
Capítulos
21 a 36: o comportamento que o gnóstico deve observar em seu ensinamento;
Capítulos
37 a 43: vigilância contra as tentações e os pecados aos quais está exposto o
gnóstico;
Capítulos
44 a 48: citações de teólogos que servem de testemunho em favor das linhas
mestras do livro;
Capítulos
49 e 50: Capítulos de conclusão.
Os
próprios capítulos são independentes uns dos outros, como é típico dos kephalaia;
eles são de tamanho variável, de duas a doze linhas, e apresentam, quanto à sua
forma ou à natureza do seu conteúdo, uma grande variedade.
GNÓSTICO
OU
ÀQUELE QUE SE TORNOU DIGNO DA CIÊNCIA
N.T.:
Os comentários ao texto de Evagro são de Antoine e Claire Guillaumont e foram
sintetizados, excluindo-se as considerações puramente linguísticas, que não
apresentam interesse para o entendimento a que nos propusemos aqui.
Capítulo 1
Os práticos compreenderão
as razões práticas, mas as coisas gnósticas somente os gnósticos verão.
A oposição e a distinção
entre os práticos e os gnósticos é frequente em Evagro: “O prático é o artesão
da separação, o gnóstico o auxiliar da sabedoria” (KG, V, 65); “O gnóstico é um trabalhador que recebe seu as´lario no
dia; o prático é um trabalhador que aguarda o seu salário” (Skemmata, 32-33); “O gnóstico e o
prático se encontraram; no meio deles está o Senhor[7]”
(Monges, 121).
A questão central do
capítulo está na oposição entre os dois verbos “compreenderão” e “verão”. O
gnóstico é essencialmente um contemplativo, theoretikos,
termo que em Evagro frequentemente é oposto a praktikos: “Quando o intelecto está na prática, ele permanece nos
conceitos (noémasin) deste mundo; mas
quando ele atinge a ciência (gnosei),
ele vive na contemplação (theoria)” (Skemmata, 20).
Capítulo 2
O prático é
aquele que apenas adquiriu a impassibilidade da parte passional de sua alma.
O prático visa apenas a
adquirir a impassibilidade, que o ingresso na vida gnóstica supõe adquirida. A
atividade do prático exerce-se assim somente sobre si mesmo, enquanto que a do
gnóstico será exercida em função dos demais, como o demonstra o capítulo
seguinte. Compare-se esta definição do prático com o Tratado prático, 78: “A prática é o método espiritual que purifica
a parte passional da alma”. O prático é normalmente aquele que se dedica à
prática, mas em Evagro é especialmente aquele que chegou ao termo da prática,
tendo obtido a impassibilidade, ou, no mínimo, a “pequena impassibilidade”.
Capítulo 3
O gnóstico é
aquele que faz o papel de sal para os impuros e de luz para os puros.
As palavras que Jesus
dirigiu aos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra (...) vós sois a luz do
mundo”, era, segundo Irineu, aplicada pelos gnósticos valentinos aos
“pneumáticos”, e segundo Clemente de Alexandria, aos “eleitos”, os gnósticos,
distintos dos simples fiéis. Evagro parece ser o primeiro a distinguir, no
gnóstico, os papéis de sal e de luz.
O símbolo da luz, aplicada ao gnóstico, é freqüente em
Evagro: “O intelecto que se despojou das paixões torna-se inteiro como a luz,
porque é iluminado pela contemplação dos seres” (K.G., V, 15); “A ciência de Deus é luz (lamprótes, mesmo termo do Salmo) e aqueles que dela participam são
denominados luzes” (in Ps., LXXXIX,
17); compare-se com Clemente de Alexandria: “O gnóstico quer ser todo luz” (Str., VII, XII,
79, 5). O gnóstico será essencialmente um professor, um guia: ele ensinará a
uns a prática, como se purificar das paixões, e aos outros, que já alcançaram a
pureza necessária, as doutrinas da gnose. Este é o objeto do livro.
Capítulo 4
A ciência que nos
chega do exterior esforça-se em fazer conhecer as matérias por intermédio das
razões; mas aquela que nos chega da graça de Deus apresenta diretamente os
objetos ao espírito, e, observando-os, o intelecto acolhe suas razões. À
primeira se opõe o erro, à segunda a cólera e a irascibilidade e tudo o que
nasce delas.
Evagro utiliza a
expressão “ciência que nos chega do exterior” para designar a ciência profana.
A oposição entre esta ciência e a contemplação espiritual que vem de Deus
aparece muitas vezes em Evagro, como, por exemplo, no capítulo 45 deste
tratado.
A cólera e a
irascibilidade são os principais obstáculos à contemplação, como Evagro
explicita em Pensamentos, 24-26: “Que ele domine sua irascibilidade e se ponha
em guarda contra os pensamentos que dela nascem, a saber, os que surgem por
efeito da suspeita, da aversão e do ressentimento, os quais, mais do que tudo,
cegam o intelecto”.
Capítulo 5
Todas as virtudes
abrem o caminho ao gnóstico, mas acima de todas está o domínio da cólera. Com
efeito, aquele que encontrou a ciência e que se deixa levar facilmente pela
cólera é semelhante a alguém que crava em seus olhos uma ponta de ferro.
Aqui começa uma série de
sete capítulos sobre as virtudes que o gnóstico deve manter. Evagro insiste
especialmente sobre os perigos representados pela cólera. O domínio desta é
chamado de aorgesia (literalmente, não-cólera), vocábulo de origem
aristotélica e estóica, presente na Vida de Antônio (17, PG 26, 869B). Esta virtude, para Evagro, identifica-se com a doçura
e a mansidão (praýtes), definida como
“ataraxia da parte irascível”, e acha-se muito próxima da caridade, virtude por
excelência do gnóstico. Nas Cartas,
27, Evagro diz que a doçura é a “mãe da ciência”.
O gnóstico está
particularmente exposto à cólera em suas atividades de ensinamento: “Não se
deixe levar pela cólera contra um discípulo que falhou, pois não é bom que você
fira a si mesmo antes de curar alguém; com toda a paciência, reoriente-o para o
bem. Com efeito, o médico cura o doente, mas não se irrita contra o que adoeceu
involuntariamente. Quando o médico é incisivo, ele faz isto sem cólera; que o
mestre que repreende não misture sua irritação com a reprimenda[8]”.
Os monges que se deixam
levar pela cólera são como quem fura os próprios olhos com uma ponta, pois a
cólera literalmente cega o intelecto: “Aquele que se torna colérico (...) é
semelhante a alguém que pretende ter uma visão penetrante e que queima os
próprios olhos[9]”.
Capítulo 6
Que o gnóstico
permaneça firme quando usar de condescendência, de medo que, sem que ele se dê
conta, a condescendência se torne para ele um hábito; e que ele se esforce para
praticar de forma equilibrada e constantemente todas as virtudes para que, nele
também, elas sigam-se umas às outras, pois o intelecto é naturalmente traído
por aquela que falhar.
Se o gnóstico não deve
se deixar levar pela cólera, ele tampouco deve conduzir-se por uma excessiva
indulgência. A palavra “condescendência” (sygkatábasis)
designa comumente a condescendência de Deus em relação aos homens; aqui,
trata-se da condescendência, da indulgência do gnóstico em relação àqueles de
quem ele está encarregado. Normalmente, a condescendência é recomendada ao
mestre, mas Evagro não quer que ela se torne um hábito, como diz Clemente de
Alexandria: “É preciso que (...) o gnóstico seja firme na complacência, a fim
de que esta, contra sua vontade, não se torne um hábito[10]”.
Ao explicar o
encadeamento das virtudes, Evagro utiliza-se de mais um termo estóico (akoloythía), reforçando que o gnóstico
deve constantemente trabalhar sobre si mesmo, tanto quanto deve vigiar para
manter este encadeamento entre seus discípulos; uma excessiva condescendência
romperia esta harmonia. O próprio Evagro afirma: “É a tétrade das virtudes; se
elas se acharem na plenitude e em igualdade, o intelecto não será traído (prodothésetai)” (Da oração, 1)
Capítulo 7
O gnóstico
praticará sempre a esmola e estará pronto a ser benemerente. E, se lhe faltar
dinheiro, ele colocará em ação o instrumento de sua alma. Pois, de qualquer
modo, a esmola está em sua natureza, coisa que faltou às cinco virgens cujas
lâmpadas se apagaram.
O instrumento da alma do
gnóstico é seu próprio corpo; esta é uma expressão aristotélica muito empregada
por Evagro, talvez significando o trabalho manual. A esmola designa portanto
não apenas aquela propriamente dita (eleos), mas também o trabalho dedicado
ao próximo, como por exemplo o serviço prestado aos enfermos. Trata-se aqui da
caridade, que o gnóstico deve exercer ao mesmo tempo em que ensina.
Em Virgem, 43,
Evagro glosa a parábola das virgens prudentes e das virgens insensatas[11]:
“A lâmpada das virgens sem misericórdia se extinguirá e elas não verão a
chegada do esposo”. Também Virgem, 17: “Não dê as costas ao pobre na
hora de sua aflição e o azeite jamais faltará à sua lâmpada”. A misericórdia
tem assim o azeite como seu símbolo, que se apóia inclusive na própria
estrutura das duas palavras gregas eleos e elaion. Assim como o
azeite mantém a luz da lâmpada, a misericórdia alimenta a ciência, simbolizada
pela luz: “A luz que brilha nos templos santos é o símbolo da ciência
espiritual, que é alimentada pelo azeite do santo amor”[12].
Veja-se também Cartas, 27, onde Evagro diz a respeito do abstinente a quem
falta caridade que ele é “semelhante à virgem insensata que foi excluída da
câmara nupcial porque, por falta de azeite, sua lâmpada extinguiu-se. Eu chamo
de lâmpada ao intelecto que foi criado para receber a luz benfazeja, mas que,
devido à sua dureza, decaiu da ciência de Deus; e aonde falta o azeite, a
cólera predomina”. Finalmente, o azeite simboliza a própria ciência essencial,
aquele com a qual Cristo foi “ungido”[13].
Capítulo 8
É uma desonra
para o gnóstico envolver-se num processo, seja como vítima seja como autor de
uma injustiça; se for a vítima, é porque não pode suportar, e, se for o autor,
é porque cometeu uma injustiça.
Alerta contra os
processos, como em Cartas, 33 e 60, em que Evagro condena aqueles que se
envolvem em processos por amor aos ganhos. Aqui, porém, trata-se
especificamente do gnóstico: Evagro critica aqueles que, tendo praticado a
renúncia e desejando alcançar a ciência, “enfrentam-se a golpes de processos
com seus próximos por causa de dinheiro e bens a fim de distribuí-los aos
pobres”; ao agir assim, “eles incendeiam sua irascibilidade com o dinheiro para
em seguida tentar aplacá-la com o dinheiro” –
ou seja, dando esmolas. Eles assemelham-se assim a quem “fura os olhos
com uma ponta para aplicar o colírio”. Basílio, nas Regras Gerais, IX,
2, desaconselhava processar aos parentes consanguíneos que nos quisessem lesar.
Os manuscritos fornecem muitos exemplos de processos nos meios monásticos. Em Stromata,
VII, XIV, 84, 5, Clemente de Alexandria repete São Paulo[14]
afirmando que o gnóstico deve antes sofrer a injustiça (adikeisthai) do
que cometê-la (adikein), mas deve acima de tudo esquecer as injúrias.
Capítulo 9
Quando a ciência
é conservada, ela ensina àquele que a possui o modo de preservá-la e de
mantê-la em crescimento.
O gnóstico conserva a
ciência quando não a perde por ter cedido às paixões, em especial à cólera. A
própria ciência, assim conservada, ensina o modo como deverá ser guardada e
como progredirá seu guardião. A condição para sua conservação será a
impassibilidade, ou a perfeita saúde da alma. Evagro afirma: “A ciência, por um
lado, engendra a ciência e, por outro lado, engendra o gnóstico constantemente”[15].
Capítulo 10
Possa o gnóstico,
no momento em que ensina, estar isento de cólera, de rancor, de tristeza, de
sofrimentos corporais e de preocupações.
Este capítulo encontra
algumas variantes ao longo de suas diversas edições, inclusive ligando-o
diretamente ao capítulo anterior por meio de uma proposição condicional:
“...sobretudo se, no momento em que ensina, o gnóstico estiver livre de cólera,
rancor, tristeza, sofrimentos corporais e preocupações”. Em Discípulos, 6, Evagro afirma: “Que o gnóstico
examine em pensamentos para saber se lhe é possível, em primeiro lugar, nada
dizer ou fazer que seja vergonhoso; em segundo, se não guarda rancor em relação
a quem o lesou ou ofendeu; em terceiro, se não sente raiva de quem o possa ter
difamado; e em quarto, se ele ora sem conceitos nem representações”. Também em Monges,
23: “Assim como uma fonte, purificando-se dos elementos materiais que a
rodeiam, distribui uma água límpida, também o intelecto que se purifica da
cólera, do rancor e das preocupações referentes ao corpo encontra a ciência
pura...”
Capítulo 11
Enquanto você não
se tornar perfeito, evite encontrar muitas pessoas, evite a frequentação
social, para que seu intelecto não se encha de imaginações.
Este capítulo também
abre para diferentes interpretações: “antes de se tornar perfeito”, “antes de
ser mergulhado no bem”, “antes da virtude perfeita” e mesmo “antes de ensinar”.
Esta segunda interpretação baseia-se talvez nos sentidos possíveis da palavra
grega syntéleia, que tanto pode significar
“acabamento” ou “perfeição”, quanto “contribuição”, donde o sentido metafórico
de ensinamento. O que devemos reter é a disposição em que deve estar o gnóstico
no momento de ensinar, feita de impassibilidade. Em Cartas, 25, Evagro alerta que “o encontro de muitas pessoas
perturba o estado tranquilo” do intelecto, que se enche de imagens. Compare-se
com Virgem, 6: “Evite os encontros
com os homens, para que não existam imagens em sua alma que possam se
transformar para você num obstáculo no momento da oração”.
Capítulo 12
Dentre as coisas
que provêm da prática, da física ou da teologia, as que forem úteis à salvação
devem ser ditas e praticadas até a morte. Mas as que são indiferentes não devem
ser ditas nem praticadas, por causa daqueles que se escandalizam facilmente.
Este capítulo é o
primeiro a prescrever as precauções que deve tomar o gnóstico em seu
ensinamento: nem tudo deve ser dito.
A prática, a física e a
teologia são as três etapas da vida espiritual segundo Evagro. O que lhes diz
respeito constitui todo o ensinamento do gnóstico. Assim, este deve dizer e
praticar aquilo que ele ensina, até o final da vida. Quanto às coisas que são
indiferentes, adiápsora, aquelas nas
quais não há benefício nem perda, estas devem ser evitadas, pois, não sendo nem
úteis nem nocivas, podem induzir os auditores a se escandalizarem com a
exposição.
Capítulo 13
É preciso falar
aos monges e aos seculares sobre a conduta reta e explicar-lhes parcialmente as
doutrinas referentes à física e à teologia, “sem as quais ninguém verá o
Senhor”.
Algumas edições
apresentam a tradução de monachois
como “jovens” ou “aqueles que foram recentemente instruídos”, o que é mais
exato, pois o capítulo se dirige não aos monges de modo geral, mas especificamente
àqueles que se dedicam à pratica e que ainda não se tornaram gnósticos. Quanto
à física, ou contemplação das naturezas criadas, e à teologia, são elas que,
segundo Evagro, conduzem à visão de Deus.
Capítulo 14
Aos padres solitários,
e aos melhores dentre eles, responda, se o interrogarem, sobre o simbolismo dos
mistérios que eles cumprem e que purificam o homem interior, designando os
vasos [receptáculos] que os recebem como as partes passional e racional da
alma; também sobre aquilo em que consiste a inseparável mistura destas partes
,o poder de cada uma e o cumprimento das atividades de cada uma em vista do
objetivo único. Diga-lhes ainda a quem imita aquele que os cumpre, e que são os
que, junto com ele, afastam quem se opõe a uma conduta pura; diga-lhes também
que, dentre os seres vivos, uns possuem memória, enquanto outros não a têm.
O gnóstico, que deve
adaptar seu ensinamento a cada ouvinte, reservará aos padres, e aos melhores
dentre eles, a explicação mais profunda dos ritos que eles cumprem; as várias
edições do texto apresentam sempre essa exigência quanto à qualidade dos
auditores: estes serão os “melhores”, os “eleitos”, os “superiores”,
“excelentes”, os “que são zelosos no temor a Deus”.
Sobre os mistérios que
purificam o homem interior, compare-se com o que é dito no Tratado prático, 100: “Devemos amar nossos santos padres logo
abaixo do Senhor, eles que nos purificam pelos santos mistérios”, ou seja, pela
celebração eucarística. Os “vasos” serão assim “as potências da alma que
recebem estes mistérios” ou “o receptor e o examinador que estão em nós”;
trata-se simbolicamente dos receptáculos sagrados que recebem o pão e o vinho,
a carne e o sangue do Cristo, conforme Monges,
119-120: “As carnes de Cristo são as virtudes práticas, e aquele que delas se
alimentar se tornará impassível; o sangue de Cristo é a contemplação dos seres,
e quem dela beber obterá em si a sabedoria”.
A mistura inseparável
das partes faz referência provável, não á mistura de água e vinho, mas à parte
do rito em que o padre deixa cair no cálice fragmentos do pão consagrado,
chamado de commixtio ou inmixtio.
O cumprimento das
atividades em vista de um objetivo único refere-se ao estado de
impassibilidade, obtido pela purificação da parte passional da alma e pela qual
cada parte da alma, agindo segundo a natureza que lhe é própria, trabalha para
um fim único, a contemplação, atividade própria do intelecto. Quem cumpre estas
atividades imita a Cristo, e é auxiliado pelos anjos, que assistem ao padre
durante a celebração eucarística e afastam os indesejáveis, aqueles que fazem
obstáculo à conduta pura, os demônios.
A referência à memória
ao final do capítulo pode estar relacionada, de forma enigmática, com 1 Coríntios, XI, 24-26: “Na noite em que
foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, o partiu e
disse: «Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memória de mim.» Do
mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: «Este cálice é a Nova
Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso em
memória de mim.» Portanto, todas as vezes que vocês comem deste pão e bebem
deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha.”
Capítulo 15
Aprenda a
conhecer as razões e as leis das circunstâncias, dos gêneros de vida e das
ocupações, para que você possa facilmente dizer a cada um o que lhe for mais
útil.
Para adaptar-se ao seu
auditório, o gnóstico deve conhecer e levar em conta a situação concreta de
cada um; ele deve possuir não só um conhecimento empírico, mas também racional,
por meio das “razões” ou logoi.
Em seu Discursos, II, 18, Gregório de Nazianze
afirma que “o médico observará os lugares, as circunstâncias, as idades, os
momentos e outras coisas do gênero...” a fim de dar a cada um o remédio que lhe
convém; do mesmo modo agirá o médico de almas, que é o gnóstico.
Capítulo 16
É preciso que
você disponha de material para a explicação daquilo que é dito, e que você
abarque todas as coisas, mesmo se uma parte lhe escapar; é característico do
anjo, com efeito, que nada do que existe sobre a terra lhe escape.
Material, literalmente
“matéria” (hylé), termo presente em
todas as versões; uma glosa do texto dá ao termo o sentido de “testemunhos
tirados dos livros e a ciência das coisas do mundo”, em especial as Escrituras.
Este é o primeiro capítulo que trata da exegese. A “ciência das coisas do
mundo” refere-se ao que é dito no final a respeito daquilo que existe “sobre a
terra”, ou seja, do conjunto das naturezas criadas, objeto da contemplação
natural que somente os anjos (e alguns raros homens) possuem realmente. Assim,
se uma parte escapar ao gnóstico, ele não deve entristecer-se, pois nem todos
são capazes de compreender o sentido místico das Escrituras.
Capítulo 17
É preciso também
conhecer as definições das coisas, sobretudo as definições das virtudes e dos
vícios; de fato, é aí que se encontra a fonte tanto da ciência quanto da
ignorância, do reino dos céus e do tormento.
O texto sugere uma
possível glosa do Livro do Eclesiastes:
“Debaixo do céu há momento para tudo, e tempo certo para cada coisa (...) o
justo e o injusto estão debaixo do julgamento de Deus, porque existe um tempo
para cada coisa e um julgamento para cada ação.[16]”
As definições a que se
refere Evagro são as definições dos vícios e das virtudes; a correlação entre a
virtude e a ciência e entre o vício e a ignorância é um de seus temas
recorrentes, sendo que a virtude conduz ao Reino dos Céus e os vícios ao “tormento”.
Compare-se com in Ps. CXXXVIII, 11:
“Assim como adquirimos a ignorância através da malícia, do mesmo modo recebemos
a ciência pelas virtudes”.
Capítulo 18
É preciso tentar
saber, a respeito das passagens alegóricas e das passagens literais, se elas
remetem à prática, à física ou à teologia. Se elas remetem a prática, é preciso
examinar se elas tratam da irascibilidade e do que nasce dela, ou da
concupiscência e do que lhe segue, ou do intelecto e de seus movimentos. Se
elas remetem à física, é preciso ver se elas dão a conhecer alguma das
doutrinas que se referem à natureza, e qual dentre elas. E se se trata de uma
passagem alegórica que remete à teologia, é preciso, tanto quanto possível,
examinar se ela informa sobre a Trindade e se esta é considerada simplesmente
ou se é vista na Unidade. Mas se não se tratar de nada disso, ou é uma
contemplação simples, ou ela descortina uma profecia.
Este é o primeiro de uma
série de capítulos referentes à exegese das Escrituras.
A prática, ou “ética”, a
física, ou “ciência das naturezas”, e a teologia, ou “ciência de Deus”,
referem-se aos três estágios da vida espiritual. Uma divisão tripartite é
também atribuída à alma, que se divide, segundo Evagro, numa parte racional (o
intelecto) e numa parte passional, sendo esta composta por uma porção irascível e de uma porção
concupiscente.
Capítulo 19
É preciso
conhecer o jargão da divina Escritura e de estabelecê-lo, na medida do
possível, por meio de testemunhos.
O jargão, que aqui
traduz “hábitos” (ethos ou sinethéia), é uma expressão frequente
em Evagro, como em Orígenes, para designar as formas habituais de expressão da
Escritura, como referido em in Ps. XV,9: “Com efeito, é um hábito da
divina Escritura dizer coração ao invés de intelecto”. Os “testemunhos”, por
outro lado, referem-se sempre aos exemplos tirados diretamente das Escrituras.
Capítulo 20
É preciso saber
ainda isto: que nem todo texto de caráter ético comporta uma contemplação de
caráter ético, e que nem todo texto referente à natureza comporta uma
contemplação da natureza; mas um texto de caráter ético pode comportar uma
contemplação da natureza e um que trata da natureza pode comportar uma
contemplação da ética, e da mesma forma para a teologia. Com efeito, aquilo que
é dito da fornicação e do adultério de Jerusalém, dos animais de terra seca e
da água, dos pássaros puros ou impuros, do sol “que se levanta, se deita e que
retorna ao seu lugar[17]”,
refere-se em primeiro lugar à teologia, em segundo à ética e por fim à física.
Ora, o primeiro texto remete à ética e os dois outros à física.
Em outras versões, a
expressão “textos de caráter ético” é substituída por “palavras de exortação”.
As versões siríacas dão
ao texto um sentido mais claro: “Pensamos que eles (os textos escriturários)
ensinam literalmente uma coisa, mas sua intelecção é outras coisa; com efeito,
o texto que se refere à fornicação em Jerusalém ensina sobre a divindade, mas
achamos que ele é exortatório; pensamos que o que se refere aos animais puros e
impuros fala sobre a natureza, mas trata-se de uma palavra de exortação; e o
que fala do sol refere-se à natureza. Mas normalmente se pensa que o primeiro é
exortatório e que os dois últimos se referem à natureza”.
Capítulo 21
Você não explicará
por alegorias as palavras dos personagens vergonhosos nem procurará aí nada de
espiritual, a menos que Deus tenha agido em virtude da Economia, como ele fez
com Balaam e Caifás, a fim de que o primeiro predissesse o nascimento e o
segundo a morte de nosso Salvador.
Segundo uma antiga
tradição, atestada por são Pedro[18],
são Judas[19]
e também presente no Apocalipse[20],
Balaam era considerado como o protótipo dos falsos doutores que tentaram
desviar Israel, o que explica que ele tenha sido classificado entre os
“personagens vergonhosos”. Em Orígenes, ele era apresentado tanto como digno de
vergonha, por haver desobedecido a Deus, oferecido sacrifícios aos demônios,
levado Israel à idolatria, etc., como digno de louvor, quando “a palavra de
Deus foi colocada em sua boca” e ele profetizou a vinda do Salvador, profecia
que, conhecida dos reis magos, os levou a Belém: “uma
estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel[21]”.
Quanto a Caifás, ele se relaciona diretamente ao
anúncio da morte de Cristo, como Balaam a seu nascimento: “Vocês não sabem
nada. Vocês não percebem que é melhor um só homem morrer pelo povo, do que a
nação toda perecer?[22]”
Capítulo 22
É preciso que o gnóstico não seja sombrio, nem difícil de abordar. Com
efeito, isto é característico dos que desconhecem as razões dos seres, de
alguém que não quer “que todos os homens sejam salvos e alcancem o conhecimento
da verdade”.
O gnóstico não deve repelir aos
que vêm interrogá-lo. De fato, segundo Clemente de Alexandria, por efeito da
oração que o mantém em constante contemplação, o gnóstico é manso e humilde, de
trato fácil, afável, paciente e benevolente. Ele não ignora “as razões dos
seres”, ou seja, ele alcançou a contemplação espiritual das criaturas; assim,
ele desconhece a tristeza, sinal de quem não experimentou ainda a verdadeira
ciência. Ao contrário, ele é alegre e seu conhecimento é uma fonte de prazer.
Capítulo 23
Às vezes é
preciso fingir ignorância, porque aqueles que interrogam não são dignos de
entender. E você estará sendo verdadeiro, porque você está ligado a um corpo e
ainda não possui o conhecimento integral das coisas.
Um dos textos siríacos
coloca esta passagem nos seguintes termos: “Às vezes o gnóstico deve se recusar
a responder a uma questão dos que o interrogam e dizer-lhes que ele não foi
instruído naquilo que lhe perguntam”.
Em Discípulos 87,
Evagro apresenta um texto similar: “É preciso responder quando se trata de
virtudes, da doutrina ou da fé. Mas há casos em que não se deve responder, seja
porque a pergunta não tem relação com o estágio daquele que a formula, seja
porque existem outros presentes que não serão capazes de compreender, seja por
nossa própria ignorância, pois não podemos saber tudo”. Na mesma obra, 155:
“Diz-se do médico que somente ele pode mentir ou se irritar, mas isto também
vale para o mestre, em razão de uma certa “economia”, mas a mais ninguém”. Como
nestes textos, este capítulo coloca a questão de a quem é permitido mentir – já
bastante debatida por muitos filósofos desde Platão. Clemente de Alexandria
afirma: “O gnóstico pensa e diz a verdade, a menos quando há uma função
terapêutica em suas palavras, como um médico dirá a verdade ou a esconderá de
seus pacientes, para salvaguardar os que sofrem”; para Clemente, nestes casos,
a mentira é uma forma de condescendência misericordiosa.
Capítulo 24
Evite dizer, em
vista de um ganho, do bem estar ou de uma glória passageira, algo que não deva
ser revelado, para que você não seja expulso do recinto sagrado, como vendedor,
você também, no Templo, de filhotes de pombos.
Deve o sábio receber por
seus serviços? A questão foi debatida entre os antigos, e sabemos que os
reitores recebiam pagamentos. Isto pode chocar, num meio monástico, mas sabemos
que o próprio Evagro recebia de pessoas que vinham “do exterior” (provavelmente
leigos) por seus ensinamentos.
Mas a “glória
passageira” já não é bem vista: “Que aquele que, saído da vida prática e que
entrou na vida gnóstica, ao iniciar os mais simples nas habilidades do
pensamento, vigie para não fazer alarde de sua ciência para receber elogios[23]”.
A expressão “recinto
sagrado” é bíblica[24],
e designa aqui simbolicamente a gnose ou contemplação espiritual, da qual o
gnóstico será privado se ceder às paixões da cupidez ou da vanglória.
Os “filhotes de pombos”,
ao invés de simplesmente “pombos[25]”
podem ser entendidos como os frutos do Espírito Santo, “as sementes lançadas
pelo Espírito Santo” (cf. KG VI, 60), as verdades secretas que o gnóstico
recebeu.
Capítulo 25
Àqueles que
discutem sem ter a ciência, é preciso aproximar da verdade a partir não do fim,
mas do começo; e aos jovens não se deve dizer nada das coisas gnósticas nem
deixá-los mexer nos livros desta matéria, pois eles podem não resistir às
quedas exigidas pelo treinamento nesta contemplação. É por isso que, àqueles
que são combatidos pelas paixões, é preciso dizer não palavras de paz, mas como
eles triunfarão sobre seus adversários; de fato, como diz o Eclesiastes, “não
existe delegação em dia de guerra”. Aqueles, portanto, que são combatidos pelas
paixões e que perscrutam as razões dos corporais e dos incorpóreos
assemelham-se a doentes que discutem sobre a saúde. Apenas quando a alma é
movida com dificuldade pelas paixões que podem ser provados esses doces favos
de mel.
Evagro dirige-se aos
“jovens”, ou seja, aqueles que acabaram de entrar para a vida monástica; estes
não devem ler livros que não são capazes de entender, a saber, os livros
chamados de “gnósticos”, como, por exemplo, o tratado Dos Princípios de Orígenes ou os Kephalaia Gnóstica do próprio Evagro, que separou cuidadosamente os
ensinamentos práticos, acessíveis a todos, do ensinamento reservado aos
gnósticos. As leituras consideradas como “contemplações” consistem nas doutrinas
que se originam da contemplação espiritual, e que, mal compreendidas, podem ser
causa de escândalo ou engendrar erros, como será explicado no capítulo 36. Da
mesma forma, as palavras de paz, ou “razões”, como na frase seguinte, que só
são acessíveis àqueles que conhecem a “paz” da impassibilidade.
Quanto às “razões dos
corporais e dos incorporais”, trata-se dos logoi,
os princípios ontológicos e explicativos, as “razões de ser” das naturezas
visíveis e invisíveis, objetos da contemplação espiritual, à qual só têm acesso
aqueles que adquiriram uma certa impassibilidade, que é a própria “saúde da
alma”; Evagro retoma a noção estoica da paixão considerada como uma doença da
alma.
Assim sendo, os “doces
favos de mel” podem ser entendidos como a própria doçura da ciência espiritual,
como Evagro coloca, por exemplo, em KG
III, 64: “Se dentre as coisas que provamos nada existe de mais doce do que o
mel e o favo de mel, e sendo a ciência de Deus superior a todas estas coisas, é
evidente que nada existirá sobre a terra que dê mais prazer do que a ciência de
Deus”; ou em Monges 72: “Agradável é
o mel e doce o favo de mel, mas a ciência de Deus é mais doce do que ambos”. A
comparação do mel e do favo de mel é de origem bíblica, como em Salmos XIX, 10-11: “As decisões de Javé
são verdadeiras e justas igualmente. São mais desejáveis do que ouro, mais do
que ouro refinado. São mais doces que o mel, que vai escorrendo dos favos”;
também relacionado com a sabedoria, em Provérbios, XXIV, 13-14: “Meu filho,
coma o mel, porque ele faz bem; o favo de mel é gostoso na boca. Saiba que
também a sabedoria é assim: se você a encontrar, terá futuro, e sua esperança
não fracassará”.
Compare-se com Clemente
de Alexandria: “Assim como vale mais estar em boa saúde do que, estando doente,
falar sobre a saúde, mais vale ser luz do que falar sobre a luz.”
Capítulo 26
O tempo da
explicação e o tempo da discussão não são o mesmo tempo. Assim, é preciso
reprimir aqueles que fazem objeções prematuras; este é um costume dos heréticos
e dos polemistas.
Explicação e discussão
correspondem a dois níveis do ensinamento: de um lado, o nível propedêutico em
que o estudante deve apenas escutar a lição do mestre e, de outro, o nível
superior, reservado aos mais avançados, o da discussão ou da pesquisa,
concernente às questões livres e “indiferentes” (ver Cap. 12), que podem ser
objeto de debate entre o mestre e o discípulo e que evoca a fórmula frequentemente
encontrada tanto em Evagro como em Orígenes: “Você pesquisará se...”. Segundo
Héraclas, era assim o ensino organizado por Orígenes em Alexandria, que
confiava a ele o ensinamento elementar e reservava para si aquele destinado aos
mais avançados; esta era também a prática de Libânio em Antioquia.
As objeções “prematuras”
são, portanto, aquelas feitas pelos estudantes mais novos, a respeito de
assuntos que constituem objeto do segundo nível do ensinamento. Também Platão (República VII 539 ad) denunciava os
perigos de admitir precocemente os jovens à dialética, antes que tivessem a
necessária preparação e a disposição requerida: isto apenas contribuiria para
criar neles o gosto pela disputa e o ceticismo.
Capítulo 27
Não fale de Deus
inconsideradamente, nem jamais defina a Divindade. Com efeito, as definições são
próprias dos seres criados e compostos.
Este capítulo é o
primeiro citado por Socrate em sua História
Eclesiástica: “Evagro, em sua obra sobre os monges, desaconselha falar de
Deus de forma precipitada e inconsiderada e interdita expressamente que se defina
a Divindade, porque ela é simples. De fato, diz ele, as definições são próprias
dos seres compostos”.
Conforme Antipatros em
seu livro Sobre as definições, “a
definição é uma palavra proferida segundo uma análise rigorosa”. Também na
lógica de Aristóteles e de Porfírio, a definição de uma substância consiste em
dizer a que gênero, a qual espécie, etc., ela pertence; a definição procede por
decomposição, e assim não é possível definir o que é simples, sem partes. O
mesmo argumento é usado por Evagro em KG
V, 62: sendo a Trindade não composta por natureza, ela escapa necessariamente à
análise.
Capítulo 28
Lembre-se das
cinco causas do abandono espiritual[26],
para que você possa levantar os fracos abatidos pela aflição. Com efeito, o
abandono espiritual revela a virtude que está escondida. Quando esta foi
negligenciada, ele a restabelece pelo castigo; e ela se torna causa de salvação
para outros. E quando a virtude se torna proeminente, ela ensina a humildade
àqueles que a partilham. De fato, quem teve esta experiência, odeia o mal; ora,
a experiência é um broto do abandono espiritual, e este abandono é filho da
impassibilidade.
A expressão chave deste
capítulo, que se repete quatro vezes, é “abandono espiritual”, ou “derelição”,
o abandono em que Deus parece por vezes deixar o homem, expondo-o à tentação.
Duas passagens das Centúrias sobre a caridade de Máximo o Confessor
versam sobre este tema: na Centúria IV, 96, Máximo afirma existirem
quatro espécies de derelição, que ele enumera da seguinte maneira: uma é “econômica”, como aquela que sofreu o
Senhor, “derelição aparente” que tem por objetivo “a salvação daqueles que se veem
em derelição”; outra tem a finalidade de por à prova, como aconteceu com Jó e
com José, para que eles se colocassem como modelos, um de coragem, o outro de
castidade; uma outra tem em vista a “educação paternal”, como a que são Paulo
conheceu, a fim de que, humilhando-se, ele conservasse a abundância da graça;
uma última enfim acontece “por aversão”, como no caso dos Judeus, para que,
castigados, possam se arrepender. No mesmo livro, II, 67, Máximo distingue
cinco causas, não exatamente da derelição, mas da razão pela qual Deus
“permite” que os demônios nos deem combate: Para que alcancemos o discernimento
da virtude e do vício, para que nossa virtude se torne inquebrantável, para que
não nos orgulhemos quando progredimos na virtude, para que odiemos o mal por
tê-lo experimentado e, sobretudo, para que, ao nos tornarmos impassíveis, não
esqueçamos nossa fraqueza nem o poder daquele que nos socorreu.
Outro texto em parte
semelhante a este de Evagro encontra-se na História Lausíaca de Paládio,
que reporta um encontro que ele próprio teve, juntamente com Evagro, seu
mestre, e seu amigo Albânio, com Paphnúcio, que era apelidado Képhalas, a quem
ele qualifica de “extremamente gnóstico”. A uma pergunta de seus interlocutores
sobre a queda de alguns monges aparentemente muito virtuosos, Paphnúcio
responde com um sermão sobre as causas da derelição, que ele enumera em duas:
para que a virtude escondida seja manifestada, como no caso de Jó; e para
afastar o orgulho, como no caso de são Paulo.
Num fragmento exegético
sobre a morte de Judas, atribuído a João Damasceno, uma terceira causa é
acrescentada às duas primeiras: “em vista da correção de um outro”, como no
caso de Lázaro e do rico; em seguida, uma quarta, “para a glória de outro”, o
Cristo, como no caso do cego de nascença; enfim, uma quinta, “para excitar o
zelo de um outro”. O autor, resumindo seu pensamento, distingue dois tipos de
derelição: uma, que retoma as cinco precedentes agrupando-as, é “econômica e
educativa” e tem por objetivo, em particular, a “correção e a salvação”; a
outra, que vem juntar-se a esta, é “perfeita e desesperada”, definitiva
portanto, como no caso de Judas.
Estes diversos textos
podem ajudar a explicar o capítulo de Evagro, fixando seu conjunto e
estabelecendo o texto, tarefa delicada devido aos diferentes testemunhos das
versões antigas.
O capítulo versa sobre
os motivos pelos quais Deus utiliza a derelição que o gnóstico deve conhecer em
seu papel de diretor espiritual. Em primeiro lugar, “a derelição revela a
virtude oculta”; a esta primeira causa corresponde a segunda de Máximo o
Confessor, a que tem por objetivo por à prova, e da qual o grande exemplo é Jó.
Evagro coloca, em in Ps. XXXVI 25: “Os justos são submetidos à derelição
por um tempo para que sejam postos à prova. O Senhor disse a Jó: Não creia que
eu a usei contra você por outro motivo do que para que você parecesse justo”.
Em segundo lugar, o
socorro divino “é retirado no tempo da tentação, seja para por à prova, seja
para o castigo” (in Ps. XXXVII, 12) Esta segunda causa, que visa o
arrependimento por meio do castigo, corresponde à quarta de Máximo. Assim, a
derelição se torna causa de salvação para muitos.
Quando a virtude se
torna proeminente a derelição remedia o orgulho e convida à humildade, idéia
frequentemente expressa por Evagro: “É assim que Deus volta o homem para a
humildade, quando ele o abandona ao pecado” (in Ps. LXXXIX, 3); “É uma
grande coisa para o homem ser socorrido por Deus: ele foi abandonado e conheceu
a fraqueza de sua natureza” (Oito pensamentos, XVIII). Esta derelição
atinge especialmente aquele que, devido à sua virtude, é tentado pelo orgulho:
“A alma do orgulhoso é abandonada por Deus e se torna joguete dos demônios” (Ibid.,
17); “Não abandone seu coração ao orgulho, para que Deus não abandone sua alma
e os demônios perversos a humilhem” (Monges, LXII)
Evagro termina com um
polissilogismo, um tipo de argumentação ao qual recorre com frequência, como em
in Ps. XXIV, 20, onde retoma Romanos V, 3-5[27],
mas invertendo seus termos: “A esperança não engana, pois ela é filha da prova,
e esta é o broto da perseverança, que nasce das aflições, à qual conduzem as
virtudes, seguindo a ciência de Deus”. Compare-se também com Pensamentos
X, texto que explica todo o final do capítulo: “A aversão que apresentamos aos
demônios contribui de modo especial para a nossa salvação e favorece a prática
da virtude; mas não temos a força para nutri-la em nós como uma espécie de bom
embrião, porque os espíritos amigos do prazer a destroem e convidam a alma a
voltar à sua amizade habitual; a esta amizade – ou melhor, esta gangrena
dificilmente curável – o médico das almas cura com a derelição: de fato, ele
permite que nós padeçamos certo terror com isto noite e dia, para que a alma
retorne depressa à aversão primitiva, aprendendo com Davi a dizer ao Senhor:
“Eu os odeio com uma aversão perfeita, eles se tornaram inimigos para mim.” Pois
ele odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em ato
nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade.”
Finalmente, aquele que
alcançou a impassibilidade, pode ainda conhecer a derelição, para que possa
experimentar o mal, e em seguida odiá-lo, para que possa progredir até a grande
impassibilidade, que supõe a perfeita aversão ao mal.
Capítulo 29
Que aqueles a
quem você instrui lhe digam sempre: “Amigo, suba mais alto![28]”
Seria vergonhoso, com efeito, que depois de subir, você seja trazido para baixo
pelos seus auditores.
Encontramos aqui a regra
de ouro de todo ensinamento: permanecer no nível dos ouvintes e só se elevar na
medida em que estes expressem esta necessidade.
A expressão “seria
vergonhoso...” inspira-se na citação da passagem de Lucas: “Se alguém convida
você para uma festa de casamento, não ocupe o primeiro lugar. Pode ser que
tenha sido convidado alguém mais importante do que você; e o dono da casa, que
convidou os dois, venha dizer a você: ‘Dê o lugar para ele’. Então você ficará
envergonhado e irá ocupar o último lugar. Pelo contrário, quando você for
convidado, vá sentar-se no último lugar. Assim, quando chegar quem o convidou,
ele dirá a você: ‘Amigo, venha mais para cima’. E isso vai ser uma honra para
você na presença de todos os convidados”.
Capítulo 30
Avaro não é o que
tem dinheiro, mas aquele que o deseja. Pois o administrador, como se diz, é o
que possui uma bolsa razoável.
Esta definição do avaro
tem origem distante em Aristóteles, Ética
a Eudemo, III, 4, 1232 a: “O avaro é aquele que tem paixão pelo dinheiro,
porém mais pelo dinheiro como objeto de aquisição do que pelo uso que se pode
fazer dele conforme as circunstâncias”. Como Aristóteles, Evagro opõe ao avaro,
aquele que deseja simplesmente possuir o dinheiro, o administrador, aquele que
possui dinheiro para usá-lo.
A presença de
administradores está bem documentada dentre os monges de Nitria, das Kellia e
de Sceta; segundo Paládio, em sua História
Lausíaca (cap. X), Pambô tinha um administrador, a quem remeteu o dinheiro
que lhe fora dado por Melânia, dizendo-lhe que o tomasse e distribuísse entre
os mosteiros pobres. O próprio Evagro confiava a um administrador o dinheiro
que recebia dos seus numerosos visitantes. O administrador tinha por função,
não apenas administrar os bens da comunidade, mas também de gerenciar sua
distribuição aos pobres; esta função explica a paráfrase que encontramos no
texto siríaco, “aquele que possui dinheiro e o administra com piedade”, bem
como na versão armênia, “aquele que é generoso em sua distribuição” – desde que
esta generosidade não seja fingida! Descrevendo as artimanhas do demônio da
avareza (Contra os pensamentos, XXI),
Evagro mostra o monge que, dominado por este demônio, “finge ser econômico e
amigo dos pobres; ele acolhe generosamente os hóspedes que não são tão pobres
assim, envia auxílio a outros que são abandonados, visita as prisões da cidade,
resgata os que foram postos à venda; ele não larga as mulheres ricas e lhes
indica aqueles que devem ser bem tratados; aos que possuem uma bolsa rica ele
exorta a que a abandonem. E assim, após haver pouco a pouco enganado a alma,
ele a encerra em pensamentos de avareza e a entrega ao demônio da vanglória”.
Por sua vez, quando
Evagro se refere a “uma bolsa razoável”, está se referindo a uma bolsa em
conformidade com a razão. Esta frase justifica a definição contida na primeira:
o administrador é chamado de “bolsa”, o que demonstra que se pode possuir
dinheiro sem ser avaro, tanto mais tendo o administrador não apenas a função de
administrar o dinheiro, mas principalmente de distribuí-lo.
No entanto, neste
capítulo não se trata, realmente, do administrador no sentido próprio do termo,
mas do gnóstico, simbolizado por aquele: o gnóstico possui a ciência, mas ele
deve distribuí-la, conforme KG V, 33,
onde o administrador é chamado de “mestre (didascalos)
dos outros”, e in Prov. XVII, 2: quem rejeitou a malícia e dominou os demônios
com suas virtudes (...) se tronará também ‘administrador dos mistérios de Deus[29]’
distribuindo a cada irmão a ciência espiritual que convém ao seu estado”.
Capítulo 31
Convide os
anciãos a dominar sua irascibilidade, e os jovens a dominar seu ventre. Com
efeito, os primeiros devem lutar contra os demônios psíquicos, e os outros, na
maior arte do tempo, contra os demônios corporais.
Este capítulo aparece
também no tratado Sobre os pensamentos:
“É preciso que os velhos dominem sua irascibilidade e os jovens o ventre; com
efeito, os primeiros são atacados por demônios psíquicos, e os outros por
demônios corporais principalmente”.
Evagro relaciona as
paixões da alma à sua parte irascível e as do corpo à parte concupiscente, aqui
chamada de “ventre”. A dupla recomendação que Evagro faz aqui ao gnóstico
diretor espiritual se explica pelo fato de que “os demônios que presidem às
paixões da alma persistem até a morte”, enquanto que “aqueles que presidem as
paixões do corpo se retiram mais rapidamente”: “Os pensamentos que provêm das
paixões do corpo duram pouco tempo, mas a inveja e a cólera persistem até a
velhice”.
Capítulo 32
Feche a boca para
os que deblateram em seus ouvidos e não se espante de ser difamado por muitos,
pois esta é uma tentação que vem dos demônios. De fato, é preciso que o
gnóstico seja isento de raiva e rancor, mesmo que eles não queiram isso!
Talvez exista neste
capítulo um eco da hostilidade de que foram vítimas Evagro e seus amigos do
deserto, por causa de suas opiniões “origenistas”; a mesma recomendação de não
responder aos contraditores nem se irritar com isto aparece em Oração,
12; e a tentação dos demônios que provocam a calúnia contra o gnóstico a fim de
irritá-lo e privá-lo da contemplação surge em KG III, 90.
Capítulo 33
Sem que ele
perceba, aquele que cura os homens por causa do Senhor cura igualmente a si
próprio; pois o remédio que o gnóstico aplica cura seu próximo na medida do
possível, mas cura o gnóstico necessariamente.
O gnóstico é comparado a
um médico, pois ele está encarregado de curar as paixões que são as doenças da
alma, a fim de restabelecer a “saúde da alma”, ou seja, a impassibilidade. Ao
agir assim, o gnóstico compara-se a Cristo, que é chamado de “médico de almas”.
Este capítulo pode ser
comparado a Cartas, XLVII: “Quanto a mim, sei que a ciência de Deus, quando
nutre, é ela mesma nutrida, e, quando dá, recebe”.
Capítulo 34
Você não deverá
interpretar alegoricamente tudo o que se prestar à alegoria, mas apenas aquilo
que convier ao tema; porque se você não agir assim, você passará muito tempo
sobre o barco de Jonas, a explicar cada um de seus equipamentos. E você fará
rir os seus ouvintes, em lugar de lhes ser útil: todos os que se sentarem ao
seu redor lembrando-o de tal ou tal equipamento e relembrando, em meio a
risadas, os que você tenha esquecido.
Evagro coloca aqui os
limites da exegese alegórica: não se deve buscar uma explicação alegórica em
todos os detalhes do texto escriturário. Esta posição foi muito debatida; a
posição de Evagro é análoga à de são Jerônimo que, em seu Comentário sobre
Ezequiel, criticava aqueles que davam uma interpretação alegórica para cada um
dos membros da tripulação dos navios que se dirigiam a Tarsis[30].
Já para Orígenes, toda palavra da Escritura devia possuir um sentido
espiritual: “Tudo o que está escrito é mistério[31]”.
Mas a crítica de Evagro
pode se dirigir também, de um modo mais geral, aos métodos que remontavam à
exegese alegórica pagã. Como diz Clemente de Alexandria: “Nem os dogmas da
filosofia bárbara, nem os mitos pitagóricos, nem sequer os de Platão (...)
devem ser entendidos alegoricamente em todas as suas palavras, mas apenas nas
expressões que significam o pensamento global, e é somente aí que podemos
encontrar aquilo que, por meio de símbolos, permanece indicado sob um véu, o da
alegoria”.
Capítulo 35
Convide os monges
que vierem a você a que falem de ética, mas não de doutrinas, a menos que se
ache entre eles algum que seja capaz de se dedicar a estas matérias.
O texto siríaco especifica
que este convite se refere às visitas individuais que os monges faziam a seus
instrutores, não a entrevistas coletivas. A expressão geral “ética” pode ser
mais bem compreendida a partir das múltiplas versões dos textos antigos, que
falam em “formas do temor a Deus e das condutas da virtude”, em “fé”, em
“exortação” e, finalmente, em “costumes”. Já a expressão “doutrinas” aparece
nos mesmos textos como “pesquisa” ou “mandamentos” no sentido de dogma – não o
“dogma de fé”, mas as doutrinas que, provindo da física e da teologia, podem
ser objeto de livre interpretação.
Capítulo 36
Que permaneça
oculta aos seculares e aos jovens as mais altas razões referentes ao juízo,
pois ela engendra facilmente a negligência; de fato, eles não conhecem o
sofrimento da alma racional condenada à ignorância.
As “razões” referidas
neste capítulo equivalem à teoria relativa ao destino dos seres racionais,
incompreensível para aqueles que ainda não foram suficientemente purificados
pela prática. As versões siríacas alertam para a negligência que pode advir
desta incompreensão, enquanto o texto de Oecunmenius fala em “desprezo”,
explicando que, se é preciso “colocar um selo” sobre tudo o que se refere ao
Juízo final, como é dito em Apocalipse
X, 4-7, é devido ao fato de que os castigos inspirados pela bondade de Deus
podem parecer aos homens demasiado leves e “facilmente desdenháveis”.
A ignorância é a
retribuição dos maus, assim como a ciência é a recompensa dos bons, como afirma
Evagro em KG VI, 57: “A retribuição
que a natureza racional receberá diante do tribunal de Cristo consistirá num
corpo espiritual ou tenebroso, bem como na contemplação ou na ignorância que
lhes forem apropriadas”. Mas a felicidade que a ciência traz só é compreensível
para quem já a experimentou. Compare-se com Orígenes, em Contra Celso VI, 26: “O que existe para ser dito (sobre a Geena)
não pode ser exposto a todos. Seria inclusive perigoso confiar à escrita a
elucidação desta matéria: a maior parte não tem necessidade de conhecer nada
além do castigo dos pecadores; não é útil abordar as verdades que os
ultrapassam, por causa daqueles a quem o temor do castigo eterno mantém
duramente por um tempo fora da corrente do mal e das faltas que aí residem”.
Capítulo 37
São Paulo,
oprimindo seu corpo, reduziu-o à servidão[32];
também você não negligencie seu regime, enquanto durar sua vida, e não ofenda a
impassibilidade humilhando-a com um corpo obeso.
O gnóstico, mesmo que tenha alcançado a impassibilidade
– ou a “saúde da alma”, como Evagro a define – não pode dispensar a ascese, em
especial naquilo que se refere à alimentação. A moderação, por outro lado, é um
dos componentes do caminho que leva à impassibilidade, conforme o próprio
Evagro afirma em TP 91: “Um regime
bastante seco e regrado, unido à caridade, conduz rapidamente o monge ao porto
da impassibilidade”.
Capítulo 38
Não se farte de
comida ou vestimentas[33],
mas lembre-se de Abener o levita, que, depois de haver recebido a arca do
Senhor, tornou-se rico, de pobre que era, e renomado, ele que era desprezado[34].
No texto da Septuaginta, Abeddara era o personagem
em cuja casa a arca da aliança ficou abrigada, no decurso de sua transferência
para Jerusalém, depois da vitória de Davi sobre os Filistinos. Este nome corresponde
ao Obed Edom do texto hebraico da Peshitta,
e é ele que aparece nas versões siríacas. No texto grego utilizado nesta
tradução foi adotado o nome Abener, talvez por uma confusão com Abner, chefe do
exército de Saul, que depois se uniu a
Davi.
No texto bíblico, Obed
Edom é chamado de Guitita, de Gat, assim como na Peshitta. Sua identificação como levita talvez provenha da lista de
levitas constante em I Crônicas XV, 18. Esta identificação é atestada por
Flavius Josefus, Antigüidades judaicas
VII, 4, 2, aonde o personagem a quem foi confiada a arca é apresentado como
sendo um levita; é possível que Evagro tenha extraído daí a informação. O
enriquecimento de Abener corresponde à passagem do texto bíblico: “E o Senhor
abençoou a casa de Abeddara e tudo o que havia nela.”
Evagro aconselhava desde
os iniciantes até o gnóstico para não se preocuparem com alimentos e vestes.
Mas o gnóstico tem mais razões ainda para tanto, pois, tendo recebido a ciência
– simbolizada pela arca – ele será cumulado pelo Senhor, recebendo tudo em
acréscimo, conforme Mateus VI, 33. Em
KG IV, 63, a cobertura da arca da
aliança é apresentada como o símbolo da ciência espiritual, assim como Orígenes
(Homilias sobre os Números X, 3)
considera a arca como o símbolo dos “mistérios ocultos e secretos”.
Clemente de Alexandria
diz em Stromata VII, 7, 46: “Com
razão [o gnóstico] não procura nada daquilo que é preciso para as necessidades
da vida, nem o que quer que seja disto, persuadido que está de que Deus que
sabe tudo fornecerá apenas o que é útil às pessoas de bem, mesmo que elas não
peçam. Do mesmo modo como, com efeito, em minha opinião, cada coisa é dada ao
artesão de forma artesanal, e ao pagão da forma que convém ao pagão, também
cada coisa será dada ao gnóstico de uma maneira gnóstica.”
Capítulo 39
A consciência do
gnóstico é para ele um acusador severo, de quem ele nada pode esconder, pois
ela conhece até os segredos do seu coração.
Evagro retoma aqui um
tema tradicional desde o antigo estoicismo, o da consciência acusadora, que
influenciou numerosos autores, como Políbio: “De fato, ninguém é uma testemunha
tão terrível e um acusador tão temível quanto a consciência que habita a alma
de cada um”. A ideia está presente em Orígenes, Dos Princípios, II, 10,
4: diante da lembrança das faltas cometidas, “a consciência torna-se agitada e
é como que picada por seus próprios ferrões, tornando-se sua própria acusadora
e testemunha de acusação”. Também Agatão coloca esta postura em Apophtegma
Patrum, PG LXC, 109 B: “É preciso que o monge não deixe sua
consciência acusá-lo seja no que for”.
Nada se pode ocultar da
consciência. Já Sêneca afirma em De beneficiis, VI, 42: “Age mal aquele
que busca agradar a opinião pública mais do que sua própria consciência. Pois
existem dois juízes para tudo o que você faz: você, a quem você não pode
enganar, e o outro (isto é, o público) a quem você pode enganar”.
Evagro afirma aqui sobre
a consciência a mesma coisa que ele diz de Deus no seu Tratado Prático,
ou seja, que ele é cardiognóstico, o “que conhece o que está nos corações”. Sua
concepção da consciência, no entanto, parece estar mais próxima da dos estoicos,
que assimilavam a consciência à razão, do que da dos platônicos, para quem a
consciência era a voz de um daimon, da divindade no interior do homem.
Neste capítulo, Evagro
não relaciona à consciência do gnóstico aquilo que outros autores que o
antecederam disseram da consciência de todos os homens, mas ele pretende dizer
ainda que a consciência se torna cada vez mais exigente quanto mais o monge é
engajado no caminho do gnóstico; por esta razão, o gnóstico deve evitar a todo
custo o relaxamento.
Capítulo 40
Atente para o
fato de que, para cada coisa criada, não existe apenas uma razão, mas um grande
numero delas e segundo a medida de cada um; as potências santas alcançam as
razões verdadeiras dos objetos, mas não a primeira delas, a que é conhecida
somente por Cristo.
A interpretação deste
capítulo é difícil e sua tradução permanece incerta. Ele deve ser interpretado
segundo a doutrina evagriana das “razões” (logoi):
a contemplação espiritual permite conhecer as naturezas em seus logoi, ou seja, as razões segundo as
quais foram criadas. Estes logoi têm
seus princípios no Logos, o Verbo,
que Cristo possui em si. Somente Cristo conhece a razão “primeira” de cada
natureza, a cuja criação ele presidiu. As razões que as naturezas racionais (as
logikoi) – e os anjos – são capazes
de conhecer, “cada qual à sua medida”, são apenas aspectos múltiplos e parciais
desta grande razão primeira.
Capítulo 41
Toda proposição
tem como predicado ou um gênero, ou uma diferença, ou uma propriedade, ou um
acidente, ou o que for composto por estas coisas; mas, a respeito da Santíssima
Trindade, nada do que foi dito é cabível. Que em silêncio seja adorado o
inefável!
A primeira frase deste
capítulo parece ser emprestada da Isagogia
de Porfírio: “Como é necessário (...) para estudar a doutrina das Categorias de
Aristóteles, saber o que é gênero, o que é a diferença, o que é a espécie, o
que é a propriedade, o que é o acidente...” A estes termos, Evagro acrescenta
um sexto, “aquilo que é composto por estas coisas”, que se refere à segunda
parte da Isagogia: “...sobre aquilo
que este cinco vocábulos têm em comum”.
Este raciocínio
aproxima-se do enunciado do capítulo 26, no qual Evagro desaconselha tentar
definir Deus, porque isto implicaria atribuir-lhe gênero, espécie, etc. Em Stromata V, XII, 81, 5, Clemente de
Alexandria afirma: “Como é possível exprimir aquilo que não é gênero, nem
diferença, nem espécie (...) tampouco é acidente...”
Desta forma, a
conclusão: “Que em silêncio seja adorado o inefável”, vem retomar logicamente
um tema caro à tradição filosófica grega, especialmente no neoplatonismo: diz
Porfírio, em Da abstinência II, 34,
2: “Ao Deus supremo rendemos um culto por meio do silêncio puro e de
pensamentos puros a seu respeito”. Na tradição cristã, anteriormente a Evagro,
encontramos esta ideia em Gregório de Nazianze (Discurso XXVIII, 20): “Uma vez que se trata de coisas inefáveis,
que elas sejam por nós honradas em silêncio”; também no seu Hino a Deus, que
alguns atribuem a Proclus: “Ó tu que estás além de tudo, tu que não podes ser
chamado por nenhuma palavra, tudo te dirige um hino silencioso”.
Capítulo 42
A tentação do
gnóstico é uma opinião falsa que apresenta ao intelecto aquilo que existe como
se não existisse, ou o que não existe como se existisse, ou ainda o que existe
como existindo de outro modo daquele que é.
Este capítulo forma um par com o
seguinte, e ambos apresentam um paralelo com os capítulos 74 (“A tentação do
monge é um pensamento que cresce a partir da parte passional da alma e
obscurece o intelecto”) e 75 (“O pecado do monge é o consentimento ao prazer
proibido proposto pelo pensamento”) do Tratado
Prático. Mas aqui a tentação e o pecado do gnóstico apresentam um caráter
propriamente intelectual, enquanto que as tentações e pecados do monge
impõem-se sobre as circunstâncias de sua vida prática.
Capítulo 43
O pecado do
gnóstico é a falsa ciência dos objetos em si mesmos ou de sua contemplação, que
é engendrada por uma paixão qualquer, ou por ser feita com vistas a algo que
não é o bem.
O pecado do gnóstico não
é mais, como o do monge, o fato de consentir num prazer proibido proposto por
um pensamento passional; de natureza mais intelectual, ele reside no erro. Mas
este não se deve apenas a uma falha da inteligência ou do entendimento: ele
provém do fato de que o gnóstico ainda está submetido às paixões, notadamente à
cólera, ou porque, em suas pesquisas e buscas, assim como em seu ensinamento,
ele pode ceder à cupidez ou à vanglória. Em suma, o erro é engendrado pelo
“amor ao mundo”, conforme estabelece Evagro em KG IV, 25.
Encontramos uma
definição da falsa ciência, em termos quase idênticos aos deste capítulo, em in Ps. CXLIII, 7[35]:
“A mão estrangeira” é o pensamento se encontra com a parte passional da alma e
que paralisa o intelecto; mas esta mão atinge os práticos, enquanto que a mão
que atinge os contemplativos é a falsa ciência dos objetos em si ou de sua
contemplação”.
Capítulo 44
Aprendemos com o
justo Gregório que também para a contemplação existem quatro virtudes: a
prudência e a coragem, a continência e a justiça. A tarefa da prudência, dizia
ele, é de contemplar as potências inteligíveis e santas, independentemente de
suas razões; estas, de fato, como nos transmitiu ele, só são reveladas pela
sabedoria. A tarefa da coragem é de perseverar na verdade, mesmo se for preciso
combater, e não se aventurar naquilo que não existe. Receber as sementes do primeiro
cultivador e recusar aquele que semeia por cima[36],
é próprio da continência, respondia ele. Quanto à justiça, seu papel é de
distribuir a cada um as razões segundo seu nível, reportando algumas coisas de
modo obscuro, designando outras por enigmas e expondo algumas com clareza, para
benefício dos simples.
Com este capítulo
inicia-se a série de citações de teólogos com as quais Evagro encerra o livro,
antes dos dois últimos capítulos de conclusão. Em primeiro lugar, vem Gregório
de Nazianze, que Evagro denomina também “o justo Gregório” e que ele sempre
apresentou como seu mestre. Trata-se aqui, provavelmente, de um ensinamento
oral, como o indicam os verbos utilizados: “aprendemos”, “dizia ele”,
“respondia ele”; de fato, os textos de Gregório não parecem conter os
enunciados apresentados.
As virtudes da vida
contemplativa correspondem às virtudes da vida prática apresentadas no Tratado Prático, 89: “Dado que a alma
racional é tripartite, segundo nosso sábio mestre, quando a virtude está na
parte racional ela se chama prudência, inteligência e sabedoria; quando ela se
acha na parte concupiscente, ela se chama continência, caridade e abstinência;
quando repousa no irascível coragem e perseverança; quando habita a alma
inteira, justiça”. A prudência e a coragem, a continência e a justiça são as
quatro virtudes cardinais dos estóicos.
Capítulo 45
A coluna da
verdade, Basílio de Capadócia, disse: a ciência que provém dos homens é
fortalecida pelo estudo e pelo exercício assíduos, mas aquela que nos chega
pela graça de Deus o é pela justiça, pelo domínio da cólera e pela
misericórdia. A primeira pode ser recebida mesmo por aquele que ainda está
sujeito às paixões; mas a segunda, apenas os impassíveis são capazes dela, eles
que, ademais, no momento da oração, contemplam a própria luz do intelecto que
os ilumina.
Existem dúvidas se este
texto reflete um ensinamento oral de Basílio. Em sua obra Asceticon, em
uma passagem da Pequena Regra XVI, ele afirma que a compunção “pode ser obtida
sem um estudo e um exercício grande e gradual”. Em todo caso, o restante do
capítulo é bastante evagriano. Aqui é colocada uma oposição entre o
conhecimento profano, adquirido por meio do estudo, e a contemplação
espiritual, que provém da graça de Deus e pressupõe uma certo grau de
impassibilidade.
A justiça mencionada
aqui responde a uma outra concepção daquela do capítulo anterior: trata-se,
neste texto, da justiça que assegura a harmonia entre as três partes da alma,
característica o estado impassível. Enquanto a cólera é considerada como um dos
maiores obstáculos à contemplação, a misericórdia é vista como um dos remédios
mais eficazes para a perturbação da parte irascível.
A impassibilidade
permite não apenas o acesso à contemplação espiritual das naturezas, mas ainda,
por acréscimo, alcançar a visão da luz do intelecto. Os maus pensamentos fazem
diminuir a luz que, no momento da oração, ilumina o intelecto; é neste momento,
o da oração pura, que o intelecto vê “sua própria luz”, e esta visão não se
torna possível senão pela impassibilidade.
Capítulo 46
O santo luminar
do Egito, Atanásio, disse: Moisés recebeu a ordem de colocar a mesa do lado do
Norte[37].
Que os gnósticos saibam quem sopra contra eles, que eles suportem valorosamente
todas as tentações e que se apressem em nutrir aqueles que se apresentem!
Evagro partilhava da
admiração que seu mestre Gregório de Nazianze nutria por santo Atanásio, a
“coluna da Igreja”, em razão de seu longo combate contra o arianismo.
O texto alude ao
mobiliário da tenda: “Coloque a placa de ouro sobre a arca da aliança, no Santo
dos santos. Fora do véu, no lado norte, coloque a mesa; e, no lado sul, diante
da mesa, coloque o candelabro”. A exegese que faz Evagro deste trecho lembra a
mesma que fez Orígenes em suas Homilias sobre o Êxodo IX, 4, mas a
respeito do candelabro: este, explicava ele, devia ser colocado no sul, de modo
a contemplar o norte e observar “aquele que vem do norte”, expressão emprestada
a Joel II, 20 que designava os invasores que, na Palestina costumavam vir
daquela direção: “Devemos observar sempre com vigilância e zelo ardente as
armadilhas do diabo, para sabermos sempre de onde vem a tentação, de onde virá
o inimigo, por onde o adversário se insinuará”. Evagro retoma esta exegese, não
mais a respeito do candelabro, mas a respeito da mesa sobre a qual são
depositados os pães consagrados.
É preciso assim, para
combater eficazmente o demônio, assimilado aqui ao vento do Norte,
identificá-lo logo que se apresente, perguntando-lhe sem hesitação: “Quem é
você?”. Em Cartas XI, Evagro manda inquirir: “Seja o porteiro de seu
coração e não deixe nenhum pensamento entrar sem interrogá-lo: você é dos
nossos ou é dos inimigos?” Identificar o demônio implica não apenas
reconhece-lo como tal, mas reconhecer, pela observação, de que demônio se
trata, condição indispensável para dar-lhe a réplica apropriada; este é o
fundamento do método “antirrético” exposto no livro homônimo.
Diante disto, poderíamos
estranhar a expressão “nutrir aqueles que se apresentam”, pois estes seriam os demônios,
a quem se deveria em primeiro lugar expulsar. Mas, sendo a mesa o símbolo da
hospitalidade e, no texto escriturário, aquela sobre a qual se colocavam os
pães consagrados, estes pães podem ser vistos como “a palavra apostólica”
segundo a exegese de Orígenes. Assim, a hospitalidade, uma das formas
tradicionais da caridade, se torna o ensinamento dos discípulos, e as tentações
contra as quais é preciso se precaver são sobretudo as heresias.
Capítulo 47
O anjo da Igreja
de Thmuis, Serapião, dizia que o intelecto está perfeitamente purificado quando
ele bebeu da ciência espiritual, quando a caridade curou as partes inflamadas
da irascibilidade, e o fluxo dos maus desejos foi estancado pela abstinência.
O anjo da Igreja de
Thmuis é uma expressão emprestada ao Apocalipse, que designa o chefe da Igreja
desta localidade. O termo “anjo” evoca talvez o fato de que Serapião, antes de
se tornar bispo de Thmuis, levou por muito tempo uma existência monástica,
primeiro como discípulo de Santo Antônio e depois como superior de uma
comunidade; ele foi amigo de santo Atanásio, citado precedentemente.
A metáfora da bebida
para designar a ciência ou contemplação espiritual já está presente em Monges 119: “Sangue de Cristo é a
contemplação dos seres, e quem o beber se tornará sábio por seu intermédio”.
Também em KG V, 13: “A nuvem
inteligível é a natureza racional a quem foi confiada por Deus dar de beber
àqueles que dormem longe dela” (os anjos têm como missão ensinar aos homens a
contemplação espiritual). Ainda in Prov
IX, 2: “A taça é a ciência espiritual que compreende as razões referentes aos
incorpóreos e aos corpos, o juízo e a providência” (ou seja, o conjunto da
contemplação espiritual); a taça na qual a Sabedoria despeja sua beberagem é
também interpretada como uma alegoria da contemplação dos corpos e dos
incorpóreos em KG V, 32 (ver capítulo
14).
A pureza do intelecto,
obtida pela impassibilidade, é uma condição de acesso para a contemplação
espiritual, e, inversamente, esta contribui para aperfeiçoar a purificação do
intelecto. Em KG III, 35, Evagro
afirma: “A ciência cura o intelecto, a caridade cura a irascibilidade e a
castidade a concupiscência”.
Capítulo 48
Medite
constantemente sobre as razões que dizem respeito à providência e ao juízo,
disse o grande mestre gnóstico Dídimo, e esforce-se por guardar a matéria na
memória; quase todos, com efeito, tropeçam aí. Você encontrará as razões
referentes ao juízo na diversidade dos corpos e dos mundos, e aqueles que
concernem à providência, nas disposições que nos fazem subir da malícia e da
ignorância até a virtude e a ciência.
Evagro utiliza aqui o
termo logoi no sentido de “razões”, como em in Prov. XXXI, 13:
“Retorce a lã e o linho[38]
a alma que medita sobre as razões referentes aos seres animados e inanimados ou
que examina as razões referentes à prática e à física”.
As razões referentes “à
providência e ao juízo” tratam de um elemento importante da metafísica
evagriana: elas correspondem às ideias que presidiram as “disposições” tomadas
por Deus, em sua “providência”, para tornar possível a salvação dos seres
racionais decaídos de seu estado primitivo, atribuindo a cada um, após o
“julgamento”, o corpo e o mundo que melhor lhe convém. Em in Ps
XCCCVIII, 16 Evagro faz a exegese do “livro de Deus[39]”
definindo-o como “a contemplação dos corpos e dos incorpóreos (...) Neste livro
estão inscritas as razões da providência e do juízo e por meio dele Deus é
conhecido como criador, sábio, providencial e juiz: (...) providencial, devido
a tudo o que contribui para nos levar à virtude e à ciência; juiz, por outro
lado, por causa dos diferentes corpos dos seres racionais, dos diversos mundos
e dos séculos que os contêm”.
Conhecer as razões da
providência e do juízo apresenta grandes dificuldades, e muitos “tropeçam aí”;
em Monges 132, Evagro diz que “as razões da providência são obscuras e
as contemplações do juízo são difíceis de entender”, e aos que não são capazes
mais vale ignorá-las do que mal compreendê-las.
Capítulo 49
O objetivo da
prática é purificar o intelecto e torná-lo impassível; o da física é de revelar
a verdade escondida em todos os seres; mas afastar o intelecto das matérias e
voltá-lo à Causa primeira, este é um dom da teologia.
Neste capítulo que
forma, com o seguinte, uma espécie de conclusão do conjunto do Tratado Prático e do Gnóstico, Evagro retoma a divisão
tripartite colocada desde o início naquele primeiro livro, ou seja: praktiké, physiké e theologiké.
O efeito da prática é
tornar impassível a parte passional da alma; mas seu objetivo é o de purificar
deste modo o próprio intelecto, a fim de permitir a este o acesso à
contemplação. O objetivo da física é a compreensão da verdade presente e oculta
em todos os seres criados. E o da teologia consiste em voltar o intelecto na
direção da Causa primeira, ou “ciência principal do todo”, “Bem primeiro que é
o princípio e causa de tudo”, “primeiro Soberano”, como encontramos em outras
versões arcaicas.
Gregório de Nazianze
afirmava em seu Discurso XXVIII, 13:
“Toda a natureza racional deseja Deus e a Causa primeira”; o próprio Evagro
utiliza uma expressão semelhante em Cartas
58: “É preciso que o intelecto, libertando-se de todas as representações,
chegue assim até aquele que é a causa e o pai de todos os inteligíveis”. Esta
graça é obtida como um “dom da ciência divina”, as “palavras que se referem à
divindade” ou a “visão de Deus”.
Ao ensinar a prática
para uns e as verdades gnósticas a outros,, o gnóstico visa purificar os
“impuros” e esclarecer os “puros”, de modo a torná-los aptos à teologia; mas o
acesso a esta não provém somente do ensinamento: ele supõe o dom da graça.
Visto assim, o capítulo configura uma conclusão mais adequada a este livro, que
trata essencialmente do ensinamento do gnóstico.
Capítulo 50
Mantendo
constantemente o olhar voltado para o arquétipo, esforce-se em desenhar as
imagens sem nada negligenciar daquilo que contribua para ganhar aquele que
caiu.
Segundo Gregório de
Nazianze, o homem não conhecerá a natureza de Deus senão “quando a imagem
alcançar o arquétipo”. O “olhar” evagriano evoca a passagem do Timeu de
Platão em que é dito que o demiurgo criou o mundo com os olhos voltados para o
Modelo eterno.
Mas ao invés de falar em
“sua imagem”, o que implicaria um convite ao aperfeiçoamento do próprio gnóstico
construindo em si mesmo a semelhança divina, Evagro fala em “as imagens”,
significando que o gnóstico deve desenhar a imagem de Deus nos seus discípulos.
O emprego do verbo
“ganhar” tem sua origem no Novo Testamento, num sentido figurado, como em
Mateus: “Se o seu irmão pecar, vá e mostre o erro dele, mas em particular, só
entre vocês dois. Se ele der ouvidos, você terá ganho o seu irmão[40]”;
também Paulo: “Embora eu seja livre em relação a todos, tornei-me o servo de
todos, a fim de ganhar o maior número possível. Com os judeus, comportei-me
como judeu, a fim de ganhar os judeus; com os que estão sujeitos à Lei,
comportei-me como se estivesse sujeito à Lei - embora eu não esteja sujeito à
Lei -, a fim de ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei. Com aqueles que vivem
sem a Lei, comportei-me como se vivesse sem a Lei - embora eu não viva sem a
lei de Deus, pois estou sob a lei de Cristo -, para ganhar aqueles que vivem
sem a Lei. Com os fracos, tornei-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me
tudo para todos, a fim de salvar alguns a qualquer custo.[41]”
A imagem refere-se aos intelectos “decaídos” da ciência: com seu ensinamento, o
gnóstico deve ajudá-los a se erguer de sua decadência e retornar ao estado
primordial, no qual eles foram criados à imagem de Deus; para tanto, é preciso
que ele tenha os olhos fixos no Modelo que é Deus, tornando-se, assim, teólogo.
Assim como o capítulo precedente, este apresenta a conclusão magistral deste
livro consagrado ao ensinamento do gnóstico.
Em alguns manuscritos
siríacos, aparece uma adição, ausente nas demais versões: “O monge perfeito
será chamado de cidade; perfeito será aquele que, graças a Cristo, foi
purificado, em seu corpo e em sua alma, e, conhecendo a si mesmo, exalta a
vontade de seu Criador”.
[1]
Utilizamos o termo “gnóstico” para traduzir o grego gnostikos, mas achamos melhor evitar, para traduzir gnosis, a palavra “gnose”, para não dar
arbitrariamente uma coloração gnóstica ao sistema de Evagro; preferimos usar o
termo “ciência”, com o qual devemos entender não a ciência racional, mas a
ciência espiritual, ciência espiritual das naturezas criadas que culmina da
ciência de Deus.
[2]
“Então Deus disse: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine
os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos
os répteis que rastejam sobre a terra». E Deus criou o homem à sua imagem; à
imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher.” (Gênesis, I,
26-27)
[3] A
influência de Aristóteles manifesta-se no final do capítulo 14, onde se nota
uma frase do início da Metafísica.
[4] Não
apenas na tradição filosófica helênica, mas também na tradição religiosa
judaica, certas exegeses não deveriam ser expostas diante de três pessoas,
outras diante de duas, algumas nem mesmo diante de nenhuma a menos que se trate
de um sábio capaz de entendê-las por si mesmo.
[5] Mateus, VII, 6.
[6] “Moisés voltou e desceu da montanha, com as
duas tábuas da aliança na mão, tábuas escritas nos dois lados, na frente e no
verso. As tábuas eram obra de Deus, e a escritura era feita por Deus, gravada
nas tábuas.” (Êxodo, XXXII, 15-16)
[7] Paráfrase de Provérbios, XXII, 2: “Rico e
pobre se encontram: foi Javé quem fez os dois.”
[8] Mestres
e discípulos, pg. 78, 30-35.
[9] Da
oração, 64.
[11]
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola: «O reino
dos Céus pode comparar-se a dez virgens, que, tomando as suas lâmpadas, foram
ao encontro do esposo. Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes. As insensatas,
ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo, enquanto as prudentes,
com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias. Como o esposo se demorava,
começaram todas a dormitar e adormeceram. À meia noite ouviu-se um brado: ‘Aí
vem o esposo; ide ao seu encontro’. Então, as virgens levantaram-se todas e
começaram a preparar as lâmpadas. As insensatas disseram às prudentes: ‘Dai-nos
do vosso azeite, que as nossas lâmpadas estão a apagar-se’. Mas as prudentes
responderam: ‘Talvez não chegue para nós e para vós. Ide antes comprá-lo aos
vendedores’. Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo: as que estavam
preparadas entraram com ele para o banquete nupcial; e a porta fechou-se. Mais
tarde, chegaram também as outras virgens e disseram: ‘Senhor, senhor, abre-nos
a porta’. Mas ele respondeu: ‘Em verdade vos digo: Não vos conheço’. Portanto,
vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora». (Mateus, XXV, 1-13)
[12] Kephalaia
Gnostika, IV, 25.
[13] Kephalaia
Gnostika, IV, 21.
[14]
“Quando alguém de vocês tem uma questão com outro, como ousam levar o caso para
ser julgado pelos pagãos e não pelos membros da comunidade? Então vocês não
sabem que os cristãos é que vão julgar o mundo? E se é por vocês que o mundo
vai ser julgado, seriam vocês indignos de julgar coisas menos importantes?
Vocês não sabem que nós haveremos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas da
vida cotidiana! No entanto, quando vocês têm processos desta vida para serem
julgados, vocês tomam como juízes pessoas que não têm autoridade na Igreja. Digo
isso para que vocês se envergonhem. Será que entre vocês não existe ninguém
suficientemente sábio para servir de juiz entre os irmãos? No entanto, um irmão
é intimado em juízo por outro irmão, e isso diante de infiéis! Só o fato de
existirem questões entre vocês já mostra que vocês falharam completamente. Não
seria melhor sofrer uma injustiça? Não seria melhor ser roubado? Ao contrário,
são vocês que roubam e cometem injustiça; e isso com os próprios irmãos!” (1 Coríntios, VI, 1-8)
[15] Kephalaia
Gnostika, II, 81.
[16] Eclesiastes,
III, 1; 17.
[19] Judas,
11.
[21] Números,
XXIV, 17.
[22] João XI, 49.
[23] Euloge
24, 1125 B.
[24] II Macabeus,
VI, 4.
[25] Mateus,
XXI, 12.
[26]
Abandono espiritual: para substituir o termo “derelição”, raro em português, e
que traduz o grego egkatáleipsis.
[27] “Nós
nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a
perseverança, a perseverança produz a fidelidade comprovada, e a fidelidade
comprovada produz a esperança. E a esperança não engana, pois o amor de Deus
foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.”
[28] Lucas,
XIV, 10.
[29] I Coríntios,
IV, 1.
[30] Ezequiel
XXVII, 25-28.
[31] Homilias
sobre o Gênesis X, 2.
[32] Cf. I Coríntios
IX, 27.
[33] Cf. Mateus
V, 24; Lucas, XII, 22.
[34] Cf. II Samuel
VI, 10-11.
[35] “Do
alto estende a tua mão, salva-me, livra-me das águas torrenciais, da mão dos
estrangeiros.”
[36] Cf. Mateus
XIII, 35.
[37] Cf. Êxodo XXVI, 35.
[38] Provérbios XXXI, 13.
[39] “Quando
eu era formado, em segredo, tecido na terra mais profunda, teus olhos viam as
minhas ações, e eram todas escritas no teu livro. Os meus dias já estavam
calculados, antes mesmo que chegasse o primeiro.”
[40] Mateus,
XVIII, 15.
[41] I Coríntios
IX, 19-22.