Filocalia Tomo I Volume 2 - Nilo o Asceta


NILO O ASCETA


DISCURSO ASCÉTICO





A pátria de Nilo era Constantinopla, e seu mestre foi João Crisóstomo. Ele viveu por volta do ano 440. Ele era nobre, e rico. Ele foi prefeito da cidade. Depois ele despediu-se de todos os seus amigos, partiu para o monte Sinai e adotou a vida ascética. Versado tanto na ciência dos monges quanto na do mundo, ele deixou numerosos escritos, cheios de sabedoria espiritual e graça indizível. Destes escritos, ao modo da abelha, extraímos o tratado sobre a prece, dividido em 153 capítulos, e o tratado ascético. Nós saudamos aqueles que os lerão e receberão como favos de mel. Pois estes capítulos em verdade destilam mel e néctar, e prometem o fruto fecundo do socorro. Photius os menciona. Ele diz: “Eu li o tratado de Nilo o monge, dividido em 153 capítulos. Este homem divino desenvolveu aí o tema da oração, e muitos outros temas admiráveis, que atestam perfeição nas obras e poder nas palavras.”



A Filocalia atribui, sob o nome de Nilo o Asceta, o Discurso ascético comumente atribuído a Nilo de Ancara (século V) e do qual possuímos milhares de cartas. Mas esta atribuição está longe de ser garantida.



Conhecemos a existência de muitos monges com o nome de Nilo que viveram na Ásia Menor ou no Egito na mesma época. Recentemente, Bernard Flusin descobriu escritos ascéticos de um certo Nilo de Sceta desconhecido até o presente. O padre Bettiolo, sobretudo, publicou a edição crítica siríaca de um Discurso composto pelo santo Mar Nil, solitário egípcio, sobre a observância da vida monástica, que lembra muito o Discurso ascético grego. O autor residiu em Alexandria, onde conheceu um solitário egípcio a quem ele relaciona o propósito. Podemos pensar com Bettiolo que os dois tratados são do mesmo autor e representam dois estágios de um única obra, sendo que a versão siríaca corresponderia ao estágio mais antigo.



A tradução que apresentamos foi feita a partir do grego da Filocalia, mas mantendo algumas variantes da edição de Suarez reproduzida por Migne. A comparação com o siríaco nos auxiliou a elucidar algumas passagens difíceis e a assinalar as grandes divisões da obra. A primeira parte, sobre a decadência do monaquismo, está ausente do siríaco, e a ordem dos dois tratados é inversa. Antes das qualidades e deveres do mestre espiritual (grego: 21 a 41; siríaco: 25 a 35), o siríaco expõe as exigências da renúncia e da ascese para aquele que se engaja na vida monástica (siríaco: 3 a 24; grego: 42 a 71).



Embora certamente o discurso não seja de Evagro, a influência do célebre monge-filósofo das Kellia é inegável.






INTRODUÇÃO

A VERDADEIRA FILOSOFIA





Os gregos não tinham verdadeiros filósofos





[1][1] Muitos gregos e mais de um dentre os judeus se dedicaram a filosofar, mas somente os discípulos de Cristo seguiram a verdadeira filosofia, pois apenas eles tiveram por mestre a própria Sabedoria, manifestando por suas obras a conduta conveniente a tal procura. Com efeito, os primeiros (os gregos), com atores em cena, enfeitavam-se com uma máscara estrangeira, portando um título vazio e sem nenhuma filosofia verdadeira; com seu manto, sua barba e seu bastão eles pretendiam ser filósofos, mas cuidavam apenas do corpo e serviam à concupiscência como sua dona, sendo escravos do ventre e considerando os prazeres do sexo como atos naturais; presas da cólera, perseguindo a glória, precipitavam-se sobre as mesas bem guarnecidas como cachorrinhos, sem saber que o filósofo deve ser antes de tudo livre e fugir da escravidão das paixões mais até do que da do dinheiro e da servidão dos escravos. Pois o fato de ser escravo dos homens não desmerece em nada aquele que vive retamente, mas o hábito de se submeter às paixões como a suas donas, pelo prazer, traz a desonra e grande desprezo.



[2] Dentre eles, alguns, negligenciando inteiramente a prática, imaginavam possuir uma filosofia racional, porque dissertavam nas nuvens e interpretavam coisas que não podiam ser demonstradas, pretendendo conhecer a altura do céu, as dimensões do sol e os movimentos dos astros. Também havia os que tentavam dissertar sobre as coisas divinas, em um domínio no qual a verdade é inacessível e as conjecturas são perigosas, uma vez que viviam de moído mais abjeto do que os porcos que chafurdam na lama. Mesmo quando alguns deles se dedicavam à prática, tornavam-se ainda piores do que os outros porque o faziam pela glória e os elogios; era, de fato, apenas pela ostentação e a vaidade que estes infelizes agiam na maior parte das vezes, não obtendo com suas penas senão um salário insignificante e desprezível. De fato, conter-se continuamente, alimentar-se de ervas, cobrir o corpo com mantos miseráveis e passar a vida encerrado em um tonel sem esperar nenhuma recompensa após a morte é o cúmulo da loucura, pois assim se perde da vida os frutos da virtude, impondo-se uma luta sem prêmio, um combate contínuo sem troféu e batalhas das quais só se recolhe o suor.





Nem os judeus



[3] Quanto aos judeus que abraçaram esse gênero de vida, são todos descendentes de Jonadab que, pretendendo viver da mesma maneira, habitam em tendas, abstêm-se de vinho e de todo alimento escolhido, e não têm senão uma alimentação reduzida, limitada às necessidades do corpo[2]. Eles tomam o maior cuidado com as disposições morais e passam a maior parte do tempo em contemplação, donde o nome de Essênios que receberam, exprimindo sua sabedoria, e a finalidade de sua filosofia é irrepreensível de todos os pontos de vista, e suas ações não o contradizem de modo algum. Mas que frutos obtêm eles de seus combates e de sua luta sofrida, eles que deram morte a Cristo, o mestre da luta? Para eles igualmente, a recompensa dos sofrimentos é suprimida, porque eles recusam aquele que concede os prêmios e a vida verdadeira. Desta forma ele se perdem fora da filosofia. Pois a filosofia é a retidão dos costumes com o conhecimento da verdadeira doutrina a respeito Daquele que é. Tanto os judeus como os pagãos afastaram-se disto, tendo recusado a Sabedoria descida do céu e tentado filosofar sem Cristo, que é o único a traduzir em obras e palavras a verdadeira filosofia.





Somente os discípulos de Cristo viveram conforme a verdadeira filosofia



[4] Ele foi, com efeito, o primeiro a desbravar o caminho com sua vida, mostrando uma conduta pura, elevando continuamente a alma acima das paixões do corpo e finalmente desdenhando-o quando a salvação dos homens, da qual se encarregava, exigiu sua morte. Ele nos ensinou assim que aquele que abraça corretamente a filosofia superior deve, de um lado, rejeitar todos os prazeres da vida em de outro lado, sofrer e dominar inteiramente as paixões desprezando o corpo; ele não deve agarrar-se à vida e estar pronto a perdê-la se for preciso testemunhar assim a virtude. É o modo de vida que os santos apóstolos imitaram quando foram chamados, renunciando ao mesmo tempo às suas vidas, desdenhando pátria, raça e riquezas para passar a um existência dura e sofrida, caminhando através de todas as dificuldades, atormentados, maltratados, perseguidos, despojados, privados até do necessário. Finalmente, eles enfrentaram corajosamente a morte, imitando em tudo o Mestre e deixando assim a imagem da mais bela conduta.



Os cristãos iriam em seguida reproduzir seu exemplo e, como nem todos possuíam a vontade ou a força para imitá-los, alguns conseguiram elevar-se acima das confusões do mundo e fugir da agitação das cidades. Saindo deste mundo para abraçar a vida solitária, eles levaram para ela a marca da virtude apostólica, preferindo a pobreza à propriedade para não se deixar distraírem; preferindo a comida improvisada do que os alimentos escolhidos, por causa da revolta das paixões, eles satisfaziam as necessidades do corpo com o que encontravam; desdenhando como invenções da preguiça humana as vestes macias e supérfluas, eles se contentavam, para as necessidades do corpo, com uma vestimenta simples e sem luxo [e desprezavam as delícias]; considerando como estranho à filosofia o espírito que rejeita as coisas celestes para se ocupar das coisas aqui de baixo e daquilo que nos é comum com os animais, eles ignoravam o mundo e viviam fora das paixões humanas; nenhum deles cometia nem sofria fraudes; nenhum julgava nem era julgado.



[5] Com efeito, cada qual tinha como juiz íntegro sua própria consciência, ninguém vivia na opulência, ninguém na indigência; ninguém era esgotado pela fome, ninguém se locupletava de manjares, pois a liberalidade dos ricos sustentava as necessidades dos indigentes. Havia eqüidade e repartição igual, as desigualdades foram suprimidas pelo esforço comum voluntário dos superiores com os inferiores. Ou melhor, não era exatamente uma igualdade, pois o zelo com que cada um se apressava em rebaixar-se criava uma desigualdade, como hoje faz a mania de rivalizar para ver quem obtém a maior glória. A inveja estava excluída, o ciúme proscrito, a vanglória banida, o orgulho expulso, todas as causas de contestações estavam suprimidas. Alguns estavam mortos para as mais fortes paixões e insensíveis, e nem em sonhos tinham fantasmas; desde o começo, eles haviam afastado as lembranças. Pela a ascese cotidiana e a paciência, eles alcançaram este estado e se tornaram como chamas que brilhavam nas trevas, estrelas fixas resplendentes na noite sombria da vida, que mostravam a todos um acesso fácil ao porto, ao abrigo da tempestade, a fim de escapar sem danos aos ataques das paixões.





I

DECADÊNCIA DO MONAQUISMO





Uma funesta volta atrás



[6] Mas esta conduta perfeita e esta vida celeste, tal como uma imagem que se degrada pouco a pouco pela negligência daqueles que a reproduzem através dos tempos, chegou a uma extrema dissemelhança e perdeu completamente sua conformidade em relação ao modelo. Pois aqueles que haviam se crucificado ao mundo e renunciado à vida, renegando sua condição de homens e esforçando-se por ganhar a natureza das potências incorpóreas partilhando sua impassibilidade, voltaram atrás, aos negócios da vida e aos ganhos condenáveis, empanando a perfeição daqueles que viviam no bem e acabando por difamar com sua própria negligência os que deveriam merecer ser glorificados e celebrados por sua virtude; nós mantemos a marcha da carruagem conservando o santo hábito, mas não estamos aptos para o reino dos céus, porque miramos atrás[3] e esquecemos daquilo ao que deveríamos nos dedicar com o maior zelo. O objeto de nossa busca não é mais o prêmio vantajoso e imediato daquela vida, e não apreciamos mais o estado de hesíquia favorável à libertação de nossas antigas manchas, mas preferimos uma quantidade de coisas que criam uma preocupação inútil em relação ao verdadeiro objetivo, e a busca dos bens materiais supera as exortações salvadoras.





O desdém pelos mandamentos do Senhor



O Senhor nos ordenou renunciar inteiramente às preocupações terrestres e buscar apenas o reino dos céus[4]; mas como nós nos apressamos em caminhar no sentido oposto, não levamos em conta os mandamentos do Mestre e, descartando esta solicitude, colocamos nossas esperanças em nossas próprias mãos. Com efeito, disse o Senhor: “Observem os pássaros do céu: eles não semeiam nem colhem, eles não acumulam em celeiros, e nosso Pai celeste os alimenta[5]”. E também: “Observem os lírios do campo, como eles crescem: eles não tecem nem fiam[6]”. Ele nos proíbe de carregarmos bolsa, saco ou bastão e nos ordena apoiarmo-nos unicamente sobre a promessa mais verídica que ele fez ao enviar seus discípulos em missão para proveito dos outros homens, ao dizer: “O trabalhador merece seu alimento[7]”, sabendo que este é mais assegurado pela Providência do que por nosso trabalho.



[7] Nós, porém, ao contrário, nunca deixamos de adquirir toda a terra que podemos, e ajuntamos tropas de ovelhas, bois de carga sem igual na forma e no talhe, e asnos bem fornidos, para que nos forneçam em abundância a lã necessária, para que os bois sirvam a todos os trabalhos agrícolas que nos trarão nossos alimentos e sua forragem, a eles e aos outros animais, e, enfim, para que as bestas de carga tragam de outros lugares os gêneros que nos faltam aqui, assegurando assim a alimentação necessária e tornando a vida mais agradável. Além disso, dentre as artes, escolhemos as mais lucrativas, que não nos deixam um instante para que pensemos em Deus, ocupando todo o nosso tempo livre, interditando-nos, seja aquele que vela por nós, seja nossa antiga profissão: pois mesmo não o reconhecendo em palavras, somos acusados pela prática. Sentimos prazer no modo de vida dos seculares quando nos dedicamos às mesmas coisas que eles e nos consumimos principalmente nos trabalhos corporais a ponto de, na maior parte das vezes, não vermos na piedade senão um modo de auferir benefícios[8], e só buscamos a vida tranqüila e bem-aventurada de antanho para escapar aos serviços penosos através de um simulacro de piedade e para prolongarmos a concupiscência das coisas sensíveis graças à liberdade de desfrutar as coisas que nos concedemos, e tratamos descaradamente tanto os mais simples como os mais elevadas. A vida religiosa é para nós fundamento de despotismo, não de humildade e doçura.



Desta forma, somo vistos, por aqueles que deveriam nos honrar, como uma vulgar malta, e, vivendo principalmente nos mercados, somos a chacota dos homens aos quais nos misturamos, não tendo nada do que deveríamos para nos destacar em excelência sobre os demais. Desejando a notoriedade não por nossas vidas, mas por nosso hábito, recusamos os labores da virtude e ambicionamos tolamente sua glória, não exibindo senão uma sombra da verdade de antanho.



[8] Hoje em dia, tomamos este hábito venerável sem lavarmos a sujeira de nossas almas e sem eliminarmos no espírito as marcas deixadas pelos pecados de antes, mas continuando a ser violentamente excitados por suas imagens; sem havermos retificado os costumes de acordo com a regra da qual fizemos profissão e ignorando qual o objetivo da filosofia em conformidade com Deus, renovamos a atitude dos fariseus orgulhando-nos apenas de nosso hábito, como se houvéssemos adquirido a virtude, e circulamos portando armas cujo manejo desconhecemos. Pelo hábito visível, ostentamos uma gnose que sequer provamos com os lábios; é um recife ao invés de um porto, um sepulcro caiado[9] ao invés de um templo, um lobo no lugar do cordeiro[10], feito para a perda daqueles que se deixam levar pelas aparências.





Os monges vagabundos e parasitas



Incapazes de sustentar a vida regular, tais homens fogem dos mosteiros e se metem nas cidades, sob o impulso das necessidades do ventre, levando como um disfarce as aparências da piedade[11], para enganar o maior número possível, e dispostos a fazer tudo o que lhes determinar as necessidades do corpo. Com efeito, nada é mais violento do que uma necessidade natural que imagina um modo hábil de passar através dos obstáculos, sobretudo quando a ela se mistura uma preguiça inveterada; o pretexto se apresenta então mais perfidamente. É assim que eles batem Às portas dos ricos, não deixando nada  a dever ao parasitas. Nas praças, eles correm diante deles como escravos, afastando os que se aproximam, expulsando os que vêm ao encontro, esforçando-se por abrir caminho àqueles a quem cortejam, e fazendo tudo isso de olho na boa mesa, incapazes de refrear o gosto pelos manjares saborosos e não querendo levar à cintura o bastão prescrito por Moisés para enterrar os excrementos[12]. Se o fizessem, saberiam que o ânus é o fim de todo prazer alimentar e que tudo o que parece  satisfazer os desejos do corpo dissimula as torpezas da concupiscência indecente.



[9]  É por isso que o nome de Deus é blasfemado[13]; a vida desejável se tornou abominável e o tesouro daqueles que vivem de forma verdadeiramente virtuosa é visto como uma enganação. As cidades estão cheias desses vagabundos, os habitantes são importunados e tomados de repugnância ao vê-los bater às portas e mendigar descaradamente. Muitos destes miseráveis, admitidos ao interior, mostrando um mínimo de piedade e escondendo sob uma máscara de hipocrisia sua má reputação, despedem-se assim que conseguem despojar seus anfitriões de seus bens. Desta forma, eles fazem de tudo para desconsiderar a vida monástica, de tal modo que aqueles que antes sábios e conselheiros são agora expulsos das cidades como uma praga. São caçados como malditos, não menos do que leprosos, e os ladrões e assaltantes são mais dignos de confiança do que aqueles que levam a vida monástica, pois é mais fácil defender-se da malícia evidente do que das aparências enganadoras.



Estes monges sequer começaram a servir a Deus, pois não entenderam o fruto que se pode retirar da hesíquia. Talvez eles tenham chegado à vida monástica sem considerar o que faziam, por alguma necessidade, supondo que seria um bom meio de ganhar a subsistência, o que, penso eu, teriam feito de forma mais honrada se fossem simplesmente mendigar às portas e se o hábito monástico lhes impedisse de procurar ganhos mais abundantes. Procurando sempre uma parte para o corpo, eles não buscam apenas o necessário, mas tudo o que a indolência dos afeminados inventou segundo sua ilimitada concupiscência. Tais enfermos são realmente impossíveis de curar.



[10] Com efeito, como explicar o valor da saúde a pessoas que jamais a experimentaram, que são doentes contumazes desde o berço e que pensam, pelo costume adquirido, que a condição doentia da vida não difere do estado normal? Toda palavra feita para corrigi-los é vã, quando os ouvintes, não tendo outra inclinação do que para o mal, estão indispostos aos conselhos que lhes são dados e, sobretudo quando a esperança de proveito alimenta a concupiscência, a paixão cerra os ouvidos a todo aconselhamento, de tal forma que as exortações à temperança são incapazes de se introduzir em um espírito voltado para a atração do ganho, por mais vergonhoso que seja.





Não viver em contradição com nossa profissão



Mas nós, ó bem-amados, que, por amor à virtude, pensamos, renunciamos à vida presente e rejeitamos as concupiscências deste mundo[14] para fazermos a profissão de seguir a Cristo, porque nos deixamos enlaçar pelas distrações da vida e reconstruímos aquilo que tão bem destruímos? Porque cedemos aos maus conselhos daqueles que não agem como convém, atiçando os desejos dos mais fracos na busca de vaidades e engajando os mais simples no caminho da cupidez?



[11] O Senhor, com efeito, nos ordenou cuidarmos e não provocar aqueles que vacilam, nos ordenou visarmos antes o benefício do próximo do que aquilo que nos agrada[15]. Assim, ao não seguirmos nossos impulsos instintivos, evitaremos escandalizar muitos dos mais simples, mostrando para eles um pretexto para desejar as coisas terrestres. Porque fazemos nós tantas coisas que nos ensinaram a desprezar, permanecendo ligados às riquezas e propriedades e dispersando nossa inteligência em preocupações múltiplas e inúteis? A preocupação com tudo isso nos desvia das ocupações mais necessárias, nos faz negligenciar os bens da alma e leva a um grande abismo os que são fascinados pelas coisas brilhantes da vida e que vêem a suprema felicidade na fruição da riqueza. Nós vemos aqueles que fazem profissão de filosofia vangloriar-se de estarem acima dos prazeres e nos apressamos mais do que eles em buscá-los. Nada conduz mais fatalmente ao castigo do que se unir aos imitadores de seus vícios. Pois a perda dos discípulos aumenta a pena do mestre e, não tendo eles rejeitado como coisa vergonhosa esta imitação, incorrerá aquele numa condenação que não será pequena, por haver ensinado seus vícios. Por julgar infame tal ensinamento, os sábios se abstiveram dele.



Que ninguém fique ofuscado pelo que dizemos, mas corrija-se do mal cometido pela negligência de muitos, por vergonha do nome que se carrega, ou então que este nome seja recusado. Pois se nos apresentamos como filósofos, as riquezas são supérfluas para a pureza da alma, uma vez que a filosofia faz profissão de ser estranha até ao próprio corpo. Se, ao contrário, nos apressamos em adquirir bens e desfrutar dos prazeres da vida, porque celebrar por palavras a filosofia e adotar de fato uma conduta oposta, cumprindo práticas contrárias àquilo que professamos e aos veneráveis títulos com que nos guarnecemos?





Não discutir pelos bens terrestres



[12] Nós não consideramos mais como vergonhoso que pessoas que são consideradas como inferiores e a quem chamamos de mundanas nos reprovem por violarmos as leis do Salvador, e que eles nos ensinem os mandamentos do Senhor que desprezamos, quando nós é que deveríamos ensiná-los. De fato, quando discutimos, eles nos dizem: “Um servidor do Senhor não deve discutir, mas ser afável com todos[16]”, ou, quando disputamos entre nós por riquezas ou propriedades: “Se alguém pede sua túnica, dê-lhe também o manto[17]”. Que fazem eles, senão rir-se de nós e reprovar a contradição entre nossa conduta e nossa profissão? Com efeito, não é necessário discutirmos com quem quer se apropriar de nossos bens e fazer tudo o que exige o cuidado com estes. Alguém pretende deslocar o limite de sua vinha para aumentar a própria? Um outro introduz seu rebanho no seu campo, ou desvia a água  que corre em seu jardim? Devemos enfurecer-nos e nos tornarmos piores do que os insensatos para defender tudo isto nos mínimos detalhes e ter sempre diante dos tribunais o intelecto que deveria estar dedicado à contemplação dos seres? Porque transformar a faculdade contemplativa em manobras judiciárias, para o ganho de coisas que não têm utilidade?  Porque reivindicar como nossos bens que não nos pertencem e nos carregarmos assim com pesadas cadeias? Nunca ouvimos as imprecações do profeta: “Infeliz daquele que se apropria daquilo que não lhe pertence e torna seu jugo ainda mais pesado[18]”?  Com efeito, se aqueles que nos perseguem são rápidos, conforme as palavras: “Os que nos perseguem são mais rápidos do que as águias no céu[19]”, e se nós nos sobrecarregamos com os negócios do século, é evidente que, retardados na corrida, seremos fáceis presas para os inimigos, estes inimigos dos quais Paulo nos exorta a fugir: “Fujam da luxúria e da avareza...[20]” Aqueles que correm para obter o prêmio devem ser apressar-se impulsivamente, pois do contrário jamais o obterão, pois os inimigos que os perseguem têm pernas muito mais rápidas.



[13] Um grande obstáculo para aqueles que tendem à virtude é a ligação com as coisas do mundo, que muitas vezes conduz à ruína tanto do corpo como da alma. De fato, o que causou a perdição de Naboth o Israelita? Não foi um vinhedo cobiçado a causa de sua morte, levando ao assassinato seu vizinho Acab[21]? O que lançou fora das promessas duas tribos e meia senão a abundância de gado[22]? O que afastou Lot de Abraão? Não foi o grande número de ovelhas que provocou as contínuas discórdias entre os pastores, até finalmente obrigá-los a se separar[23]? A posse chega ao ponto de levar ao assassinato os que possuem rebanhos, afastam os que os possuem do convívio  com os melhores, dividem as famílias e transformam amigos em inimigos. Elas não têm nada em comum com a vida futura, e sequer são de grande utilidade para a vida em um corpo. Porque então abandonar o serviço de Deus para nos dedicarmos inteiramente à vaidade? Não é assim que arruinamos a saída de nossa vida?





Deus dá o necessário



Deus nos fornece o necessário. Sem a ajuda de Deus, o esforço do homem carece necessariamente de objetivo, enquanto que a providência de Deus, mesmo sem a ação humana, realiza bens perfeitos. Que proveito tiveram aqueles a quem Deus disse: “Vocês semearam em abundância, e o pouco que colheram eu arrancarei de suas mãos[24]”? Ao contrário, aos que vivem na virtude, o que de necessário faltou, enquanto eles não se preocupavam com tal? Durante os quarenta anos passados no deserto, os Israelitas subsistiram sem cultivar a terra, mas não lhes faltou alimento, pois vinha-lhes do mar um alimento maravilhoso sob a forma de codornas e do céu uma chuva insólita e extraordinária que lhes trazia o maná[25]. Um rochedo seco, uma vez rompido, forneceu uma fonte abundante[26]. As vestes e as sandálias foram-lhes fornecidas todo o tempo[27]. Por meio de qual trabalho na terra foi Elias alimentado na torrente? Não lhe chegou o alimento pelos corvos[28]? E no seu retorno a Sarepta, não lhe forneceu o pão uma viúva indigente, que ela tirou da boca de seus próprios filhos[29] para mostrar que a virtude está muito acima da natureza?





Nem só de pão vive o homem



[14] Tudo isso é espantoso e ao mesmo tempo admissível, pois podemos até viver sem comer se Deus o quiser. Com efeito, como pode Elias caminhar durante quarenta dias apenas com as forças recebidas de uma única refeição[30]? Da mesma forma, como pode Moisés permanecer oitenta dias conversando com Deus sobre a montanha sem tomar nenhum alimento humano? Pois, tendo descido depois de quarenta dias e quebrado as tábuas da lei, encolerizado por causa do bezerro de ouro, ele retornou para outros quarenta dias na montanha e somente depois de ter recebido novas tábuas retornou ao povo[31]. Que raciocínio humano poderá explicar tais milagres? Como poderia a frágil natureza do corpo sobreviver tanto tempo esgotado sem nada receber para manter sua energia vital? A palavra divina resolve a dificuldade: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus[32]”. Porque, então, rebaixamos a vida celeste até o nível da terra embaraçando-nos com preocupações materiais? Porque nos abraçamos aos detritos, nós que antes estávamos vestidos de púrpura, como disse Elias nas suas Lamentações[33]? De fato, enquanto nos deleitávamos em pensamentos belos e fervorosos, estávamos elevados em púrpura; mas quando, relaxando este estado, nos misturamos aos negócios terrestres, abraçamos os detritos.





Não caminhar sempre sobre as mãos ou rastejando



Porque, ao perdermos a esperança em Deus, nos apoiamos sobre a carne de nossos braços, e atribuímos ao trabalho de nossas mãos os dons da providência do Mestre? Aquilo que Jó considerava como o maior de seus pecados, o de levar a própria mão à boca e beijá-la[34], nós não hesitamos em fazer. De fato, a maior parte das pessoas tem o costume de beijar as mãos daqueles de quem dizem provir sua subsistência, aqueles que a Lei designa simbolicamente, por alusão, ao dizer: “Aquele que caminha sobre as mãos é impuro, assim como o que tem muitos pés, e o que caminha rastejando é sempre impuro[35]”. Caminha sobre as mãos quem se apóia em suas mãos, colocando toda sua esperança nelas; quem caminha rastejando é o que é fascinado pelas coisas sensíveis e que obriga sempre sua razão a delas se ocupar; quem tem muitos pés é aquele que por todos os modos se liga às coisas materiais. É por isso que o sábio autor dos Provérbios não diz que o perfeito tem dois pés, mas apenas um, sendo assim raramente afetado pelas coisas corporais: “Coloque raramente seu pé junto ao seu amigo, para evitar que ele, cansado de você, o deixe[36]”. Pois se alguém raramente importuna a Cristo por suas necessidades do corpo será amado por ele. É com efeito a isto que devem tender amigos tais como o Senhor quer, quando diz aos seus discípulos: “Vocês são meus amigos[37]”. Ao contrário, se o fizermos com frequência, nos tornaremos odiosos.



[15] A quem se submeterá, e como não será rejeitado aquele que todo o tempo se ocupou de suas necessidades corporais e jamais se ergueu para viver retamente? Este não possui pernas acima dos pés para se elevar acima da terra. Com efeito, assim como as pernas carregam toda a massa do corpo, e quando este se aproxima do solo, o fazem levantar-se no ar, também a faculdade do discernimento das coisas da natureza, depois de se ter rebaixado até as necessidades do corpo, redirecionam vivamente o pensamento para as coisas do alto, sem nada carregar das sujeiras terrestres.



Ter as pernas retas é a condição daqueles que não estão ligados aos prazeres e que não jazem constantemente por terra; também é próprio das santas Potências, que não têm nenhuma necessidade das coisas corporais nem sentem nenhuma atração por elas. É o que significa, penso eu, a palavra do grande Ezequiel: “Suas pernas eram retas e seus pés possuíam asas[38]”. Isto indica a retidão do pensamento e a prontidão desta natureza para captar as coisas espirituais. Convém aos homens ter pernas que se dobram para acomodá-los tanto às necessidades corporais como às ocupações que elevam a alma. Pelo parentesco da alma com as Potências do alto, deveríamos viver a maior parte do tempo com elas nos céus, mas devido à constituição do corpo temos que nos ocupar da terra na medida m que o exige a necessidade. Deixar-se levar constantemente pela busca dos prazeres é impuro e indigno do homem que compartilha da ciência espiritual. Devemos lembrar que não é o fato de caminhar rastejando que torna o homem impuro, mas o de caminhar constantemente assim. Quem vive num corpo tem um tempo concedido aos cuidados deste corpo. Com efeito, Jônatas, quando combateu contra Naás o Amonita, obteve a vitória sobre ele rastejando[39], mas ele então conformou-se com uma única exigência da natureza, pois era preciso que ao se bater contra a serpente que sobe pelo peito (que é o significado de Naás) ele adotasse por um momento o mesmo modo de avançar, rastejando, para logo se levantar em sua postura habitual e assim vencer facilmente seu adversário.





Desconfiar dos sentidos



[16] Quê nos ensina a história de Isbaal[40], senão que não devemos cuidar demais das coisas corporais e que não devemos confiar nos sentidos para guardá-las? Ele era um rei, repousava em seus aposentos e havia ordenado à sua mulher que vigiasse a porta. Mas os filhos de Remon vieram e a encontraram limpando o trigo e sonolenta. Eles entraram secretamente e mataram Isbaal a quem encontraram dormindo. Todos dormem, o intelecto, a alma [a reflexão] e os sentidos, quando se ocupam das coisas corporais. Pois a porteira ocupada em limpar o trigo indica o pensamento aplicado às coisas corporais e fazendo isto com todo o zelo, não como uma coisa acessória. Pois está claro que não é o sentido literal que nos conta a Escritura. Com efeito, como teria um rei sua mulher como porteira, quando ele deveria ser guardado por numerosos soldados, tendo ao seu redor todo o aparato de sua dignidade? E como poderia ele ter se rebaixado a ponto de fazer com que sua mulher ficasse limpando o trigo? É que muitas vezes detalhes inverossímeis se misturam à história para a verdade das coisas significadas. O intelecto é como um rei em cada um de nós, tendo a reflexão como porteiro dos sentidos. Quando esta é absorvida pelas coisas corporais (e purificar o trigo é de fato uma ação corporal), os inimigos passam desapercebidos com facilidade e destroem o intelecto. Eis porque o grande Abraão não confiava em uma mulher para vigiar sua porta, pois ele sabia que os sentidos enganam: fascinados pela visão das coisas sensíveis, eles distraem a inteligência e a convencem a partilhar de seus prazeres, mesmo quando isto é manifestamente perigoso. Mas o próprio Abraão mantinha-se à porta[41], deixando entrar os pensamentos divinos e fechando a porta aos cuidados do mundo.





Contentar-se com o estritamente necessário



Com efeito, de que os serve, para a vida, toda a inquietude que sofremos por tudo isso? Não é todo o trabalho humano destinado apenas a encher sua boca, como diz o Eclesiastes[42]? Comida e vestes, segundo o Apóstolo, bastam para a existência desta carne miserável[43]. Porque então trabalhar sem fim para o vento, como diz Salomão[44]? O cuidado com as coisas terrestres impede a alma de desfrutar dos bens divinos, se nos preocupamos com a carne e lhe concedemos mais do que convém. De nossa vizinha, tornamo-la nossa inimiga e adversária, de tal modo que o combate deixa de ser igual mas, devido à nossa grande conivência, a carne passa a lutar com mais vigor contra a alma para roubar-lhe as honras e as coroas. Qual é a grande necessidade do corpo para que a pretextemos para justificar interminavelmente uma concupiscência insaciável? Pão e água, em tudo e por tudo. Ora, não fornecem as fontes água em abundância? E não é fácil obter pão para quem tem mãos? Assim, podemos atender às necessidades do corpo com pouca ou nenhuma distração. Mas será que a vestimenta não exige cuidados? Tampouco, se não considerarmos a futilidade da moda, mas unicamente a necessidade. Pois, portava o primeiro homem vestimentas finamente tecidas, de linho, púrpura ou seda? Não nos ordenou o Senhor que nos vestíssemos de peles e nos alimentássemos de ervas[45]? Fixando desta maneira limites às necessidades do corpo, ele condenava desde então a vergonhosa conduta dos homens de hoje em dia. Não digo que ele recuse alimento aos que vivem bem, ele que alimenta as aves do céu e reveste de esplendor os lírios do campo[46]; mas é impossível convencer disto aqueles que estão afastados desta fé.





A virtude respeitada e honrada



Quem, com efeito, recusaria dar a quem pede e vive segundo a virtude aquilo de que ele necessita? [17] Se, de fato, os bárbaros que tomaram Jerusalém a força, os Babilônicos, respeitaram a virtude de Jeremias e lhe forneceram com largueza toda sua subsistência corporal, não apenas o alimento mas também os utensílios para servi-lo, como não seria uma vida virtuosa honrada pelos companheiros, pelas pessoas que desde a infância purificaram por completo o espírito da mentalidade bárbara para conhecer o bem e unir-se à virtude? Mesmo se, por fraqueza da natureza, elas não puderam se tornar ascetas, saberão honrar a virtude e admirar seus atletas. Quem inspirou a Sunamita a construir uma cela de hóspede para Eliseu e nela colocar uma mesa, uma cadeira, um leito e uma lâmpada[47]? Não foi a virtude deste homem? Quem mandou que aquela viúva, quando a fome assolava toda a terra, servir o profeta antes de satisfazer suas próprias necessidades[48]? É certo, está claro, que, se ela não tivesse ficado impressionada e admirada pela sabedoria de Elias, ela não teria privado a si mesma e a seus filhos do pouco que restava para viverem, ao escolher, por devoção a seu hóspede, sofrer a morte que ela previa próxima.



[18] O que deu coragem a estas pessoas e perseverança em suas penas, foi seu desprezo pelas coisas da vida presente. Pois elas praticaram a frugalidade contentando-se com pouco, e chegaram, pode-se dizer, a não sentir falta de nada quase iguais às Potências celestes. Ao mesmo tempo em que eram, pelo corpo, obscuros e ignorados, tornaram-se mais poderosos do que os grandes deste mundo, conversando audaciosamente com aqueles que carregavam a coroa, com mais liberdade do que eles próprios com seus iguais. Quais armas e que poder tinha Elias para ousar dizer a Acab: “Não sou eu que perturbo Israel, mas você e a casa de seu pai[49]”? Como pode Moisés encarar o Faraó sem outra coisa do que a virtude sobre a qual se apoiava[50]? Quando os exércitos de Israel e de Judá preparavam-se para o combate, como ousou Eliseu dizer a Yoram: “Pela vida do Senhor dos Exércitos diante de quem eu me coloco hoje, se não fosse por Josafá eu não lhe daria nenhuma atenção, nem sequer o olharia[51]”? Ele não temia nem o exército em movimento nem a cólera do rei que devia necessariamente inflamar-se em tempos de guerra, quando seu espírito estava perturbado e ansioso. Qual rei terrestre pode se mostrar mais poderoso do que a virtude? Que púrpura foi capaz de dividir um rio como o fez o manto de Elias[52]? Que coroa real pode operar curas como os maxilares dos apóstolos[53]? Um profeta repreendeu um rei opressor, que não obstante tinha com ele toda sua armada. Exasperado pelas reprimendas, o rei estendeu sua mão contra o profeta, mas não pode agarrá-lo nem recolher sua mão paralisada[54]. Foi um combate entre a virtude e e o poder real: a vitória coube à virtude. O profeta não combateu, foi a virtude que derrotou o inimigo. O combatente não tinha nada a fazer, pois quem operava era a fé. A corte do rei assistiu ao combate, e a mão do rei ficou estendida para atestar a vitória da virtude.



[19] Esses homens realizaram tais façanhas porque haviam decidido viver apenas para a alma, esquecendo as necessidades do corpo. E o fato de nada possuírem os tornou superiores a todos os homens. Eles preferiram abandonar o corpo e se libertar da vida carnal do que trair a  virtude e agradar a um rico por um conforto corporal. Ao contrário, nós, quando qualquer coisa nos falta, parecemos cachorrinhos abanando a cauda diante daqueles que nos atiram algumas de suas migalhas; corremos atrás dos ricos, chamando-os de protetores e benfeitores dos cristãos e reconhecendo neles todas as virtudes, mesmo quando são os maiores celerados, para obtermos o que desejamos, ao invés de estudarmos como os santos venceram, com a firme resolução de imitá-los. O general sírio Naamã veio um dia encontrar Elias com muitos presentes. E que fez então o profeta? Foi ao seu encontro? Correu até ele? Não: ele enviou seu servidor para saber a razão de sua vinda, sema admiti-lo em sua presença, a fim de que ninguém pensasse que ele o havia curado em troca de seus presentes[55]. Isto foi contado, não para que nos mostremos arrogantes, mas para que não bajulemos em vista de um proveito corporal aqueles que permanecem ligados aos bens que nos decidimos a desprezar.





Entregar a Deus a subsistência do corpo



Porque deixamos de buscar a sabedoria para nos dedicarmos à agricultura e ao comércio? O que trazemos de grande a Deus com tais ocupações? Será apenas para manifestar um cuidado comum com a agricultura? Ao homem cabe trabalhar a terra e nela lançar a semente, mas é Deus quem envia as chuvas sucessivas sobre os grãos para que estendam suas raízes na terra úmida, é ele quem faz brilhar o sol para aquecer a terra e fazer crescer as plantas e ele quem envia os ventos propícios às fases do crescimento. Quando os brotos se levantam, ele espalha pela planície doces brisas para que os grãos não sejam queimados por ventos muito quentes. Depois, com ventos mais fortes, ele faz conveniente e, depois da bateção, os ventos necessários. Quando falha um único destes elementos, o trabalho humano se mostra inútil, e nosso esforço resulta em nada se não é confirmado pelos dons de Deus. Muitas vezes, nenhum dos elementos necessários falta, mas se a chuva se apresenta demasiado abundante e fora de época, ela estraga o grão que se vai bater ou prejudica o cereal estocado. Pode acontecer também que ele seja comido pelos insetos e que o alimento nos seja tirado da boca, por assim dizer, quando a mesa está posta.



[20] Portanto, de que nos serve nosso esforço, se Deus tem as rédeas, levando e conduzindo tudo como quer? Podemos também dizer que, nas enfermidades, o corpo tem necessidade de cuidados. Mas não é preferível morrer a fazer algo de contrário à nossa profissão? Em todo caso, se Deus quiser que continuemos a viver, ou bem ele dará ao nosso corpo força suficiente para suportar a dor e nos recompensará por nossa coragem, ou encontrará um meio curar a enfermidade, pois à fonte da sabedoria nunca falta remédio.





O retorno à vida dos antigos monges



É, portanto, bom e belo retornar à antiga beatitude e à conduta dos velhos monges. Isto é fácil, penso eu, a quem quiser. E mesmo que surja alguma dificuldade, ela não deixará de trazer frutos; pois é um grande consolo a glória dos que nos precederam e o proveito que extrairão de nosso exemplo os que nos seguirem. Com efeito, não é pequeno o benefício para os iniciantes se possuírem um ideal de conduta e, para os que abandonaram este ideal, serem incentivados a retomá-lo. Fujamos da permanência nas vilas e cidades para que seus habitantes venham a nós; busquemos os lugares desertos a fim de atrair aqueles que agora fogem de nós. Com efeito, a Escritura diz de alguns, elogiando-os, que eles deixaram as cidades para residir nos rochedos, e que eles se tornaram como as pombas[56]. João Batista vivia no deserto e todos os habitantes da cidade acorriam a ele[57]. Homens vestidos de seda vinham ver um manto de pele; os que viviam em mansões douradas adotavam a miséria da vida ao ar livre. Ao invés de dormir em leitos adornados de jóias, preferiam dormir sobre a areia; e eles suportavam tudo isso, embora fosse contrário aos seus hábitos. Seu desejo de contemplar a virtude do homem de Deus era tal que eles se tornavam indiferentes às coisas penosas e sua admiração superava o sofrimento de uma vida desconfortável.



[21] A virtude é muito mais honorável do que a riqueza, e a vida solitária mais gloriosa do que os grandes bens! Quantos, que foram ricos em seu tempo e confiantes em sua grandeza, caíram no silêncio e no esquecimento, enquanto o prestígio do homem obscuro é celebrado até nossos dias e s lembrança dos habitantes do deserto é cultivada por todos. É próprio da virtude ser celebrada e seu renomado valor espalhar-se. Vamos repudiar o alimento dos animais e receber uma constituição de pastores. Abandonemos o comércio sórdido para adquirir a pérola do prêmio máximo[58]. Deixemos uma terra que produz espinhos e cardos[59] para nos tornarmos trabalhadores e guardiões do paraíso[60]. Rejeitemos tudo e abracemos a vida solitária, a fim de reduzir ao silêncio os que hoje reprovam nossas posses. O melhor meio de confundir nossos detratores é nos corrigirmos sabiamente, pois a conversão dos que eram condenados torna-se a confusão daqueles que os condenavam.









II

QUALIDADES E DEVERES DO MESTRE ESPIRITUAL





Temeridade do iniciante que pretende dirigir os outros



É uma coisa vergonhosa, penso eu, verdadeiramente vergonhosa, a razão pela qual somos motivo de riso de muitos. Alguém acaba de entrar para a vida monástica e aprende apenas as práticas ascéticas, como se deve orar e qual é o regime alimentar; logo ele se põe a ensinar aquilo que ainda não prendeu e a atrair uma fileira de discípulos, quando ele próprio ainda tem necessidade de ser ensinado, e tanto mais na medida em que julga que a coisa é fácil, por ignorar que o cuidar das almas é a coisa mais difícil de todas. Antes seria preciso que ele fosse purificado de todas as sujeiras passadas, para em seguida receber com grande aplicação as marcas da virtude. Mas aquele que não consegue imaginar nada além da ascese corporal, como poderá tornar melhores os que são escravos dos maus hábitos? Como poderá ele ajudar os que são atacados pelas paixões, ele que nada sabe do combate espiritual, e curar as feridas recebidas neste combate, ele que jaz ferido e prisioneiros dos seus laços?



[22] Toda arte exige tempo e uma longa aprendizagem; somente para a arte das artes as pessoas acham que podem passar sem aprendizado. Na agricultura, ninguém se arriscaria sem experiência, nem, sem iniciação, na medicina. Não somente nenhum bem poderia ser feito aos doentes, como ainda sua enfermidade poderia ser agravada; o melhor dos terrenos se tornaria improdutivo e inculto. Somente na piedade, como se ela fosse mais fácil do que tudo, qualquer um se arrisca sem aprendizado, e esta coisa tão difícil é considerada fácil pela maioria. Daquilo ao que Paulo afirmava ainda não ter chegado[61], eles julgam saber tudo, quando na verdade sequer sabem que nada sabem. É por isso que a vida monástica virou motivo de brincadeira, as pessoas de toda parte riem-se dos que se dedicam a ela. Quem não riria, ao ver alguém, que até ontem era garçom numa estalagem, pavonear-se como mestre de virtudes diante de um círculo de discípulos? Ou ainda certo político, mal saído de suas malversações da manhã, pontificar ao entardecer para um bando de alunos por todos os cantos da praça? Se eles se dessem conta do imenso trabalho que é encaminhar as pessoas à piedade, eles saberiam também o perigo que existe nisto, e teriam a prudência de recusar uma empresa que os ultrapassa manifestamente. Mas em sua ignorância, eles sentem-se honrados em ter pessoas que se submetem a eles e produzem sem problemas um redemoinho num turbilhão. Atirar-se nesta fornalha parece-lhes brincadeira de criança. Eles provocam o riso em quem conhece a vida que levavam até ontem e a indignação de Deus por sua temeridade.



[23] Se ninguém pode afastar de Eli a cólera de Deus, nem sua velhice venerável, nem sua antiga familiaridade com Deus, nem a honra de seu sacerdócio, uma vez que ele negligenciava corrigir seus filhos[62], como poderão escapar desta mesma cólera aqueles que sequer possuem diante de Deus o mérito das boas ações passadas e que, sem conhecer nem a natureza do pecado nem o procedimento para sua correção, se engajam nesta temível empreitada sem experiência, por amor à glória? Foi por isto, ao que parece, que o Senhor acusou os fariseus, dizendo-lhes: “Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês percorrem o mar e a terra para converter alguém, e quando conseguem, o tornam merecedor do inferno duas vezes mais do que vocês[63]”. Na realidade, por meio de suas reprimendas dirigidas aos fariseus, o Senhor advertia aqueles que mais tarde cairiam nas mesmas faltas, a fim de que, atentos a estas maldições, eles evitassem um desejo desviado de glória humana por temor de uma infelicidade ainda mais terrível. Eles deveriam ficar confusos também pelo exemplo de Jó e cuidar de seus subordinados, ou recusar tal responsabilidade, se não sabem imitá-lo, ou se não quiserem ter a mesma solicitude quanto às medidas necessárias. Pretendendo que seus filhos fossem purificados de suas imperfeições, Jó oferecia diariamente sacrifícios por eles, dizendo: “Talvez meus filhos tenham pecado contra Deus em seus corações[64]”. E eis que hoje existem pessoas que, sem possuir ao menos o discernimento dos pecados manifestos, porque a poeira levantada pela luta contra as paixões ofusca sua razão, precipitam-se na direção do outro e assumem a responsabilidade de curá-los, quando sequer curaram suas próprias paixões, sendo incapazes de levar alguém a uma vitória que eles mesmos não conquistaram.



[24]  De fato, é preciso primeiro combater as paixões e, com muita atenção, guardar na memória os detalhes da luta, para depois poder expor aos outros e tornar a vitória mais fácil descrevendo de antemão a técnica do combate. Existem os que se tornaram senhores de suas paixões por meio de grandes austeridades, mas, como isto acontece nos combates noturnos, eles não se dão conta do modo como triunfaram, sem seguiras palavras de ordem e sem reconhecer exatamente as armadilhas dos inimigos. É isto o que é simbolizado pela conduta de Josué, filho de Naum. Enquanto o exército atravessava o rio Jordão durante a noite, ele ordenou a seus homens que tomassem pedras no rio, erigindo uma estela na margem, reforçando-a com cal e inscrevendo ali como haviam atravessado o Jordão[65]. Ele indicava assim que é preciso colocar à luz as raízes profundas da conduta passional, erguendo claramente uma estela e não recusando este conhecimento a outros, a fim de que, não apenas saiba o que passar por ali a maneira de atravessar o rio, mas ainda que, ao fazer a mesma coisa, cada qual torne a passagem mais fácil ao próximo e que a experiência pessoal se torne uma lição para os outros. Mas os maus guias de que falamos não vêem nada disso e recusam ouvir quem lhes fala disso; só considerando a confiança que têm em si próprios, eles impõem aos irmãos tarefas de escravos, como se eles tivessem sido adquiridos no mercado, e consideram glória possuir um grande número de subordinados. É uma concorrência: nenhum quer ter atrás de si um cortejo menor do que os demais; e assim eles se mostram mais mercadores do que professores.





O ensino se faz sobretudo pelas obras



[25] Na realidade, eles pensam que é fácil comandar por palavras, mesmo se as ordens são pesadas, mas não se dão ao trabalho de ensinar pelas obras. Assim, fica claro para todos que eles assumiram esta superioridade com a intenção, não de serem úteis aos que vão a eles, mas de promoverem seu próprio prazer. Se eles quisessem, eles aprenderiam com o exemplo de Abimelec e de Gedeão que não são as palavras, mas os atos que incitam as pessoas a imitar aqueles que as dirigem. O primeiro confeccionou um feixe de lenha, colocou-o sobre os ombros e disse: “O que vocês me virem fazer, façam também[66]”. Também o segundo, entregando-se ao trabalho comum e propondo um exemplo, disse a seus homens: “Observem-me e façam o mesmo[67]”. O Apóstolo dizia, igualmente: “Minhas mãos obtiveram o sustento de meus companheiros e o meu próprio[68]”, e mesmo o Senhor agiu antes de ensinar. Estes exemplos não são suficientes para nos convencer de que é melhor confiar no ensino pelos atos do que por palavras?  Mas os maus professores de que falamos são cegos diante de tais exemplos e dão suas ordens com arrogância. Quando eles imaginam que sabem alguma coisa porque ouviram falar, assemelham-se aos pastores inexperientes repreendidos pelo profeta: “Ai do pastor de coisa nenhuma, que abandona o rebanho! Que a espada lhe fira o braço e fure seu olho direito; que seu braço fique seco de uma vez, e seu olho completamente cego[69]”. Pois, em sua loucura, eles negligenciaram a ação reta e extinguiram neles a luz da contemplação. Isto acontece àqueles que ensinam com dureza e de modo desumano, sempre prontos a punir; os elementos da contemplação reta desaparecem logo e suas ações, privadas de toda luz, se esgotam, pois eles nada podem fazer nem podem ver nada, pois foram feridos não na coxa, mas no braço. Ser atingido na coxa pela espada equivale a usar a palavras divina contra suas próprias paixões; ser atingido nos braços significa estar sempre disposto a repreender os pecados dos outros.





A prática deve preceder a contemplação



[26] Foi assim que Naás o Amonita, cujo nome significa “serpente”, ameaçou Israel, dotado de visão, de lhe destruir completamente o olho direito[70] para que nenhum pensamento direito conduzisse a uma ação direita. Ele sabia que o maior progresso consiste em ir da contemplação à prática. Pois a prática é irrepreensível quando procede de um claro conhecimento prévio. A experiência mostra à exaustão que a condução dos outros só deve ser assumida por homens solícitos e que não buscam nenhum proveito pessoal. Pois aquele que experimentou a solidão e começou a se ocupar da contemplação não escolhe sujeitar seu espírito às necessidades corporais, de separá-lo da gnose e fazê-lo descer das alturas aonde ele se mantém a maior parte do tempo para cuidar de negócios terrenos. Isto fica ainda mais evidente na parábola que Joatão propôs aos habitantes de Siquém: as árvores da floresta buscaram alguém que se tornasse seu rei, e disseram à vinha: Venha reinar sobre nós. Mas a vinha respondeu: Devo eu renunciar ao meu excelente fruto que agrada a Deus e aos homens, para reinar sobre árvores? Também a figueira recusou pela sua doçura e a oliveira por causa do seu azeite. Apenas um espinheiro sem frutos aceitou a soberania sobre elas, sem possuir nenhuma daquelas propriedades[71]. A parábola diz que foram as árvores de uma floresta selvagem que buscavam um rei, não as de um jardim cultivado. A vinha, a figueira e a oliveira recusaram-se a comandar as árvores da floresta, preferindo seus próprios frutos à dignidade do comando. Da mesma forma, aqueles que vêem em si mesmos o fruto da virtude e que têm consciência do benefício que podem retirar dele, mesmo pressionados por muitos, recusam o comando, pois preferem seu próprio benefício à honra que receberiam de uma multidão.





O mestre inexperiente perde a si mesmo e aos seus discípulos



[27]  A maldição pronunciada pelo espinheiro contra as árvores, na parábola, atinge também os homens que agem do mesmo modo: “Ou bem o fogo sairá do espinheiro e devorará as árvores da floresta, ou bem sairá das árvores e devorará o espinheiro”. Pois, quando se fecham pactos inúteis, segue-se naturalmente o perigo, tanto pata os que estão sujeitos a um mestre inexperiente quanto para os que assumiram a direção de discípulos inconseqüentes. Com efeito, a inexperiência do mestre causa a perda dos discípulos e a irresponsabilidade dos discípulos coloca em perigo o mestre, ainda mais, quando, pela incapacidade deste, os discípulos se tornam preguiçosos. É dever do mestre nada ignorar daquilo que se refere à formação de seus discípulos, e estes, por sua vez, não devem negligenciar nada das instruções do mestre. É igualmente grave e perigoso que os discípulos desobedeçam e que o mestre se mostre conivente com suas faltas. Que ninguém pense que a direção de outro seja um negócio tranqüilo e repousante, pois não há função mais penosa do que dirigir as almas. Aqueles que têm que dirigir animais e bestas de carga os tem completamente em seu poder, e é pó isso que eles não sentem dificuldade em fazê-los marchar direito. Mas governar os homens é mais difícil, por causa da diversidade do caráter humano e da destreza da razão. É preciso, assim, que os que assumem este encargo estejam preparados como para um duro combate, a fim de que suportem com muita paciência os defeitos de todos e os ensinem sem relaxar aquilo que eles ignoram.





O mestre não deve ignorar nada das armadilhas do Inimigo



[28] Esta é a razão pela qual, no templo, a bacia de lavagem repousava sobre bois[72], e também porque o candelabro era sólido e feito em uma só peça[73]. Isto significa que o candelabro, ou seja, aquilo que é feito para iluminar os outros, deve ser sólido em todas as suas partes, sem ter nada de frágil nem de inútil; nele deve ser eliminado, pelo polimento no torno, tudo o que é supérfluo e não serve de bom exemplo de virtude aos olhos dos outros. Quanto aos bois sobre os quais repousa a bacia, isto indica que aquele que assume o trabalho de dirigir os outros não deve recusar nada do que aconteça, mas carregar os fardos e as sujeiras dos inferiores na medida em que possa fazê-lo sem perigo. Com efeito, se ele necessariamente tiver que purificar as ações daqueles que o procuram, ele fatalmente terá contato com estas sujeiras, exatamente como a bacia na qual se lava as mãos recebe a sujeira destas. Quem trata as paixões e alivia os outros de suas sujeiras, é inevitavelmente afetado por elas, pois a lembrança permanece no pensamento. Mesmo se as marcas das coisas vergonhosas não ficarem gravadas em cores vivas, mesmo assim o espírito será arranhado em sua superfície pelas impressões impuras deixadas pelas palavras trocadas.



[29] O grande são Paulo dá testemunho disto quando diz: “Nós não ignoramos seus desígnios[74]”; ademais, o admirável Jó se pergunta com perplexidade: “Quem revelará a aparência de suas vestes? Quem penetrará nas dobras de sua couraça? Quem abrirá a viseira de seu capacete?[75]” Ele queria dizer que ele não possui face visível, pois dissimula sua malícia sob numerosos disfarces e maquina insidiosamente em segredo a ruína. Para não ser contado no número dos que ignoram suas manobras, Jó revela suas características, conhecendo claramente toda a sua monstruosidade: “Seus olhos, diz ele, são como a estrela da manhã, mas suas entranhas são como serpentes de bronze[76]”. Ele diz isto para mostrar sua falsidade, pois Satanás atrai para si os que o vêem considerando seu belo aspecto de estrela da manhã, mas quando eles se aproximam, ele os leva à morte com as serpentes que traz em si. Um provérbio denuncia o perigo: “Aquele que racha lenha corre perigo se a lâmina do machado se soltar[77]”. De fato, aquele que distingue as coisas e que separa aquelas que parecem idênticas, mostrando a diferença essencial que existe entre as que são verdadeiramente boas e as que apenas parecem tais, deve tomar todas as precauções em sua linguagem para não escandalizar seus ouvintes.



[30] Foi assim que um dos discípulos de Eliseu cortava lenha perto do rio Jordão, quando a lâmina de seu machado soltou-se e caiu no rio. Percebendo o acidente, ele gritou a seu mestre: “Socorro, mestre![78]” A mesma coisa acontece aos que se metem a ensinar a partir daquilo que mal chegaram a compreender, e que não conseguem concluir por lhes faltar a experiência. Se eles são confrontados a meio caminho por qualquer coisa que vai contra seus propósitos, eles mostram sua ignorância e se confundem, porque usam uma linguagem emprestada de outrem. É por isso que o grande Eliseu, atirando à água o cabo de seu próprio machado, fez flutuar a lâmina perdida por seu discípulo[79], ou seja, ele trouxe à luz um pensamento que este julgava oculto e o mostrou às pessoas que lá estavam. Aqui o Jordão representa as palavras de arrependimento, pois é no Jordão que João realizava o batismo do arrependimento. Aquele que não fala exatamente como se deve do arrependimento e induz seus ouvintes a desdenhá-lo, revela sua ingenuidade oculta e deixa cair a lâmina no Jordão. Fica claro que foi a madeira que fez flutuar a lâmina que estava no fundo das águas. Com efeito, antes da cruz, a palavra de arrependimento estava oculta, e por isso quem quisesse falar dela temerariamente era condenado. Mas depois da cruz, ela se tornou visível a todos, manifestada pela madeira.





A direção de outrem está reservada a quem triunfou sobre as paixões



[31] Não digo isto para desviar da direção de outrem, nem para impedir de guiar os jovens pelos caminhos da piedade, mas para exortar a primeiro adquirir um hábito de virtude proporcional à grandeza da tarefa. Que ninguém se atire irresponsavelmente, estimando apenas a aprovação que ela trará; previsão de muitos discípulos e elogios dos de fora, sem levar em conta os perigos envolvidos. Antes que a paz esteja firmemente estabelecida, não transformemos as armas de guerra em utensílios agrícolas. De fato, será apenas depois de submeter de todas as paixões, depois de deter todos os seus assaltos, venham de onde vierem, que se tornarão desnecessárias as armas de defesa e se tornará possível dedicar-se à cultura de outrem. Mas enquanto durar a tirania das paixões, enquanto subsistir a luta contra os desejos da carne, longe de depor as armas, é preciso tê-las à mão todo o tempo, a fim de não relaxar e que os inimigos não tenham ocasião de nos dominar sem combate.



Para encorajar aqueles que bem combatem pela virtude e que pensam, em sua profunda humildade, ainda não ter obtido a vitória, a Escritura diz: “Forjem arados com suas espadas, e foices com suas lanças[80]”, advertindo-os para que não se prendam mais a inimigos vencidos, mas que, para a utilidade de muitos, desviem as forças da alma da atividade guerreira para aplicá-las à cultura dos que ainda estão cheios das obras do mal. E aos que, antes de atingir este estado, seja por inexperiência ou por temeridade, se metem numa empresa que está acima de suas forças, a Escritura aconselha o contrário: “De seus arados, forjem espadas, e de suas foices, façam lanças[81]”.





Não cultivar o solo antes da cessação dos combates



[32] Pois, de que serve a agricultura quando a guerra assola o país e a colheita cairá nas mãos dos inimigos ao invés dos que trabalharam nela? Esta é a razão pela qual os Israelitas, na medida em que tinham que combater diversas nações no deserto, não tinham ordem para cultivar o solo, para não serem tolhidos em suas atividades guerreiras. Mas após a derrota dos inimigos, foi dito a eles que se dedicassem à terra: “Quando vocês tiverem entrado na terra da promessa, nela plantem toda espécie de planta que der fruto[82]”, donde se subentende: antes de nela entrar, nada plantem. Com efeito, antes da perfeição, as plantações não estão seguras, sobretudo quando os que as cultivam ainda levam uma vida errante. Na vida espiritual, como em toda atividade, existe uma ordem e um encadeamento a seguir, e desde o começo deve-se caminhar para adiante. Aqueles que, numa refeição, desdenham as entradas e se atiram às sobremesas, devem ser convencidos de que é preciso observar uma ordem; também Jacó, seduzido pela beleza de Raquel, desprezou Lia que tinha um defeito nos olhos, e, no entanto, não pode evitar cumprir mais sete anos de serviço pela beleza daquela[83]. Aquele que pretende avançar como se deve na vida espiritual não deve começar pelo fim, mas progredir desde o início até alcançar a perfeição.





Não correr atrás do título de mestre



[33] É a isto que ele deve se aplicar para deste modo conduzir de maneira irreprochável seus subordinados aos cumes da virtude. Mas a maior parte não suporta nada dificultoso e não cumpre nenhuma obra de piedade, pequena ou grande; eles correm atrás do título de mestre, dando prova de uma terrível loucura sem minimamente supor o perigo. Não apenas eles não se recusam, quando alguns os solicitam para esta atividade, mas chegam a circular pelas ruas para recrutar contra sua vontade aqueles a quem encontram, prometendo todo tipo de vantagens maravilhosas, como negociantes que oferecem comidas e roupas nos mercados. Necessariamente, pessoas assim desprovidas de direção querem aparecer em público com todo um cortejo de discípulos, levados por suas mãos, e assegurar para si toda a encenação de um mestre, como se desempenhassem um papel num teatro. Para não perder o serviço de seus discípulos, eles se mostram na maior parte das vezes complacentes com seus prazeres e suas concupiscências, como o condutor de um carro que solta as rédeas e deixa os cavalos irem aonde quiserem, de tal modo que acabam por se precipitar em algum abismo ou vão de encontro a todo tipo de obstáculo, pois não há ninguém que os detenham ou aos seus impulsos desordenados.



[34] Que estes guias entendam como o bem-aventurado Ezequiel condenou aqueles que servem alimentos para o prazer dos outros e que, acomodando-se às vontades de cada um, acumulam sobre eles próprios as maldições: “Infelizes, diz ele, as mulheres que costuram pulseiras para todos os punhos e confeccionam véus para todas as cabeças, para perder suas almas por um punhado de cevada ou um pedaço de pão[84]”. Estes de quem falamos agem da mesma forma quando atendem às suas próprias necessidades corporais com as contribuições de seus discípulos e repousam sobre tecidos finos. Com os véus que colocam sobre suas cabeças eles desonram aqueles que devem orar e profetizar com a cabeça nua[85], e tornam efeminada a condições de homens, perdendo as almas imortais. Antes tivessem obedecido a Cristo, o verdadeiro Mestre, e recusado com todas as forças a direção de outros. Pois ele disse aos seus discípulos: “Não se deixem chamar Rabbi[86]”. Assim ele exortou a Pedro, João e todo o grupo de discípulos a fugir de tais obras e se considerar indignos de tal honra. Quem, então, poderá se considerar superior a estes homens, para se adjudicar uma dignidade que a eles foi interdita? A menos que eles achem que, por não se deixar que os apóstolos se chamassem Rabbi, Cristo teria proibido o título, mas não a função?





Não aceitar discípulos facilmente



[35] Mas se, apesar de tudo, formos obrigados a aceitar um ou dois discípulos, ou mesmo dirigir vários, examinemo-nos primeiro cuidadosamente para ver se não devemos mostrar o que deve ser feito, mais por atos do que por palavras, propondo aos discípulos nossa própria vida como modelo de virtude a fim de, copiando-nos, eles não alterem a beleza da virtude pela deformação do pecado. Devemos saber que teremos que lutar tanto por nós como pelos que dirigimos, porque prestaremos conta conta por eles como por nós, uma vez que nos encarregamos de sua salvação. De fato, os santos tiveram o cuidado de não deixar para trás os discípulos menos avançados na virtude e os fizeram passar a um estado melhor. Assim é que o apóstolo Paulo fez de Onésimo, um escravo fugitivo, um mártir[87]; Elias transformou Eliseu, um trabalhador, em profeta[88]; Moisés dotou Josué dos melhores carismas, embora ele fosse o mais jovem de todos[89]; Eli tornou Samuel maior do que ele próprio[90]. Em cada um destes casos, o zelo do discípulo contribuiu para o resultado, mas a causa essencial de seu progresso esteve no fato de ter encontrado um mestre capaz de fazer brotar a centelha em maio à fumaça e inflamar este zelo para o máximo progresso. Estes mestres tornaram-se assim a boca de Deus que comunicou aos homens suas vontades, pois eles escutaram a palavra: “Se vocês separarem o que é precioso do que é vil, vocês serão como a minha boca[91]”.



Responsabilidade do mestre



[36] Deus também mostrou a Ezequiel a disposição que deve ter o mestre e o que ele deve fazer com seus discípulos: “Filho do homem, disse ele, tome um tijolo, coloque-o diante de si e faça sobre ele o desenho de uma cidade, Jerusalém[92]”. Isto significa que o mestre deve fazer de seu discípulo um templo santo a partir do barro. Com toda justeza, ele diz: “Coloque-o diante de você”, pois o discípulo progredirá tanto mais depressa na medida em que estiver sempre sob os olhos do mestre. Com efeito, a influência contínua dos bons exemplos imprime sua marca nas almas que não estão completamente endurecidas e insensíveis. Se Giezi e Judas caíram, o primeiro no roubo, o segundo na traição, foi por se terem subtraído da vista do mestre. Se eles houvessem permanecido ao lado dos seus conselheiros, nenhum dos dois teria falhado.



A continuação do texto mostra que a negligência dos discípulos coloca em perigo o mestre: “Ponha uma placa de ferro entre você e a cidade, que será uma muralha entre a cidade e você[93]”. Pois, se o mestre não quiser participar do castigo do discípulo negligente do qual ele fez uma cidade a partir do barro, ele deve anunciar desde o princípio ao discípulo o castigo reservado a quem retorna ao seu antigo estado e esta advertência servirá então de muro a separar o inocente do culpado. É o que Deus quis dizer quando falou a Ezequiel: “Filho do homem, eu o fiz sentinela da casa de Israel; se você avistar a espada chegando e não a advertir, eu lhe pedirei contas daqueles que morrerem[94]”.

Tomar cuidado com o retorno das paixões



[37] Moisés construiu um muro semelhante quando disse aos Israelitas: “Evitem tentar perseguir os inimigos depois que eles desapareceram de suas vistas[95]”. Isto acontece quando vigiamos a reflexão com menos cuidado depois de havermos afastado as paixões. As figuras das imaginações antigas começam a reaparecer como brotos jovens e se os deixamos invadir a faculdade mestra ao invés de interditar-lhes a entrada, as paixões voltam a se instalar e é preciso retomar o combate apesar da vitória anterior. Com efeito, existem paixões que foram domadas e acostumadas a pastar as ervas como bois, mas que, negligenciadas, voltam ao estado selvagem e retomam sua ferocidade. A fim de que isto não aconteça. A Escritura diz: “Não tente persegui-las depois que houverem desaparecido de sua vista”, para que, nesta perseguição, a alma não retome o prazer destas imaginações e não retorne ao mal de antes. Foi assim que o bem-aventurado Jacó escondeu de Siquém os deuses estrangeiros, sabendo que as coisas que foram vistas e assiduamente meditadas voltam a prejudicar o pensamento quando as imagens vergonhosas são aí gravadas de modo claro e distinto. Pois aquele que toma o cuidado de esconder aquilo que excita as paixões as destrói, não apenas por pouco tempo, mas “até este dia[96]”, ou seja, para sempre, pois “hoje” se estende por todo o tempo que resta. Por outro lado, Siquém significa “golpe de espádua” ou “combate”, o que designa o esforço feito contra as paixões. É por isso que Jacó deu a José Siquém como dom eleito um especial ardor para se lançar contra as paixões.



[38] O próprio Jacó disse que tomou Siquém pela espada e pelo arco[97]. Significando com isto que é preciso dominar as paixões com luta e esforço, enterrando-as na terra de Siquém. Parece haver aí uma contradição entre esconder os deuses de Siquém e colocar um deus num lugar secreto; com efeito, a primeira coisa é louvável, enquanto que a segunda é reprovada pela Escritura: “Maldito seja quem esconde um ídolo num lugar secreto[98]”. Pois não é a mesma coisa enterrar completamente um objeto no chão e colocá-lo num lugar secreto. O objeto oculto na terra e que não é mais visível desaparece completamente da memória com o tempo, enquanto que o objeto colocado num lugar secreto escapa à visão dos outros, mas é visto constantemente por aquele que o pôs naquele lugar e que dele guarda a lembrança sempre fresca na memória. Pois todo pensamento que toma forma no espírito é um ídolo escondido. É vergonhoso expor aos outros tais pensamentos, mas é tão perigoso quanto depositá-los num lugar secreto, e mais perigoso ainda perseguir e procurar as imagens já apagadas, pois a reflexão pende facilmente outra vez para a paixão que havia sido expulsa e mergulha fundo na ilusão dos prazeres. A virtude é, com efeito, uma coisa delicada e se damos mostra de negligência, a balança pende facilmente para o lado oposto.





Vigiar a cabeça da serpente



[39] É o que a Escritura parece querer dizer de forma simbólica quando diz: “A terra na qual vocês vão entrar é uma terra instável sujeita aos movimentos dos povos[99]”. Pois quem entra em possessão das virtudes é ao mesmo tempo empurrado no sentido contrário, pois é uma terra instável. É preciso, assim, não deixar entrar, por pouco que seja, as imagens que podem estragar a reflexão. Também não devemos deixá-la descer para o Egito, pois de lá ela seria levada aos Assírios[100]. Com efeito, quando a reflexão desce às trevas dos pensamentos impuros – o que é representado pelo Egito – ela é arrastada à força pelas paixões, contra sua vontade, para realizar as suas obras. É por isso que o Legislador proibiu simbolicamente a entrada do prazer ao ordenar que se vigiasse a cabeça da serpente[101]. De fato, esta observa o calcanhar para realizar seu desígnio, pois, sem atingi-lo, ela não poderá introduzir o veneno de sua picada. Cabe a nós cuidarmos de impedir o assalto do prazer, para que ele perca sua eficácia. Sansão não teria podido incendiar as colheitas dos estrangeiros se não tivesse amarrado as raposas duas a duas, com as cabeças voltadas em sentidos contrários, e prendido tochas às suas caudas[102]. Quem consegue detectar desde o começo o ataque dos pensamentos perversos e observa seus primeiros movimentos – pois eles se apresentam sob belas aparências para conseguir seus fins – poderá denunciar a inconveniência destes pensamentos pela comparação do resultado final com o aspecto inicial. É isto que significa prender as raposas pelas caudas e colocar entre elas a tocha da condenação.





Perceber aonde levam os pensamentos



[40] Para esclarecer o que foi dito, darei dois exemplos, e veremos que o mesmo acontece em outros casos. Muitas vezes o pensamento da luxúria provém da vanglória e a entrada do caminho que conduz ao inferno parece sedutor, mas ela dissimula desvios funestos que conduzem às profundezas do inferno aqueles que o seguem sem reflexão. Eles são levados ao sacerdócio ou à vida perfeita do monge, muitos chegam a eles para serem ajudados, o que os faz imaginar a honra que lhes valem suas palavras e suas ações. Nutrindo-se de tais pensamentos, eles se afastam da vigilância natural, imaginam o feliz encontro com uma santa mulher, o que os leva a assentir a consecução do ato impuro, e a desenvoltura de sua consciência os arrasta ao último grau da abjeção. Quem pretende amarrar as caudas das raposas deve perceber aonde levam os dois pensamentos: para a vanglória, a honra, para a luxúria a vergonha; se ele perceber claramente o contraste entre o começo e o fim, ele poderá considerar então ter agido como Sansão.



Outro exemplo: o pensamento da gula termina no da luxúria, e o termo deste é o da tristeza. Pois, tão logo nos deixamos vencer por estes pensamentos e voltamos a nós, somos tomados pelo desencorajamento. Aquele que luta não deve pensar nem nos prazeres da comida nem na doçura da volúpia, mas nos resultados a que levam estes, e assim, antevendo a tristeza que se seguirá, saberá que os ligou pelas caudas, e, com a tocha da condenação, destruirá a colheita dos estrangeiros.





Ciência e experiência necessárias aos mestres



[41] Se a luta contra as paixões requer esta ciência e esta experiência, aqueles que assumem a direção de outros devem saber o quanto de ciência lhes é necessária para conduzir seus discípulos à recompensa da vocação celeste[103] e para lhes mostrar claramente todas as armadilhas. Não se trata apenas de simular a vitória dando socos no ar, mas de infligir feridas mortais ao inimigo no combate. Pois é em vão que lançamos os braços no ar se não atingimos o adversário. Este combate é mais difícil do que uma ginástica. Os corpos dos atletas se sobram e se erguem facilmente, mas quando as almas tombam, ainda que uma só vez, elas não se levantam sem um enorme esforço. Se vivemos ainda presas das paixões e, cobertos de sangue, tentamos construir o templo de nas almas, teremos que ouvir o que foi dito: “Você não construirá um templo, você que é um homem que derramou sangue[104]”. Construir um templo para Deus exige que estejamos em paz. Moisés tomou sua tenda e a armou fora do campo[105], o que mostra que o mestre deve se colocar o mais longe possível do tumulto da guerra e habitar fora da agitação do campo para levar uma vida calma e tranquila.





Docilidade requerida dos discípulos



Quando encontramos tais mestres, eles exigem dos discípulos que renunciem a si mesmos e que afastem suas próprias vontades a ponto de não mais se distinguirem de um corpo inanimado ou da matéria bruta empregada por um artista. A alma no corpo faz o que quer sem que o corpo resista, e o artista demonstra seu saber sem que a matéria impeça seja lá o que for que ele queria fazer para atingir o resultado almejado; assim também o mestre deve exercer em seus discípulos a ciência da virtude, possuindo discípulos dóceis que não o contradigam em nada.



[42] Inquirir indiscretamente a pedagogia do mestre e pretender julgar suas ordens, impede de progredir. Com efeito, o que parece razoável e digno de fé a quem não tem experiência não necessariamente é aquilo que convém na verdade. O artesão experiente julga os assuntos de sua arte diferentemente daquele que não é experimentado, porque ele tem seu saber como regra e o outro suas conveniências aparentes, que nem sempre correspondem à verdade, e que, na maior parte das vezes, afastam-se da retidão porque estão mais aparentadas à ilusão. Por exemplo, o que há de mais irrazoável do que um piloto que conduz seu navio obliquamente ao invés de avançar em linha reta, e que ordena aos passageiros que se mantenham do lado imerso aliviando o lado que se eleva sobre as ondas e sobre o qual se exerce a pressão do vento, acentuando assim a inclinação do navio? Na verdade, seria mais conveniente mandar o peso para a parte mais elevada e não correr para o lado que pende perigosamente. E, no entanto, os passageiros obedecem ao piloto antes do que às suas próprias ideias. O perigo os convence de se submeter à arte daquele que tem a responsabilidade por sua salvação, mesmo se o que ele faz parece não merecer crédito. Não devem aqueles que confiaram a outrem o cuidado com sua salvação abandonar suas próprias conveniências aparentes e sacrificar seus próprios pensamentos à arte daquele que sabe, considerando mais seguro o seu saber?








III

RENÚNCIA E ASCESE





Renúncia total e imediata dos bens deste mundo



Em primeiro lugar, que aqueles que renunciam ao mundo não deixem nada de lado, temendo o exemplo terrível de Ananias que pensava prejudicar apenas os homens e que incorreu na condenação de Deus por seu furto[106].



[43] Eles deveriam não apenas abandonar a si mesmos, mas abandonar tudo o que possuem, pois aquilo que eles retêm atrai constantemente seu pensamento, desviando-os das melhores coisas e afastando-os definitivamente da perfeição da fraternidade. É por isso que o Espírito Santo descreveu as vidas dos Patriarcas, a fim de que cada um de nós, qualquer que seja seu tipo de vida, tenha exemplos apropriados para alcançar a verdade. Assim, como foi que Eliseu renunciou ao mundo a partir da conduta de seu mestre? “Ele trabalhava com doze juntas de bois, foi dito, ele os degolou e os cozinhou com seus arreios[107]”. Isto mostra o fervor de seu zelo. Não foi dito: “Venderei as cangas dos bois e disporei do dinheiro como convier”; ele não refletiu sobre como extrair alguma vantagem daquilo que iria fazer.;todo seu desejo o impulsionava a estar com seu mestre, e ele desprezou as coisas visíveis, apressando-se em se desembaraçar delas, percebendo que elas o desviavam do bom propósito e que adiar as coisas muitas vezes faz com que mudemos de opinião. Porque o Senhor, quando propôs ao rico a perfeição da vida conforme a Deus, ordenou-lhe que vendesse todas as suas coisas e que desse o dinheiro aos pobres[108] sem nada guardar para si, senão por saber que aquilo que se guarda fornece todo tipo de distrações? Penso também que quando Moisés ordenava aos que queriam se purificar por uma longa oração depilassem inteiramente seus corpos[109], é porque ele exigia a renúncia total aos seus bens.





Desligamento dos parentes e amigos



Em segundo lugar, aqueles que abraçam a vida monástica devem esquecer parentes e amigos, de tal modo que não sejam mais perturbados pela lembrança destes. [44] Quando as vacas foram atreladas ao carro da arca, esta as fez esquecer sua natureza, e, embora seus bezerros tenham sido separados delas no estábulo, elas caminharam direto sem que ninguém as forçasse, não se desviando nem para a direita, nem para a esquerda[110]. Elas não mostraram apego às suas crias, voltando a cabeça, nem demonstraram com mugidos sua contrariedade em serem separadas de sua progênie, mas, penando sob o peso da arca e submetidas à tirania da natureza, avançaram como sobre trilhos, sem se desviar do caminho reto, subjugadas pela reverência devida à arca. Portanto, se animais puderam agir assim, não devem aqueles que carregam a arca espiritual agir da mesma maneira? Eles devem fazer ainda mais, para que a criatura racional não seja condenada por suas obras pelos animais desprovidos de razão, por não fazer com a inteligência aquilo que os animais fazem necessariamente. A razão pela qual José se perdeu no deserto é sem dúvida por ter buscado atingir a perfeição a partir dos nomes de seus próximos. De fato, o homem a quem ele perguntou a verdadeira causa de sua desorientação sabia que era o apego aos seus parentes, pois ele não disse que eles faziam pastar os rebanhos, mas que os conduziam, de modo que o homem se enganou a respeito de seu ofício: “Eles partiram daqui, disse ele, pois eu os ouvi dizer: Vamos para Dotain[111]”. Dotain significa “desligamento suficiente”. A resposta do homem indica assim que aquele que ainda ama os bens corporais está perdido e não pode atingir a perfeição se não renunciar suficientemente ao apego ao parentesco carnal.



[45] Com efeito, mesmo se deixarmos Harã[112], ou seja, os sentidos, pois esta palavra significa “grutas”, e partirmos para o vale do Hebron[113], ou seja, as obras vis e do deserto aonde está ainda a perdição para quem busca a perfeição, enquanto não atingirmos o desligamento suficiente, nada ganharemos com nossas penas. O amor pelos nossos nos separa da perfeição. Verdadeiramente, o Senhor nos mostrou com clareza a necessidade de romper com todos os laços de parentesco quando repreendeu Maria, a Mãe de Deus, que o buscava entre os seus[114], e quando ele declarou indignos dele quem amasse seu pai ou sua mãe mais do que a ele[115].





Subtrair-se à agitação do mundo pela hesíquia



Depois que estes dois desligamentos tenham sido obtidos, é preciso aconselhar aos que se subtraíram à agitação do mundo, que vivam na hesíquia, não reabrindo, por retornos consecutivos, as feridas feitas na reflexão pelos sentidos, nem acrescentando novas formas às velhas imagens dos pecados. É preciso ao mesmo tempo repelir os assaltos das novas imagens e colocar todo o empenho em apagar as antigas. A hesíquia é trabalhosa para quem renunciou ao mundo há pouco tempo, pois neste momento a memória ainda consegue remoer todas as impurezas que existem nela, enquanto que daí para frente ela não terá mais folga devido a uma série de preocupações. Mas depois do trabalho, a hesíquia buscará com o tempo a liberação do espírito da perturbação dos pensamentos impuros. Com efeito, se nos propomos a aliviar a alma, devemos nos separar de todas as coisas que aumentam a sujeira e buscarmos com a razão mais calma, longe de tudo o que excita, evitando as conversas com quem encontramos e guardando nossa solidão, que é a mãe da sabedoria.



[46] É fácil aos que se imaginam liberados cair novamente nas mesmas armadilhas, se viverem em maio à multidão. Com efeito, é inútil, àquele que se converteu à virtude sentir prazer nas coisas que já rejeitou. Mas a força do hábito é tão grande que é preciso sempre temer a perda da hesíquia adquirida com  tantos esforços e retornar aos costumes vergonhosos reavivando a memória dos pecados passados. O intelecto daqueles que se afastaram do mal há pouco tempo é como o corpo de um convalescente após uma longa enfermidade: a menor oportunidade basta para provocar uma recaída no organismo que ainda não recuperou toda a sua força. Estando os músculos enfraquecidos e frágeis, devemos sempre temer que o mal retorne depressa. Ora, ele é estimulado naturalmente quando se passeia no exterior em meio à multidão. Por esta razão, Moisés ordenou aos que quisessem escapar do anjo exterminador que permanecessem no interior de suas casas: “Que ninguém saia fora das portas de sua casa, a fim de que o extermínio não o alcance[116]”. Jeremias parece ter dado a mesma ordem quando disse: “Não saiam para os campos e não andem pelos caminhos, pois a espada dos inimigos está em toda parte[117]”. Com efeito, cabe aos guerreiros valorosos ir ao encontro dos inimigos e ao mesmo tempo subtrair-se sem danos aos seus embustes. Mas quem está incapacitado de combater, que permaneça são em casa, garantindo para si uma perfeita segurança pela hesíquia. Assim foi com Josué, filho de Nun, sobre quem está escrito: “O servidor Josué, que era jovem, não saiu de sua tenda[118]”. De fato, ele sabia, pela história de Abel, que aqueles que partissem para os campos e se engajassem prematuramente no combate seriam mortos por seus próximos e amigos[119].



[47] Com a história de Dina, aprendemos com a mesma clareza que é marca de um espírito pueril e feminino tentar feitos que nos ultrapassam e imaginar que somos capazes para tal[120]. Pois se Dina não tivesse se aventurado tão impensadamente a apreciar as coisas da vizinhança, como se ela fosse forte o bastante para não se deixar prender por seu encanto, o juízo de sua alma não teria sido corrompido prematuramente pelas imagens sensíveis, quando ela ainda não tinha tido relações legítimas com um homem. Sabendo que esta paixão está implantada nos homens – refiro-me à presunção – e querendo desenraizá-la de nosso coração, Deus disse a Moisés o legislador: “Torne prudentes os filhos de Israel[121]”, pensando que é contrário à prudência afrontar temerariamente combates acima de nossas forças. Assim, não devemos nos misturar à agitação das cidades antes de obter o perfeito domínio de si e fugir para o mais longe possível mantendo a reflexão ao abrigo do ruído ambiente. Não é de boa utilidade àqueles que se separaram das coisas ter seus ouvidos ensurdecidos pelos ruídos provenientes do meio, assim como aos que abandonaram as cidades continuar observando, como Lot, o que se passa nas portas[122] e ser assim invadido pelo tumulto que reina no interior. É preciso se retirar, como o grande Moisés, de tal sorte que cessem não apenas as obras, mas ainda os rumores. Com efeito, ele dizia: “Quando eu deixar a cidade e estender as mãos, os rumores cessarão[123]”.



[48] A calma chega verdadeiramente quando não apenas as atividades mas também sua lembrança dão tempo à alma para ver as marcas impressas por elas e para lutar contra cada qual para eliminá-las da reflexão. Enquanto novas formas surgirem a alma não consegue apagar as que se encontram nela, pois a razão está ocupada pelas que se apresentam, e o trabalho de afastar as paixões fica necessariamente mais difícil quando estas se fortalecem crescendo pouco a pouco. Como um rio que transborda, elas submergem a faculdade de discernimento da alma pelas imagens que sobrevêm umas após outras. Se quisermos ver o leito de um rio seco para nele descobrir as coisas interessantes que ai se encontram, de nada serve deixar chegar a água ao lugar onde se quer buscar, pois a água que corre preencherá rapidamente o lugar vazio. Mas se detivermos o curso do rio a montante, o fundo aparecerá sem dificuldade, e a água que restar sairá por si só deixando aparecer a terra seca, conforme o desejo daquele que quer saber o que há ali. Da mesma forma, as marcas impressas pelas paixões são eliminadas com facilidade a partir do momento em que os sentidos não mais trazem matéria do exterior. Mas se os sentidos aportam um mar de impressões, não será apenas difícil, mas completamente impossível purificar o intelecto em meio a semelhante afluxo. Pois, ainda que as paixões não nos atormentem, por falta de oportunidade devido às constantes relações com os outros, elas no entanto subsistem ocultas e crescem e se fortalecem com o tempo.





Necessidade de guardar os sentidos



[49] O solo que é constantemente pisoteado, mesmo que contenha espinhos, não os deixa à mostra, pois a pressão constante dos pés os impede de crescer; mas eles produzem raízes fortes e florescentes nas profundezas, de tal modo que, assim que a ocasião se apresenta, brotam rapidamente. Assim também as paixões, impedidas de se manifestar livremente pelas constantes relações com os demais, fortalecem-se e, aproveitando-se da hesíquia, infligem com mais vigor um pesado e perigoso ataque àqueles que negligenciaram o combate desde o seu início. É por isso que o profeta mandou exterminar os filhos da Babilônia[124], ou seja, apagar as representações enquanto elas ainda estão no receptáculo dos sentidos, a fim de que elas não caiam na terra da reflexão na qual poderiam crescer e onde, regadas pelas fortes e daninhas chuvas da permanente inquietação, produziriam o fruto múltiplo da malícia. Um outro profeta louva aqueles que não suportam que as paixões cresçam e as matam enquanto ainda não desmamaram: “Bem-aventurado´disse ele, quem agarra seus pequenos e os arremessa contra o rochedo[125]”. Talvez o grande Jó fizesse também alusão a isto, quando disse, refletindo sobre si mesmo: “O papiro e o junco florescem na água e toda planta provada de água resseca[126]”. Suas palavras: “O formileão perece por falta de alimento[127]” parece ter o mesmo significado. Querendo mostrar o caráter insidioso da paixão, Jó criou esta palavra composta associando o leão, o mais audacioso dos animai, ao inseto mais ínfimo, a formiga. Com efeito, os assaltos das paixões começam por imagens insignificantes, que avançam de modo imperceptível como as formigas, e que crescem a tal ponto que, finalmente, seu ataque não é menos perigoso do que o do leão para aqueles que as encontram. Eis porque é preciso combater as paixões assim que elas avançam como as formigas, tomando a aparência da forma mais vil. Pois se as deixarmos atingir a força do leão, tornar-se-á difícil resistir-lhes e recusar o alimento que elas pedem. Este alimento das paixões, como já dissemos, são as imagens provindas dos sentidos; estes alimentam as paixões armando sucessivamente cada imagem contra a alma.





O combate dos sentidos



[50] É por isso que o legislador colocou treliças na cobertura do templo, significando que aqueles que querem conservar seu pensamento puro como um templo devem fazer o mesmo. Assim como as treliças impedem a entrada de todos os seres impuros, também nós devemos estabelecer em nossos sentidos como que uma treliça de pensamentos, o terror do julgamento futuro, que impeça a entrada das formas impuras que surgem sub-repticiamente. Também pela mesma razão, talvez, Ocozias ficou doente depois de cair de uma janela de treliças[128]. Pois cair de uma janela de treliça significa, no momento da tentação, deixar de opor aos prazeres as razões apropriadas. O que pode haver de pior do que esta doença? O corpo cai enfermo quando perde seu equilíbrio natural e quando um de seus elementos predomina em relação aos outros de um modo contrário à natureza. Para a alma, a doença consiste em se afastar da razão reta sob o impacto das paixões nocivas. Salomão teceu uma treliça para os que são capazes de entender quando disse: “Se seus olhos virem uma estrangeira, sua boca falará de modo hostil[129]”. As coisas hostis são o que deve acontecer depois do pecado no tempo da retribuição. Com efeito, o fato de pensar nestas coisas com a disposição conveniente afasta todos os olhares inconvenientes. Salomão falou desta disposição na qual deve se achar o pensamento neste momento: “Você jazerá como se estivesse em plano mar e como um piloto entre as ondas agitadas[130]”.



[51] Se, no momento da tentação, pudermos resistir ao espetáculo que nos excita, se nos esforçarmos para escapar aos suplícios que nos ameaçam, seremos como aquele que na tempestade no mar sobrepuja sem dificuldade os adversários, sem se importar com os ferimentos recebidos, a ponto de poder dizer: “Eles me atingiram e eu não senti dor; eles se riram de mim e não lhes dei atenção; eles me bateram, e eu pensei que apenas brincavam; eu não senti seus golpes, pois pareciam flechas de crianças. Eu não prestei atenção às suas armadilhas, como se elas não existissem[131] ”. Assim é que Davi desprezou seus adversários: “O enganador, disse ele, afastou-se de mim e eu nem sequer percebi[132]”, como se dissesse: “Eu não me dei conta se meus inimigos se aproximavam ou se se afastavam”. Quem não conhece a familiaridade que existe entre os sentidos e os objetos sensíveis é facilmente enganado por isto. E como reconhecerá a armadilha no momento crítico, por não ter discernimento, quem sequer suspeita o dano que daí resulta e se deixa levar sem precaução alguma? Vemos pela guerra dos Assírios contra os Sodomitas que é contra os sentidos e os objetos sensíveis que o combate se desenvolve, impondo tributos aos sentidos quando estes são derrotados. Com efeito, a Escritura conta, por exemplo, a história dos quatro reis assírios diante dos cinco reis do país de Sodoma[133], seus acordos, suas alianças e seus sacrifícios de paz concluídos junto ao Mar Morto; em seguida o cativeiro dos cinco reis por doze anos, sua revolta no décimo terceiro ano e a guerra que aconteceu no décimo quarto ano, durante a qual os quatro reis de Sodoma se revoltaram e fizeram prisioneiros os cinco reis assírios.



[52] Este foi o final da história. Quanto a nós, retiraremos daí uma lição para o combate dos sentidos contra os objetos sensíveis. Cada um de nós, com efeito, desde o nascimento até o décimo segundo ano de vida, por não ter ainda purificado a faculdade do discernimento, tem obrigatoriamente os sentidos sujeitos aos objetos sensíveis e submetidos às suas ordens como a déspotas: a vista às coisas visíveis, o ouvido aos sons, o paladar aos sabores, o olfato aos odores, o tato às sensações táteis. Não podemos discernir nem fazer cessar a menor destas percepções devido ao nosso estado de infância. Mas quando nosso julgamento alcança a maioridade e começa a perceber o que é nocivo, ele imediatamente pensa em como abandonar e fugir de tal escravidão. E ele se fortalece e se afirma nesta resolução, e se liberta completamente dos tiranos cruéis. Se, ao contrário, o julgamento se mostra mais fraco do que o ataque, os sentidos, vencidos pelo poder dos objetos sensíveis, caem cativos e sofrem esta escravidão tirânica sem nenhuma esperança de escapar. É por isso que os cinco reis da história, vencidos pelos quatro, foram atirados juntos no poço de betume[134], para que aprendamos com isto que aqueles que são vencidos pelos objetos sensíveis são reconduzidos com todos os seus sentidos aos objetos correspondentes a cada qual, como para dentro de abismos ou poços. A partir daí, eles já não podem pensar em nada senão nos objetos sensíveis, pois fixaram seu desejo nas coisas terrestres e estão mais ligados ao desfrutar destas coisas do que das coisas espirituais.





A terrível escravidão do hábito



[53] É como o escravo que está ligado ao seu senhor, à sua mulher e aos seus filhos e que rejeita a verdadeira liberdade em função de laços corporais, permanecendo assim escravo para sempre. Deixando que furem sua orelha com uma argola[135], ele não terá mais a faculdade de ouvir a palavra que o libertaria e permanecerá perpetuamente escravo devido à sua ligação com as coisas presentes. É por isso que a Lei ordena cortar a mão da mulher que segura pelos genitais o homem que luta contra outro[136]. Com efeito, no combate dos pensamentos sobre a escolha entre os bens terrestres e os celestes, esta mulher, ao invés de escolher estes últimos, prefere aqueles que estão sujeitos à geração e à corrupção – pois este é o significado dos genitais na Lei. Assim, de nada serve renunciar às coisas se não perseverarmos neste propósito e se nos deixarmos atrair novamente por essas coisas e sermos enredados em seus pensamentos. Desta forma retornamos àquilo que havíamos deixado e mostramos claramente que ainda permanecemos ligados, como a mulher de Lot que olhou para trás e foi transformada em estátua de sal a fim de se tornar até hoje uma lição para os desobedientes[137]. É o símbolo do hábito que faz voltar atrás aqueles que tentaram cumprir uma renúncia definitiva. O que quer dizer a Lei quando determina que aqueles que entraram no templo e terminaram suas preces não saiam pela mesma porta pela qual entraram, mas pela porta oposta, sem voltar sobre seus passos[138]? Não é para significar que não devemos interromper nossa marcha retilínea para a virtude por desvios à nossa ré? Se voltamos continuamente a cabeça para aquilo que deixamos, somos atraídos para trás e nosso ímpeto cessa de nos empurrar para frente para nos fazer voltar aos antigos pecados.



[54] O hábito que nos atrai de volta e nos impede de retornar ao nosso estado de virtude é uma coisa terrível. Com efeito, o estado provém do hábito e este estado se torna como que uma segunda natureza. É difícil mudar e transformar uma natureza; mesmo se a inclinarmos com alguma força, ela retorna a si mesma rapidamente. Sempre podemos fazê-la sair um pouco de seus limites, mas não podemos mudá-la completamente, a menos que, ao preço de muitos trabalhos, a impeçamos de retornar sobre seus passos ao estado que ela perdeu ao adquirir o mau hábito.





Raquel sentada sobre os ídolos



A alma que segue os hábitos é como Raquel sentada sobre os ídolos; ela permanece ligada às coisas informes e mesmo quando quer se dirigir para coisas mais elevadas, não consegue: “Eu não posso, disse ela, levantar-me em sua presença, pois tenho aquilo que acontece regularmente às mulheres[139]”. De fato, a alma que há muito tempo se compraz com as coisas da vida terrestre está verdadeiramente “sentada sobre ídolos”, sobre objetos que não têm forma em si mesmos e que recebem sua forma da arte dos homens. A riqueza, a glória e as outras coisas da vida são coisas informes, sem nada de notável nem de característico. Traindo esta realidade por uma aparência sedutora, elas mudam a cada dia; somos nós que lhes damos uma forma quando atribuímos por meio de raciocínios humanos uma utilidade imaginária a coisa que não possuem nenhuma utilidade real.



[55] Nós dedicamos às necessidades essenciais do corpo um luxo inconcebível, adicionando mil temperos aos alimentos e enfeites caríssimos às roupas apenas para o fausto e o conforto; e se alguém nos critica estas vaidades – sem razão, pensamos nós – nós nos defendemos ardorosamente alegando que nos atemos apenas ao que é conveniente. Que fazemos assim, senão dar forma a objetos que não a possuem em realidade? É acertadamente que dizemos que tal alma está “sentada sobre os ídolos”. Pois quando a alma, como dissemos, afirma em si estes juízos e se liga desta maneira às coisas como se fossem ídolos, ela não mais está submetida à verdade e não pode mais se erguer, ela está manchada pelos maus hábitos, assim como a mulher pela impureza de suas regras. A Escritura fala em estar sentado para frisar a indolência, que se abstém de fazer o bem, e o amor ao prazer. Ela menciona a indolência quando fala “daqueles que estão sentados nas trevas e na sombra da morte, cativos das misérias e das correntes[140]”, pois as trevas e as correntes nos pés impedem de agir. Trata-se também do prazer quando se fala daqueles que retornaram de coração ao Egito e que diziam entre si: “Nós nos lembramos dos dias em que nos assentávamos junto a pratos de comida e comíamos à vontade[141]”. Na verdade sentam-se junto aos pratos de comida aqueles que sem cessar atiçam seu apetite pelos líquidos e pelo calor. E a gulodice é a mãe do prazer, pois é ela que engendra todas as demais paixões. Com efeito, é dela, como de uma raiz, que proliferam todos os brotos das demais paixões que, pouco a pouco, sobre a árvore mãe, estendem aos céus seus ramos de malícia. Avareza, cólera e tristeza são filhas e descendentes da gula; pois o guloso precisa primeiro de dinheiro para suprir sua concupiscência jamais satisfeita. A cólera vem então provocada por tudo o que se opõe à aquisição do dinheiro; segue-se a tristeza, quando a cólera se mostra impotente para alcançar seus fins. Tal é a sorte daquele que avança “sobre o peito e o ventre[142]”: ele avança sobre o ventre quando dispõe de meios materiais para usufruir dos prazeres; quando estes faltam, ele rasteja sobre o peito, onde se assenta a cólera. De fato, os concupiscentes provados de seus prazeres tornam-se furiosos e amargos.





O discernimento dos perfeitos



[56] É por isso que o grande Moisés fez com que o sacerdote trouxesse sobre o peito um peitoral, indicando com este símbolo que ele deve refrear ciosamente os impulsos da paixão da cólera com seu pensamento; pois o peitoral representa a faculdade do discernimento, e aquele cuja paixão domina a razão é imperfeito; Moisés, que era perfeito, havia feito desaparecer totalmente a cólera, pois não apenas ele portava o peitoral, mas ainda ofereceu o peito, como foi dito: “Moisés tomou o peito e o ofereceu colocando-o diante do Senhor[143]”. Outros não conseguiram afastar completamente a cólera e não dominaram a paixão pela razão, mas tornaram-se senhores dela com muito esforço: estes são os que ergueram o peito com o braço, pois o braço é o símbolo do esforço e da ação. Da mesma forma, o fato de avançar sobre o ventre, rastejando, representa justamente o prazer, pois o ventre é, por assim dizer, a causa dos prazeres porque, quando está cheio, os apetites pelos demais prazeres se tornam mais intensos e, quando lhe falta alguma coisa, estes permanecem tranqüilos e mais estáveis. Daí a diferença entre aquele que progride e o perfeito. Moisés, que havia rejeitado completamente o prazer dos alimentos, lavou o ventre e os pés com água: o ventre designa o prazer e os pés a marcha para o progresso. Aquele que progride lava o que está no ventre, mas não todo o ventre. Existe uma grande diferença entre o que Moisés lavou e o que os outros lavam. De uma parte, trata-se de um gesto voluntário; de outra parte, algo ordenado.



[57] Com efeito, é preciso que o perfeito seja levado às ações virtuosas por um movimento próprio, enquanto que quem progride obedece às ordens do superior. Com o maior cuidado ele ergue inteiramente o peito, mas não ergue o ventre, ele o lava. Pois embora o sábio seja capaz de rejeitar e eliminar a cólera, ele não pode suprimir o ventre. A natureza é forçada a se utilizar de alimentos essenciais, mesmo no asceta mais mortificado. Quando a alma não segue mais a razão reta e firme, mas se deixa corromper por prazeres grosseiros, o ventre se incha, pois, mesmo quando os órgãos do corpo se encontram saturados, a concupiscência permanece insatisfeita e ao inchaço do ventre segue-se o enfraquecimento das coxas[144]. Então a reflexão perde a força para engendrar o bem, por estar o ventre inflado pela riqueza dos alimentos, e as energias espirituais se tornam abatidas. É isto que a Lei dá a entender com a imagem das coxas. Assim é que o concupiscente avança rastejando sobre o ventre, voltado inteiramente para a fruição dos prazeres. Mas quem se engaja na vida virtuosa faz desaparecer a gordura que enche o ventre recusando os alimentos que engordam o corpo; aquele que progride lava o que está no ventre; enfim, o perfeito lava totalmente o ventre rejeitando inteiramente tudo o que não é estritamente necessário.





Gulodice e luxúria



[58] “Sobre o peito e o ventre”, diz o texto, acrescentando bem a propósito: “Você avançará[145]”. Com efeito, o prazer não é próprio das pessoas estáveis e calmas. Mas dos agitados e turbulentos. O prazer sexual é ainda mais aparentando com a gulodice do que as demais paixões. Querendo mostrar a estreita conexão entre estas duas paixões, a natureza colocou os órgãos sexuais logo abaixo do ventre. Se a concupiscência daqueles diminui, é porque este está em estado de privação; ao contrário, se sua concupiscência se inflama e se excita, é devido ao vigor do ventre saciado. E a gulodice não é apenas a mãe e a nutriz dessas paixões, ela é também a destruidora do bem. Pois uma vez que ela se torna senhora e detém o poder, normalmente as virtudes tombam e desaparecem: a temperança, a castidade, a coragem, a força e todas as outras. É isto que Jeremias quis dizer misteriosamente quando afirmou: “O cozinheiro chefe dos Babilônios destruiu a muralha que cerca Jerusalém[146]”; o cozinheiro chefe é uma imagem da paixão da gula. Com efeito, o cozinheiro chefe dedica todo seu zelo em servir o ventre e inventa mil receitas para produzir prazer; da mesma forma a gulodice põe em marcha todos os meios de buscar prazer no momento da fome, e a variedade de alimentos toma posse do forte das virtudes e o destrói de alto a baixo.



[59] As ervas e os temperos vão contra a virtude, ainda que firme; são como máquinas e engenhos de guerra que sacodem e destroem sua firmeza e solidez. E do mesmo modo como uma alimentação demasiado rica destrói as virtudes, a frugalidade abate a fortaleza dos vícios. Com efeito, assim como o cozinheiro chefe dos Babilônios destruiu as muralhas de Jerusalém, ou seja, a alma em paz, desencadeando os prazeres da carne com sua arte culinária, também o pão de cevada dos Israelitas, rolando, colocou por terra as tendas dos Medianitas[147]. Pois um regime frugal regular e progressivo destrói na maior parte das vezes os impulsos da luxúria. Os Medianitas são, de fato, um símbolo das paixões da luxúria, porque foram eles que introduziram a prostituição em Israel e seduziram um grande número de jovens. A Escritura fala com justiça das tendas dos Medianitas e da muralha de Jerusalém, porque tudo o que cerca a virtude é sólido e firme, enquanto que o que contém o vício é como uma tenda ou um pano, em nada diferente de um fantasma.





Vantagens da vida no deserto



[60] Eis porque os santos fugiam das cidades e evitavam os encontros numerosos, sabendo que a companhia de homens corruptos era mais perigosa do que a peste. Assim é que, sem nada levar consigo, eles deixavam suas posses ao abandono, libertando-se das distrações que elas lhes traziam. Pela mesma razão Elias deixou a Judéia para habitar o monte Carmelo, que era um deserto e território de animais selvagens[148], e onde não havia mais do que árvores para prover alimentos; ele se contentava com frutas para as necessidades de sua natureza. Eliseu seguiu o mesmo modo de vida, tendo herdado de seu mestre, entre outras coisas boas, o amor pelo deserto. Também João Batista habitava no deserto próximo ao Jordão, alimentando-se de  gafanhotos e mel selvagem[149], mostrando a todos a despreocupação com a subsistência corporal e criticando a busca da fruição. E talvez Moisés tenha estabelecido uma lei geral quando prescreveu aos Israelitas, a respeito do maná, que o recolhessem a cada dia[150], frisando assim judiciosamente que os homens devem viver cada dia sem se preocupar com o amanhã. Ele pensava que à criatura racional convém se contentar com aquilo que se apresenta e reconhecer que Deus é o dispensador do resto. Senão, fazendo provisões pra o futuro, mostramos uma falta de confiança na graça de Deus, como se ele não espalhasse continuamente seus dons sobre os homens.



[61] Em resumo, é por isso que todos os santos “de quem o mundo não era digno”, deixaram as regiões habitadas para “errar pelos desertos e as montanhas, nas grutas e nas cavidades da terra, vestidos com peles de carneiro ou couros de cabras, submetidos às privações, oprimidos e maltratados[151]”. Eles fugiram da malícia natural dos homens e das coisas inúteis de que estão cheias as cidades, não querendo ser levados pelo turbilhão agitados em que a maior parte das pessoas está engajada, levadas por um ímpeto violento como a força de uma correnteza.  Eles eram felizes por viver entre animais selvagens, considerando-os menos nocivos do que seus semelhantes. Eles fugiram dos homens como se fossem seus inimigos, enquanto confiavam nos animais como sem fossem amigos, pois estes não ensinam o pecado e admiram e respeitam a virtude. É assim que os homens quiseram matar Daniel, enquanto que os leões o salvaram protegendo aquele que havia sido condenado injustamente[152]. Eles substituíram o julgamento iníquo dos homens pelo julgamento justo proclamando sua inocência. A virtude desses heróis havia sido objeto da inveja e da hostilidade dos homens; para os animais, foi objeto de veneração e respeito.









IV

EXORTAÇÃO AO DESLIGAMENTO TOTAL





Como o asno no deserto



[62] Se temos em nós o desejo de progredir, imitemos de coração as virtudes dos santos. Deixemos a escravidão do corpo e busquemos a liberdade. O asno deixado no deserto pelo Criador não ouve as reclamações do condutor e se ri do burburinho das cidades[153]. Mesmo que até o presente nós o tenhamos feito carregar uma pesada carga sob o jugo das paixões da malícia, libertemo-lo de seus laços malgrado as resistências dos que, sem que sejam seus donos naturais, adquiriram o hábito de dominá-lo. Certamente, se eles nos ouvirem dizer, não apenas de boca e com palavra, mas de coração: “O Senhor precisa dele”, eles o soltarão imediatamente e, vestido com as roupas dos apóstolos, ele se tornará a montaria do Verbo[154]. Solto e deixado em suas antigas pastagens, ele encontrará toda a verdura[155], ou seja, ele seguirá aqueles que possuem a riqueza das palavras da Sagrada Escritura, para ser encaminhado a uma vida irrepreensível, colhendo nelas a um só tempo o alimento e o prazer. Mas devemos nos perguntar como o asno deixado por Deus no deserto encontra verdura, uma vez que vive num terreno inculto e salobro. O deserto impregnado de sal geralmente é impróprio para produzir ervas. Podemos responder que se trata do deserto das paixões e que estaremos aptos a encontrar a contemplação nas palavras divinas quando expulsarmos completamente a umidade das paixões.





Rejeitar as diversões infantis



[63] Deixemos as coisas desta vida e elevemo-nos até os bens da alma. Por quanto tempo permaneceremos ainda nos jogos de criança, sem adotarmos uma mentalidade viril? Por quanto tempo ainda agiremos com a debilidade de bebês, sem progredir para as grandes coisas? Pois as crianças, quando crescem, mudam de disposições em relação aos jogos e perdem facilmente a ligação que tinham pelos objetos que os divertiam. Nozes, ossinhos, bolas são objetos aos quais as crianças se ligam e que consideram de grande valor, na medida em que seu espírito não possui maturidade. Mas quando as pessoas se tornam adultas, rejeitam tudo isto e se dedicam aos negócios com o maior empenho. Nós, ao contrário, permanecemos como crianças nos extasiando com coisas pueris e ridículas. Recusamos o esforço para adotar uma mentalidade que convenha a homens, preferimos nos abandonar às diversões terrestres, fornecendo motivos para o riso das pessoas que dão às coisas seu real valor. É vergonhoso para um adulto sentar-se para desenhar figuras infantis na areia ou nas cinzas; mais vergonhoso ainda é, para aqueles que estão destinados a usufruir dos bens eternos, rolarem nas cinzas dos bens terrestres e desonrar a perfeição de sua profissão por uma conduta inepta.



Se agimos assim é porque, ao que parece, não pensamos em nada que esteja acima das coisas que vemos, e porque não reconhecemos a excelência dos bens celestes diante do pouco valor dos bens presentes. Estamos ofuscados pelo brilho destes últimos e neles fixamos nosso desejo. Pois, na ausência das coisas melhores, as menos boas sempre adquirem valor e tomam o lugar das primeiras. Se tivéssemos uma idéia mais elevada dos bens futuros, não ficaríamos nos extasiando diante dos bens presentes.





Como marinheiros na tempestade, lançar a carga ao mar



[64] Comecemos, portanto, por nos separarmos das coisas presentes, desdenhando as posses, as riquezas e tudo o mais que submerge o espírito e o arrasta às ondas. Rejeitemos a carga, e o navio flutuará melhor. Na tempestade devemos nos desembaraçar da maior parte das bagagens, a fim de que o piloto – o intelecto – possa ser salvo com a tripulação, ou seja, os pensamentos. Quando os navegadores, em pleno mar, são pegos num furacão, eles fazem pouco caso de suas mercadorias e, por si próprios, despejam a carga no mar, considerando a vida preferível à fortuna. Para que o navio submergindo sob o peso da carga não tenha a infelicidade de afundar, eles o aliviam, atirando às ondas o mais precioso dos tesouros. Porque não dispensamos, nós também, por uma vida melhor, tudo o que arrasta a alma para o abismo? O temor a Deus não tem a mesma força do que o medo do mar? Os marujos, desejosos de assegurar uma vida transitória, não vêem como prejuízo grave a perda de seus bens, e nós, que pretendemos aspirar à vida eterna, não dispensamos sequer o mais insignificante objeto e preferimos morrer com as mercadorias a sermos salvos sem elas.





Como os atletas, despojemo-nos de tudo para a luta



Despojemo-nos de tudo, eu lhes peço, pois nosso adversário, este, está nu. Os atletas não lutam vestidos, a regra é que eles entrem na arena sem vestimentas. Faça frio ou calor, é assim que eles fazem sua entrada, deixando as vestes do lado de fora. Se alguém recusa despir-se, recusa a luta. Ora, nós que recebemos a ordem de lutar, e contra adversários que são bem mais lestos do que aqueles que lutam visivelmente, não apenas não tiramos as roupas, como ainda nos atiramos ao combate com inúmeros fardos às costas, dando assim múltiplas oportunidades aos nossos antagonistas.



[65] Com efeito, como pode alguém cumulado de bens materiais lutar contra “os poderes espirituais da malícia[156]”, estando vulnerável de todos os lados? Como alguém cercado de riquezas combaterá o espírito da avareza? Como alguém envolvido em mil preocupações poderá enfrentar os demônios que são livres de qualquer preocupação? A Sagrada Escritura diz: “Aquele que está nu correrá alegremente naquele dia[157]”. Aquele que está nu, não o que está revestido com todos os rebanhos de preocupações pelas coisas deste mundo; aquele que está nu, não o que é impedido de correr pela quantidade de bens e riquezas. Quem está nu torna-se difícil, senão impossível, de ser agarrado por seus adversários. Se o grande José estivesse nu, a Egípcia não teria conseguido agarrá-lo, pois a Escritura diz que ela o segurou pelas roupas dizendo: “Deite-se comigo[158]”. As roupas são as coisas corpóreas por meio das quais o prazer nos atrai e se apodera de nós. Quem está ligado a elas é necessariamente levado a lutar contra os que as roubam. Foi assim que José, o atleta da castidade, vendo-se arrastado à força, pela vestimenta necessária ao corpo, à volúpia da união carnal, compreendeu que ele deveria estar nu para vencer sua soberana que pretendia fazer-lhe violência; e ele abandonou suas vestes e fugiu como o primeiro homem que circulava nu no Paraíso graças à sua virtude.  Adão havia recebido de Deus este privilégio da nudez, até que foi obrigado a usar roupas por causa de sua desobediência. Enquanto ele lutou contra os adversários que o pressionavam a violar a ordem de Deus, ele permaneceu nu como o atleta na arena; mas uma vez vencido e fora de combate, ele concordou em vestir-se, porque a nudez está associada às condições da luta.



[66] É por isso que o autor dos Provérbios dizia ao treinador do atleta: “Tire suas vestes, pois ele vai entrar na arena[159]”. Enquanto está fora do estádio, é bom que o lutador mantenha suas vestimentas tanto quanto os que não vão combater, para dissimular sua força sob vestes sensíveis. Mas quando ele avança para o combate, “retire suas vestes”, Pois é preciso combater nu, e não apenas nu, mas ainda besuntado de óleo. O fato de estar nu impede o lutador de ser agarrado por seu antagonista, e estar besuntado de óleo lhe permite escapar facilmente se for pego. Eis porque cada um dos adversários se esforça para jogar terra no outro, a fim de que a untuosidade do óleo seja atenuada pela poeira e ele consiga segurar seu antagonista. No nosso combate, a poeira são os negócios terrestres, e o óleo a libertação das preocupações. E assim como o lutador bem besuntado de óleo se livra facilmente das garras de seu adversário, e como, ao contrário, se for atingido pela poeira, livra-se com mais dificuldade, também no nosso caso, aquele que não tem nenhuma preocupação não é facilmente agarrado pelo diabo, mas o que está como que coberto pela poeira das preocupações terrestres não possui a inteira liberdade de espírito e tem dificuldade em se livrar das mãos do adversário.





Desembaraçar-se de todas as preocupações



[67] A característica de uma alma perfeita é estar desembaraçada de toda e qualquer preocupação, enquanto que a alma do ímpio está cheia de preocupações.  Com efeito, diz-se da alma perfeita que ela é como “um lírio em meio aos espinhos[160]”, o que indica que ela vive sem preocupações no meio daqueles que estão cheios de preocupações. Pois no Evangelho o lírio é uma imagem da alma desembaraçada de preocupações: “Eles não tecem nem fiam, e estão envoltos em maior glória do que Salomão[161]”. Ao contrário, dos que têm muitas preocupações com as coisas materiais se diz: “Toda a vida do ímpio está nas preocupações[162]”. E, com efeito, o ímpio passa toda a sua vida ocupando-se de coisas corporais, sem mostrar a menor preocupação com as coisas futuras; para o corpo, que entretanto não tem necessidade de muitos cuidados, ele dispensa todo seu tempo, mas para a alma ele não reserva sequer um curto instante, enquanto que ela é capaz de tal progresso que toda uma vida não é suficiente para levá-la à perfeição. Mesmo quando parecemos lhe dedicar algum tempo, é com descuido e negligência que o fazemos, fascinados que estamos pelas aparências das coisas visíveis. Somos como pessoas seduzidas pela feiúra prostituída que, desprovida de beleza real, cria uma falsa aparência para enganar quem a fita, corrigindo sua deformidade à custa de cosméticos. Vencidos pela vaidade das coisas presentes, ficamos incapazes de ver a feiúra da matéria, iludidos pela ligação que temos por ela.



Manter-se com o estritamente necessário às necessidades do corpo



[68] Por esta razão, não nos mantemos dentro daquilo que é o estritamente necessário, mas, perseguindo uma saciedade nociva à vida, nos comprazemos em toda espécie de posses, sem perceber que nossas posses devem estar na medida das necessidades do corpo e que tudo o que vai além é desregramento e não mais necessidade. Uma túnica na medida do corpo é ao mesmo tempo conforme à necessidade e ao bom gosto. Se ela é demasiado longa, chegando aos pés e arrastando pelo chão, ela é ao mesmo tempo chocante e dificulta qualquer tipo de trabalho. Da mesma forma, as posses que ultrapassam as necessidades do corpo são um entrave à virtude e objeto de severa censura da parte daqueles que são capazes de compreender a verdadeira natureza das coisas. Não devemos prestar atenção àqueles que vivem enganados pelas coisas sensíveis, nem seguir cegamente os que estão ligados às coisas terrestres, porque eles jamais pensam nas coisas espirituais. É como se recorrêssemos a cegos para julgar as cores ou a surdos para apreciar a música: confiamos em pessoas que não possuem o necessário para julgar as coisas espirituais, porque elas optaram pela fruição das coisas presentes. São cegos, aqueles cujo espírito é desprovido das faculdades mais necessárias para discernir as coisas excelentes das coisas indiferentes.



[69] Um destes foi Acã, filho de Carmi, que confessou a Josué haver enterrado sob sua tenda os objetos que ele havia roubado, com a prata escondida por baixo[163]. De fato, considerando mais preciosos estes objetos materiais, variados e esplêndidos, ele enterrou debaixo sua razão, perdendo-se verdadeiramente como um ser desprovido de razão e se entregando às aparências daquilo que lhe agradava. Ele rebaixou seu pensamento de seu trono real ao nível dos subordinados, ou antes, dos criminosos. Pois se seu pensamento houvesse permanecido firmemente estabelecido em seu lugar, encarregado de julgar as coisas sensíveis, ele teria dado um veredicto justo e direito, condenado o ímpeto que o levara às coisas enganadoras.





O excesso a que conduz a concupiscência ilimitada



É, portanto, bom manter-se destro dos limites do necessário e fazer todo o possível para não ultrapassá-los. Pois, quando nos deixamos levar um pouco pela concupiscência aos prazeres da vida, já não teremos a seguir razão para deter o movimento que se iniciou. Com efeito, para além da necessidade já não existe limite, e o ardor imenso e a vaidade sem limites aumentam sempre o trabalho de adquirir mais, alimentando a concupiscência como alimentamos uma chama acrescentando mais combustível.



[70] Uma vez ultrapassados os limites das necessidades da natureza, começa o desenvolvimento da vida material, quando desejamos algo de mais saboroso sobre o pão, quando juntamos um pouco de vinho ordinário à água, e assim por diante. Não suportamos mais usar roupas comuns, mas passamos a adquirir as mais belas lãs, escolhendo as de melhor qualidade, para depois passar às combinações escolhidas de linho e lã, e daí para as sedas, primeiro simples e logo com bordados representando combates, jogos e toda espécie de cenas. Adquirimos vasilhas de prata e de ouro, não apenas para nossa mesa, mas para servir aos animais ou para servir de urinol. O que é preciso acrescentar para mostrar a ostentação absurda das pessoas que estendem sua vaidade até as necessidades mais baixas e que consideram indignos de seus dejetos recipientes feitos de outro material que não prata? É assim que o prazer chega ao cúmulo e leva o luxo material até as ações mais vis.





Os homens se tornam mais irracionais do que os animais



[71] Tal conduta é contra a natureza, pois o Criador ordenou a nós e aos animais: “Eis que lhes dou, disse Deus ao homem, todas as ervas dos campos para servir de alimento a vocês e aos animais[164]”. Nós recebemos o mesmo regime dos seres desprovidos de razão, mas se usamos nossas faculdades intelectuais para substituí-lo pelo pior dos desregramentos, não será certo sermos considerados mais irracionais do que eles? Os animais permanecem dentro dos limites da natureza, em nada se afastando daquilo que lhes foi ordenado por Deus, e nós, homens dotados de razão, abandonamos por completo a antiga lei. Quantos alimentos cozidos comem os animais? Têm eles cozinheiros para encher de prazeres seus ventres miseráveis com mil artifícios? Eles comem a erva, contentando-se com o que encontram, e bebem a água das fontes – muitas vezes, em pequenas quantidades. Do mesmo modo eles temperam os prazeres sexuais e não inflamam a concupiscência com comidas gordurosas. Eles só têm consciência do sexo durante a estação do ano reservada pela lei da natureza à sua união por espécie a fim de mantê-la e propagá-la. No resto do tempo, eles são estranhos uns aos outros a ponto de esquecer completamente a atração sexual. Entre os homens, ao contrário, devido à riqueza da alimentação, uma concupiscência insaciável de prazeres carnais se desenvolve, suscitando desejos furiosos e não dando jamais repouso à paixão.





Evitar os perigos trazidos pelo amor às riquezas



[72] Uma vez que as posses causam tamanho prejuízo e, como fonte envenenada, dão impulso a todas as paixões, eliminemos a própria causa, se desejamos a saúde de nossa alma. Curemos o amor passional das riquezas pelo despojamento. Fujamos dos encontros com homens que não nos fazem nenhum bem, abraçando a solidão, pois a companhia de pessoas frívolas é nociva e desastrosa para a paz habitual da alma. Pois, assim como quem vive numa atmosfera pestilenta está geralmente doente, também os que vivem como homens ordinários contraem seus vícios. Com efeito, o que há de comum entre o mundo e aqueles que renunciaram ao mundo? “Ninguém, alistando-se no exército, mantém os negócios da vida civil, se quiser dar satisfação a quem o engajou[165]”. O cuidado com os negócios impede os exercícios militares; e, se não estivermos engajados, como poderemos nos manter firmes contra tropas aguerridas? Antes, a bem dizer, combateremos com tanta preguiça e indolência que não poderemos resistir ao inimigo jazente sobre a terra, e homens em pé serão surpreendidos pelo adversário caído. É o que acontece nos combates contra o amor às riquezas. Aqueles que despojam os mortos depois das batalhas muitas vezes são mortos por inimigos estendidos sobre o solo, e na esperança de um proveito vergonhoso perecem miseravelmente depois de terem obtido a vitória. É o destino que sofreremos, também nós, se nos aproximarmos do inimigo moribundo que jaz sobre a terra. Assim como soldados no campo de batalha examinam os mortos pelo desejo de riquezas e são feridos de improviso e mortos por um inimigo semimorto de quem se aproximaram para o despojar, desonrando assim tolamente a glória de seu triunfo, também nós, após havermos batido o bárbaro pela castidade e a temperança – ou acreditarmos te-lo abatido – atraídos por sua armadura, ou seja, por aquilo que parece precioso aos olhos dos homens – a riqueza, o poder, a pose, a glória – nos aproximamos, desejosos de tomar-lhe algo, e assim perecemos, atirando-nos à morte.



[73] Assim pereceram as cinco virgens da parábola[166], que, no entanto, haviam afugentado o inimigo pela pureza e a temperança; por sua dureza de coração, engendrada pelo amor às riquezas, elas se atiraram por si sós sobre a espada daquele que seria incapaz de atingi-las porque jazia sobre a terra.



Portanto, não desejemos nada daquilo que lhe pertence, para não perdermos nossa vida e aquelas coisas também. Pois ele sempre nos convida a pegá-las, ele nos pressiona, sobretudo se ele nos acha dispostos a obedecer. Ele convidou o próprio Senhor dizendo: “Eu lhe darei tudo isso, se você se ajoelhar a meus pés e me adorar[167]”, esforçando-se para enganá-lo com coisas que, nesta vida, têm brilho, mas das quais ele não tinha nenhuma necessidade. Como não pensaria ele em enganar os homens, que se mostram tão facilmente atraídos pelo usufruto das coisas sensíveis?





Exercer a piedade



Exercitemos, portanto, o intelecto na piedade, se por acaso já formos bem sucedidos fazendo-o com o corpo Pois “o exercício corporal não tem mais do que uma frágil utilidade”, nisto comparável às disciplinas infantis, enquanto que “a piedade é útil para tudo[168]”, trazendo o bem estar às almas daqueles que buscam vencer seus inimigos, as paixões.



[74] Os atletas que começam a participar dos jogos fazem bem em treinar seus corpos e mover continuamente seus membros, mas os homens já treinados preocupam-se em serem fortes no combate e em estarem cuidadosamente untados para os combates sagrados. Mas é desejável que os que ainda estão no início da piedade se apliquem em evitar os atos, pois, ainda presas dos prazeres inseparáveis das paixões, eles são levados quase contra a vontade aos vícios a que se acostumaram. Mas entre aqueles cuja prática de virtude está firme, que se preocupem com as coisas do espírito e guardem o pensamento com o maior cuidado para não serem levados a alguma imperfeição por um movimento desordenado. Em resumo, os primeiros devem se dedicar a regrar os movimentos corporais, e os segundos a forçar os ímpetos do pensamento a que se desenvolvam harmoniosamente segundo a única conduta sábia, sem nenhuma imaginação mundana que distraia o pensamento das idéias divinas.



Por amor à Sabedoria



É preciso, com efeito, que o desejo de quem se dedica à piedade seja inteiramente voltado para o Ser amado, a fim de que os pensamentos humanos não encontrem nenhuma ocasião para excitar nele as paixões correspondentes. Cada paixão, quando excitada naquele a quem ela domina, acorrenta o pensamento: porque então o zelo pela virtude não pode proteger o espírito livre das outras paixões?  Quando um homem encolerizado luta interiormente contra a imagem daquele que o ofendeu, terá ele consciência de outra coisa? E não acontece o mesmo com o homem que deseja riquezas quando, preso pela imaginação, não pensa em nada que não nos meios de obtê-la? Muitas vezes um debochado, mesmo no meio de outros homens, esquece aquilo que o cerca e, como um bloco de pedra, sem nada ver e calado, permanece inteiramente concentrado em si mesmo pensando na imagem da mulher desejada. Talvez seja uma alma assim afetada que a Lei descreve como “mantendo-se à parte[169]”, ou seja, fora dos sentidos, concentrando em si todas as energias, inconsciente das coisas exteriores, por causa da imagem vergonhosa que a ocupa.



[75] Se tal ligação toma conta assim de nosso pensamento a ponto de fazer cessar a atividade dos sentidos, quão mais não deveria o amor ardente pela sabedoria fazer renunciar o espírito às coisas sensíveis e às sensações em si, quando se eleva às alturas e mergulha na contemplação das realidades espirituais? Assim como alguém que se corta ou se queima não pensa em mais nada devido à intensidade da dor, também o homem que pensa apaixonadamente em alguma coisa é incapaz de desviar seu pensamento da paixão que o prende, ficando o espírito completamente dominado pelo objeto. O prazer não admite o sofrimento, a tristeza não admite a felicidade, a alegria não admite o aborrecimento; uma tristeza intensa não pode ser acompanhada de felicidade, nem o aborrecimento de alegria. As paixões opostas excluem-se mutuamente e jamais podem se unir nem cooperar umas com outras, devido à implacável aversão que as separa e opõe.



Que a pureza da virtude não seja manchada pelos pensamentos das coisas do mundo, nem a claridade da contemplação por cuidados corporais, a fim de que a imagem da verdadeira sabedoria, brilhando em toda sua beleza, não seja empanada pelos arrogantes nem ridicularizada pelos ignorantes, mas que seja louvada, senão pelos homens, ao menos pelas potências celestes e por Cristo nosso Senhor. É dele que os santos esperam elogios, como o grande Davi que pisoteava a glória humana e solicitava a honra de Deus dizendo: “De ti vem meu louvor[170]”, e “Minha alma será louvada pelo Senhor[171]”. Acontece com freqüência que que os homens, por inveja, condenem o bem, mas o tribunal do alto julgará com imparcialidade e dará sua sentença conforme a verdade.



Regozijemo-nos de levar a este tribunal celeste aquilo que é necessariamente causa de felicidade em nossas obras. Não precisamos nos atormentar com as opiniões dos homens, porque os homens não podem nem recompensar aqueles que foram bem sucedidos, nem punir os que não o foram. Se, por inveja ou paixão, eles procuram desacreditar as obras da virtude, eles caluniam com blasfêmias insensatas as vidas glorificadas por Deus e os anjos. Quando chegar o momento da retribuição, aqueles que foram bem sucedidos receberão em recompensa os bens eternos, não conforme a opinião dos homens mas segundo a própria verdade de suas vidas. Possamos obter estes bens pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a glória junto com o Pai e o Espírito Santo, agora e para sempre por todos os séculos. Amém.



[1]    Entre colchetes figuram as divisões da PG 79, 719-810.
[2]    Cf. Jeremias XLII, 6.
[3]      Cf. Lucas IX, 62.
[4]      Cf. Mateus VI, 33.
[5]      Mateus VI, 26.
[6]      Mateus VI, 28.
[7]      Mateus X, 10.
[8]      Cf. I Timóteo VI, 5.
[9]      Cf. Mateus XXIII, 27.
[10]    Cf. Mateus VII, 15.
[11]    Cf. II Timóteo III, 5.
[12]    Cf. Deuteronômio XXIII, 14.
[13]    Cf. Isaías LII, 25; Romanos II, 24.
[14]    Cf. Tito II, 12.
[15]    Cf. I Coríntios X, 24.
[16]    II Timóteo II, 24.
[17]    Mateus V, 40.
[18]    Habacuc II, 6.
[19]    Lamentações IV, 19.
[20]    Cf. I Coríntios VI, 18; Efésios V, 3; Colossenses III, 5.
[21]    Cf. I Reis XXI.
[22]    Cf. Números XXXIV, 15.
[23]    Gênesis XIII, 5 e ss.
[24]    Ageu I, 9.
[25]    Cf. Êxodo XVI, 6.
[26]    Cf. Êxodo XVII, 6.
[27]    Cf. Deuteronômio VIII, 4.
[28]    Cf. I Reis XVII, 6.
[29]    Cf. I Reis XVII 10 e sg.
[30]    Cf. I Reis XIX, 8.
[31]    Cf. Êxodo XXIV, 18; XXXII, 19-20; XXXV, 29.
[32]    Mateus IV, 4. cit. Deuteronômio VIII, 3.
[33]    Cf. Lamentações IV, 5.
[34]    Cf. XXXI, 27.
[35]    Levítico XI, 27.42.
[36]    Provérbios XXV, 17.
[37]    João XV, 14.
[38]   Ezequiel I, 7.
[39]    Cf. I Samuel XIV, 13.
[40]    Cf. II Samuel IV, 7 e sg.
[41]    Cf. Gênesis XVIII, 1.
[42]    Cf. Eclesiastes VI, 7.
[43]    Cf. I Timóteo VI, 8.
[44]    Cf. Eclesiastes V, 16.
[45]    Cf. Gênesis I, 29; III, 18.21.
[46]    Cf. Mateus VI, 26-27.
[47]    Cf. II Reis IV, 10.
[48]    Cf. I Reis XVII, 7-16.
[49]    Cf. I Reis XVIII, 18.
[50]    Cf. Êxodo V.
[51]    II Reis III, 14.
[52]    Cf. II Reis II, 8.
[53]    Cf. Atos XIX, 12.
[54]    Cf. I Reis XIII, 4.
[55]    Cf. II Reis V, 10 e sg.
[56]    Cf. Jeremias XLVIII, 28.
[57]    Cf. Mateus II, 1-5.
[58]    Cf. Mateus XIII, 46.
[59]    Cf. Gênesis III, 18.
[60]    Cf. Gênesis II, 15.
[61]    Cf. Filipenses III, 12.
[62]    Cf. I Samuel II, 19-29; IV, 18.
[63]    Mateus XXIII, 15.
[64]    I, 5.
[65]    Cf. Josué IV, 2-9.
[66]    Juízes IX, 48.
[67]    Juízes VII, 17.
[68]    Atos XX, 34.
[69]    Zacarias XI, 17.
[70]    Cf. I Samuel XI, 2.
[71]  Cf. Juízes IX, 7-15.
[72]    Cf. I Reis VII, 25.
[73]    Cf. Êxodo XXV, 31.
[74]    II Coríntios II, 11.
[75]    XLI, 13-14.
[76]  XLI, 18.
[77]   Eclesiastes X, 9-10.
[78]    Cf. II Reis VI, 5.
[79]    Cf. II Reis VI, 6.
[80]    Isaías II, 4.
[81]    Joel IV, 10.
[82]    Levítico XIX, 23.
[83]    Cf. Gênesis XXIX, 27.
[84]    Ezequiel XIII, 18-19.
[85]    Cf. I Coríntios XI, 14.
[86]    Mateus XXIII, 8.
[87]    Cf. Filemon X, 19.
[88]    Cf. I Reis XIX, 19.
[89]    Cf. Deuteronômio XXXI, 7-8.
[90]    Cf. I Samuel III, 19-20.
[91]     Jeremias XV, 19.
[92]     Ezequiel IV, 1.
[93]     Ezequiel IV, 3.
[94]    Ezequiel III, 17-18.
[95]    Deuteronômio XII, 30.
[96]    Cf. Gênesis XXXV, 4.
[97]    Cf. Gênesis XXXIV, 26; XLII, 2-3.
[98]    Deuteronômio XXVII, 15.
[99]    II Esdras IX, 11.
[100]           Cf. Jeremias XLII, 19.
[101]           Cf. Gênesis III, 15.
[102]           Cf. Juízes XV, 4.
[103]           Cf. Filipenses III, 14.
[104]           I Crônicas XXII, 8.
[105]           Cf. Êxodo XXXIII, 16.
[106]           Cf. Atos V, 1-10.
[107]           Cf. I Reis XIX, 19-21.
[108]           Cf. Mateus XIX, 21.
[109]           Cf. Números VIII, 7.
[110]         Cf. I Samuel VI, 12.
[111]         Cf. Gênesis XXXVII, 12-18.
[112]         Cf. Gênesis XXIX, 4.
[113]         Cf.. Gênesis XXXVII, 14.
[114]           Cf. Lucas II, 49.
[115]           Cf. Mateus X, 37.
[116]           Êxodo XII, 22-23.
[117]          Jeremias VI, 25.
[118]           Êxodo XXXIII, 11.
[119]           Cf. Gênesis IV, 8.
[120]           Cf. Gênesis XXXIV, 1 ss.
[121]           Levítico XV, 31.
[122]           Cf. Gênesis XIX, 1.
[123]           Êxodo IX, 29.
[124]           Jeremias L, 16.
[125]           Cf. Salmo CXXXVII, 9.
[126]           VIII, 11.
[127]           IV, 11.
[128]           Cf. II Reis I, 2.
[129]           Provérbios XXIII, 23.
[130]          Provérbios XXIII, 34.
[131]          Provérbios XXIII, 35.
[132]          Salmo CI, 4.
[133]           Cf. Gênesis XIV, 1 ss.
[134]           Cf. Gênesis XIV, 10.
[135]           Cf. Êxodo XXI, 6.
[136]           Cf. Deuteronômio XXV, 11.
[137]           Cf. Gênesis XIX, 26.
[138]           Cf. Ezequiel  LXVI, 9.
[139]           Gênesis XXXI, 35.
[140]           Isaías IX, 2; Salmo CVII, 10.
[141]           Êxodo XVI, 3.
[142]           Gênesis III, 14.
[143]           Levítico VIII, 29.
[144]           Cf. Números V, 21.
[145]           Gênesis III, 14.
[146]           II Reis XXV, 9-10; Jeremias LII, 14.
[147]           Cf. Juízes VII, 13.
[148]           Cf. I Reis XVII, 1-19; XVIII, 19.
[149]           Cf. Marcos I, 16.
[150]           Cf. Êxodo XVI, 16-17.
[151]          Hebreus XI, 37-38.
[152]           Cf. Daniel VI, 16-23.
[153]            Cf. XXXIX, 5-7.
[154]            Cf. Marcos XI, 3.
[155]            Cf. XXXIX, 5-7.
[156]           Efésios VI, 12.
[157]           Amos II, 16.
[158]           Cf. Gênesis XXXIX, 12.
[159]           Provérbios XXVII, 13.
[160]           Cânticos II, 2.
[161]           Mateus VI, 28-29.
[162]           XV, 20.
[163]           Cf. Josué VII, 21.
[164]           Gênesis I, 29-30.
[165]           II Timóteo II, 24.
[166]           Cf. Mateus XXV, 1-13.
[167]          Mateus IV, 9.
[168]           I Timóteo IV, 8.
[169]           Levítico XV, 33 e XX, 18.
[170]          Salmo XXII, 26.
[171]           Salmo XXXIV, 3.

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