Evagro o Pôntico: O Gnóstico


Evagro o Pôntico


GNÓSTICO

OU
ÀQUELE QUE SE TORNOU DIGNO DA CIÊNCIA

Tradução do grego e notas

Antoine e Claire GUILLAUMONT
Tradução e adaptação
Tito Kehl
M M I X





A todos os mestres,
para retribuir e para transmitir.







AMARRA TEU BARQUINHO AO NAVIO DE TEUS PAIS











INTRODUÇÃO







1. RELAÇÃO ENTRE O GNÓSTICO E O MONGE





Na obra de Evagro, o Gnóstico segue ao Tratado prático ou O monge. Ele forma, junto com este tratado e com os Kephalaia gnóstica uma espécie de trilogia, como o próprio Evagro indica em sua Carta a Anatolios, que serve de prólogo ao Tratado Prático: “Vamos agora expor, sobre a vida prática e a vida gnóstica, não tudo aquilo que vimos e ouvimos, mas apenas o que aprendemos deles [os “velhos” ou anciãos] para dizê-lo aos outros; nós condensamos e dividimos o ensinamento prático em cem capítulos e o ensinamento gnóstico em cinquenta, dentre mais de seiscentos”. Também redigido na forma de kephalaia ou “capítulos” curtos, este livrinho de 50 capítulos, uma meia-centúria, faz de certo modo a transição entre o Tratado prático, composto por uma centúria, e as seis centúrias dos Kephalaia gnóstica, extensa obra para a qual parece servir de introdução. Assim como este, e diferentemente do Tratado prático, o Gnóstico não se conservou integralmente senão nas versões orientais: uma versão armênia e três versões siríacas, uma chamada de “comum”, uma segunda versão e uma terceira que é uma revisão da primeira; do texto grego original não subsiste mais do que um pequeno número de fragmentos que representam pouco mais da metade do livro.



A ligação entre o Gnóstico e o Tratado prático é muito estreita. Nos manuscritos da versão siríaca comum, editada por W. Frankenberg, o texto do Gnóstico segue-se imediatamente ao Tratado prático, a cuja numeração de capítulos dá continuidade; um único título, salvo pequenas variações, nomeia o conjunto: Ensinamento e instrução de Mar Evagro aos irmãos monges que estão no deserto. Esta disposição parece ter existido também na tradição manuscrita grega, pois os manuscritos que conservam a maior quantidade de extratos do Gnóstico os colocam na seqüência daqueles do Tratado prático, sem separação nem título; um deles introduz o conjunto sob o título de Diversos capítulos práticos e gnósticos.



Entretanto, o historiador Sócrates, no século V, conheceu estes dois livros sob a forma de dois tratados distintos; após haver citado alguns capítulos do Tratado prático ele conclui: “Eis o que Evagro disse literalmente em seu tratado intitulado O prático”; e ele acrescenta: “e no Gnóstico”, para introduzir as citações deste último. Mais adiante, ao fornecer uma lista dos livros de Evagro que conhece, ele escreve: “dentre os quais um é intitulado O monge ou Sobre a prática, e o outro O gnóstico ou Àquele que se tornou digno da ciência, em 50 capítulos”. Desta forma Sócrates apresenta a obra como dois livros distintos, cada qual com seu título, em especial o segundo. Este precioso testemunho é confirmado pelos manuscritos da segunda versão siríaca, que é provavelmente também do século V. Nesta, o Gnóstico não é precedido do Tratado prático e é introduzido por um título que corresponde exatamente à segunda parte do título fornecida por Sócrates, Àquele que se tornou digno da ciência. O livro é assim apresentado como um tratado independente, provido de um título próprio. Deste título, ou ao menos da primeira parte dele que é dada pro Sócrates, a própria versão comum conservou vestígios; de fato, em alguns manuscritos desta versão – em que, como vimos, o Tratado prático e o Gnóstico formam um único livro – lemos transportado para antes do capítulo 54 do Tratado prático, o título Livro do gnóstico. Mais do que isto, o título de Gnóstico conservou-se, de certa maneira, em muitos manuscritos desta versão, antes do primeiro capítulo do Gnóstico; podemos ler, no texto editado por Frankenberg: “os gnósticos e os práticos...” enquanto que o texto autêntico deste capítulo diz apenas: “Os práticos...”; o termo O gnóstico era primitivamente o título do livro, mas ele deixou de ser considerado assim quando os capítulos do Gnóstico foram numerados na sequência dos do Tratado prático e colocado no plural para poder ser integrado à sintaxe do primeiro capítulo. Na edição armênia, tal como foi editada por Sarghisian, os dois tratados são colocados sob um título comum: O gnóstico e o prático; mas o texto do Gnóstico vem na frente, sem numeração de capítulos, seguido, após um novo título – De Evagro – da Carta a Anatolios e do Tratado prático, cujos capítulos são numerados. Apesar do título em comum, os dois tratados são bem diferenciados.



Embora devam ser considerados como dois livros distintos, o Tratado prático e o Gnóstico não deixam de estar estreitamente ligados. Alguns capítulos fazem a transição de um para o outro: o capítulo 90 do Tratado prático, que consiste numa conclusão ao que foi provavelmente a primeira redação do livro, anuncia, depois das lágrimas e das penas da prática, as alegrias que a ciência trará ao gnóstico; por outro lado, os três primeiros capítulos do Gnóstico definem, por oposição, o “prático”, ou seja, aquele que percorreu o caminho descrito no livro precedente, e o “gnóstico”, que, graças à impassibilidade adquirida com a prática, tem acesso à ciência. Por outro lado, existem correspondências internas entre os dois livros: os capítulos 42 e 43 do Gnóstico, em que são definidos a tentação e o pecado do gnóstico, fazem eco aos capítulos 74 e 75 do Tratado prático, em que estão igualmente definidos a tentação e o pecado do “monge”, ou seja, daquele que ainda se dedica à prática; da mesma forma, os capítulos 89 do Tratado prático e 44 do Gnóstico se correspondem: ambos, referindo-se ao ensinamento de Gregório de Nazianze, definem respectivamente as virtudes do prático e as do gnóstico. Existe enfim, entre os dois livros, uma certa analogia de estrutura: o Tratado prático é formado por uma centúria, o Gnóstico por uma meia centúria apenas, mas o primeiro termina com uma dezena de capítulos que, com exceção do último, que serve de conclusão ao conjunto do tratado, consistem em apotegmas ou ditos de monges, destinados, ao que parece, a garantir, com a referência à tradição do deserto, a doutrina exposta no livro; do mesmo modo, no final do Gnóstico acham-se inseridos, antes dos últimos capítulos que formam a conclusão do livro, cinco capítulos compostos por citações, não mais de monges fornecendo um ensinamento prático, mas, dado o tema do livro, de teólogos que eram autoridades em matéria de ciência espiritual.



Todos esses indícios nos fazem pensar que o Gnóstico foi composto na sequência da redação dos cem capítulos do Tratado prático, mas antes de sua redação definitiva que incluiu o prólogo e o epílogo.



2. O ENSINAMENTO DO GNÓSTICO


Definição e função do gnóstico




A “prática” (praktiké) é definida como “o método espiritual que purifica a parte passional da alma”: ela visa a libertar a alma das paixões, portanto a buscar a impassibilidade, que é a condição necessária para entrar na vida gnóstica (gnostiké) e experimentar a “gnose[1]”, a ciência da contemplação espiritual. Através disto, o monge, de “prático”, torna-se um “gnóstico”.



Inicialmente empregada como adjetivo, a palavra gnostikos aparece em Platão que, no Político, dividia o conjunto das ciências em duas partes, opondo à ciência “prática” (praktiké epistemé), a ciência “gnóstica” (gnostiké epistemé); isto parece característico da tradição platônica e pitagórica, e é quase ausente em Aristóteles e nos estoicos que, ao praktikos opõem de preferência o teologikos. O emprego do termo como substantivo aparece com  referência àqueles a quem ainda hoje chamamos de “Gnósticos”, membros de seitas filosófico-religiosas dos séculos II e III, e de início foi mais especificamente aplicado a alguns dentre eles que se autodenominavam “gnósticos”, como o atesta santo Irineu. Depois o termo ampliou-se, aplicado a todos os sectários que pretendiam possuir a ciência por excelência, a “gnose”. São estes que santo Irineu combate em seu Adversus haereses: e a palavra adquiriu uma conotação pejorativa, passando a designar os aderentes de uma “pseudo-gnose”, uma “gnose falsamente denominada” (pseudonomos gnosis). Foi com Clemente de Alexandria que o termo gnostikos recebeu seu título de nobreza na literatura cristã, em face daqueles que se diziam falsamente “gnósticos”, o “verdadeiro gnóstico”, vale dizer o cristão que, pela prática das virtudes e pelo estudo, alcançou um determinado conhecimento espiritual que os simples fiéis, que se conservam dentro dos dados da fé, não compartilhavam. Rara em Orígenes, que preferia a ela a palavra teleioi, “perfeitos”, para designar esta mesma categoria de cristãos, palavra que foi recolhida diretamente por Evagro depois que se tornou corrente na literatura monástica. O gnóstico de Evagro é um broto, com filiação direta, do de Clemente de Alexandria.



Ora, assim como o gnóstico de Clemente, o de Evagro tem como função básica o ensinamento. Quando se torna um “gnóstico”, o monge não mais deve preocupar-se simplesmente consigo mesmo e com sua própria purificação; ele deve vir em auxílio aos demais, ensinar aqueles que ainda estão na prática o modo de se purificarem das paixões e, por outro lado, iniciar nos mistérios da ciência espiritual aqueles que, já suficientemente purificados, tornaram-se dignos dela, ou seja, como diz Evagro, o gnóstico será “sal” para os primeiros e “luz” para os segundos. O gnóstico será, portanto, um mestre, um doutor. O tema deste pequeno livro é precisamente o ensinamento do gnóstico. Em que condições ensinará o gnóstico? O que ensinará o gnóstico? Como ensinará o gnóstico? Estas são as questões respondidas pelo livro.





Em que condições ensinará o gnóstico?





A vida gnóstica pressupõe a aquisição da impassibilidade, ou no mínimo de uma certa impassibilidade. Evagro possui, de fato, uma concepção da impassibilidade com muitas nuanças: para ele, esta comporta graus, desde a “pequena impassibilidade”, ou “impassibilidade imperfeita”, atingida quando foram vencidas as paixões provindas da parte concupiscente da alma, ou “paixões do corpo”, até a “impassibilidade perfeita”, obtida somente com a vitória sobre todas as paixões, inclusive sobre as que provêm da parte irascível, ou “paixões da alma”. A vida gnóstica começa quando se atinge os umbrais da impassibilidade e se desenvolve na medida em que se obtém progresso em direção à impassibilidade perfeita, que a bem da verdade jamais é obtida integralmente na condição humana, pois ela é propriamente angélica. A prática, vale dizer a purificação da alma, prossegue assim, numa certa medida, na vida gnóstica. O gnóstico deve inclusive continuar a cultivar as virtudes da vida prática, prosseguindo com os exercícios que as desenvolvem; permanecem válidas para ele as recomendações que Evagro dirigia ao prático e ao iniciante em seu Bases da vida monástica: evitar as distrações trazidas pela frequentação de muita gente (capítulo 10), evitar as preocupações (cap. 10) – inclusive quanto ao comer e vestir (cap. 38) – , domar o corpo por meio de um regime severo, como o fazia são Paulo (cap. 37). Mas, se “todas as virtudes tocam o caminho do gnóstico” (cap. 5), este deve acima de tudo, para se manter e progredir na via gnóstica, purificar-se das paixões que provêm da parte irascível da alma, e em primeiro lugar da própria cólera, que é o principal obstáculo à ciência espiritual: ela se opõe a esta como o erro se opõe à ciência “exterior”, racional (cap. 4). Desta forma, o gnóstico deve ser isento “de cólera, de rancor e de tristeza” (cap. 10), sendo a tristeza uma paixão estreitamente ligada à cólera. Para tanto, ele evitará, em particular, os processos, mesmo que ele deva sofrer injustiça (cap. 8); pela mesma razão, ele permanecerá insensível às calúnias e aos críticos, sabendo que estas coisas são tentações dos demônios que procuram suscitar nele a raiva e o rancor para impedi-lo de saborear a ciência (cap. 32). Ele deve, portanto, alcançar a ausência de cólera (aorgésia) (cap. 5); este estado apaziguado da parte irascível é o que Evagro chama em outro lugar de “mansidão”, que está muito próxima da caridade. Esta, que é chamada de “filha da impassibilidade” e “porta da ciência”, é a virtude por excelência do gnóstico; para Evagro, com efeito, como para Clemente de Alexandria, impassibilidade, caridade e ciência estão estreitamente unidas. A caridade é em primeiro lugar a esmola: o gnóstico não pode dispensá-la, mas sua maneira de exercer a esmola consiste precisamente no ensinamento (cap. 7). Assim ele satisfará o dever de caridade ensinando, mas ensinando de modo desinteressado, e não “em vista do ganho, do bem estar ou de uma glória passageira”, caso em que ele seria semelhante aos mercadores expulsos do Templo (cap. 24). Afável e acolhedor para com os que vêm a ele – mas sem condescendência excessiva, para não destruir o equilíbrio das virtudes (cap. 6) – ele não terá outro objetivo que o de conduzir os outros pela via da salvação, ensinando-lhes a verdade (cap. 22). Toda busca, com efeito, inspirada por alguma paixão ou que não é feita tendo apenas o bem em vista só pode desembocar na “falsa ciência” que é por excelência o pecado do gnóstico (cap. 43).





O que ensinará o gnóstico?





Como vimos, o gnóstico não deixará de ensinar aos que ainda estão na prática como eles deverão continuar purificando suas paixões (caps. 3 e 31); mas a função do gnóstico, tal como é apresentada neste livro, é acima de tudo ensinar, àqueles que se tornaram capazes de a receber, a “gnose” ou ciência espiritual que ele próprio adquiriu. Esta ciência, ou contemplação espiritual, à qual se chega pela impassibilidade (cap. 45) e também pela graça de Deus (cap. 4), permite compreender as naturezas criadas, corpóreas e incorpóreas, visíveis e invisíveis, naquilo que Evagro – emprestando o termo aos estoicos – denomina seus logoi, palavra que, na versão siríaca comum é traduzida, no mais das vezes, de modo literal, por “palavras”, e mais corretamente, na versão revisada, por “intelecções”. O logos de uma natureza, com efeito, é seu princípio a um tempo ontológico e explicativo, sua razão de ser e sua razão; e foi por este motivo que traduzimos logos por “razão” (caps. 4, 15, 25, 40, 44); contemplar o logos de uma natureza, é captá-la na ideia que presidiu sua criação e portanto conhecê-la em sua essência. Dentre os logoi existem aqueles que Evagro chama de “logoi da providência e do juízo”; são os que se referem à constituição presente do mundo e às disposições tomadas por Deus para assegurar a salvação de todos os seres racionais, conforme as grandes teses da cosmologia e da escatologia evagrianas (caps. 36 e 48)



Da ciência espiritual provém ainda a exegese das Escrituras, que ocupa um lugar de destaque no ensinamento do gnóstico e à qual são consagrados diversos capítulos do livro. Assim como a ciência das naturezas visava descobrir suas “razões” para além de sua aparência visível, também a exegese que Evagro, fiel discípulo de Orígenes, recomenda a seu gnóstico, consiste em descobrir, para além do sentido direto do texto escriturário, seu sentido espiritual ou alegórico. O gnóstico tentará assim estabelecer o sentido real do texto, levando em conta, como já o recomendava Orígenes, os “costumes” das Escrituras (cap. 19), determinando a que ordem ele pertence, se à da “prática” ou ética, se da “física” ou ciência das naturezas, se da “teologia” ou ciência de Deus, conforme a divisão tripartite familiar a Evagro (cap. 18); ele deverá tomar cuidado, porque o sentido alegórico de um texto pode não ser da mesma ordem que o sentido literal (cap. 20). Evagro impõe entretanto alguns limites à exegese alegórica: ele recomenda ao gnóstico não buscar um significado espiritual em todas as palavras reportadas pelo texto bíblico (cap. 21) e a não pretender interpretar alegoricamente os menores detalhes do relato, o que o exporia ao ridículo (cap. 34).







Como ensinará o gnóstico?





Em seu ensinamento o gnóstico não terá outro objetivo que não a salvação daquele a quem está encarregado de instruir; ele não deverá ensinar portanto nada que não sirva a este exclusivo fim. Mas isto varia conforme a situação de cada um em relação ao progresso espiritual: nem toda verdade é boa para ser dita a qualquer um a qualquer hora. Da mesma forma o gnóstico, segundo a regra de ouro de qualquer pedagogia, deverá se adaptar ao nível de cada um; para tanto é preciso que ele conheça de forma exata o estado, o tipo de vida, de seus auditores, a fim de poder “dizer a cada um aquilo que lhe é útil” (cap. 15). Enumerando as virtudes próprias do gnóstico, segundo o que aprendeu de seu mestre Gregório de Nazianze, Evagro define a justiça como a virtude cujo papel é o de “distribuir a cada um segundo seu nível”; para tanto, o gnóstico deverá expor claramente aquilo que for útil aos “simples”, os que ainda estão no início da vida espiritual, mas irá formular de maneira obscura, até mesmo enigmática, as doutrinas que podem ouvir apenas os que estão avançados o bastante (cap. 44). A todos, notadamente aos seculares e aos jovens monges, convém o ensinamento da ética ou “prática”, que visa a purificação da alma e a vitória sobre as paixões; mas também aí existem graus: aos jovens o gnóstico ensinará como vencer as paixões que, neles, provêm sobretudo da concupiscência e, aos mais idosos, como lutar contra as que vêm principalmente da parte irascível da alma (cap. 31). Mas aquilo que concerne à “física”, ou seja, à ciência espiritual das naturezas, e à teologia, não convém expor aos que ainda são iniciantes aos jovens e aos seculares nada além do suficiente para sua salvação (caps. 12 e 13). O ensino destas matérias é reservado àqueles que, tendo obtido suficiente impassibilidade, são capazes de a receber; discutir aquilo que pertence à ciência espiritual quando ainda se está sujeito às paixões, é assemelhar-se a um doente pretendendo ensinar sobre saúde (cap. 25). Pior ainda, isto pode ser perigoso, pois uma verdade mal compreendida pode ser causa de queda (id.). As doutrinas referentes “às razões da providência e do juízo”, vale dizer as teses da metafísica evagriana, da cosmologia e da escatologia, não deverão ser ensinadas nem aos seculares nem aos jovens, pois eles não as poderão entender, e, mal compreendidas, poderão se tornar um convite ao relaxamento: quem não provou da ciência espiritual não pode compreender, com efeito, que a ignorância seja, para os malsucedidos, um castigo (36). Desta forma o gnóstico vigiará para que estas doutrinas não sejam expostas diante dos jovens e também para que os livros que as expõem não caiam em suas mãos (cap. 25). Por conseguinte ele observará, em seu ensinamento, uma rigorosa gradação, de modo a permanecer sempre no nível de seu auditório; ele deverá colocar-se mesmo um pouco abaixo deste nível, de modo a não elevar-se senão quando for estimulado por seus auditores (cap. 29); se for interrogado a respeito de uma questão que ele estima não dever responder, ele fingirá ignorância, o que, no caso, não será considerado mentira (cap. 23).  Ele deverá organizar seu ensinamento em dois tempos: o a exposição e o da discussão, e não admitirá a esta senão os que estiverem suficientemente avançados, pois toda discussão sobre temas que ultrapassam os participantes só pode ser coisa de polemistas ou de heréticos (cap. 26).



O gnóstico usará, portanto, de prudência em seu ensinamento, silenciando sobre os temas mais elevados da ciência espiritual, ou ao menos reservando-os àqueles capacitados e exprimindo-os em termos obscuros e velados que só eles entendam, assim como as próprias Escrituras só revelam as verdades mais elevadas sob a forma de alegorias. Alguns temas serão reservados a poucos: assim, o sentido simbólico da ação eucarística só será revelado aos padres, que são em princípio gnósticos, e mesmo assim apenas aos melhores (cap. 14). Sobre a ciência de Deus ou teologia, mais ainda do que sobre a ciência das naturezas, impõe-se a reserva. Se a ciência das naturezas, assim como a que se aplica às realidades da prática, deve necessariamente recorrer a definições (cap. 17), quando se trata de Deus, não devemos tentar defini-la nem falar dela irresponsavelmente (cap. 27); nada do que se aplica às naturezas criadas lhe convém; o silêncio se impõe diante do Inefável (cap. 41). Entretanto o próprio gnóstico deve, ultrapassando a ciência das naturezas – a física – alcançar, numa certa medida, a teologia, que voltará seu olhar para a Causa primeira, pois é mantendo o olhar voltado para o Arquétipo divino que ele modelará as “imagens” que são os intelectos daqueles a quem ele encarregou de ensinar (cap. 49 e 50).





Situação do ensino no meio monástico





Em que situação concreta podemos imaginar o ensinamento do gnóstico como descrito por Evagro? Talvez devamos, para tanto, em primeiro lugar nos lembrarmos do gênero de vida dos monges das Kellia, dentre os quais vivia Evagro; este gênero de vida, de tipo semi-anacorético, era também o dos monges de Nitria e Sceta, que conhecemos principalmente pelos Apophtegma Patrum; estes dão a conhecer com precisão o ensinamento, essencialmente oral, que era transmitido neste meio monástico. O apotegma é uma resposta, breve e concisa, dada por um ancião, um “velho” como se dizia, a um jovem monge que vem procurá-lo e lhe faz a pergunta habitual: “Diga-me uma palavra: como poderei ser salvo?” O ensinamento dado e transmitido visa portanto essencialmente a salvação, assim como o que é dado pelo gnóstico de Evagro, e é formulado num apotegma curto, como os capítulos de Evagro. No mais das vezes trata-se de um ensinamento individual, mas vemos às vezes um grupo de monges em consulta a um famoso ancião; há ocasiões em que o ancião faz uma verdadeira conferência, como a exposição feita por Paphnúcio na presença de Paládio, Albinus e do próprio Evagro, sobre a delerição, ou abandono espiritual, do capítulo 47 da Histoire lausiaque, à qual parece fazer eco o capítulo 28 do Gnóstico. Além das visitas que os solitários podiam fazer uns aos outros durante a semana, eles tinha ocasião de encontrar-se durante as sinaxes dos sábados e domingos e, nestas oportunidades, os jovens monges tinham chance de ouvir as conferências espirituais deitas por este ou aquele ancião. A crermos no longo relato da vida Evagro conservada em copta, ele próprio tinha este costume: aos sábados e domingos, os irmãos reuniam-se ao seu redor para interrogá-lo, noite adentro. A mesma biografia relata que, a cada dia, ele recebia em sua cela de cinco a seis pessoas que vinham de longe escutar seus ensinamentos. Sabemos por Paládio, por outro lado, que se constituiu nas Kellia uma comunidade ao redor de Evagro e de seu amigo Ammonius que era chamada de “a companhia de Evagro e Ammonius”, ou simplesmente “a companhia do bem-aventurado Evagro”, ou ainda a “comunidade, synodia, a fraternidade, etaireia, de Evagro”; desta comunidade, Evagro desponta como sendo o mestre, didaskalos, como o chama Paládio que foi seu discípulo. É plausível que Evagro tenha lhe ministrado algum ensinamento: o próprio Paládio menciona o ensinamento, didaskalía, de Evagro, que era mesmo objeto de crítica por parte de alguns monges; estes críticos visavam a exegese alegórica preconizada por Evagro e por meio da qual ele fundamentava nas Escrituras sua doutrina, em particular as grandes teses de sua metafísica; isto se deu por ocasião da querela que opôs, àqueles a quem os adversários chamaram “origenistas”, os que eram ditos “antropomorfistas”, porque atinham-se a uma exegese literal da Escritura, especialmente do texto[2] em que Deus cria o homem “à sua imagem e semelhança”.







Situação do ensino na tradição escolar





Podemos assim encontrar no Gnóstico, apesar de ser difícil determiná-la concretamente, a evocação de um ensinamento que Evagro ministrava no deserto nas Kellia; podemos imaginá-lo na situação evocada por alguns capítulos, em que vemos o gnóstico dar um ensinamento seja a monges vindos de longe para vê-lo (cap. 35), seja a ouvintes sentados em círculo ao seu redor, numa atmosfera familiar da qual risadas e brincadeiras não estavam excluídas (caps. 29 e 34). Mas o livro deve ser visto desde uma perspectiva mais ampla, a da tradição escolar e erudita que o próprio Evagro recebeu. Infelizmente, estamos pouco informados sobre a formação escolar recebida por Evagro, cuja obra testemunha uma profunda cultura retórica e filosófica. Paládio, no capítulo de sua História lausíaca consagrado a Evagro, menciona apenas as relações deste com Basílio e com Gregório de Nazianze, que ele conheceu provavelmente, ainda adolescente, no tempo em que os dois amigos passaram juntos em Annésoi, por volta de 360, no Ponto, não distante de Ibora, aonde nascera Evagro. O próprio Evagro designa Gregório de Nazianze como seu mestre: no Gnóstico ele expõe os ensinamentos recebidos dele. Sozomeno está, portanto, bem informado, quando afirma que Evagro “foi instruído por Gregório de Nazianze na filosofia e nas ciências sagradas”. É provável que também sua formação em retórica tenha igualmente provindo dele, pois sabemos que Gregório exerceu por algum tempo, depois de seu retorno de Atenas, as atividades de reitor. Podemos imaginar que ele beneficiou Evagro com toda a cultura que adquiriu nas escolas em que estudou sucessivamente, primeiro em Cesaréia na Capadócia, célebre pro seus professores, depois na Cesaréia da Palestina, na escola fundada por Orígenes no século anterior, e enfim em Atenas. O texto do Gnóstico atesta que Evagro conhecia bem, não somente a obra dos grandes teólogos cristãos, aos quais ele se refere em seu livro, a começar pelo próprio Gregório de Nazianze e Basílio (caps. 44 e 45), e mais Atanásio, Serapião de Thmuis e seu contemporâneo Dídimo (caps. 46, 47 e 48) – aos quais podemos acrescentar Clemente de Alexandria e Orígenes, cuja influência é perceptível em muitos capítulos – como também a dos filósofos neo-platônicos, Plotino e sobretudo Porfírio, de quem ele parafraseia, no capítulo 41, o início do Isagogo, que se tornara um manual de ensinamento escolar tradicional[3]; a própria forma de kephalaion que ele adota neste livro, como em alguns outros, é emprestada à tradição escolar e ao próprio Porfírio.



A influência desta tradição escolar, a um tempo pagã e cristã, é percebida não apenas na forma, mas no conteúdo mesmo do livro. O lugar importante reservado à exegese configura-se como um traço característico do ensinamento: exegese dos mestres fundadores de escolas na filosofia pós-clássica, exegese do texto bíblico entre os teólogos cristãos. Por outro lado, que o mestre deva adaptar seu ensinamento aos ouvintes, não ensinando indiferentemente tudo a todos, mas reservando certas matérias ou explicações àqueles que as podem entender, é um princípio da pedagogia tradicional, ao menos desde Platão[4]. Isto se tornou um lugar-comum na tradição neo-platônica, na qual, à herança platônica, misturou-se a influência do pitagorismo e das religiões de mistérios: as mais altas verdades não devem ser expostas senão diante dos que possuem as disposições requeridas, ou seja, os que estão suficientemente purificados, para recebê-las, que são em pequeno número (oi oligoi) em relação à multidão (oi polloi); daí as precauções que deve tomar o mestre, como um recurso a um certo esoterismo. Esta atitude foi a de dois teólogos cuja obra era familiar a Evagro, Clemente de Alexandria e Orígenes. Clemente, invocando em primeiro lugar o exemplo das Escrituras e depois os ensinamentos de Platão, Pitágoras e outros, afirma que nem tudo deve ser entregue sem reservas a qualquer um; a exemplo do Pedagogo divino, o mestre que é o gnóstico, usando seu discernimento, formulará de modo velado certas verdades e será responsável pela queda daqueles a quem tiver ensinado verdades que eles não podiam compreender. Do mesmo modo Orígenes é da opinião que alguns ensinamentos devem ser reservados aos “perfeitos” e mantidos escondidos das massas, que não os poderiam compreender; assim acontece, por exemplo, com a doutrina referente à entrada das almas nos corpos ou o castigo dos pecadores no além; existe, de fato, perigo, não apenas em mentir, mas também em dizer a verdade a quem não está preparado para entender: não se deve “atirar pérolas aos porcos” nem “dar aos cães as coisas santas”[5]; do mesmo modo, aquele que teve acesso aos mistérios, “deverá ter a sobriedade na boca e saber a quem, quando e como convém falar dos mistérios divinos”. Encontramos uma atitude análoga entre os mestres imediatos de Evagro, Basílio e sobretudo Gregório de Nazianze. Em seu Tratado do Espírito Santo, Basílio desenvolve a idéia, herdada de Clemente e Orígenes, de que existe, na Igreja, ao lado do ensinamento escrito destinado a todos, um ensinamento que é transmitido oralmente e que deve ser reservado a um pequeno número de iniciados, seguindo o exemplo de Moisés que só abria o acesso do santuário aos mais puros, deixando os profanos fora do recinto sagrado. Em seu Discurso, 28, Gregório de Nazianze explica o que deve ser o ensinamento referente às coisas divinas parafraseando o relato da teofania de Êxodo, 24: apenas Moisés é convidado a penetrar na nuvem para conversar com Deus; Aarão e os anciãos que o acompanhavam permaneceram retirados sobre os flancos da montanha, conforme o grau de pureza de cada um; quanto aos impuros, eles ficaram no pé da montanha ou mesmo foram mantidos à distância; ele acrescenta que as tábuas trazendo os mandamentos dados por Deus a Moisés eram escritas dos dois lados[6]: um lado, a face visível, era para a multidão que ficou aos pés da montanha, enquanto o outro, a face oculta, era para os poucos que subiram até o cume da montanha.



A consequência prática desta teoria foi a organização do ensino em dois graus: um destinado aos mais numerosos, que não realizaram um purificação suficiente, ou, em termos evagrianos, que não adquiriram uma perfeita impassibilidade, e outro, superior, reservado àqueles puros o bastante para serem capazes de compreendê-lo e recebê-lo. Acima do ensino propedêutico vinha um destinado a discípulos escolhidos, que o mestre considerava suficientemente preparados e capazes de segui-lo proveitosamente; neste nível, os discípulos possuíam um papel mais ativo, pois eram convidados pelo mestre a fazer perguntas, e as lições tomavam a forma de uma busca (zétesis) feita em comum: assim procedia Plotino, a exemplo de seu mestre Ammonius, segundo o testemunho de Porfírio, que aliás ressalta que não era sem alguma desordem que isto acontecia. Assim faziam Orígenes e Clemente de Alexandria. Temos o direito de pensar que este era também o método adotado por Evagro, a julgar pelos conselhos que ele dá ao seu gnóstico a este respeito: o método consistia em convidar os que fossem capazes de se tornar, por sua vez, gnósticos também – e apenas estes – para a busca e a discussão os dogmata (cap. 35), vale dizer sobre pontos da doutrina deixados à livre escolha, e sobre os textos das Escrituras, que, de acordo com a exegese alegórica, pudessem ser interpretados de diferentes modos.







3. A COMPOSIÇÃO DO LIVRO





A composição do Gnóstico parece bastante livre e não encontramos nela a ordenação ou a progressão que pudemos perceber no Tratado prático. Uma leitura mais atenta permite entretanto discernir, na série de cinquenta capítulos que o constituem, um certo agrupamento por temas:



Capítulos 1 a 3: capítulos introdutórios, cujo objetivo é colocar a função própria do gnóstico, o ensinamento;



Capítulos 4 a 11: as condições requeridas para que o gnóstico possa preencher as funções de mestre, e as virtudes que ele deve adquirir;



Capítulos 12 a 15: necessidade do gnóstico de adaptar-se aos seus ouvintes;



Capítulos 16 a 21: a matéria do ensinamento, principalmente a exegese;



Capítulos 21 a 36: o comportamento que o gnóstico deve observar em seu ensinamento;



Capítulos 37 a 43: vigilância contra as tentações e os pecados aos quais está exposto o gnóstico;



Capítulos 44 a 48: citações de teólogos que servem de testemunho em favor das linhas mestras do livro;



Capítulos 49 e 50: Capítulos de conclusão.



Os próprios capítulos são independentes uns dos outros, como é típico dos kephalaia; eles são de tamanho variável, de duas a doze linhas, e apresentam, quanto à sua forma ou à natureza do seu conteúdo, uma grande variedade.









GNÓSTICO



OU



ÀQUELE QUE SE TORNOU DIGNO DA CIÊNCIA











N.T.: Os comentários ao texto de Evagro são de Antoine e Claire Guillaumont e foram sintetizados, excluindo-se as considerações puramente linguísticas, que não apresentam interesse para o entendimento a que nos propusemos aqui.





Capítulo 1





Os práticos compreenderão as razões práticas, mas as coisas gnósticas somente os gnósticos verão.





A oposição e a distinção entre os práticos e os gnósticos é frequente em Evagro: “O prático é o artesão da separação, o gnóstico o auxiliar da sabedoria” (KG, V, 65); “O gnóstico é um trabalhador que recebe seu as´lario no dia; o prático é um trabalhador que aguarda o seu salário” (Skemmata, 32-33); “O gnóstico e o prático se encontraram; no meio deles está o Senhor[7]” (Monges, 121).



A questão central do capítulo está na oposição entre os dois verbos “compreenderão” e “verão”. O gnóstico é essencialmente um contemplativo, theoretikos, termo que em Evagro frequentemente é oposto a praktikos: “Quando o intelecto está na prática, ele permanece nos conceitos (noémasin) deste mundo; mas quando ele atinge a ciência (gnosei), ele vive na contemplação (theoria)” (Skemmata, 20).





Capítulo 2





O prático é aquele que apenas adquiriu a impassibilidade da parte passional de sua alma.





O prático visa apenas a adquirir a impassibilidade, que o ingresso na vida gnóstica supõe adquirida. A atividade do prático exerce-se assim somente sobre si mesmo, enquanto que a do gnóstico será exercida em função dos demais, como o demonstra o capítulo seguinte. Compare-se esta definição do prático com o Tratado prático, 78: “A prática é o método espiritual que purifica a parte passional da alma”. O prático é normalmente aquele que se dedica à prática, mas em Evagro é especialmente aquele que chegou ao termo da prática, tendo obtido a impassibilidade, ou, no mínimo, a “pequena impassibilidade”.







Capítulo 3





O gnóstico é aquele que faz o papel de sal para os impuros e de luz para os puros.





As palavras que Jesus dirigiu aos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra (...) vós sois a luz do mundo”, era, segundo Irineu, aplicada pelos gnósticos valentinos aos “pneumáticos”, e segundo Clemente de Alexandria, aos “eleitos”, os gnósticos, distintos dos simples fiéis. Evagro parece ser o primeiro a distinguir, no gnóstico, os papéis de sal e de luz.



O símbolo da luz, aplicada ao gnóstico, é freqüente em Evagro: “O intelecto que se despojou das paixões torna-se inteiro como a luz, porque é iluminado pela contemplação dos seres” (K.G., V, 15); “A ciência de Deus é luz (lamprótes, mesmo termo do Salmo) e aqueles que dela participam são denominados luzes” (in Ps., LXXXIX, 17); compare-se com Clemente de Alexandria: “O gnóstico quer ser todo luz” (Str., VII, XII, 79, 5). O gnóstico será essencialmente um professor, um guia: ele ensinará a uns a prática, como se purificar das paixões, e aos outros, que já alcançaram a pureza necessária, as doutrinas da gnose. Este é o objeto do livro.





Capítulo 4





A ciência que nos chega do exterior esforça-se em fazer conhecer as matérias por intermédio das razões; mas aquela que nos chega da graça de Deus apresenta diretamente os objetos ao espírito, e, observando-os, o intelecto acolhe suas razões. À primeira se opõe o erro, à segunda a cólera e a irascibilidade e tudo o que nasce delas.





Evagro utiliza a expressão “ciência que nos chega do exterior” para designar a ciência profana. A oposição entre esta ciência e a contemplação espiritual que vem de Deus aparece muitas vezes em Evagro, como, por exemplo, no capítulo 45 deste tratado.



A cólera e a irascibilidade são os principais obstáculos à contemplação, como Evagro explicita em Pensamentos, 24-26: “Que ele domine sua irascibilidade e se ponha em guarda contra os pensamentos que dela nascem, a saber, os que surgem por efeito da suspeita, da aversão e do ressentimento, os quais, mais do que tudo, cegam o intelecto”.







Capítulo 5





Todas as virtudes abrem o caminho ao gnóstico, mas acima de todas está o domínio da cólera. Com efeito, aquele que encontrou a ciência e que se deixa levar facilmente pela cólera é semelhante a alguém que crava em seus olhos uma ponta de ferro.





Aqui começa uma série de sete capítulos sobre as virtudes que o gnóstico deve manter. Evagro insiste especialmente sobre os perigos representados pela cólera. O domínio desta é chamado de aorgesia (literalmente, não-cólera), vocábulo de origem aristotélica e estóica, presente na Vida de Antônio (17, PG 26, 869B). Esta virtude, para Evagro, identifica-se com a doçura e a mansidão (praýtes), definida como “ataraxia da parte irascível”, e acha-se muito próxima da caridade, virtude por excelência do gnóstico. Nas Cartas, 27, Evagro diz que a doçura é a “mãe da ciência”.



O gnóstico está particularmente exposto à cólera em suas atividades de ensinamento: “Não se deixe levar pela cólera contra um discípulo que falhou, pois não é bom que você fira a si mesmo antes de curar alguém; com toda a paciência, reoriente-o para o bem. Com efeito, o médico cura o doente, mas não se irrita contra o que adoeceu involuntariamente. Quando o médico é incisivo, ele faz isto sem cólera; que o mestre que repreende não misture sua irritação com a reprimenda[8]”.



Os monges que se deixam levar pela cólera são como quem fura os próprios olhos com uma ponta, pois a cólera literalmente cega o intelecto: “Aquele que se torna colérico (...) é semelhante a alguém que pretende ter uma visão penetrante e que queima os próprios olhos[9]”.





Capítulo 6





Que o gnóstico permaneça firme quando usar de condescendência, de medo que, sem que ele se dê conta, a condescendência se torne para ele um hábito; e que ele se esforce para praticar de forma equilibrada e constantemente todas as virtudes para que, nele também, elas sigam-se umas às outras, pois o intelecto é naturalmente traído por aquela que falhar.





Se o gnóstico não deve se deixar levar pela cólera, ele tampouco deve conduzir-se por uma excessiva indulgência. A palavra “condescendência” (sygkatábasis) designa comumente a condescendência de Deus em relação aos homens; aqui, trata-se da condescendência, da indulgência do gnóstico em relação àqueles de quem ele está encarregado. Normalmente, a condescendência é recomendada ao mestre, mas Evagro não quer que ela se torne um hábito, como diz Clemente de Alexandria: “É preciso que (...) o gnóstico seja firme na complacência, a fim de que esta, contra sua vontade, não se torne um hábito[10]”.



Ao explicar o encadeamento das virtudes, Evagro utiliza-se de mais um termo estóico (akoloythía), reforçando que o gnóstico deve constantemente trabalhar sobre si mesmo, tanto quanto deve vigiar para manter este encadeamento entre seus discípulos; uma excessiva condescendência romperia esta harmonia. O próprio Evagro afirma: “É a tétrade das virtudes; se elas se acharem na plenitude e em igualdade, o intelecto não será traído (prodothésetai)” (Da oração, 1)







Capítulo 7





O gnóstico praticará sempre a esmola e estará pronto a ser benemerente. E, se lhe faltar dinheiro, ele colocará em ação o instrumento de sua alma. Pois, de qualquer modo, a esmola está em sua natureza, coisa que faltou às cinco virgens cujas lâmpadas se apagaram.





O instrumento da alma do gnóstico é seu próprio corpo; esta é uma expressão aristotélica muito empregada por Evagro, talvez significando o trabalho manual. A esmola designa portanto não apenas aquela propriamente dita (eleos), mas também o trabalho dedicado ao próximo, como por exemplo o serviço prestado aos enfermos. Trata-se aqui da caridade, que o gnóstico deve exercer ao mesmo tempo em que ensina.



Em Virgem, 43, Evagro glosa a parábola das virgens prudentes e das virgens insensatas[11]: “A lâmpada das virgens sem misericórdia se extinguirá e elas não verão a chegada do esposo”. Também Virgem, 17: “Não dê as costas ao pobre na hora de sua aflição e o azeite jamais faltará à sua lâmpada”. A misericórdia tem assim o azeite como seu símbolo, que se apóia inclusive na própria estrutura das duas palavras gregas eleos e elaion. Assim como o azeite mantém a luz da lâmpada, a misericórdia alimenta a ciência, simbolizada pela luz: “A luz que brilha nos templos santos é o símbolo da ciência espiritual, que é alimentada pelo azeite do santo amor”[12]. Veja-se também Cartas, 27, onde Evagro diz a respeito do abstinente a quem falta caridade que ele é “semelhante à virgem insensata que foi excluída da câmara nupcial porque, por falta de azeite, sua lâmpada extinguiu-se. Eu chamo de lâmpada ao intelecto que foi criado para receber a luz benfazeja, mas que, devido à sua dureza, decaiu da ciência de Deus; e aonde falta o azeite, a cólera predomina”. Finalmente, o azeite simboliza a própria ciência essencial, aquele com a qual Cristo foi “ungido”[13].







Capítulo 8





É uma desonra para o gnóstico envolver-se num processo, seja como vítima seja como autor de uma injustiça; se for a vítima, é porque não pode suportar, e, se for o autor, é porque cometeu uma injustiça.





Alerta contra os processos, como em Cartas, 33 e 60, em que Evagro condena aqueles que se envolvem em processos por amor aos ganhos. Aqui, porém, trata-se especificamente do gnóstico: Evagro critica aqueles que, tendo praticado a renúncia e desejando alcançar a ciência, “enfrentam-se a golpes de processos com seus próximos por causa de dinheiro e bens a fim de distribuí-los aos pobres”; ao agir assim, “eles incendeiam sua irascibilidade com o dinheiro para em seguida tentar aplacá-la com o dinheiro” –  ou seja, dando esmolas. Eles assemelham-se assim a quem “fura os olhos com uma ponta para aplicar o colírio”. Basílio, nas Regras Gerais, IX, 2, desaconselhava processar aos parentes consanguíneos que nos quisessem lesar. Os manuscritos fornecem muitos exemplos de processos nos meios monásticos. Em Stromata, VII, XIV, 84, 5, Clemente de Alexandria repete São Paulo[14] afirmando que o gnóstico deve antes sofrer a injustiça (adikeisthai) do que cometê-la (adikein), mas deve acima de tudo esquecer as injúrias.





Capítulo 9





Quando a ciência é conservada, ela ensina àquele que a possui o modo de preservá-la e de mantê-la em crescimento.





O gnóstico conserva a ciência quando não a perde por ter cedido às paixões, em especial à cólera. A própria ciência, assim conservada, ensina o modo como deverá ser guardada e como progredirá seu guardião. A condição para sua conservação será a impassibilidade, ou a perfeita saúde da alma. Evagro afirma: “A ciência, por um lado, engendra a ciência e, por outro lado, engendra o gnóstico constantemente”[15].





Capítulo 10





Possa o gnóstico, no momento em que ensina, estar isento de cólera, de rancor, de tristeza, de sofrimentos corporais e de preocupações.





Este capítulo encontra algumas variantes ao longo de suas diversas edições, inclusive ligando-o diretamente ao capítulo anterior por meio de uma proposição condicional: “...sobretudo se, no momento em que ensina, o gnóstico estiver livre de cólera, rancor, tristeza, sofrimentos corporais e preocupações”. Em Discípulos, 6, Evagro afirma: “Que o gnóstico examine em pensamentos para saber se lhe é possível, em primeiro lugar, nada dizer ou fazer que seja vergonhoso; em segundo, se não guarda rancor em relação a quem o lesou ou ofendeu; em terceiro, se não sente raiva de quem o possa ter difamado; e em quarto, se ele ora sem conceitos nem representações”.  Também em Monges, 23: “Assim como uma fonte, purificando-se dos elementos materiais que a rodeiam, distribui uma água límpida, também o intelecto que se purifica da cólera, do rancor e das preocupações referentes ao corpo encontra a ciência pura...”







Capítulo 11



Enquanto você não se tornar perfeito, evite encontrar muitas pessoas, evite a frequentação social, para que seu intelecto não se encha de imaginações.





Este capítulo também abre para diferentes interpretações: “antes de se tornar perfeito”, “antes de ser mergulhado no bem”, “antes da virtude perfeita” e mesmo “antes de ensinar”. Esta segunda interpretação baseia-se talvez nos sentidos possíveis da palavra grega syntéleia, que tanto pode significar “acabamento” ou “perfeição”, quanto “contribuição”, donde o sentido metafórico de ensinamento. O que devemos reter é a disposição em que deve estar o gnóstico no momento de ensinar, feita de impassibilidade. Em Cartas, 25, Evagro alerta que “o encontro de muitas pessoas perturba o estado tranquilo” do intelecto, que se enche de imagens. Compare-se com Virgem, 6: “Evite os encontros com os homens, para que não existam imagens em sua alma que possam se transformar para você num obstáculo no momento da oração”.







Capítulo 12





Dentre as coisas que provêm da prática, da física ou da teologia, as que forem úteis à salvação devem ser ditas e praticadas até a morte. Mas as que são indiferentes não devem ser ditas nem praticadas, por causa daqueles que se escandalizam facilmente.





Este capítulo é o primeiro a prescrever as precauções que deve tomar o gnóstico em seu ensinamento: nem tudo deve ser dito.



A prática, a física e a teologia são as três etapas da vida espiritual segundo Evagro. O que lhes diz respeito constitui todo o ensinamento do gnóstico. Assim, este deve dizer e praticar aquilo que ele ensina, até o final da vida. Quanto às coisas que são indiferentes, adiápsora, aquelas nas quais não há benefício nem perda, estas devem ser evitadas, pois, não sendo nem úteis nem nocivas, podem induzir os auditores a se escandalizarem com a exposição.



Capítulo 13







É preciso falar aos monges e aos seculares sobre a conduta reta e explicar-lhes parcialmente as doutrinas referentes à física e à teologia, “sem as quais ninguém verá o Senhor”.





Algumas edições apresentam a tradução de monachois como “jovens” ou “aqueles que foram recentemente instruídos”, o que é mais exato, pois o capítulo se dirige não aos monges de modo geral, mas especificamente àqueles que se dedicam à pratica e que ainda não se tornaram gnósticos. Quanto à física, ou contemplação das naturezas criadas, e à teologia, são elas que, segundo Evagro, conduzem à visão de Deus.









Capítulo 14







Aos padres solitários, e aos melhores dentre eles, responda, se o interrogarem, sobre o simbolismo dos mistérios que eles cumprem e que purificam o homem interior, designando os vasos [receptáculos] que os recebem como as partes passional e racional da alma; também sobre aquilo em que consiste a inseparável mistura destas partes ,o poder de cada uma e o cumprimento das atividades de cada uma em vista do objetivo único. Diga-lhes ainda a quem imita aquele que os cumpre, e que são os que, junto com ele, afastam quem se opõe a uma conduta pura; diga-lhes também que, dentre os seres vivos, uns possuem memória, enquanto outros não a têm.





O gnóstico, que deve adaptar seu ensinamento a cada ouvinte, reservará aos padres, e aos melhores dentre eles, a explicação mais profunda dos ritos que eles cumprem; as várias edições do texto apresentam sempre essa exigência quanto à qualidade dos auditores: estes serão os “melhores”, os “eleitos”, os “superiores”, “excelentes”, os “que são zelosos no temor a Deus”.



Sobre os mistérios que purificam o homem interior, compare-se com o que é dito no Tratado prático, 100: “Devemos amar nossos santos padres logo abaixo do Senhor, eles que nos purificam pelos santos mistérios”, ou seja, pela celebração eucarística. Os “vasos” serão assim “as potências da alma que recebem estes mistérios” ou “o receptor e o examinador que estão em nós”; trata-se simbolicamente dos receptáculos sagrados que recebem o pão e o vinho, a carne e o sangue do Cristo, conforme Monges, 119-120: “As carnes de Cristo são as virtudes práticas, e aquele que delas se alimentar se tornará impassível; o sangue de Cristo é a contemplação dos seres, e quem dela beber obterá em si a sabedoria”.



A mistura inseparável das partes faz referência provável, não á mistura de água e vinho, mas à parte do rito em que o padre deixa cair no cálice fragmentos do pão consagrado, chamado de commixtio ou inmixtio.

O cumprimento das atividades em vista de um objetivo único refere-se ao estado de impassibilidade, obtido pela purificação da parte passional da alma e pela qual cada parte da alma, agindo segundo a natureza que lhe é própria, trabalha para um fim único, a contemplação, atividade própria do intelecto. Quem cumpre estas atividades imita a Cristo, e é auxiliado pelos anjos, que assistem ao padre durante a celebração eucarística e afastam os indesejáveis, aqueles que fazem obstáculo à conduta pura, os demônios.



A referência à memória ao final do capítulo pode estar relacionada, de forma enigmática, com 1 Coríntios, XI, 24-26: “Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, o partiu e disse: «Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memória de mim.» Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: «Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso em memória de mim.» Portanto, todas as vezes que vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha.”





Capítulo 15







Aprenda a conhecer as razões e as leis das circunstâncias, dos gêneros de vida e das ocupações, para que você possa facilmente dizer a cada um o que lhe for mais útil.





Para adaptar-se ao seu auditório, o gnóstico deve conhecer e levar em conta a situação concreta de cada um; ele deve possuir não só um conhecimento empírico, mas também racional, por meio das “razões” ou logoi.



Em seu Discursos, II, 18, Gregório de Nazianze afirma que “o médico observará os lugares, as circunstâncias, as idades, os momentos e outras coisas do gênero...” a fim de dar a cada um o remédio que lhe convém; do mesmo modo agirá o médico de almas, que é o gnóstico.





Capítulo 16







É preciso que você disponha de material para a explicação daquilo que é dito, e que você abarque todas as coisas, mesmo se uma parte lhe escapar; é característico do anjo, com efeito, que nada do que existe sobre a terra lhe escape.





Material, literalmente “matéria” (hylé), termo presente em todas as versões; uma glosa do texto dá ao termo o sentido de “testemunhos tirados dos livros e a ciência das coisas do mundo”, em especial as Escrituras. Este é o primeiro capítulo que trata da exegese. A “ciência das coisas do mundo” refere-se ao que é dito no final a respeito daquilo que existe “sobre a terra”, ou seja, do conjunto das naturezas criadas, objeto da contemplação natural que somente os anjos (e alguns raros homens) possuem realmente. Assim, se uma parte escapar ao gnóstico, ele não deve entristecer-se, pois nem todos são capazes de compreender o sentido místico das Escrituras.







Capítulo 17





É preciso também conhecer as definições das coisas, sobretudo as definições das virtudes e dos vícios; de fato, é aí que se encontra a fonte tanto da ciência quanto da ignorância, do reino dos céus e do tormento.





O texto sugere uma possível glosa do Livro do Eclesiastes: “Debaixo do céu há momento para tudo, e tempo certo para cada coisa (...) o justo e o injusto estão debaixo do julgamento de Deus, porque existe um tempo para cada coisa e um julgamento para cada ação.[16]



As definições a que se refere Evagro são as definições dos vícios e das virtudes; a correlação entre a virtude e a ciência e entre o vício e a ignorância é um de seus temas recorrentes, sendo que a virtude conduz ao Reino dos Céus e os vícios ao “tormento”. Compare-se com in Ps. CXXXVIII, 11: “Assim como adquirimos a ignorância através da malícia, do mesmo modo recebemos a ciência pelas virtudes”.









Capítulo 18





É preciso tentar saber, a respeito das passagens alegóricas e das passagens literais, se elas remetem à prática, à física ou à teologia. Se elas remetem a prática, é preciso examinar se elas tratam da irascibilidade e do que nasce dela, ou da concupiscência e do que lhe segue, ou do intelecto e de seus movimentos. Se elas remetem à física, é preciso ver se elas dão a conhecer alguma das doutrinas que se referem à natureza, e qual dentre elas. E se se trata de uma passagem alegórica que remete à teologia, é preciso, tanto quanto possível, examinar se ela informa sobre a Trindade e se esta é considerada simplesmente ou se é vista na Unidade. Mas se não se tratar de nada disso, ou é uma contemplação simples, ou ela descortina uma profecia.







Este é o primeiro de uma série de capítulos referentes à exegese das Escrituras.



A prática, ou “ética”, a física, ou “ciência das naturezas”, e a teologia, ou “ciência de Deus”, referem-se aos três estágios da vida espiritual. Uma divisão tripartite é também atribuída à alma, que se divide, segundo Evagro, numa parte racional (o intelecto) e numa parte passional, sendo esta composta  por uma porção irascível e de uma porção concupiscente.







Capítulo 19





É preciso conhecer o jargão da divina Escritura e de estabelecê-lo, na medida do possível, por meio de testemunhos.





O jargão, que aqui traduz “hábitos” (ethos ou sinethéia), é uma expressão frequente em Evagro, como em Orígenes, para designar as formas habituais de expressão da Escritura, como referido em in Ps. XV,9: “Com efeito, é um hábito da divina Escritura dizer coração ao invés de intelecto”. Os “testemunhos”, por outro lado, referem-se sempre aos exemplos tirados diretamente das Escrituras.





Capítulo 20





É preciso saber ainda isto: que nem todo texto de caráter ético comporta uma contemplação de caráter ético, e que nem todo texto referente à natureza comporta uma contemplação da natureza; mas um texto de caráter ético pode comportar uma contemplação da natureza e um que trata da natureza pode comportar uma contemplação da ética, e da mesma forma para a teologia. Com efeito, aquilo que é dito da fornicação e do adultério de Jerusalém, dos animais de terra seca e da água, dos pássaros puros ou impuros, do sol “que se levanta, se deita e que retorna ao seu lugar[17]”, refere-se em primeiro lugar à teologia, em segundo à ética e por fim à física. Ora, o primeiro texto remete à ética e os dois outros à física.





Em outras versões, a expressão “textos de caráter ético” é substituída por “palavras de exortação”.



As versões siríacas dão ao texto um sentido mais claro: “Pensamos que eles (os textos escriturários) ensinam literalmente uma coisa, mas sua intelecção é outras coisa; com efeito, o texto que se refere à fornicação em Jerusalém ensina sobre a divindade, mas achamos que ele é exortatório; pensamos que o que se refere aos animais puros e impuros fala sobre a natureza, mas trata-se de uma palavra de exortação; e o que fala do sol refere-se à natureza. Mas normalmente se pensa que o primeiro é exortatório e que os dois últimos se referem à natureza”.





Capítulo 21





Você não explicará por alegorias as palavras dos personagens vergonhosos nem procurará aí nada de espiritual, a menos que Deus tenha agido em virtude da Economia, como ele fez com Balaam e Caifás, a fim de que o primeiro predissesse o nascimento e o segundo a morte de nosso Salvador.





Segundo uma antiga tradição, atestada por são Pedro[18], são Judas[19] e também presente no Apocalipse[20], Balaam era considerado como o protótipo dos falsos doutores que tentaram desviar Israel, o que explica que ele tenha sido classificado entre os “personagens vergonhosos”. Em Orígenes, ele era apresentado tanto como digno de vergonha, por haver desobedecido a Deus, oferecido sacrifícios aos demônios, levado Israel à idolatria, etc., como digno de louvor, quando “a palavra de Deus foi colocada em sua boca” e ele profetizou a vinda do Salvador, profecia que, conhecida dos reis magos, os levou a Belém: “uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel[21]”.



Quanto a Caifás, ele se relaciona diretamente ao anúncio da morte de Cristo, como Balaam a seu nascimento: “Vocês não sabem nada. Vocês não percebem que é melhor um só homem morrer pelo povo, do que a nação toda perecer?[22]



Capítulo 22


É preciso que o gnóstico não seja sombrio, nem difícil de abordar. Com efeito, isto é característico dos que desconhecem as razões dos seres, de alguém que não quer “que todos os homens sejam salvos e alcancem o conhecimento da verdade”.

O gnóstico não deve repelir aos que vêm interrogá-lo. De fato, segundo Clemente de Alexandria, por efeito da oração que o mantém em constante contemplação, o gnóstico é manso e humilde, de trato fácil, afável, paciente e benevolente. Ele não ignora “as razões dos seres”, ou seja, ele alcançou a contemplação espiritual das criaturas; assim, ele desconhece a tristeza, sinal de quem não experimentou ainda a verdadeira ciência. Ao contrário, ele é alegre e seu conhecimento é uma fonte de prazer.
 



Capítulo 23





Às vezes é preciso fingir ignorância, porque aqueles que interrogam não são dignos de entender. E você estará sendo verdadeiro, porque você está ligado a um corpo e ainda não possui o conhecimento integral das coisas.



Um dos textos siríacos coloca esta passagem nos seguintes termos: “Às vezes o gnóstico deve se recusar a responder a uma questão dos que o interrogam e dizer-lhes que ele não foi instruído naquilo que lhe perguntam”.



Em Discípulos 87, Evagro apresenta um texto similar: “É preciso responder quando se trata de virtudes, da doutrina ou da fé. Mas há casos em que não se deve responder, seja porque a pergunta não tem relação com o estágio daquele que a formula, seja porque existem outros presentes que não serão capazes de compreender, seja por nossa própria ignorância, pois não podemos saber tudo”. Na mesma obra, 155: “Diz-se do médico que somente ele pode mentir ou se irritar, mas isto também vale para o mestre, em razão de uma certa “economia”, mas a mais ninguém”. Como nestes textos, este capítulo coloca a questão de a quem é permitido mentir – já bastante debatida por muitos filósofos desde Platão. Clemente de Alexandria afirma: “O gnóstico pensa e diz a verdade, a menos quando há uma função terapêutica em suas palavras, como um médico dirá a verdade ou a esconderá de seus pacientes, para salvaguardar os que sofrem”; para Clemente, nestes casos, a mentira é uma forma de condescendência misericordiosa.






Capítulo 24





Evite dizer, em vista de um ganho, do bem estar ou de uma glória passageira, algo que não deva ser revelado, para que você não seja expulso do recinto sagrado, como vendedor, você também, no Templo, de filhotes de pombos.





Deve o sábio receber por seus serviços? A questão foi debatida entre os antigos, e sabemos que os reitores recebiam pagamentos. Isto pode chocar, num meio monástico, mas sabemos que o próprio Evagro recebia de pessoas que vinham “do exterior” (provavelmente leigos) por seus ensinamentos.



Mas a “glória passageira” já não é bem vista: “Que aquele que, saído da vida prática e que entrou na vida gnóstica, ao iniciar os mais simples nas habilidades do pensamento, vigie para não fazer alarde de sua ciência para receber elogios[23]”.



A expressão “recinto sagrado” é bíblica[24], e designa aqui simbolicamente a gnose ou contemplação espiritual, da qual o gnóstico será privado se ceder às paixões da cupidez ou da vanglória.



Os “filhotes de pombos”, ao invés de simplesmente “pombos[25]” podem ser entendidos como os frutos do Espírito Santo, “as sementes lançadas pelo Espírito Santo” (cf. KG VI, 60), as verdades secretas que o gnóstico recebeu.



Capítulo 25





Àqueles que discutem sem ter a ciência, é preciso aproximar da verdade a partir não do fim, mas do começo; e aos jovens não se deve dizer nada das coisas gnósticas nem deixá-los mexer nos livros desta matéria, pois eles podem não resistir às quedas exigidas pelo treinamento nesta contemplação. É por isso que, àqueles que são combatidos pelas paixões, é preciso dizer não palavras de paz, mas como eles triunfarão sobre seus adversários; de fato, como diz o Eclesiastes, “não existe delegação em dia de guerra”. Aqueles, portanto, que são combatidos pelas paixões e que perscrutam as razões dos corporais e dos incorpóreos assemelham-se a doentes que discutem sobre a saúde. Apenas quando a alma é movida com dificuldade pelas paixões que podem ser provados esses doces favos de mel.





Evagro dirige-se aos “jovens”, ou seja, aqueles que acabaram de entrar para a vida monástica; estes não devem ler livros que não são capazes de entender, a saber, os livros chamados de “gnósticos”, como, por exemplo, o tratado Dos Princípios de Orígenes ou os Kephalaia Gnóstica do próprio Evagro, que separou cuidadosamente os ensinamentos práticos, acessíveis a todos, do ensinamento reservado aos gnósticos. As leituras consideradas como “contemplações” consistem nas doutrinas que se originam da contemplação espiritual, e que, mal compreendidas, podem ser causa de escândalo ou engendrar erros, como será explicado no capítulo 36. Da mesma forma, as palavras de paz, ou “razões”, como na frase seguinte, que só são acessíveis àqueles que conhecem a “paz” da impassibilidade.



Quanto às “razões dos corporais e dos incorporais”, trata-se dos logoi, os princípios ontológicos e explicativos, as “razões de ser” das naturezas visíveis e invisíveis, objetos da contemplação espiritual, à qual só têm acesso aqueles que adquiriram uma certa impassibilidade, que é a própria “saúde da alma”; Evagro retoma a noção estoica da paixão considerada como uma doença da alma.

Assim sendo, os “doces favos de mel” podem ser entendidos como a própria doçura da ciência espiritual, como Evagro coloca, por exemplo, em KG III, 64: “Se dentre as coisas que provamos nada existe de mais doce do que o mel e o favo de mel, e sendo a ciência de Deus superior a todas estas coisas, é evidente que nada existirá sobre a terra que dê mais prazer do que a ciência de Deus”; ou em Monges 72: “Agradável é o mel e doce o favo de mel, mas a ciência de Deus é mais doce do que ambos”. A comparação do mel e do favo de mel é de origem bíblica, como em Salmos XIX, 10-11: “As decisões de Javé são verdadeiras e justas igualmente. São mais desejáveis do que ouro, mais do que ouro refinado. São mais doces que o mel, que vai escorrendo dos favos”; também relacionado com a sabedoria, em Provérbios, XXIV, 13-14: “Meu filho, coma o mel, porque ele faz bem; o favo de mel é gostoso na boca. Saiba que também a sabedoria é assim: se você a encontrar, terá futuro, e sua esperança não fracassará”.



Compare-se com Clemente de Alexandria: “Assim como vale mais estar em boa saúde do que, estando doente, falar sobre a saúde, mais vale ser luz do que falar sobre a luz.”







Capítulo 26





O tempo da explicação e o tempo da discussão não são o mesmo tempo. Assim, é preciso reprimir aqueles que fazem objeções prematuras; este é um costume dos heréticos e dos polemistas.





Explicação e discussão correspondem a dois níveis do ensinamento: de um lado, o nível propedêutico em que o estudante deve apenas escutar a lição do mestre e, de outro, o nível superior, reservado aos mais avançados, o da discussão ou da pesquisa, concernente às questões livres e “indiferentes” (ver Cap. 12), que podem ser objeto de debate entre o mestre e o discípulo e que evoca a fórmula frequentemente encontrada tanto em Evagro como em Orígenes: “Você pesquisará se...”. Segundo Héraclas, era assim o ensino organizado por Orígenes em Alexandria, que confiava a ele o ensinamento elementar e reservava para si aquele destinado aos mais avançados; esta era também a prática de Libânio em Antioquia.



As objeções “prematuras” são, portanto, aquelas feitas pelos estudantes mais novos, a respeito de assuntos que constituem objeto do segundo nível do ensinamento. Também Platão (República VII 539 ad) denunciava os perigos de admitir precocemente os jovens à dialética, antes que tivessem a necessária preparação e a disposição requerida: isto apenas contribuiria para criar neles o gosto pela disputa e o ceticismo.









Capítulo 27





Não fale de Deus inconsideradamente, nem jamais defina a Divindade. Com efeito, as definições são próprias dos seres criados e compostos.





Este capítulo é o primeiro citado por Socrate em sua História Eclesiástica: “Evagro, em sua obra sobre os monges, desaconselha falar de Deus de forma precipitada e inconsiderada e interdita expressamente que se defina a Divindade, porque ela é simples. De fato, diz ele, as definições são próprias dos seres compostos”.



Conforme Antipatros em seu livro Sobre as definições, “a definição é uma palavra proferida segundo uma análise rigorosa”. Também na lógica de Aristóteles e de Porfírio, a definição de uma substância consiste em dizer a que gênero, a qual espécie, etc., ela pertence; a definição procede por decomposição, e assim não é possível definir o que é simples, sem partes. O mesmo argumento é usado por Evagro em KG V, 62: sendo a Trindade não composta por natureza, ela escapa necessariamente à análise.









Capítulo 28





Lembre-se das cinco causas do abandono espiritual[26], para que você possa levantar os fracos abatidos pela aflição. Com efeito, o abandono espiritual revela a virtude que está escondida. Quando esta foi negligenciada, ele a restabelece pelo castigo; e ela se torna causa de salvação para outros. E quando a virtude se torna proeminente, ela ensina a humildade àqueles que a partilham. De fato, quem teve esta experiência, odeia o mal; ora, a experiência é um broto do abandono espiritual, e este abandono é filho da impassibilidade.





A expressão chave deste capítulo, que se repete quatro vezes, é “abandono espiritual”, ou “derelição”, o abandono em que Deus parece por vezes deixar o homem, expondo-o à tentação. Duas passagens das Centúrias sobre a caridade de Máximo o Confessor versam sobre este tema: na Centúria IV, 96, Máximo afirma existirem quatro espécies de derelição, que ele enumera da seguinte maneira:  uma é “econômica”, como aquela que sofreu o Senhor, “derelição aparente” que tem por objetivo “a salvação daqueles que se veem em derelição”; outra tem a finalidade de por à prova, como aconteceu com Jó e com José, para que eles se colocassem como modelos, um de coragem, o outro de castidade; uma outra tem em vista a “educação paternal”, como a que são Paulo conheceu, a fim de que, humilhando-se, ele conservasse a abundância da graça; uma última enfim acontece “por aversão”, como no caso dos Judeus, para que, castigados, possam se arrepender. No mesmo livro, II, 67, Máximo distingue cinco causas, não exatamente da derelição, mas da razão pela qual Deus “permite” que os demônios nos deem combate: Para que alcancemos o discernimento da virtude e do vício, para que nossa virtude se torne inquebrantável, para que não nos orgulhemos quando progredimos na virtude, para que odiemos o mal por tê-lo experimentado e, sobretudo, para que, ao nos tornarmos impassíveis, não esqueçamos nossa fraqueza nem o poder daquele que nos socorreu.

Outro texto em parte semelhante a este de Evagro encontra-se na História Lausíaca de Paládio, que reporta um encontro que ele próprio teve, juntamente com Evagro, seu mestre, e seu amigo Albânio, com Paphnúcio, que era apelidado Képhalas, a quem ele qualifica de “extremamente gnóstico”. A uma pergunta de seus interlocutores sobre a queda de alguns monges aparentemente muito virtuosos, Paphnúcio responde com um sermão sobre as causas da derelição, que ele enumera em duas: para que a virtude escondida seja manifestada, como no caso de Jó; e para afastar o orgulho, como no caso de são Paulo.



Num fragmento exegético sobre a morte de Judas, atribuído a João Damasceno, uma terceira causa é acrescentada às duas primeiras: “em vista da correção de um outro”, como no caso de Lázaro e do rico; em seguida, uma quarta, “para a glória de outro”, o Cristo, como no caso do cego de nascença; enfim, uma quinta, “para excitar o zelo de um outro”. O autor, resumindo seu pensamento, distingue dois tipos de derelição: uma, que retoma as cinco precedentes agrupando-as, é “econômica e educativa” e tem por objetivo, em particular, a “correção e a salvação”; a outra, que vem juntar-se a esta, é “perfeita e desesperada”, definitiva portanto, como no caso de Judas.



Estes diversos textos podem ajudar a explicar o capítulo de Evagro, fixando seu conjunto e estabelecendo o texto, tarefa delicada devido aos diferentes testemunhos das versões antigas.



O capítulo versa sobre os motivos pelos quais Deus utiliza a derelição que o gnóstico deve conhecer em seu papel de diretor espiritual. Em primeiro lugar, “a derelição revela a virtude oculta”; a esta primeira causa corresponde a segunda de Máximo o Confessor, a que tem por objetivo por à prova, e da qual o grande exemplo é Jó. Evagro coloca, em in Ps. XXXVI 25: “Os justos são submetidos à derelição por um tempo para que sejam postos à prova. O Senhor disse a Jó: Não creia que eu a usei contra você por outro motivo do que para que você parecesse justo”.



Em segundo lugar, o socorro divino “é retirado no tempo da tentação, seja para por à prova, seja para o castigo” (in Ps. XXXVII, 12) Esta segunda causa, que visa o arrependimento por meio do castigo, corresponde à quarta de Máximo. Assim, a derelição se torna causa de salvação para muitos.

Quando a virtude se torna proeminente a derelição remedia o orgulho e convida à humildade, idéia frequentemente expressa por Evagro: “É assim que Deus volta o homem para a humildade, quando ele o abandona ao pecado” (in Ps. LXXXIX, 3); “É uma grande coisa para o homem ser socorrido por Deus: ele foi abandonado e conheceu a fraqueza de sua natureza” (Oito pensamentos, XVIII). Esta derelição atinge especialmente aquele que, devido à sua virtude, é tentado pelo orgulho: “A alma do orgulhoso é abandonada por Deus e se torna joguete dos demônios” (Ibid., 17); “Não abandone seu coração ao orgulho, para que Deus não abandone sua alma e os demônios perversos a humilhem” (Monges, LXII)



Evagro termina com um polissilogismo, um tipo de argumentação ao qual recorre com frequência, como em in Ps. XXIV, 20, onde retoma Romanos V, 3-5[27], mas invertendo seus termos: “A esperança não engana, pois ela é filha da prova, e esta é o broto da perseverança, que nasce das aflições, à qual conduzem as virtudes, seguindo a ciência de Deus”. Compare-se também com Pensamentos X, texto que explica todo o final do capítulo: “A aversão que apresentamos aos demônios contribui de modo especial para a nossa salvação e favorece a prática da virtude; mas não temos a força para nutri-la em nós como uma espécie de bom embrião, porque os espíritos amigos do prazer a destroem e convidam a alma a voltar à sua amizade habitual; a esta amizade – ou melhor, esta gangrena dificilmente curável – o médico das almas cura com a derelição: de fato, ele permite que nós padeçamos certo terror com isto noite e dia, para que a alma retorne depressa à aversão primitiva, aprendendo com Davi a dizer ao Senhor: “Eu os odeio com uma aversão perfeita, eles se tornaram inimigos para mim.” Pois ele odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em ato nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade.”



Finalmente, aquele que alcançou a impassibilidade, pode ainda conhecer a derelição, para que possa experimentar o mal, e em seguida odiá-lo, para que possa progredir até a grande impassibilidade, que supõe a perfeita aversão ao mal.



Capítulo 29







Que aqueles a quem você instrui lhe digam sempre: “Amigo, suba mais alto![28]” Seria vergonhoso, com efeito, que depois de subir, você seja trazido para baixo pelos seus auditores.





Encontramos aqui a regra de ouro de todo ensinamento: permanecer no nível dos ouvintes e só se elevar na medida em que estes expressem esta necessidade.



A expressão “seria vergonhoso...” inspira-se na citação da passagem de Lucas: “Se alguém convida você para uma festa de casamento, não ocupe o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que você; e o dono da casa, que convidou os dois, venha dizer a você: ‘Dê o lugar para ele’. Então você ficará envergonhado e irá ocupar o último lugar. Pelo contrário, quando você for convidado, vá sentar-se no último lugar. Assim, quando chegar quem o convidou, ele dirá a você: ‘Amigo, venha mais para cima’. E isso vai ser uma honra para você na presença de todos os convidados”.







Capítulo 30





Avaro não é o que tem dinheiro, mas aquele que o deseja. Pois o administrador, como se diz, é o que possui uma bolsa razoável.





Esta definição do avaro tem origem distante em Aristóteles, Ética a Eudemo, III, 4, 1232 a: “O avaro é aquele que tem paixão pelo dinheiro, porém mais pelo dinheiro como objeto de aquisição do que pelo uso que se pode fazer dele conforme as circunstâncias”. Como Aristóteles, Evagro opõe ao avaro, aquele que deseja simplesmente possuir o dinheiro, o administrador, aquele que possui dinheiro para usá-lo.



A presença de administradores está bem documentada dentre os monges de Nitria, das Kellia e de Sceta; segundo Paládio, em sua História Lausíaca (cap. X), Pambô tinha um administrador, a quem remeteu o dinheiro que lhe fora dado por Melânia, dizendo-lhe que o tomasse e distribuísse entre os mosteiros pobres. O próprio Evagro confiava a um administrador o dinheiro que recebia dos seus numerosos visitantes. O administrador tinha por função, não apenas administrar os bens da comunidade, mas também de gerenciar sua distribuição aos pobres; esta função explica a paráfrase que encontramos no texto siríaco, “aquele que possui dinheiro e o administra com piedade”, bem como na versão armênia, “aquele que é generoso em sua distribuição” – desde que esta generosidade não seja fingida! Descrevendo as artimanhas do demônio da avareza (Contra os pensamentos, XXI), Evagro mostra o monge que, dominado por este demônio, “finge ser econômico e amigo dos pobres; ele acolhe generosamente os hóspedes que não são tão pobres assim, envia auxílio a outros que são abandonados, visita as prisões da cidade, resgata os que foram postos à venda; ele não larga as mulheres ricas e lhes indica aqueles que devem ser bem tratados; aos que possuem uma bolsa rica ele exorta a que a abandonem. E assim, após haver pouco a pouco enganado a alma, ele a encerra em pensamentos de avareza e a entrega ao demônio da vanglória”.



Por sua vez, quando Evagro se refere a “uma bolsa razoável”, está se referindo a uma bolsa em conformidade com a razão. Esta frase justifica a definição contida na primeira: o administrador é chamado de “bolsa”, o que demonstra que se pode possuir dinheiro sem ser avaro, tanto mais tendo o administrador não apenas a função de administrar o dinheiro, mas principalmente de distribuí-lo.



No entanto, neste capítulo não se trata, realmente, do administrador no sentido próprio do termo, mas do gnóstico, simbolizado por aquele: o gnóstico possui a ciência, mas ele deve distribuí-la, conforme KG V, 33, onde o administrador é chamado de “mestre (didascalos) dos outros”, e in Prov. XVII, 2: quem rejeitou a malícia e dominou os demônios com suas virtudes (...) se tronará também ‘administrador dos mistérios de Deus[29]’ distribuindo a cada irmão a ciência espiritual que convém ao seu estado”.







Capítulo 31





Convide os anciãos a dominar sua irascibilidade, e os jovens a dominar seu ventre. Com efeito, os primeiros devem lutar contra os demônios psíquicos, e os outros, na maior arte do tempo, contra os demônios corporais.







Este capítulo aparece também no tratado Sobre os pensamentos: “É preciso que os velhos dominem sua irascibilidade e os jovens o ventre; com efeito, os primeiros são atacados por demônios psíquicos, e os outros por demônios corporais principalmente”.



Evagro relaciona as paixões da alma à sua parte irascível e as do corpo à parte concupiscente, aqui chamada de “ventre”. A dupla recomendação que Evagro faz aqui ao gnóstico diretor espiritual se explica pelo fato de que “os demônios que presidem às paixões da alma persistem até a morte”, enquanto que “aqueles que presidem as paixões do corpo se retiram mais rapidamente”: “Os pensamentos que provêm das paixões do corpo duram pouco tempo, mas a inveja e a cólera persistem até a velhice”.







Capítulo 32





Feche a boca para os que deblateram em seus ouvidos e não se espante de ser difamado por muitos, pois esta é uma tentação que vem dos demônios. De fato, é preciso que o gnóstico seja isento de raiva e rancor, mesmo que eles não queiram isso!





Talvez exista neste capítulo um eco da hostilidade de que foram vítimas Evagro e seus amigos do deserto, por causa de suas opiniões “origenistas”; a mesma recomendação de não responder aos contraditores nem se irritar com isto aparece em Oração, 12; e a tentação dos demônios que provocam a calúnia contra o gnóstico a fim de irritá-lo e privá-lo da contemplação surge em KG III, 90.







Capítulo 33





Sem que ele perceba, aquele que cura os homens por causa do Senhor cura igualmente a si próprio; pois o remédio que o gnóstico aplica cura seu próximo na medida do possível, mas cura o gnóstico necessariamente.





O gnóstico é comparado a um médico, pois ele está encarregado de curar as paixões que são as doenças da alma, a fim de restabelecer a “saúde da alma”, ou seja, a impassibilidade. Ao agir assim, o gnóstico compara-se a Cristo, que é chamado de “médico de almas”.



Este capítulo pode ser comparado a Cartas, XLVII: “Quanto a mim, sei que a ciência de Deus, quando nutre, é ela mesma nutrida, e, quando dá, recebe”.











Capítulo 34





Você não deverá interpretar alegoricamente tudo o que se prestar à alegoria, mas apenas aquilo que convier ao tema; porque se você não agir assim, você passará muito tempo sobre o barco de Jonas, a explicar cada um de seus equipamentos. E você fará rir os seus ouvintes, em lugar de lhes ser útil: todos os que se sentarem ao seu redor lembrando-o de tal ou tal equipamento e relembrando, em meio a risadas, os que você tenha esquecido.



Evagro coloca aqui os limites da exegese alegórica: não se deve buscar uma explicação alegórica em todos os detalhes do texto escriturário. Esta posição foi muito debatida; a posição de Evagro é análoga à de são Jerônimo que, em seu Comentário sobre Ezequiel, criticava aqueles que davam uma interpretação alegórica para cada um dos membros da tripulação dos navios que se dirigiam a Tarsis[30]. Já para Orígenes, toda palavra da Escritura devia possuir um sentido espiritual: “Tudo o que está escrito é mistério[31]”.



Mas a crítica de Evagro pode se dirigir também, de um modo mais geral, aos métodos que remontavam à exegese alegórica pagã. Como diz Clemente de Alexandria: “Nem os dogmas da filosofia bárbara, nem os mitos pitagóricos, nem sequer os de Platão (...) devem ser entendidos alegoricamente em todas as suas palavras, mas apenas nas expressões que significam o pensamento global, e é somente aí que podemos encontrar aquilo que, por meio de símbolos, permanece indicado sob um véu, o da alegoria”.









Capítulo 35





Convide os monges que vierem a você a que falem de ética, mas não de doutrinas, a menos que se ache entre eles algum que seja capaz de se dedicar a estas matérias.





O texto siríaco especifica que este convite se refere às visitas individuais que os monges faziam a seus instrutores, não a entrevistas coletivas. A expressão geral “ética” pode ser mais bem compreendida a partir das múltiplas versões dos textos antigos, que falam em “formas do temor a Deus e das condutas da virtude”, em “fé”, em “exortação” e, finalmente, em “costumes”. Já a expressão “doutrinas” aparece nos mesmos textos como “pesquisa” ou “mandamentos” no sentido de dogma – não o “dogma de fé”, mas as doutrinas que, provindo da física e da teologia, podem ser objeto de livre interpretação.







Capítulo 36





Que permaneça oculta aos seculares e aos jovens as mais altas razões referentes ao juízo, pois ela engendra facilmente a negligência; de fato, eles não conhecem o sofrimento da alma racional condenada à ignorância.





As “razões” referidas neste capítulo equivalem à teoria relativa ao destino dos seres racionais, incompreensível para aqueles que ainda não foram suficientemente purificados pela prática. As versões siríacas alertam para a negligência que pode advir desta incompreensão, enquanto o texto de Oecunmenius fala em “desprezo”, explicando que, se é preciso “colocar um selo” sobre tudo o que se refere ao Juízo final, como é dito em Apocalipse X, 4-7, é devido ao fato de que os castigos inspirados pela bondade de Deus podem parecer aos homens demasiado leves e “facilmente desdenháveis”.



A ignorância é a retribuição dos maus, assim como a ciência é a recompensa dos bons, como afirma Evagro em KG VI, 57: “A retribuição que a natureza racional receberá diante do tribunal de Cristo consistirá num corpo espiritual ou tenebroso, bem como na contemplação ou na ignorância que lhes forem apropriadas”. Mas a felicidade que a ciência traz só é compreensível para quem já a experimentou. Compare-se com Orígenes, em Contra Celso VI, 26: “O que existe para ser dito (sobre a Geena) não pode ser exposto a todos. Seria inclusive perigoso confiar à escrita a elucidação desta matéria: a maior parte não tem necessidade de conhecer nada além do castigo dos pecadores; não é útil abordar as verdades que os ultrapassam, por causa daqueles a quem o temor do castigo eterno mantém duramente por um tempo fora da corrente do mal e das faltas que aí residem”.







Capítulo 37





São Paulo, oprimindo seu corpo, reduziu-o à servidão[32]; também você não negligencie seu regime, enquanto durar sua vida, e não ofenda a impassibilidade humilhando-a com um corpo obeso.





O gnóstico, mesmo que tenha alcançado a impassibilidade – ou a “saúde da alma”, como Evagro a define – não pode dispensar a ascese, em especial naquilo que se refere à alimentação. A moderação, por outro lado, é um dos componentes do caminho que leva à impassibilidade, conforme o próprio Evagro afirma em TP 91: “Um regime bastante seco e regrado, unido à caridade, conduz rapidamente o monge ao porto da impassibilidade”.







Capítulo 38





Não se farte de comida ou vestimentas[33], mas lembre-se de Abener o levita, que, depois de haver recebido a arca do Senhor, tornou-se rico, de pobre que era, e renomado, ele que era desprezado[34].





No texto da Septuaginta, Abeddara era o personagem em cuja casa a arca da aliança ficou abrigada, no decurso de sua transferência para Jerusalém, depois da vitória de Davi sobre os Filistinos. Este nome corresponde ao Obed Edom do texto hebraico da Peshitta, e é ele que aparece nas versões siríacas. No texto grego utilizado nesta tradução foi adotado o nome Abener, talvez por uma confusão com Abner, chefe do exército de Saul, que depois se uniu  a Davi.



No texto bíblico, Obed Edom é chamado de Guitita, de Gat, assim como na Peshitta. Sua identificação como levita talvez provenha da lista de levitas constante em I Crônicas XV, 18. Esta identificação é atestada por Flavius Josefus, Antigüidades judaicas VII, 4, 2, aonde o personagem a quem foi confiada a arca é apresentado como sendo um levita; é possível que Evagro tenha extraído daí a informação. O enriquecimento de Abener corresponde à passagem do texto bíblico: “E o Senhor abençoou a casa de Abeddara e tudo o que havia nela.”



Evagro aconselhava desde os iniciantes até o gnóstico para não se preocuparem com alimentos e vestes. Mas o gnóstico tem mais razões ainda para tanto, pois, tendo recebido a ciência – simbolizada pela arca – ele será cumulado pelo Senhor, recebendo tudo em acréscimo, conforme Mateus VI, 33. Em KG IV, 63, a cobertura da arca da aliança é apresentada como o símbolo da ciência espiritual, assim como Orígenes (Homilias sobre os Números X, 3) considera a arca como o símbolo dos “mistérios ocultos e secretos”.



Clemente de Alexandria diz em Stromata VII, 7, 46: “Com razão [o gnóstico] não procura nada daquilo que é preciso para as necessidades da vida, nem o que quer que seja disto, persuadido que está de que Deus que sabe tudo fornecerá apenas o que é útil às pessoas de bem, mesmo que elas não peçam. Do mesmo modo como, com efeito, em minha opinião, cada coisa é dada ao artesão de forma artesanal, e ao pagão da forma que convém ao pagão, também cada coisa será dada ao gnóstico de uma maneira gnóstica.”







Capítulo 39





A consciência do gnóstico é para ele um acusador severo, de quem ele nada pode esconder, pois ela conhece até os segredos do seu coração.





Evagro retoma aqui um tema tradicional desde o antigo estoicismo, o da consciência acusadora, que influenciou numerosos autores, como Políbio: “De fato, ninguém é uma testemunha tão terrível e um acusador tão temível quanto a consciência que habita a alma de cada um”. A ideia está presente em Orígenes, Dos Princípios, II, 10, 4: diante da lembrança das faltas cometidas, “a consciência torna-se agitada e é como que picada por seus próprios ferrões, tornando-se sua própria acusadora e testemunha de acusação”. Também Agatão coloca esta postura em Apophtegma Patrum, PG LXC, 109 B: “É preciso que o monge não deixe sua consciência acusá-lo seja no que for”.



Nada se pode ocultar da consciência. Já Sêneca afirma em De beneficiis, VI, 42: “Age mal aquele que busca agradar a opinião pública mais do que sua própria consciência. Pois existem dois juízes para tudo o que você faz: você, a quem você não pode enganar, e o outro (isto é, o público) a quem você pode enganar”.



Evagro afirma aqui sobre a consciência a mesma coisa que ele diz de Deus no seu Tratado Prático, ou seja, que ele é cardiognóstico, o “que conhece o que está nos corações”. Sua concepção da consciência, no entanto, parece estar mais próxima da dos estoicos, que assimilavam a consciência à razão, do que da dos platônicos, para quem a consciência era a voz de um daimon, da divindade no interior do homem.



Neste capítulo, Evagro não relaciona à consciência do gnóstico aquilo que outros autores que o antecederam disseram da consciência de todos os homens, mas ele pretende dizer ainda que a consciência se torna cada vez mais exigente quanto mais o monge é engajado no caminho do gnóstico; por esta razão, o gnóstico deve evitar a todo custo o relaxamento.



Capítulo 40





Atente para o fato de que, para cada coisa criada, não existe apenas uma razão, mas um grande numero delas e segundo a medida de cada um; as potências santas alcançam as razões verdadeiras dos objetos, mas não a primeira delas, a que é conhecida somente por Cristo.





A interpretação deste capítulo é difícil e sua tradução permanece incerta. Ele deve ser interpretado segundo a doutrina evagriana das “razões” (logoi): a contemplação espiritual permite conhecer as naturezas em seus logoi, ou seja, as razões segundo as quais foram criadas. Estes logoi têm seus princípios no Logos, o Verbo, que Cristo possui em si. Somente Cristo conhece a razão “primeira” de cada natureza, a cuja criação ele presidiu. As razões que as naturezas racionais (as logikoi) – e os anjos – são capazes de conhecer, “cada qual à sua medida”, são apenas aspectos múltiplos e parciais desta grande razão primeira.







Capítulo 41





Toda proposição tem como predicado ou um gênero, ou uma diferença, ou uma propriedade, ou um acidente, ou o que for composto por estas coisas; mas, a respeito da Santíssima Trindade, nada do que foi dito é cabível. Que em silêncio seja adorado o inefável!





A primeira frase deste capítulo parece ser emprestada da Isagogia de Porfírio: “Como é necessário (...) para estudar a doutrina das Categorias de Aristóteles, saber o que é gênero, o que é a diferença, o que é a espécie, o que é a propriedade, o que é o acidente...” A estes termos, Evagro acrescenta um sexto, “aquilo que é composto por estas coisas”, que se refere à segunda parte da Isagogia: “...sobre aquilo que este cinco vocábulos têm em comum”.



Este raciocínio aproxima-se do enunciado do capítulo 26, no qual Evagro desaconselha tentar definir Deus, porque isto implicaria atribuir-lhe gênero, espécie, etc. Em Stromata V, XII, 81, 5, Clemente de Alexandria afirma: “Como é possível exprimir aquilo que não é gênero, nem diferença, nem espécie (...) tampouco é acidente...”



Desta forma, a conclusão: “Que em silêncio seja adorado o inefável”, vem retomar logicamente um tema caro à tradição filosófica grega, especialmente no neoplatonismo: diz Porfírio, em Da abstinência II, 34, 2: “Ao Deus supremo rendemos um culto por meio do silêncio puro e de pensamentos puros a seu respeito”. Na tradição cristã, anteriormente a Evagro, encontramos esta ideia em Gregório de Nazianze (Discurso XXVIII, 20): “Uma vez que se trata de coisas inefáveis, que elas sejam por nós honradas em silêncio”; também no seu Hino a Deus, que alguns atribuem a Proclus: “Ó tu que estás além de tudo, tu que não podes ser chamado por nenhuma palavra, tudo te dirige um hino silencioso”.







Capítulo 42





A tentação do gnóstico é uma opinião falsa que apresenta ao intelecto aquilo que existe como se não existisse, ou o que não existe como se existisse, ou ainda o que existe como existindo de outro modo daquele que é.





Este capítulo forma um par com o seguinte, e ambos apresentam um paralelo com os capítulos 74 (“A tentação do monge é um pensamento que cresce a partir da parte passional da alma e obscurece o intelecto”) e 75 (“O pecado do monge é o consentimento ao prazer proibido proposto pelo pensamento”) do Tratado Prático. Mas aqui a tentação e o pecado do gnóstico apresentam um caráter propriamente intelectual, enquanto que as tentações e pecados do monge impõem-se sobre as circunstâncias de sua vida prática.







Capítulo 43





O pecado do gnóstico é a falsa ciência dos objetos em si mesmos ou de sua contemplação, que é engendrada por uma paixão qualquer, ou por ser feita com vistas a algo que não é o bem.



O pecado do gnóstico não é mais, como o do monge, o fato de consentir num prazer proibido proposto por um pensamento passional; de natureza mais intelectual, ele reside no erro. Mas este não se deve apenas a uma falha da inteligência ou do entendimento: ele provém do fato de que o gnóstico ainda está submetido às paixões, notadamente à cólera, ou porque, em suas pesquisas e buscas, assim como em seu ensinamento, ele pode ceder à cupidez ou à vanglória. Em suma, o erro é engendrado pelo “amor ao mundo”, conforme estabelece Evagro em KG IV, 25.



Encontramos uma definição da falsa ciência, em termos quase idênticos aos deste capítulo, em in Ps. CXLIII, 7[35]: “A mão estrangeira” é o pensamento se encontra com a parte passional da alma e que paralisa o intelecto; mas esta mão atinge os práticos, enquanto que a mão que atinge os contemplativos é a falsa ciência dos objetos em si ou de sua contemplação”.





Capítulo 44





Aprendemos com o justo Gregório que também para a contemplação existem quatro virtudes: a prudência e a coragem, a continência e a justiça. A tarefa da prudência, dizia ele, é de contemplar as potências inteligíveis e santas, independentemente de suas razões; estas, de fato, como nos transmitiu ele, só são reveladas pela sabedoria. A tarefa da coragem é de perseverar na verdade, mesmo se for preciso combater, e não se aventurar naquilo que não existe. Receber as sementes do primeiro cultivador e recusar aquele que semeia por cima[36], é próprio da continência, respondia ele. Quanto à justiça, seu papel é de distribuir a cada um as razões segundo seu nível, reportando algumas coisas de modo obscuro, designando outras por enigmas e expondo algumas com clareza, para benefício dos simples.





Com este capítulo inicia-se a série de citações de teólogos com as quais Evagro encerra o livro, antes dos dois últimos capítulos de conclusão. Em primeiro lugar, vem Gregório de Nazianze, que Evagro denomina também “o justo Gregório” e que ele sempre apresentou como seu mestre. Trata-se aqui, provavelmente, de um ensinamento oral, como o indicam os verbos utilizados: “aprendemos”, “dizia ele”, “respondia ele”; de fato, os textos de Gregório não parecem conter os enunciados apresentados.



As virtudes da vida contemplativa correspondem às virtudes da vida prática apresentadas no Tratado Prático, 89: “Dado que a alma racional é tripartite, segundo nosso sábio mestre, quando a virtude está na parte racional ela se chama prudência, inteligência e sabedoria; quando ela se acha na parte concupiscente, ela se chama continência, caridade e abstinência; quando repousa no irascível coragem e perseverança; quando habita a alma inteira, justiça”. A prudência e a coragem, a continência e a justiça são as quatro virtudes cardinais dos estóicos.



Capítulo 45





A coluna da verdade, Basílio de Capadócia, disse: a ciência que provém dos homens é fortalecida pelo estudo e pelo exercício assíduos, mas aquela que nos chega pela graça de Deus o é pela justiça, pelo domínio da cólera e pela misericórdia. A primeira pode ser recebida mesmo por aquele que ainda está sujeito às paixões; mas a segunda, apenas os impassíveis são capazes dela, eles que, ademais, no momento da oração, contemplam a própria luz do intelecto que os ilumina.





Existem dúvidas se este texto reflete um ensinamento oral de Basílio. Em sua obra Asceticon, em uma passagem da Pequena Regra XVI, ele afirma que a compunção “pode ser obtida sem um estudo e um exercício grande e gradual”. Em todo caso, o restante do capítulo é bastante evagriano. Aqui é colocada uma oposição entre o conhecimento profano, adquirido por meio do estudo, e a contemplação espiritual, que provém da graça de Deus e pressupõe uma certo grau de impassibilidade.



A justiça mencionada aqui responde a uma outra concepção daquela do capítulo anterior: trata-se, neste texto, da justiça que assegura a harmonia entre as três partes da alma, característica o estado impassível. Enquanto a cólera é considerada como um dos maiores obstáculos à contemplação, a misericórdia é vista como um dos remédios mais eficazes para a perturbação da parte irascível.



A impassibilidade permite não apenas o acesso à contemplação espiritual das naturezas, mas ainda, por acréscimo, alcançar a visão da luz do intelecto. Os maus pensamentos fazem diminuir a luz que, no momento da oração, ilumina o intelecto; é neste momento, o da oração pura, que o intelecto vê “sua própria luz”, e esta visão não se torna possível senão pela impassibilidade.





Capítulo 46





O santo luminar do Egito, Atanásio, disse: Moisés recebeu a ordem de colocar a mesa do lado do Norte[37]. Que os gnósticos saibam quem sopra contra eles, que eles suportem valorosamente todas as tentações e que se apressem em nutrir aqueles que se apresentem!





Evagro partilhava da admiração que seu mestre Gregório de Nazianze nutria por santo Atanásio, a “coluna da Igreja”, em razão de seu longo combate contra o arianismo.



O texto alude ao mobiliário da tenda: “Coloque a placa de ouro sobre a arca da aliança, no Santo dos santos. Fora do véu, no lado norte, coloque a mesa; e, no lado sul, diante da mesa, coloque o candelabro”. A exegese que faz Evagro deste trecho lembra a mesma que fez Orígenes em suas Homilias sobre o Êxodo IX, 4, mas a respeito do candelabro: este, explicava ele, devia ser colocado no sul, de modo a contemplar o norte e observar “aquele que vem do norte”, expressão emprestada a Joel II, 20 que designava os invasores que, na Palestina costumavam vir daquela direção: “Devemos observar sempre com vigilância e zelo ardente as armadilhas do diabo, para sabermos sempre de onde vem a tentação, de onde virá o inimigo, por onde o adversário se insinuará”. Evagro retoma esta exegese, não mais a respeito do candelabro, mas a respeito da mesa sobre a qual são depositados os pães consagrados.



É preciso assim, para combater eficazmente o demônio, assimilado aqui ao vento do Norte, identificá-lo logo que se apresente, perguntando-lhe sem hesitação: “Quem é você?”. Em Cartas XI, Evagro manda inquirir: “Seja o porteiro de seu coração e não deixe nenhum pensamento entrar sem interrogá-lo: você é dos nossos ou é dos inimigos?” Identificar o demônio implica não apenas reconhece-lo como tal, mas reconhecer, pela observação, de que demônio se trata, condição indispensável para dar-lhe a réplica apropriada; este é o fundamento do método “antirrético” exposto no livro homônimo.



Diante disto, poderíamos estranhar a expressão “nutrir aqueles que se apresentam”, pois estes seriam os demônios, a quem se deveria em primeiro lugar expulsar. Mas, sendo a mesa o símbolo da hospitalidade e, no texto escriturário, aquela sobre a qual se colocavam os pães consagrados, estes pães podem ser vistos como “a palavra apostólica” segundo a exegese de Orígenes. Assim, a hospitalidade, uma das formas tradicionais da caridade, se torna o ensinamento dos discípulos, e as tentações contra as quais é preciso se precaver são sobretudo as heresias.







Capítulo 47





O anjo da Igreja de Thmuis, Serapião, dizia que o intelecto está perfeitamente purificado quando ele bebeu da ciência espiritual, quando a caridade curou as partes inflamadas da irascibilidade, e o fluxo dos maus desejos foi estancado pela abstinência.





O anjo da Igreja de Thmuis é uma expressão emprestada ao Apocalipse, que designa o chefe da Igreja desta localidade. O termo “anjo” evoca talvez o fato de que Serapião, antes de se tornar bispo de Thmuis, levou por muito tempo uma existência monástica, primeiro como discípulo de Santo Antônio e depois como superior de uma comunidade; ele foi amigo de santo Atanásio, citado precedentemente.



A metáfora da bebida para designar a ciência ou contemplação espiritual já está presente em Monges 119: “Sangue de Cristo é a contemplação dos seres, e quem o beber se tornará sábio por seu intermédio”. Também em KG V, 13: “A nuvem inteligível é a natureza racional a quem foi confiada por Deus dar de beber àqueles que dormem longe dela” (os anjos têm como missão ensinar aos homens a contemplação espiritual). Ainda in Prov IX, 2: “A taça é a ciência espiritual que compreende as razões referentes aos incorpóreos e aos corpos, o juízo e a providência” (ou seja, o conjunto da contemplação espiritual); a taça na qual a Sabedoria despeja sua beberagem é também interpretada como uma alegoria da contemplação dos corpos e dos incorpóreos em KG V, 32 (ver capítulo 14).



A pureza do intelecto, obtida pela impassibilidade, é uma condição de acesso para a contemplação espiritual, e, inversamente, esta contribui para aperfeiçoar a purificação do intelecto. Em KG III, 35, Evagro afirma: “A ciência cura o intelecto, a caridade cura a irascibilidade e a castidade a concupiscência”.





Capítulo 48





Medite constantemente sobre as razões que dizem respeito à providência e ao juízo, disse o grande mestre gnóstico Dídimo, e esforce-se por guardar a matéria na memória; quase todos, com efeito, tropeçam aí. Você encontrará as razões referentes ao juízo na diversidade dos corpos e dos mundos, e aqueles que concernem à providência, nas disposições que nos fazem subir da malícia e da ignorância até a virtude e a ciência.





Evagro utiliza aqui o termo logoi no sentido de “razões”, como em in Prov. XXXI, 13: “Retorce a lã e o linho[38] a alma que medita sobre as razões referentes aos seres animados e inanimados ou que examina as razões referentes à prática e à física”.



As razões referentes “à providência e ao juízo” tratam de um elemento importante da metafísica evagriana: elas correspondem às ideias que presidiram as “disposições” tomadas por Deus, em sua “providência”, para tornar possível a salvação dos seres racionais decaídos de seu estado primitivo, atribuindo a cada um, após o “julgamento”, o corpo e o mundo que melhor lhe convém. Em in Ps XCCCVIII, 16 Evagro faz a exegese do “livro de Deus[39]” definindo-o como “a contemplação dos corpos e dos incorpóreos (...) Neste livro estão inscritas as razões da providência e do juízo e por meio dele Deus é conhecido como criador, sábio, providencial e juiz: (...) providencial, devido a tudo o que contribui para nos levar à virtude e à ciência; juiz, por outro lado, por causa dos diferentes corpos dos seres racionais, dos diversos mundos e dos séculos que os contêm”.



Conhecer as razões da providência e do juízo apresenta grandes dificuldades, e muitos “tropeçam aí”; em Monges 132, Evagro diz que “as razões da providência são obscuras e as contemplações do juízo são difíceis de entender”, e aos que não são capazes mais vale ignorá-las do que mal compreendê-las.





Capítulo 49





O objetivo da prática é purificar o intelecto e torná-lo impassível; o da física é de revelar a verdade escondida em todos os seres; mas afastar o intelecto das matérias e voltá-lo à Causa primeira, este é um dom da teologia.





Neste capítulo que forma, com o seguinte, uma espécie de conclusão do conjunto do Tratado Prático e do Gnóstico, Evagro retoma a divisão tripartite colocada desde o início naquele primeiro livro, ou seja: praktiké, physiké e theologiké.



O efeito da prática é tornar impassível a parte passional da alma; mas seu objetivo é o de purificar deste modo o próprio intelecto, a fim de permitir a este o acesso à contemplação. O objetivo da física é a compreensão da verdade presente e oculta em todos os seres criados. E o da teologia consiste em voltar o intelecto na direção da Causa primeira, ou “ciência principal do todo”, “Bem primeiro que é o princípio e causa de tudo”, “primeiro Soberano”, como encontramos em outras versões arcaicas.



Gregório de Nazianze afirmava em seu Discurso XXVIII, 13: “Toda a natureza racional deseja Deus e a Causa primeira”; o próprio Evagro utiliza uma expressão semelhante em Cartas 58: “É preciso que o intelecto, libertando-se de todas as representações, chegue assim até aquele que é a causa e o pai de todos os inteligíveis”. Esta graça é obtida como um “dom da ciência divina”, as “palavras que se referem à divindade” ou a “visão de Deus”.



Ao ensinar a prática para uns e as verdades gnósticas a outros,, o gnóstico visa purificar os “impuros” e esclarecer os “puros”, de modo a torná-los aptos à teologia; mas o acesso a esta não provém somente do ensinamento: ele supõe o dom da graça. Visto assim, o capítulo configura uma conclusão mais adequada a este livro, que trata essencialmente do ensinamento do gnóstico.







Capítulo 50





Mantendo constantemente o olhar voltado para o arquétipo, esforce-se em desenhar as imagens sem nada negligenciar daquilo que contribua para ganhar aquele que caiu.





Segundo Gregório de Nazianze, o homem não conhecerá a natureza de Deus senão “quando a imagem alcançar o arquétipo”. O “olhar” evagriano evoca a passagem do Timeu de Platão em que é dito que o demiurgo criou o mundo com os olhos voltados para o Modelo eterno.



Mas ao invés de falar em “sua imagem”, o que implicaria um convite ao aperfeiçoamento do próprio gnóstico construindo em si mesmo a semelhança divina, Evagro fala em “as imagens”, significando que o gnóstico deve desenhar a imagem de Deus nos seus discípulos.



O emprego do verbo “ganhar” tem sua origem no Novo Testamento, num sentido figurado, como em Mateus: “Se o seu irmão pecar, vá e mostre o erro dele, mas em particular, só entre vocês dois. Se ele der ouvidos, você terá ganho o seu irmão[40]”; também Paulo: “Embora eu seja livre em relação a todos, tornei-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Com os judeus, comportei-me como judeu, a fim de ganhar os judeus; com os que estão sujeitos à Lei, comportei-me como se estivesse sujeito à Lei - embora eu não esteja sujeito à Lei -, a fim de ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei. Com aqueles que vivem sem a Lei, comportei-me como se vivesse sem a Lei - embora eu não viva sem a lei de Deus, pois estou sob a lei de Cristo -, para ganhar aqueles que vivem sem a Lei. Com os fracos, tornei-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a qualquer custo.[41]” A imagem refere-se aos intelectos “decaídos” da ciência: com seu ensinamento, o gnóstico deve ajudá-los a se erguer de sua decadência e retornar ao estado primordial, no qual eles foram criados à imagem de Deus; para tanto, é preciso que ele tenha os olhos fixos no Modelo que é Deus, tornando-se, assim, teólogo. Assim como o capítulo precedente, este apresenta a conclusão magistral deste livro consagrado ao ensinamento do gnóstico.



Em alguns manuscritos siríacos, aparece uma adição, ausente nas demais versões: “O monge perfeito será chamado de cidade; perfeito será aquele que, graças a Cristo, foi purificado, em seu corpo e em sua alma, e, conhecendo a si mesmo, exalta a vontade de seu Criador”.





[1]              Utilizamos o termo “gnóstico” para traduzir o grego gnostikos, mas achamos melhor evitar, para traduzir gnosis, a palavra “gnose”, para não dar arbitrariamente uma coloração gnóstica ao sistema de Evagro; preferimos usar o termo “ciência”, com o qual devemos entender não a ciência racional, mas a ciência espiritual, ciência espiritual das naturezas criadas que culmina da ciência de Deus.
[2]              “Então Deus disse: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra». E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher.” (Gênesis, I, 26-27)
[3]              A influência de Aristóteles manifesta-se no final do capítulo 14, onde se nota uma frase do início da Metafísica.
[4]              Não apenas na tradição filosófica helênica, mas também na tradição religiosa judaica, certas exegeses não deveriam ser expostas diante de três pessoas, outras diante de duas, algumas nem mesmo diante de nenhuma a menos que se trate de um sábio capaz de entendê-las por si mesmo.
[5]                Mateus, VII, 6.
[6]                “Moisés voltou e desceu da montanha, com as duas tábuas da aliança na mão, tábuas escritas nos dois lados, na frente e no verso. As tábuas eram obra de Deus, e a escritura era feita por Deus, gravada nas tábuas.” (Êxodo, XXXII, 15-16)
[7]                Paráfrase de Provérbios, XXII, 2:  “Rico e pobre se encontram: foi Javé quem fez os dois.”
[8]                Mestres e discípulos, pg. 78, 30-35.
[9]                Da oração, 64.
[10]              Stromata VII, XII, 80, 8.
[11]             Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola: «O reino dos Céus pode comparar-se a dez virgens, que, tomando as suas lâmpadas, foram ao encontro do esposo. Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes. As insensatas, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo, enquanto as prudentes, com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias. Como o esposo se demorava, começaram todas a dormitar e adormeceram. À meia noite ouviu-se um brado: ‘Aí vem o esposo; ide ao seu encontro’. Então, as virgens levantaram-se todas e começaram a preparar as lâmpadas. As insensatas disseram às prudentes: ‘Dai-nos do vosso azeite, que as nossas lâmpadas estão a apagar-se’. Mas as prudentes responderam: ‘Talvez não chegue para nós e para vós. Ide antes comprá-lo aos vendedores’. Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo: as que estavam preparadas entraram com ele para o banquete nupcial; e a porta fechou-se. Mais tarde, chegaram também as outras virgens e disseram: ‘Senhor, senhor, abre-nos a porta’. Mas ele respondeu: ‘Em verdade vos digo: Não vos conheço’. Portanto, vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora». (Mateus, XXV, 1-13)

                 
[12]             Kephalaia Gnostika, IV, 25.
[13]             Kephalaia Gnostika, IV, 21.
[14]             “Quando alguém de vocês tem uma questão com outro, como ousam levar o caso para ser julgado pelos pagãos e não pelos membros da comunidade? Então vocês não sabem que os cristãos é que vão julgar o mundo? E se é por vocês que o mundo vai ser julgado, seriam vocês indignos de julgar coisas menos importantes? Vocês não sabem que nós haveremos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas da vida cotidiana! No entanto, quando vocês têm processos desta vida para serem julgados, vocês tomam como juízes pessoas que não têm autoridade na Igreja. Digo isso para que vocês se envergonhem. Será que entre vocês não existe ninguém suficientemente sábio para servir de juiz entre os irmãos? No entanto, um irmão é intimado em juízo por outro irmão, e isso diante de infiéis! Só o fato de existirem questões entre vocês já mostra que vocês falharam completamente. Não seria melhor sofrer uma injustiça? Não seria melhor ser roubado? Ao contrário, são vocês que roubam e cometem injustiça; e isso com os próprios irmãos!” (1 Coríntios, VI, 1-8)
[15]               Kephalaia Gnostika, II, 81.
[16]               Eclesiastes, III, 1; 17.
[17]             Cf. Eclesiastes, I, 5.
[18]             II Pedro II, 15-16
[19]             Judas, 11.
[20]             Apocalipse, II, 4.
[21]             Números, XXIV, 17.
[22]             João XI, 49.
[23]             Euloge 24, 1125 B.
[24]             II Macabeus, VI, 4.
[25]             Mateus, XXI, 12.
[26]             Abandono espiritual: para substituir o termo “derelição”, raro em português, e que traduz o grego egkatáleipsis.
[27]             “Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança produz a fidelidade comprovada, e a fidelidade comprovada produz a esperança. E a esperança não engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.”
[28]             Lucas, XIV, 10.
[29]               I Coríntios, IV, 1.
[30]               Ezequiel XXVII, 25-28.
[31]               Homilias sobre o Gênesis X, 2.
[32]               Cf. I Coríntios IX, 27.
[33]               Cf. Mateus V, 24; Lucas, XII, 22.
[34]               Cf. II Samuel VI, 10-11.
[35]             “Do alto estende a tua mão, salva-me, livra-me das águas torrenciais, da mão dos estrangeiros.”
[36]               Cf. Mateus XIII, 35.
[37]             Cf. Êxodo XXVI, 35.
[38]             Provérbios XXXI, 13.
[39]             Quando eu era formado, em segredo, tecido na terra mais profunda, teus olhos viam as minhas ações, e eram todas escritas no teu livro. Os meus dias já estavam calculados, antes mesmo que chegasse o primeiro.”
[40]             Mateus, XVIII, 15.
[41]             I Coríntios IX, 19-22.