INTRODUÇÃO
À
ESPIRITUALIDADE FILOCÁLICA
por Olivier CLEMENT
I
PARA SITUAR A
FILOCALIA
Esta
introdução não tem outro objetivo, aliás modesto, senão o de estabelecer um
vocabulário e de permitir sentir a atualidade de um pensamento. Para entender a
música secreta da Filocalia, é
preciso nos reportar ao belo posfácio de Jacques Touraille, que não apenas foi
o grande artesão da sua tradução, como também, sob muitos aspectos, um “homem
filocálico”.
A
palavra filocalia significa “amor à
beleza”, esta beleza divino-humana da qual diz Denis Areopagita “suscitar toda
comunhão”. Porém, na época em que a obra foi composta, este termo indicava mais
prosaicamente uma antologia ou florilégio. De fato, trata-se de uma vasta
coletânea, não de extratos, mas de tratados integralmente transcritos e que
constituem a “escola mística da prece interior[1]”.
Tratava-se de sugerir a ação e a contemplação com o objetivo de “descobrir “o
reino de Deus em si mesmo, o tesouro escondido no campo do coração[2]”,
alusão à parábola evangélica que descreve um homem que, tendo encontrado um
tesouro no campo, vende tudo o que possui para adquiri-lo.
A Filocalia foi publicada – em grego – em
Veneza em 1782, pois livros cristãos não podiam ser impressos no Império
Otomano. Sua redação está ligada a uma clara renovação espiritual que se
produzia então no mundo helênico e na Moldávia, e está fundamentada numa
retomada de consciência da teologia, da espiritualidade e da vida sacramental ortodoxas.
Macário de Corinto, que selecionou os textos, e Nicodemos o Hagiorita[3],
que os introduziu, haviam publicado uma obra recomendando a comunhão freqüente
(ela se tornara rara tanto no Oriente como no Ocidente) e Nicodemos editava as
principais obras dos grandes teólogos de Bizâncio.
O
que mais uma vez vem à luz com a Filocalia, é a tradição hesiquiasta[4],
que está no coração da espiritualidade monástica original, jamais interrompida
no Oriente. Ao que parece, Macário descobriu na biblioteca do mosteiro de
Vatopédi, “uma antologia sobre a união do espírito com Deus, recolhida dos
escritos dos antigos Padres graças aos cuidados de monges piedosos de antanho;
ele encontrou também outros livros sobre a oração de que ele nunca ouvira falar[5]”,
sem dúvida porque a língua na qual foram escritos havia envelhecido até se
tornar irreconhecível.
Pouco
conhecida no mundo grego, aonde só seria reeditada em 1893 e depois em 1957, a Filocalia espalhou-se principalmente na
Rússia. O estaroste Païssi
Velitchkovsky, instalado na Moldávia, traduziu-a para o eslavo e a fez imprimir
na Rússia já em 1793. Uma nova edição surgiu em 1822. A Filocalia traduzida para o russo por Teófano o Recluso, e publicada
em 1877, foi reimpressa quatro vezes até as vésperas da guerra. Ela penetrou
tanto os meios intelectuais como o povo. A “filosofia religiosa” russa foi, por
um lado, uma tentativa de conceituar a experiência filocálica. No século XX, na
Romênia, aonde a tradição hesiquiasta é muito antiga, o Padre Dumitru Staniloae
publicou uma Filocalia ainda mais extensa, com quatro volumes entre 1946 e 1948
e mais seis de 1976 a 1981.
Os
textos da Filocalia estão dispostos
em ordem cronológica: textos monásticos originais, com predominância do
pensamento de Evagro o Pôntico, síntese conclusiva da grande época patrística
quando Máximo o Confessor deu o tom, movimento carismático do ano mil a meados
do século XII em que um autor pouco conhecido, Pedro Damasceno, está longamente
representado (ele sabe unir indicações concretas e profundidade espiritual),
síntese do século XIV – um quarto da obra – dominada pela teologia experimental
de são Gregório Palamas; enfim, para encerrar, sete tratados breves mais
recentes, escritos em linguagem popular.
A
obra, como sublinha Nicodemos em seu prefácio, é destinada “aos monges e leigos
juntos”. Todos são chamados a “se unificar” interiormente unindo-se a Deus e
através disto, em Cristo, com todos os homens, segundo a oração sacerdotal
citada por Nicodemos: “que todos sejam um, como nós somos um[6].”
Os
mestres da Filocalia, inquietos com a
influência crescente da Aufklärung
sobre os gregos cultos, quiseram opor à Enciclopédia francesa das “luzes” uma
espécie de enciclopédia da Luz incriada. Porém, como Païssi que levou a obra do
mundo grego para os mundos eslavo e romeno, eles trabalharam eficazmente com os
métodos da erudição ocidental. Do mesmo modo, em nossa época, o Padre Staniloae
contemplou proveitosamente as aquisições científicas do Ocidente, mas ainda
tentou criar correspondências, em numerosas notas, com as interrogações e
descobertas desta, citando tanto Heidegger como Maurice Blondel.
Ora,
e o fato é significativo, é na Europa ocidental da segunda metade do século XX
que a Filocalia parece ser mais conhecida e esperada. Surgiram extratos nos
anos 50, e no final dos anos 80 e começo dos anos 90, traduções integrais na
Inglaterra, Itália e França. Afinal de contas, entre os descendentes deste Aufklãrung que assustou Macário e
Nicodemos, a busca de liberdade exige agora uma libertação da morte, e é a
mesma inteligência que mergulha mais e mais na interioridade depois de ter
explorado o mundo exterior.
A Filocalia não é uma obra confessional.
Ao apresentar os textos de Gregório Palamas, às vezes furiosamente
anti-latinos, Macário e Nicodemos deixaram de lado as passagens polêmicas[7].
Com a Filocalia e a tradição
hesiquiasta – como é próxima a hésychia
da pax beneditina! – a Igreja
ortodoxa traz o testemunho da Igreja indivisa em que estão enraizadas todas as
confissões cristãs. A Filocalia, de
fato, é fundamentalmente cristã e eclesial, revelando todo o alcance da
iniciação batismal. Mas ela assume métodos imemoriais, que encontramos da Índia
à China: numa perspectiva, é bem verdade, não de fusão, mas de comunhão, em que
o indivíduo ocidental, longe de se perder, se realiza ao se tornar uma
existência plenamente pessoal. Como sublinharam em nosso século um estaroste
Silouane, do monte Athos, um Dumitru Staniloae, um “Monge da Igreja do Oriente[8]”-
cuja obra breve e profunda intitulada La
prière de Jésus recomendamos –, a eclesialidade da Filocalia engloba toda a humanidade e todo o universo[9].
II
O HOMEM, IMAGEM DE
DEUS
O
homem, diz a Escritura, é feito à imagem de Deus. É claro que ele é modelado
pela matéria do mundo e multiplamente condicionado por sua existência cósmica e
social. Mas, em última instância, ele escapa a toda definição, pois tem sua
raiz num “alhures”, ele é livre, de uma liberdade que pode ser negada pelo ódio
ou realizada no respeito e na comunhão. O Deus do qual ele é imagem não é um déspota
longínquo, que então seria responsável por todos os males que nos assolam. Ele
é um oceano de luz, “mar de limpidez” como dizem alguns, um abismo sem fundo
que só pode ser evocado negativamente. Mas este abismo não é impessoal: ele tem
em seu bojo como que uma pulsação de amor, um Outro no Um, uma Palavra que
nasce do Silêncio e é transportada por um Sopro imenso. Deus se “extasia” neste
Sopro e é a beleza de sua criação; este Outro-em-Um vem a nós para nos arrancar
do nada perverso que perfura de caos e horror a criação boníssima. Em todas as
religiões, como em todos os ateísmos, trabalha o Espírito[10],
manifesta-se o Verbo, desenhando sua encarnação no esplendor das coisas e nas
revelações da história, no cosmos e nas leis que constituem seus textos fundadores.
O
cosmos e a história encontram seu pleno sentido em Jesus de Nazaré, um homem,
decerto, um rosto, um amigo, mas também o Verbo feito carne, uma existência no
Espírito, portanto em comunhão sem limites. Aquele que, mergulhando por livre
amor na morte e no inferno de que somos cúmplices, libertou a humanidade e o
universo para transformá-los em oferenda de eternidade. Ele realiza
secretamente, sacramentalmente, e nos oferece – pois a imagem significa vocação
– toda a condição real (no sentido da majestade) do homem, criador criado; ele
realiza secretamente, sacramentalmente, e torna possíveis para nós as sínteses
de que fala são Máximo o Confessor: do masculino e do feminino, da terra
tornada opaca e de uma transparência a um tempo final e original, do carnal e
do espiritual que devem simbolizar-se mutuamente, do criado e do incriado que
ele une sem separação nem confusão. A salvação significa o transbordamento de
uma vida luminosa, de uma vida pura enfim liberada da morte (pois a própria
morte biológica se inverte e torna-se uma “páscoa”, no sentido próprio da
“passagem”). A cruz, nova Árvore da Vida, eixo do mundo, significa que Deus
conhece humanamente toda a tragédia de nossa condição – Deus, por um instante
ateu: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” – e que subitamente a
descortina sobre a ressurreição. “Era preciso que Deus se encarnasse e morresse
para que nos pudéssemos reviver”, escreve Gregório de Nazianze[11].
Daí para frente, o homem é chamado a unir sua liberdade às energias do Espírito
para fazer chegar a ressurreição a todas as coisas.
A
Cruz, diz Máximo o Confessor, julga e condena todos os julgamentos. A
contemplação de Deus sofredor, do Deus crucificado sobre todo o mal do mundo,
quebra o coração mais revoltado, abre-o para a graça que não é outra coisa que
a própria vida do “Senhor-Amor”, como o chamava o “Monge da Igreja do Oriente”.
O Cristo médico vem não para os saudáveis, mas para os enfermos, ele se senta à
mesa dos pecadores. O dono da casa chama para o banquete do Reino “os
estropiados, os cegos, os bêbados” e todos aqueles que andam “pelos caminhos e
ao longo dos muros[12]”.
Sem outra condição que de vestir seu coração com uma roupa de festa, a
vestimenta da gratidão e da alegria.
No
Corpo de Cristo em que entramos pela iniciação batismal, aonde encontramos –
trata-se da eucaristia – “a vida em seu mais alto grau de intensidade[13]”,
a existência na morte se transforma em existência no espírito, que o Credo
define como aquele “que dá a vida”. “O Verbo, escrevia santo Atanásio de
Alexandria, se fez portador da carne para que pudéssemos ser portadores do
Espírito[14].
E este, na medida de nossa confiança, de nossa humildade, de nossa criatividade
também, intensifica em nós, pouco a pouco, a imagem em uma semelhança que é
participação nas energias divinas. “O coração se parte e se renova, ele se faz
nos mistérios do Espírito (...), ele aprende, ele é cumulado de forças místicas
até atingir as alturas do amor e até que a felicidade more nele.[15]”
Então
o homem pode realizar sua condição de “fronteira” entre o invisível e o
visível, entre o espiritual e o carnal, condição propriamente crística. Ele
compreende que todos os homens, de todos os tempos, de todos os lugares, são
“consubstanciais”, compõem um só ser em Cristo, Adão último, Adão único, e que
cada qual se torna incomparável, um rosto de ícone, na medida de sua inserção
nesta imensa unidade. Participação da humanidade no “movimento imóvel do amor”
do divino. Ele compreende também – e esta compreensão se torna dever, ação –
que é chamado a tomar sobre si todo o universo, a revelar nele o dom e a
linguagem de Deus.
O
homem unificador unifica-se: “Não é apenas a alma, nem apenas o corpo, que
define a pessoa; eles estão integrados nela.[16]”
O homem unificador se realiza superando-se: ele se deifica pouco a pouco, vale
dizer, ele se torna capaz de amar.
III
A GUARDA DOS
MANDAMENTOS E A GRAÇA BATISMAL
Gratuidade
da salvação: é neste contexto que devemos entender a afirmação, frequente
nesses textos, de que Cristo se entrega a nós primeiro por intermédio dos seus
“mandamentos”. Estes estão contidos fundamentalmente no Sermão da Montanha e,
sobretudo, nas Bem-aventuranças, das quais vêm em primeiro lugar, como o
veremos, as lágrimas e a pureza do coração. A pessoa de Cristo é a síntese dos
“mandamentos”. Tentar observá-los equivale a estreitar com ele uma relação de
pessoa a pessoa, de sorte que sua vida ressuscitada cresce aos poucos em nós e
que, depois de termos sido seus servidores, nos tornaremos seus amigos. Pois “a
essência de todas as virtudes é nosso Senhor Jesus Cristo[17]”.
Orígenes
e Máximo o Confessor sustentam que a “guarda dos mandamentos” designa na
realidade um misterioso percurso de Cristo em nós, de seu nascimento até a
paixão, de sua transfiguração até sua ressurreição. Nem um só instante ele nos
abandona, e mesmo nossas agonias, assumidas pela sua, se tornam caminhos de
ressurreição. Segundo Máximo o Confessor, Cristo “sofre misteriosamente conosco
por todo o tempo até o fim do mundo por causa de sua doçura e de um modo análogo
ao sofrimento que se encontra em cada um de nós.[18]”
Ele é a um tempo nosso “lugar” e nosso companheiro, combatendo conosco contra o
mal, participando com seu Sopro vivificante em nossas aspirações criadoras,
“preferindo cada um”, como dizia o patriarca Athenágoras[19].
A
vinda de Cristo em nós se faz mais especificamente pela iniciação cristã, do
batismo à crisma e daí à eucaristia. A Filocalia
insiste antes de tudo sobre a graça batismal, que é preciso reencontrar e
libertar das profundezas do nosso ser. Assim poderemos descobrir “a graça
perfeita do santíssimo Espírito, que o Senhor, pelo batismo, espalhou em nossos
corações como uma semente divina[20]”.
“Raiz de nossa ressurreição, o batismo nos faz morrer para nossa própria morte
e ressuscitar com Cristo”. Ele inaugura um processo por meio do qual esta
morte-ressurreição torna-se a própria “cifra” de nossa existência,
transformando nossas mortes parciais, tanto as do destino como as da ascese, em
indispensáveis rupturas de nível. A Filocalia
fala bastante menos da eucaristia, mas gosta de citar uma palavra atribuída a
são João Crisóstomo: “O coração absorve o Senhor e o Senhor absorve o coração.”
Se
a via hesiquiasta recusa energicamente toda imaginação, tida como ilusória, o
homem em oração acha-se muitas vezes diante de um ícone e chega a acontecer que
ele sinta brotar dali a chama que abrasa seu coração. A “guarda dos
mandamentos” não é assim a tensão moralista que não pode levar senão ao
aprofundamento da ferida que se quer curar (o desregramento, por exemplo, torna-se
glutoneria, depois esta se torna vampirização das almas...), mas ela define uma
relação: a meditação das Bem-aventuranças e o ícone atingem nosso centro mais
central, o coração, a partir do qual a vida de Cristo invade todo nosso ser e,
se soubermos descartar as peles mortas, o transforma “desde dentro”. É assim
que, no século VI, no deserto de Gaza, o “grande ancião” Barsanulfo estabelece
um “contrato” com seu discípulo Doroteu que era atormentado pelo pecado da
carne: que Doroteu não mais se preocupasse com isto, pois era uma falta que
Barsanulfo tomava para si, mas que ele reforçasse sua relação com Cristo pelo exercício da humildade, da caridade, da
prece confiante, do humilde serviço ao próximo. Assim foi feito, e o coração do
discípulo se transformou, e com ele, pouco a pouco, toda sua vida. É por isso
que a Filocalia não se detém jamais
nas observâncias, nas práticas, na “obra exterior”, mas insiste, antes de mais
nada, no despertar do “homem interior”, na tomada de consciência do “reino de
Deus em vocês, o tesouro escondido no campo do coração[21]”.
IV
AS PAIXÕES
A
primeira etapa da vida espiritual é a “prática” (práxis) que visa liberar o homem das paixões para torná-lo capaz de
amar.
Para
a Filocalia, a paixão fundamental é a morte. Imagem de Deus, o homem deseja a
eternidade, mas paradoxalmente sofre a morte. “A angústia oculta da morte”, sua
recusa (e seu fascínio), constitui a primeira a paixão que todas as demais não
fazem senão valorar. O homem busca o esquecimento, ou a divinização ilusória,
na dominação, na fusão, no ódio. Ele tem necessidade de escravos (ou de sê-lo)
e de inimigos (até odiar a si mesmo). São Paulo distingue “a tristeza pela
morte” da “tristeza por Deus”. Pelo esquecimento ou pela ignorância desta, o
homem, mordido pela “tristeza pela morte”, refugia-se nas paixões. Existe uma
grandeza das paixões, que Péguy celebrava quando dizia que somente os pecadores
mais trágicos poderiam “banhar-se na graça”. A paixão é marcada com o selo do
infinito, ela exprime o desejo de infinito de nossa alma. Simon Frank notava
que “em Dostoievski, o mal tem sempre uma origem espiritual... A revolta, o
orgulho, a zombaria, a crueldade, o ódio, a sensualidade (...) provêm para ele
da tendência que a alma tem de vingar sua santidade profunda ultrajada e
humilhada, a afirmar os direitos desta, nem que de uma maneira tola e perversa[22].”
Seja
como for, entretanto, o objeto da paixão não pode corresponder a este desejo, a
esta santidade secreta. Com efeito, ele próprio permanece contingente:
absolutizá-lo, equivale a ignorar sua humilde verdade e finalmente destruí-lo.
“Eu amei de mais, por isso matei”, diz o amante assassino.
Ávido
de infinito, ignorante do infinito, o homem se ama e se odeia infinitamente,
ele se pretende soberano e se descobre escravo. Ele procura o absoluto e
encontra o nada. A paixão parece exaltá-lo, ela se estende como uma doença
enganadora e, quando ela se vai, não resta mais do que amargura. É um estranho
“inflar” e “desinflar” do nada, dizem os ascetas. Sede jamais estancada, ela
atira o homem nos ciclos do paroxismo e da depressão, do prazer e da dor, da
tensão e do desânimo. Ela perverte o intelecto e os sentidos que só querem
conhecer aquilo que lhe corresponde. É uma droga e o intelecto diante dela
oscila entre a revolta (cada vez menos) e a justificativa irracional e
encarniçada (cada vez mais).
A
inteligência então se dispersa, as relações entre os homens se desintegram. O
espírito dissocia-se do “coração”, e o coração profundo envolve-se em trevas e
lodo, um lodo que endurece de sorte que o coração se torna de pedra. O
esquecimento, um esquecimento metafísico reina, como sublinhou Marcos o Asceta[23]:
o homem se torna insensível, ele já não sabe amar nem admirar, por toda parte
ele não vê senão cio e violência; a humanidade, diz são Máximo, “divide-se em
incontáveis fragmentos e nós, que entretanto constituímos uma única natureza,
devoramos uns aos outros como serpentes furiosas[24]”.
“Quem não desejou a morte de seu pai?”, pergunta Dostoievski em Os irmãos Karamazov. A paixão desemboca
assim na pergunta desesperada: “Onde está o bem?”, ao constante desânimo e
desgosto: “Tudo me é igual”. No limite surge a acídia, a morna desesperança que
se apodera do homem espiritual, talvez porque este tenha se orgulhado de sua ascese,
talvez porque ele quis ver (a luz do
Tabor, por exemplo, esquecendo-se que ela irradia de um rosto).
A Filocalia enumera, numa lista clássica
desde as origens do monaquismo, sete ou oito paixões: a gula, a cupidez, a
avareza, a cólera (que engloba a raiva e a inveja), a tristeza (pela morte), a
preguiça (como pesandez espiritual), a vanglória e o orgulho.
Dentre
essas paixões, duas parecem ser as “mães” fecundas das demais: a cupidez, que
permanece mais dentro dos limites do corpo, e o orgulho, no espírito. Assim
estabelecem-se dois circuitos, que finalmente se identificam. A gula
aparenta-se à cupidez, que é uma gula dos corpos, e ambas desembocam na
avareza: no primeiro grau para saciar-se mais profundamente substituindo o ser
pelo haver; assim vem a tristeza (pois o ter é sempre ilusório), a inveja (o
“desejo mimético” analisado por René Girard), a cólera, a violência contra o
outro, por exemplo contra aquele que adquiriu primeiro um bem que se quer ter.
O
orgulho, esta centralidade fechada e possessiva, suscita a vanglória, um
desfile de riquezas e de seduções, provoca a cólera e o despeito quando não se
obtém a admiração incondicional dos outros, etc.
Na
realidade, a cupidez e o orgulho exprimem o mesmo cativeiro fundamental, o
enrolamento do mundo ao redor do ego, esta filáucia de que fala Máximo o
Confessor para dizer que o homem tende a se tornar seu próprio ídolo[25].
Muitos
autores da Filocalia analisaram com sutileza o nascimento, o desenvolvimento e
o enraizamento de uma paixão[26].
O “ataque” ou “sugestão” designa a aparição na consciência de uma obsessão em
estado germinativo. A “cumplicidade” mostra o intelecto que brinca, depois se
enreda e a seguir começa a justificar a paixão nascente. Na fase de “adesão”,
chega a vez de a vontade consentir. Assim vêm a “realização” e o “hábito”,
gosto e desgosto, fausto e tristeza.
Mas
a admiração dos “padres népticos” pela grandeza e bondade do homem é tal que
eles costumam ver na paixão, claro que com nossa livre e plena cumplicidade,
uma espécie de possessão. “Satanás caiu e foi destruído, [mas] nossa
inteligência não o faz menos forte e ele se orgulha de nós[27].”
Nas Homílias macarianas, quando se
comenta o relato simbólico da queda no Gênesis, “a serpente enganadora fez sua
morada no homem, e é como se este tivesse recebido uma outra alma ao lado da
sua própria alma... No homem existe um assassino, ou seja, uma força inimiga,
que é invisível e se opõe a ele[28].”
Realidade ou alucinação, pergunta-se Ivan Karamazov, gaiola de espelhos aonde o
homem se multiplica e se desagrega – pois o demônio expulso do possesso
geraseno confessa que ele é “legião[29]”
–, perversidade do mal que não é apenas uma tendência da criação na direção do
nada de onde ela foi extraída, mas que corresponde a um igual número de
perspectivas do homem secretamente aguilhoado pela morte, tomado pela “força
inteligente do adversário que age secretamente no seu interior[30]”.
Dialética do interior e do exterior, que seria presunção desembaraçar, pois
“somente aqueles que obtiveram a paz de Cristo e sua luz sabem de onde ela
provém[31]”.
Antecipemos:
a impassibilidade (apatheia) à qual
se chega pela ascese não é insensibilidade, mas liberdade interior, capacidade
de conhecer e de amar com toda nossa força de paixão transfigurada pelo “amor
louco” de Deus pelo homem. “A impassibilidade é o objetivo da práxis... ela
precede e permite o amor, e o amor permite o conhecimento[32].”
V
FÉ, TEMOR A DEUS, LEMBRANÇA DA MORTE
Para
a Filocalia, e é o que lhe dá seu caráter propriamente cristão, a fé constitui
o primeiro e o último passo da vida espiritual. Toda plenitude “está
concentrada no interior da fé”, diz Máximo o Confessor[33].
Somente a fé, não como “crença”, mas como relação, como confiança fundamental
em Alguém, pode nos abrir o caminho para a vida ressuscitada que transformará
em “virtudes” a energia usurpada pelas paixões.
A
fé é um encontro, ela aprofunda-se em uma “sinergia”, uma colaboração entre o
Espírito de Deus e a liberdade do homem; através das “virtudes” que são outras
tantas modalidades da “vida em Cristo”, ela permite a paz, o silêncio interior,
o amor verdadeiro.
Em
suas Centúrias, Inácio e Calisto
Xanthopouloi mostram que a fé está ligada à invocação fervente de Jesus; aquele
a quem amamos, em quem depositamos nossa confiança, a este não cessamos de
chamar, pois ele disse: “Sem mim vocês nada podem fazer[34]”.
Eles acrescentam que “a fé celebra entre Deus e os santos a liturgia dos
mistérios inefáveis” aos quais antecipa-se a última[35].
Agora
o intelecto e o coração (cuja ligação fundamental aparece cada vez mais) se
invertem na metanóia, um termo que, mais do que arrependimento, designa uma
reviravolta de toda nossa compreensão do real. Verdadeira revolução copernicana
que substitui o mundo do narcisismo pelo da alteridade, o mundo do homem destinado
à morte pelo Deus-homem e nele do homem-em-comunhão destinado à ressurreição.
A
passagem não é alegria, mas crise, e muitas vezes crise terrível, como o amor.
A fé nos faz entrar na luz de uma presença, uma luz infinitamente doce, mas
também infinitamente lúcida (em todos os sentidos do termo), na qual nossa
consciência julga a si mesma, como às vezes ela o faz num olhar de criança. O
homem sai então de seu sonambulismo e de suas ilusões para conhecer,
estreitamente imbricados, o “temor a Deus” e a “lembrança da morte”.
O
“temor a Deus”, uma expressão que é quase impossível empregar hoje em dia, não
implica assim uma concepção terrorista do divino, nem uma obsessão malsã da
culpabilidade individual. “Deus é amor”, e ele nos chama a tomar consciência tanto
da condição humana real como de nossa responsabilidade para com esta condição.
O
“temor a Deus” nos faz tomar consciência, numa grande convulsão, da morte
espiritual que nos soterra e da angústia não apenas psicológica: existem
médicos para esta, não tão metafísica que se enrodilha no mais profundo de nós.
Sentimos que “este mundo” de “vaidade”, como diz são Paulo[36],
ou seja, de vazio, de nada, vai nos absorver. E nós sufocamos neste vazio. Mas
a angústia, quando se abre sobre o nada, abismo e platitude é insuportável, e
nós nos desembaraçamos dela, como sugerimos, avaliando-a em termos de
necessidades e medos, medos, a cada vez, como diz Heidegger em O ser e o tempo, “de alguma coisa do
mundo”, este mundo no qual fomos jogados como náufragos perdidos. “É notável
como, quando passa a angústia, dizemos de bom grado: não era nada – e é
justamente este nada que nos angustiava.”
“Temor
a Deus” e “lembrança da morte” desnudam por sob tantas preocupações, acusações,
justificativas, até mesmo sob tanta agitação piedosa, esta angústia
fundamental. Esta recusa em nos identificarmos com o jogo mortal deste mundo,
com suas drogas, suas importâncias, com a impessoalidade da espécie que faz
nascer apenas para matar, desperta nossa responsabilidade: por nossa cegueira,
faltamos ao outro, e em nosso destino pessoal, faltamos a Deus! A angústia
designa a ausência de Deus, ou antes, minha
ausência em relação a Deus, e eis, por instantes, na vida mais cotidiana, o que
se pode bem chamar de inferno.
Hoje
em dia o teatro do absurdo, os aforismas da insignificância, aliás muito
inspirados por romenos marcados pela literatura ascética da Ortodoxia, como
Ionesco e Cioran, orquestram na cultura mais profana uma gigantesca “lembrança
da morte”. Entretanto, esta, na perspectiva da ascese, no grito de profundis da fé, não participa desta
vertigem. Ela descobre que Alguém, que desceu vitoriosamente ao inferno e
continua sempre a descer, interpõe-se definitivamente entre o nada e nós.
Então
a “lembrança da morte” se torna “lembrança de Deus”. Não de qualquer imagem de
Deus, mas do Deus humilhado, crucificado, ressuscitado e que nos ressuscita. A
angústia, com todo seu peso, se torna confiança. E docemente, sem franzir o
cenho, os olhos ficam marejados. É o penthos,
o coração de pedra que se parte, o luto dos monges orientais em seus trajes
negros sobre quê, nos mais avançados, estão representados os instrumentos da
Paixão. É a nostalgia do Adão que somos todos nós quando nos descobrimos exilados
do paraíso. Tão próximo este paraíso, num olhar, num sorriso, num jardim onde,
à noite, canta o rouxinol, e, no entanto, sempre perdido diante do triunfo
inelutável do horror. No jardim está o túmulo de Narciso, e fechamos os olhos
que nos iluminavam.
Então
repetimos o Kyrie eleison e, com “lágrimas
ascéticas”, entramos no mistério da Agonia no Jardim das Oliveiras, na “fonte
de lágrimas” aberta pela lança no flanco oferecido do Bem-amado.
Mas
Maria de Magdala descobre, junto ao túmulo, o jardineiro. O paraíso se reabre,
as lágrimas de amargura e de cumplicidade se transformam em lágrimas de
alegria: “pneumáticas”, espirituais. As lágrimas se identificam à água do
batismo, tornam ativa a graça batismal. Nelas se “liquefaz” o coração,
dissolve-se a crosta que o encerrava. Lágrimas de morte e de ressurreição, água
batismal, sem dúvida também as águas primordiais sobre as quais pairava o
Espírito. “Aquele que se revestiu de lágrimas bem-aventuradas como um traje
nupcial conhece o sorriso espiritual da alma”, escreve são João Clímaco[37],
aludindo à parábola do festim para o qual os bons e os maus foram convidados
sem outra condição justamente que a de vestir-se com seus trajes de núpcias.
Léon
Chestov, nas Revelações da morte,
lembra a lenda russa segundo a qual Deus envia o anjo da morte para carregar a
alma de um agonizante. Mas às vezes acontece que no último instante o anjo seja
chamado e o homem sobreviva. Mas o anjo tem as asas cobertas de olhos. Ao se
ir, ele substitui os olhos do homem por olhos que ele tem sobre as asas. Daqui
em diante, o homem enxergará de outro modo, com a “lembrança da morte”, com a
“lembrança de Deus”, com um desembaraço infinitamente aprazível e uma ternura
em todo o seu ser. Nós vimos este olhar, na Rússia, entre os prisioneiros
libertados dos campos, estes campos da morte que foram verdadeiros mosteiros em
nosso século.
O
“temor a deus” agora é transfigurado pelo amor. Ele não é mais do que o espanto
diante do “oceano de limpidez”, em cujo horizonte o céu e a água refletem um ao
outro, como, em Cristo, o divino e o humano.
“O
puro temor não cessará jamais... ele expressa a estupefação do homem diante da
glória de Deus[38].”
VI
AS VIRTUDES,
FORÇAS DIVINO-HUMANAS
Quando
deixamos a vida ressuscitada crescer em nós, ela instaura pouco a pouco a
pessoa em sua verdadeira natureza que, segundo a Filocalia, é inseparável da graça. Em Cristo, as forças do humano
são vivificadas pelas energias divinas, pelos Nomes divinos que elas refletem.
Criado à imagem de Deus, o homem esconde, com efeito, forças que o levam a ele
e se desdobram na irradiação de sua essência. As “virtudes” do homem – seria
melhor, fora de qualquer moralismo, evocar suas forças, suas energias (de
resto, este é o sentido etimológico da palavra virtude, pois virtus, em
latim, designa a força viril) – são participações às energias divinas, ao modo
de ser de Deus revelado por Cristo. O homem é chamado a manifestar a beleza, a
bondade, a sabedoria, a forte mansidão que são como que raios disto que são
João denomina “a luz da vida”. Estes Nomes divinos, que Denis o Areopagita
comentou com incomparável poesia, são muitas vezes aplicados pela Escritura e
pelos Padres ao Espírito Santo, “que dá a vida”: “Espírito de sabedoria”, “de
força”, “de glória”, “de liberdade”; o homem “à imagem do Espírito”, dizem as Homilias
Macarianas[39],
é coroado por uma chama de Pentecostes. “A glória de Deus é ‘o homem vivo’,
dizia santo Irineu de Lyon, precisando: É somente onde está o Espírito Santo
que existe o homem vivo e verdadeiro[40]”.
Podemos ainda citar um dos grandes poetas de nosso século, Rainer-Maria Rilke,
que dizia em seu leito de morte: “Não se esqueçam de que viver é glória”.
As
“virtudes” aparecem assim numa relação antinômica com as “paixões”: elas
libertam e transfiguram a energia que as “paixões” desviam, confiscam,
bloqueiam. O ímpeto da natureza, usurpado nos descaminhos do nada, provoca as
“paixões” que desagregam a pessoa. Tomado, reforçado, iluminado pelo dinamismo
da ressurreição, ele suscita as “virtudes”: ele unifica e exalta a pessoa no
“mistério de Cristo”. São Máximo o Confessor compara esta metamorfose a afiar
uma espada: retirar a ferrugem equivale a permitir que a luz do aço brilhe[41].
A
cólera, perversão do ardor (o thymos que reside no peito, segundo a
velha tripartição indo-européia retomada pelos Padres), torna-se, no cadinho da
graça, domínio e mansidão, a mansidão dos fortes. O desejo das entranhas – a epithymia
– pode da mesma forma se transformar em eros por Deus: “Que o amor
carnal, diz João Clímaco, nos sirva de modelo para nosso desejo por Deus. Nada
impede de tomar exemplos para as virtudes naquilo que lhes é contrário[42]”.
E o nous, a inteligência da cabeça, pode encontrar sua raiz no coração.
Máximo
o Confessor, nas suas Centúrias sobre o amor, nota que “no homem cujo
intelecto (nous) se volta para Deus, mesmo a concupiscência (epithymia)
dá forças ao amor ardente por Deus, mesmo a violência da cólera (thymos)
se põe no mesmo movimento em direção ao amor divino. Pois, a longo prazo, a
participação na luz divina (...) unindo toda a força de suas potências, a
transforma em um amor ardente, insaciável[43]”.
Sem dúvida, apenas Denis o Areopagita soube dar a chave desta metamorfose que
entranha nos espirituais um estranho respeito das “paixões”: “Aquele que deseja
a pior das vidas, diz ele (...) por seu próprio desejo tem parte no Bem”.
Tudo
é levado pela humildade e tudo, por intermédio da paciência, da esperança e da
“impassibilidade” desemboca no amor, no amor desinteressado e criador.
Para
se reencontrarem Deus e o homem saem cada qual de si mesmo: esta humilhação de
Deus “até a morte, e morte na cruz[44]”,
a partir do momento em que o homem se conforma com isto pelo laço infinitamente
confiante da humildade, permite a verdadeira comunicação da vida divina.
“Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração[45]”,
diz Jesus. A “escada” das virtudes, tantas vezes comentada e representada de
uma maneira quase estóica, é na realidade um mergulho na humildade.
Santificar-se significa tornar-se um pecador consciente, e com isto abrir-se
para a graça. Os mais rudes, os mais severos consigo mesmos não se enganaram
nisto e é justamente em sua Escada santa que João do Sinai anotou: “Não
foi dito: eu jejuei, eu velei, eu dormi sobre o chão duro, mas: eu me humilhei
e logo o Senhor me salvou[46]”.
A humildade é esta despossessão de si, este abandono ativo que permite a Deus
nos iluminar.
A
humildade está ligada à “ruptura” em relação ao mundo, tipicamente monástica
mas que todo cristão pode experimentar por meio de um discreto, quase
imperceptível, distanciamento. Ela permite a paciência nas vicissitudes da
vida, esta paciência da qual os espirituais dizem que vale, para os que
permanecem no século, por todas as disciplinas monásticas de abstinência. A
paciência nos configura à de Deus, figura maior de sua Paixão, pois este não
tem ideia do mal[47] e
o recebe em plena face como Cristo recebe as bofetadas com os olhos tapados. “A
face de Deus verte sangue na sombra”, dizia Léon Bloy e Serge Boulgakov
escreveu páginas maravilhosas sobre esta paciência-paixão do Pai[48].
Da
humildade e da paciência nasce uma nova relação com o tempo que é designada
pela virtude da esperança. Para Heidegger, a estrutura fundamental da
temporalidade, sua “existencial”, é a angústia. Para o cristão, é a esperança.
Como a angústia, a esperança mira o devir, mas este não é o nada, mas o Reino.
O futuro suposto pela angústia dá medo, e é por isso que os homens multiplicam
ridiculamente seguros e garantias de segurança. O futuro suposto pela esperança
triunfa sobre a usura do tempo, atravessa-o em direção à eternidade. É por isso
que os mártires morrem num êxtase de ressurreição e os monges, que interiorizam
o martírio, puderam criar o adágio: “Dê seu sangue e receba o Espírito”. Em
seus pequenos tratados, Marcos o Asceta escreve que “A esperança alarga o
coração, enquanto a angústia o encolhe...[49]”
E também: “O coração em que habita Cristo desde o batismo não pode ser aberto
(...) senão pela esperança que abarca tudo[50]”.
Assim
as “virtudes” - fé, temor a Deus, humildade, paciência e mansidão, esperança –
culminam na “impassibilidade” (apathéia). Esta não tem nada de negativo,
mas designa uma paz profunda (hésychia) que não se compraz absolutamente
em si mesma, mas, penetrada pelo silêncio de Deus, se abre ao infinito sobre os
seres e as coisas. A alma não ignora as “paixões”, ela as vê lucidamente nascer
e fenecer, mas não se deixa perturbar por elas. A apathéia sintetiza
todas as “virtudes”: “A coroa de um rei não é feita de uma única pedra
preciosa, e a impassibilidade não atinge sua perfeição se negligenciarmos uma
única virtude, seja lá qual for[51]”.
É assim que podemos ver ascetas que praticam quase todas as virtudes
abandonarem-se de repente a uma paixão desenfreada, com uma violência que
pecadores humildes desconhecem, e tornarem-se, por exemplo, fanáticos atrozes.
A
impassibilidade une o homem e a obra ao amor divino pela criação, este “amor
louco” de que falam Máximo o Confessor e Nicolas Cabasilas. O homem pode então
amar com um amor que não mais sujeita – nem a ele nem ao outro – mas liberta.
“A impassibilidade não exclui absolutamente o amor, mas o engendra[52]”.
Aquele que sabe, com todo seu ser, que Cristo ressuscitou e que tudo,
definitivamente, vive nele, este pode amar mesmo seu inimigos e “derrubar o
muro de separação que nós mesmos construímos[53]”.
A “impassibilidade” afina os sentimentos, permite sentir os seres e as coisas
como que do interior, torna as intuições, pensamentos e atos, infinitamente
mais delicados e mais atentos. Simultaneamente, algo de real se define no
homem: “Seja como um rei em seu coração, sobre o trono da humildade. Você
ordenará ao riso que venha, e ele virá. Ordenará às lagrimas que venham, e elas
virão. Ordenará ao corpo, não mais tirano, mas servidor: fala isto, e ele fará[54].”
VII
O SENTIDO DA
ASCESE A A GUARDA DO CORAÇÃO
A
Filocalia abre um caminho de liberdade. Ela não detalha as observâncias da
ascese, mas extrai o sentido desta.
Ascese
significa “exercício”, “combate”, “o combate interior, mais duro que a batalha
dos homens”, dizia Rimbaud.
A
ascese cristã não é, contrariamente a um preconceito tenaz, uma questão de
masoquismo e de mortificação. “Não nos é pedido que arranquemos de nós e
neguemos as atividades naturais da alma, mas que as purifiquemos[55]”,
diz Orígenes. Ou antes, seu verdadeiro objetivo é o de mortificar em nós a morte
e vivificar a vida. Trata-se de eliminar ou de metamorfosear os germes da morte
que parasitam nossa existência, a fim de deixar crescer em nós a vida de
Cristo, o ímpeto do Sopro, “que dá a vida”, as forças da ressurreição que
libertam nossa verdadeira natureza.
A
ascese é uma “física do corpo de glória”, ela permite uma visão transfigurante
do universo. É uma marcha da cruz em direção à ressurreição, da morte para a
não-morte, ou seja, para a alegria pascal. Ela transforma o “corpo de morte” em
corpo litúrgico, corpo de celebração, corpo-igreja como diz Máximo o Confessor
em sua Mystagogia, igreja cujo coração-espírito constitui o altar. Ela
nos liberta “deste mundo” como rede de hipnoses e de ilusões para nos fazer
descobrir o mundo de Deus, esta linguagem que deve se tornar diálogo, estes
“vivos” a quem devemos “nomear[56]”.
Ela derruba o “muro da separação” entre os homens e também entre as coisas e
nós, este muro opaco e impuro de que falam Hipólito[57]
e Sartre. Cada rosto, cada pedra e até os veios e os nós da madeira sobre minha
mesa se tornam caminhos de luz. Como disse Jacó depois de seu sonho, “este
lugar é santo e eu não sabia[58]”,
por toda parte se ergue a escada dos anjos. A ascese alivia o olhar, seca a
concupiscência, permite ver a beleza de uma mulher ou ouvir músicas profanas
com maravilhamento e gratidão.
A
ascese se define como jejum, castidade e vigilância (ou vigília).
Num
sentido geral, o jejum é a limitação voluntária das necessidades para devolver
o desejo ao seu impulso natural, ou seja, para Deus e para a criação de Deus. O
jejum exorciza as duas “paixões-mãe” que são, como dissemos, a avidez e o
orgulho. As expressões populares “mastigar qualquer coisa”, “o que cai sob os
sentidos” sugerem nossa relação mortífera com o mundo. O jejum nos liberta das
imagens carnívoras, nos ajuda a descobrir a
infinita profundidade dos seres e que cada um merece atenção e respeito.
É a um tempo retiro e abertura, leveza interior e acolhimento.
Bem
entendido, o jejum de alimentos não tem sentido se não estiver ligado ao “jejum
de paixões”. É preciso aprender a jejuar do amor ao poder, do fascínio pelas
riquezas, dos raciocínios vãos e das “palavras vãs”. E, sobretudo, da
maledicência, que tantas vezes os jejuadores de alimentos praticam de bom
grado.
Podemos
dizer que hoje em dia o jejum se situa no inverso da publicidade, que tende a
investir (e portanto a ocultar) o desejo de infinito do homem na multiplicação
indefinida das necessidades. Também ao contrário da fabricação do imaginário
por simulacros, as imagens, os ruídos incessantes de uma cultura midiática que
povoa de sonhos pré-fabricados nosso sonambulismo e jamais deixa lugar ao
silêncio.
Ao
jejum está ligada a castidade que é a unificação da alma e do corpo no impulso
de comunhão. As forças inicialmente caóticas e dispersantes da vida são
pacificadas e se integram numa relação fiel: ou bem segundo a verdade do amor
humano – pois não devemos imaginar que a via filocálica seja reservada aos
monges: Dumitru Staniloae, mestre de obra e testemunho (até a prisão) da
Filocalia romena, era casado; ou bem, e mais habitualmente, para o monge, com a
consumação do eros no agapè divino, de sorte que os outros, para
ele, não passem de rostos e que ele esteja “separado de todos e unido a todos”.
Jejum e castidade (que pode ser vista como um jejum no qual o desejo é
transfigurado) favorecem a vigília, a espera vigilante do Noivo que vem no meio
da noite, iluminando de um modo pascal as trevas, Logos que faz flamejar
como uma sarça ardente os logoi das coisas, suas essências espirituais.
Donde, entre os monges orientais, a prática do sono interrompido e das vigílias
noturnas (que também são parcialmente litúrgicas). A vigília, que é vigilância,
atenção, choque de maravilhamento fora de qualquer torpor, é especialmente
celebrada pela Filocalia, obra, como o sublinha o título, elaborada pelos
“Padres népticos”, do termo nèpsis que significa vigília.
Numa
forma mais aguda de ascese, os “Padres népticos” praticam a “guarda do
coração”. Atravessando o terreno pantanoso da inconsciência, que o separa
daquele, o intelecto se separa do fluxo psíquico de pensamentos, imagens e
associações que o atravessam sem cessar. Logismoi que ele esmaga, como
os “filhos da Babilônia” do salmo, contra o rochedo do Nome de Jesus. Surgindo
do infraconsciente, os “pensamentos” devem ser perscrutados antes que se
consolidem e cancerizem: sua carga obsessiva é desintegrada pela invocação
acelerada do Nome de Jesus (ou simplesmente o apelo ao Kyrie eleison),
seu nó psíquico oferecido como um jovem animal de sacrifício, como diz Marcos o
Asceta[59].
A um “pensamento” ambíguo santo Isaac o Sírio recomenda nem expulsar nem
aceitar, mas orar ardentemente até que Cristo “mostre de onde ele vem[60]”.
E se preciso for, refugiar-se em Deus, humildemente, pelo Nome de Jesus[61].
Quanto
à percepção – respirar, comer, caminhar, ver um escorpião ou uma serpente – ela
deve ser desembaraçada de sua carga de temor ou de concupiscência, de toda
interpretação complexa, e reconduzida à simplicidade imediata da sensação que o
Nome reveste e abençoa. É preciso, com efeito, “circunscrever o incorpóreo no
corpóreo”, sempre com o mesmo objetivo de uma consciência da consciência, à luz
da ressurreição. E o corpo é a cela estreita do hesiquiasta. Assim o
coração-espírito decanta como uma água calma. A alma se reveste de silêncio e
“o amigo do silêncio se torna próximo de Deus. Em segredo ele recebe a sua luz[62]”.
Para
a Filocalia, herdeira sob este aspecto da antropologia bíblica, o coração
aparece como o centro propriamente pessoal do homem aonde todos os sentidos e
todas as faculdades deste se reúnem e se harmonizam abrindo-se para a
transcendência. O coração profundo, propriamente espiritual, do qual o coração
físico é como que um símbolo, é investido pela graça batismal. É um abismo de
luz, mas que permanece fechado a maior parte do tempo, inconsciente, mais
exatamente “supraconsciente” no sentido que a “psicanálise da existência” dá ao
termo. No entanto, algumas fulgurações lhe escapam, em especial na infância, e,
mais tarde, quando sua envoltória de lama endurecida (o “coração de pedra”)
racha sob certas situações-limite ligadas ao amor, à morte ou à beleza. Parece
que os ascetas chamam também de “coração” ao abismo sombrio do infraconsciente,
este inconsciente a um tempo individual (no sentido freudiano), coletivo e
pan-humano (no sentido junguiano), até mesmo cósmico (no sentido que lhe
atribui o filósofo romeno Lucien Blaga). Daí as expressões que foram reprovadas
nas Homílias Macarianas, mas que reencontramos em Dostoievski, sobre o
coração como campo de batalha entre luz e trevas. Se chegarmos a entreabrir e
depois abrir o coração superior, a penetrar cada vez mais profundamente em suas
“moradas” (que sem dúvida correspondem às “estações” da mística sufi), de um
lado o intelecto se iluminará (“é do templo oculto do coração aonde habita
Cristo que o intelecto recebe os bons e belos impulsos que irão transformar
toda a nossa existência[63]”),
de outro lado esta luz atingirá o abismo do coração inferior, purificando-o,
levando-o à consciência e, portanto, à consciência do perdão, e a partir daí
começará a transfigurar também tanto o corpo como o ambiente social e cósmico.
A
Filocalia é dominada pelo pensamento de Evagro o Pôntico[64],
que coloca a ênfase no nous, quanto ao intelecto na sua dimensão
espiritual. Mas ela também é penetrada pela sensibilidade macariana[65]
(através da versão de Simeão Metafraste) que vê no coração o órgão último do
conhecimento, um conhecimento inseparável do amor. O acordo entre estas duas
perspectivas se faz pela descoberta de que a “essência” do conhecimento reside
no coração, enquanto que o nous é sua “energia”. Este recurso ao
vocabulário aristotélico não deve esconder a vitória da concepção bíblica sobre
um certo intelectualismo grego. No interior do “coração” iluminado pelo “raio”
do Sol divino, a racionalidade da cabeça, o ardor do peito e o desejo das
entranhas se equilibram e se transformam, abrindo-se para o infinito.
VIII
O “MÉTODO”
Os
monges orientais estabeleceram um “método” para sustentar o intelecto em seu
esforço de interiorização e de despojamento. Este “método” utiliza posições e
ritmos do corpo, bem como uma breve invocação no mais das vezes centrada no
Nome de Jesus, e pretende responder à ordem escriturária de “orar sem cessar”.
Ela é flexível, aberta, mesmo quando tentada à mecanização nos lugares em que
se torna a única via de oração e mesmo objeto de orgulho.
O
corpo do homem está destinado, diz são Paulo, a se tornar “templo do Espírito
Santo”. Ao ritmo do coração deve se acomodar o da respiração, mais fácil, senão
de dominar (o que parece ser estranho ao espírito filocálico: não se trata de
um yoga), pelo menos de oferecer. Segundo o Gênese, vivamente comentado
sob este ponto por santo Irineu de Lyon, o homem é barro cósmico manufaturado
pelas mãos de Deus e animado por seu sopro: “Quando o Senhor formou o homem do
pó do chão e insuflou em suas narinas um sopro de vida, o homem se tornou vivo[66]”.
Quando utiliza sua respiração para rezar, o homem reconhece que seu sopro lhe
vem de Deus, que ele é sustentado pelo Sopro divino. Ainda mais: por toda
eternidade, no mistério do Verbo trinitário, o Sopro do Pai carrega sua
Palavra: “o espírito é o anunciador do Verbo”, diz são João Damasceno[67].
Assim, quando o sopro humano anuncia o Nome do Verbo encarnado, ele se une ao
próprio Sopro de Deus. E é este sopro humano penetrado pelo Espírito que irá
abrir o “coração” profundo. O ritmo de nossa respiração, que é o mesmo de nossa
caminhada, torna-se o de nossa peregrinação, exterior e sobretudo interior, em
direção ao “lugar do coração”, que é também o “lugar de Deus”.
O
Nome, na Bíblia, não é subjugado por uma força, como é frequentemente o caso
nas magias arcaicas, mas revelação velada-desvelada do segredo da pessoa, num
caminho de comunhão. Não se segura, não se manipula o Inacessível. Ninguém
mais, de resto, sabe vocalizar o Tetragrama. Mas, para os cristãos, e segundo
uma expressão profunda do Padre André Scrima, Ieoschouah é um nome-verbo
que significa “Deus salva, liberta, afasta” - para as lonjuras do Espírito. A
Cruz pascal manifesta Deus como amor libertador, como Comunhão – alteridade
total ao mesmo tempo em que unidade total – que se comunica a nós. Quando se
diz: “Senhor Jesus, Filho de Deus”, é o mistério trinitário que está sendo
invocado por intermédio do mistério de Cristo: a palavra “Senhor” atesta a
divindade de Jesus, a palavra “Deus”, como em todo o cristianismo original,
designa o Pai, fonte da divindade, a palavra “Cristo”, Messias, Ungido, se
refere à unção do Espírito, ao Espírito como unção. O Espírito repousa no Filho
por toda eternidade e constitui a unção messiânica de Jesus.
A
ordem de “orar sem cessar”, ordem de Jesus retomada por Paulo, supõe que a
prece representa o próprio ser do homem, a relação que o constitui, a resposta
ao apelo que o torna “imagem de Deus”. Com certeza isto vale parcialmente
também para o cosmo, mas este, como dizia Orígenes, é um logos alogos, e
é ao homem que cabe expressar sua celebração sussurrada.
O
“método” remonta provavelmente ao monaquismo original, podemos dizer aos
primeiros tempos do cristianismo por ser muito antigo, sem duvida evangélico,
símbolo do peixe assim como as iniciais das palavras que o compõem. Ichtus,
peixe, sugere com efeito Iésous Christos Théou Uios Soter ou Sôson,
ou seja, “Jesus Cristo Filho de Deus Salvador ou Salve (a nós)”. Desde os
primeiros tempos do monaquismo encontramos a repetição de fórmulas curtas:
“Senhor, como quiseres e como sabes: tem piedade”, “Glória a ti, Senhor”, ou a
frase de um salmo, como por exemplo o que recomenda Cassiano: “Meu Deus, vem em
meu auxílio, apressa-te em me socorrer[68]”.
Comum também é o Kyrie Eleison, “Senhor, tem piedade”, com a palavra eleison
evocando não a comiseração, mas presença, carinho, misericórdia.
Perguntaram
ao abade Macário: como orar? Ele respondeu: “Primeiro, não há necessidade de se
perder em palavras. Basta estender os braços e dizer: “Senhor, como queres e
como sabes, tem piedade”. Se o combate os oprimir, digam apenas: Socorro! Deus
sabe o que lhes convém e terá piedade de vocês[69]”.
A
partir do século V com Diádoco de Foticéia, mais tarde no deserto de Gaza,
depois no mosteiro do Sinai, o Nome de Jesus se introduz na fórmula de
imploração até que se chegue, durante a Idade Média, em Athos, à formula que se
tornou clássica: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim,
pecador”, na qual estão amalgamados os apelos evangélicos do publicano e do
cego.
A
utilização de uma fórmula breve para pacificar e concentrar o intelecto é
universal: encontramo-la por exemplo na Índia (o japa-yoga), no amidismo
japonês (o nembutsu), no dhikr dos sufis muçulmanos (que sem
dúvida o emprestaram dos monges do cristianismo oriental). É por isso que um
Augieras pode dizer que os monges athonitas não são propriamente cristãos mas
preservam um segredo imemorial[70].
Esta ilação não deixa de ser feita dentro de uma perspectiva fundamentalmente
cristã. A multiplicidade das fórmulas empregadas originalmente e muitas vezes
ainda hoje mostra que não se trata de um mantra mas de uma relação, e
que a prece não significa a passagem do eu ao Si, mas antes uma comunhão do si
“pecador” com o Outro. Apelo ao socorro, celebração confiante, selo de
bendição, a oração se torna em nós um impulso do Espírito que nos faz dizer que
Jesus é o Senhor e, neste, com ele, ousar chamar o Pai, Abba, o
Inacessível.
Os
textos do monaquismo antigo já sugerem uma ligação da prece com a respiração.
“(Antônio) chamou seus companheiros e lhes disse: Respirem sempre a Cristo[71]”.
“Que a memória de Jesus se una inteiramente à sua respiração e você conhecerá o
significado do silêncio[72]”.
Chamar a Jesus equivale a tomar pouco a pouco consciência de sua presença nas
“moradas” do “coração”: “Mantenhamos sempre os olhos no fundo de nosso coração
com uma lembrança incessante de Deus”, escrevia no século V Diádoco de Foticéia[73].
No
entanto, o “método” não foi escrito – e sempre de um modo incompleto – senão
nas épocas mais perturbadas, quando a transmissão de mestre a discípulo estava
comprometida. Isto equivale aos séculos XIII e XIV, quando da agonia do Império
Bizantino, e ao final do século XVIII quando a renovação filocálica encerrou um
longo período de decadência.
Os
textos de que dispomos[74]
recomendam sentar-se num local afastado, calmo, silencioso (enquanto que os
ofícios litúrgicos e a salmódia são rezados em pé). A postura recomendada
consiste numa inclinação da cabeça, curvando as espáduas, com o olhar interior
fixado no coração. Às vezes a curvatura se acentua como a de Elias que, depois
de ter confundido os profetas de Baal e
posto fim à seca, longe de se orgulhar, “subiu ao cume do monte Carmelo
e, inclinando-se para o chão, colocou seu rosto entre os joelhos[75]”.
Utilizando uma respiração lenta, pacificada, unimos a ela o intelecto que,
prolongando o movimento do ar, tenta penetrar “dentro do coração”. Esta é a
união do intelecto com o coração, tão importante na tradição filocálica (mas
que não implica forçosamente o uso destas técnicas corporais). A invocação,
primeiro alternada, docemente oral, docemente mental, depois unicamente mental,
se torna cada vez mais breve e silenciosa. Segundo Calixto e Inácio
Xanthopouloi, depois Nicodemo o Hagiorita, a fórmula, a partir do momento em
que nos persuadimos da presença e do amor de Cristo, se desvencilha do “tem
piedade de mim, pecador”, abrevia-se em “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” e
finalmente em “Jesus, Jesus, meu Deus amado” (Nicodemo), e depois de tudo
apenas no Nome de Jesus. Ela se torna então monológica, ou seja, constituída
por uma única palavra. Simultaneamente, instantes de silêncio, como uma espécie
de “planar interior[76]”,
prolongam a invocação que acaba por fundir-se no silêncio para se tornar como
que sua pulsação.
No
mais das vezes o coração espiritual é identificado ao coração físico, mas
encontramos, de um lado no século XII e de outro no final do século XVIII,
indicações um pouco diferentes, sem dúvida complementares. No Methodos
(“Método da santa prece e atenção”), texto que por muito tempo foi atribuído a
Simeão o Novo Teólogo, mas tardio ao que tudo indica, trata-se de encontrar o
“lugar do coração” no “interior das entranhas”: trata-se da “onfaloscopia” que
foi ridicularizada e acabou por desaparecer dos textos mais tardios. No século
XIV são Gregório Palamas explicou que se tratava de dominar o desejo, de
“remetê-lo à sua origem” a fim de que ele “se lançasse para Deus”. Podemos
também nos perguntar se esta indicação do Methodos não está fundamentada
numa antropologia e numa simbólica bíblicas, mais tarde ocultadas, não sem
temor. Sabemos que na Bíblia a misericórdia se exprime, entre outras formas,
pelo plural enfático de rehem, o útero. Encontrar o coração nas
entranhas, localização atestada também pelos Salmos, equivale talvez a
despertar o feminino interior da alma, uma compaixão maternal, “uterina”, pelo
próximo, uma oferenda marial ao Espírito...
Na
segunda metade do século XVIII, um estaroste ucraniano baseado na Moldávia,
Basílio de Poiana-Marului (da Clareira das Ameixeiras), situou o “coração”
espiritual um pouco acima e à direita do coração físico que para ele era ligado
ao thymos, ao ardor, sobre o qual deve reinar o coração espiritual. Como
Nicodemo o Hagiorita, Basílio colocava em relação com a Trindade a reunião no
“coração” das três “partes” da alma, mas também, e este é uma característica sua,
a comunhão do homem com seus irmãos, pois a prece descobre, em Cristo, o Adão
único e intercede por todos os homens.
Nenhum
desses textos explica realmente como acertar a pronúncia das palavras da prece,
nem o ritmo da respiração. Gregório o Sinaíta aconselha, para evitar uma certa
mecanização, alternar entre “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” e “Filho
de Deus, tem piedade de mim”. Somente Nicodemo o Hagiorita, em seu Enchiridion
(Manual) propõe que se diga toda a oração em uma longa inspiração seguida de
uma certa retenção, rejeitando-se a seguir o ar rapidamente, pois a expiração,
diz ele, dispersa a atenção.
Somente
no século XIX, no célebre Relatos de um Peregrino Russo, escrito entre
1855 e 1860 e que, sob sua aparente simplicidade, denota um marcante
conhecimento da via hesiquiasta, encontramos a indicação que todos, ou quase
todos, utilizam hoje em dia: dizer “Senhor Jesus Cristo” (ou “Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus”) na inspiração, e “tem piedade de mim (pecador)” na
expiração. O Peregrino recomenda também de sincronizar cada sílaba com
uma batida do coração...
***
Podemos
agora antecipar algumas conclusões. O “método” corporal não é absolutamente
visto como necessário pelos mestres da tradição filocálica. As diferenças e
imprecisões que observamos relativizam estas práticas e lhes retiram o caráter
sistemático e detalhado que observamos no yoga e na “meditação
transcendental”. Trata-se de meios não mais do que auxiliares. E nada seria
pior o que os objetivar fora da relação que eles favorecem. Entretanto, quando
ensaiamos “agarrar” por um longo tempo a prece de Jesus ou, pobre leigo atirado
de um lado para outro pelo século, recorrer a ela de tempos em tempos,
constatamos que ela se liga naturalmente ao ritmo respiratório. Ao contrário, a
utilização sistemática, voluntária, dos batimentos cardíacos é atualmente
desaconselhado aos Ocidentais: a desaparição das civilizações monástico-rurais,
duras mas sempre penetradas de silêncio e lentidão, o estado frequente de
tensão e esgotamento nervoso, a exasperação cerebral e sexual enquanto o
coração profundo segue ignorado, tudo isto explica que tal prática apresente o
risco de perturbar definitivamente os caminhos que conduzem ao “lugar do
coração”. Devemos nos contentar, portanto, como já aconselhava Nicéforo o
Solitário, em rezar como respiramos, ou seja, no ritmo da respiração. O
braseiro batismal, se o Espírito quiser soprar sobre ele, despertará o coração,
o abraçará, o fará “balançar”.
Isto
não quer dizer que se deva diminuir, ou mesmo esquecer as indicações relativas
ao método corporal. No entanto é o que tentaram fazer, no século XIX, os
mestres da Filocalia russa, Inácio Briantchaninov e Teófano o Recluso,
mas eles não obtiveram mais do que um afadigamento pietista. Vale mais, me parece,
para além de qualquer técnica, ajudar o homem moderno a se religar ao mistério
com os próprios ritmos de seu corpo. Na liturgia, uma beleza luminosa pacifica,
ilumina os sentidos e as faculdades e, por intermédio deles, eventualmente
desperta o coração. Na prece filocálica dá-se o inverso: o despertar do coração
comunica paz e luz às faculdades e aos sentidos. Por estas duas aprendizagens
complementares, o homem sente sua respiração alargar-se, não apenas para conter
os “espaços do mundo”, como diz o poeta, mas, através deles, além, para
penetrar no espaço infinito do Espírito, aonde pode se desenvolver nossa
liberdade criadora. Quanto aos batimentos do coração, ao invés de serem
sentidos na angústia de sua precariedade, eles atestam a vida concedida e perdoada,
eles nos permitem “cantar com o tamborim e a harpa[77]”,
tamborim do coração, vibração do sangue, líquido como as águas primigênias,
salgado como o oceano de onde nasceram os “vivos”, vermelho como o fogo do
Espírito abrasando a água nas bodas de Caná!
IX
PRIMEIRAS
CONTEMPLAÇÕES
Segundo
são Máximo o Confessor, “se o homem pretende avançar sem erro sobre a via
direta que conduz a Deus, duas coisas lhe são indispensáveis: a interpretação
espiritual das Escrituras e a contemplação espiritual das coisas da natureza[78]”.
Sobre o monte da Transfiguração, a brancura resplendente das vestes de Cristo
designam a um tempo, diz ele, a Escritura e o cosmo, quando estes se tornam
transparentes à luz divina[79].
É que a Encarnação do Verbo, que recapitula tudo, foi preparada, rascunhada por
sua incorporação nas essências espirituais das coisas e depois por sua
incorporação na Torá.
Hoje
em dia, como pressentir o mistério senão através da beleza do mundo! O
verdadeiro milagre, dizia Wittgenstein, é que as coisas sejam. Para a Filocalia,
já contemplamos a Deus por um certo olhar sobre o mundo: é a theoria physikè,
a “contemplação da natureza”. Esta, se a livrarmos das ilusões que nossas
paixões projetam sobre ela, é um caminho que conduz a Deus e que devemos tomar.
“Em seu caminho de união com Deus, escrevia Vladimir Lossky, o homem não
rejeita as criaturas, mas reúne em seu amor o cosmos desconjuntado pelo pecado
a fim de que ele seja finalmente transfigurado pela graça[80]”.
O homem tem uma missão em relação ao universo. Ele deve manifestar, liberar seu secreto
louvor, ao invés de se atirar sobre ele como um predador. O olhar de Cézanne
sobre a maçã não é o mesmo do guloso que só pensa em se satisfazer.
Tudo
tem sua origem no Verbo[81],
tudo tende para a plenitude no Espírito Santo. A encarnação do Verbo liberta
sacramentalmente o mundo de sua magia noturna, e nos ordena trabalhar nesta
libertação. A árvore da Cruz, tornada a nova e definitiva Árvore da Vida,
redime com toda evidência a sacralidade da matéria. No Cristo da Encarnação e
da Ascensão, a “morada do mundo” encontra sua integralidade pela união do
sensível com o inteligível, do mundo material com os mundos angélicos. Podemos
dizer que o Verbo se encarna não apenas no humano mas no cósmico. Para o
filósofo russo Lossiev, cujo destino foi alterado pelo stalinismo, o universo é
uma escada de muitos degraus de “verbidade”: “O homem é uma palavra, o animal é
uma palavra, um objeto inanimado é uma palavra. Pois tudo isto é Sentido e sua
expressão[82]”.
São Máximo o Confessor considera o mundo como uma eucaristia: as essências das
coisas visíveis são o “corpo” de Cristo e as dos mundos espirituais são seu
“sangue[83]”.
O
Verbo, o Logos é o sujeito divino de todos os logoi, palavras essenciais
que as coisas carregam. O homem logikos, imagem pessoal do Logos, é
chamado a se tornar seu sujeito humano. Ele se torna plenamente isto em Cristo,
revelando em si suas essências, não para se apropriar delas mas para
oferece-las depois de as ter – pessoal e coletivamente – “nomeado”, ou seja,
marcado com seu gênio criador. “Tudo ora, tudo canta a glória de Deus”,
escrevia o Peregrino Russo; “assim eu aprendi o que a Filocalia
denomina “o conhecimento da linguagem da criação” e vi como é possível
conversar com as criaturas de Deus[84]”.
O homem cuja força passional foi crucificada e transfigurada irradia uma paz
paradisíaca. Ao redor dele as feras se amansam “pois elas sentem, vindo dele, o
perfume que Adão exalava antes da queda[85]”.
A
“contemplação da natureza” pode proporcionar, já, humildemente, um sabor
espiritual às nossas existências. Basta um pouco de atenção amorosa para que a
própria evidência das coisas revele seu segredo, ou melhor, para que se segredo
as torne evidentes.
Este
conhecimento espiritual, que exige uma certa maturação ascética, pode afinar e
aprofundar o conhecimento racional do qual ele não se diferencia senão por uma
maior abundância de luz.
A
escritura constitui outra incorporação do Verbo e seu sentido pleno não se
revela senão na Paixão e Ressurreição de Cristo, quando o Verbo, para usarmos
um jogo de palavras, se livra do livro e a eucaristia nos permite compreende-lo
verdadeiramente. É somente em Cristo, com efeito, que a Bíblia deixa de ser
sombra e segredo (skiagraphia e cryptographia). A leitura orante
da Escritura passa a ter ela também um sabor eucarístico. Tudo, nos textos que
podemos chamar de divino-humanos, se torna, para a Filocalia, “figura”
de Cristo, e portanto do Espírito, da Trindade, de sua Mãe e de sua Igreja.
Corpo do Verbo, a Escritura, lida apenas ao pé da letra, remete às vestes de
Cristo. É preciso buscar além o Sentido, ou seja o próprio corpo de Verbo. O
mesmo Espírito age no profundidade da Escritura, na da história e no coração
batismal do homem. A hinografia litúrgica, os comentários patrísticos
constituem uma hermenêutica eclesial que devemos saber atualizar e prolongar
utilizando as pesquisas contemporâneas da exegese. A meditação das Escrituras
nos permite revelar o trabalho do Espírito em nossa historicidade pessoal,
tanto quanto na história dos homens. Progredimos na intelecção da história à
medida em que avançamos na da Bíblia, do Bereschit do Gênese ao en
archè do Prólogo de João, até a revelação da nova Jerusalém no Apocalipse.
Temas imensos, a um tempo cósmicos e históricos, a água, o fogo, a montanha, a
travessia do mar Vermelho, o cântico dos três jovens na fornalha, o Servidor
sofredor, o Cordeiro, compõem a sinfonia de nosso destino que encontra em
Cristo seu sentido. Toda a liturgia da Igreja é um imenso midrash, e os
textos da Quaresma, por exemplo, não fazem senão comentar a parábola do filho
pródigo. O Antigo Testamento relata o Verbo, o Novo não cessa de relatar sua
Páscoa.
Fora
da “prece de Jesus”, o único método de oração indicado na Filocalia é
portanto a leitura orante da Escritura e mais especificamente dos Salmos. O
monge se apropria deles, eles se tornam o grito a Deus de seus desesperos e de
seus fervores. “Penetrados pelos mesmos sentimentos nos quais os Salmos foram
compostos, é como se nos tornássemos seus autores... A alma se derrama a Deus
com gemidos inenarráveis[86]”.
Quando uma frase, uma palavra, fazem tremer o coração, devemos nos deter,
deixar que se irradie na alma esta “intuição de Deus”. Na história, os
hesiquiastas foram reticentes diante da superabundância da hinografia ou da
recitação quantitativa dos Salmos: “Mais vale uma única palavra na intimidade
do que mil no distanciamento[87]”,
dizia Evagro, e “a excelência da oração não consiste na quantidade, mas na
qualidade, como o prova esta sentença: Quando rezarem, não multipliquem as
palavras[88]”.
A porta de ferro que se abre diante de Pedro para que ele possa sair da prisão
é nosso coração endurecido que se parte[89].
O mundo, “primeira Bíblia, a Escritura já corpo do Verbo, este corpo liberto no
batismo e na eucaristia, consiste na Sabedoria construindo sua morada
misturando seu vinho e pondo sua mesa[90]”.
X
APÓFASES
Pouco
a pouco, o intelecto compreende que Deus escapa a toda tentativa de agarrá-lo,
que ele está sempre além. “Supra-essencial”, ou seja, além do ser, diz Denis o
Areopagita. Hyperthéos, diz ainda, ou seja, além de todas as nossas
concepções de Deus. Assim começa o primeiro momento da “apófase”, ou seja, da
“subida” em direção ao Inacessível. Aqui a apófase se identifica com a teologia
negativa, da qual devemos precisar que não se trata de um jogo intelectual mas
de uma purificação do intelecto e da linguagem. O intelecto, por uma captação
intuitiva, pressente o abismo divino, compara a este rosnar do silêncio as
imagens e os conceitos que empregava a respeito de Deus e constata sua
impotência, seu caráter quase risível. O Ilimitado ultrapassa todo limite
conceitual. A teologia negativa rejeita toda tentativa de se apropriar de Deus,
toda teologia abstrata, puramente conceitual. Deus não apenas é infinito mas
também é outra coisa e a linguagem atola nesta alteridade impronunciável.
Chamá-lo de Deus, Vida ou Essência não designa mais do que “potências” que
descem dele para nos deificar, nos vivificar, nos permitir ser. O “Segredo
supra-essencial” nos escapa sempre[91].
Já um são Basílio, um são Gregório de Nysse sublinhavam que os nomes que damos
a Deus não se referem senão às suas operações[92].
É somente pelo “desconhecimento”, “além de toda inteligência”, longe do “mundo
onde vemos e somos vistos”, em que o sujeito se opõe ao objeto, que
pressentimos o Segredo, quando a linguagem perde o pé, diz Palamas, em uma
“superabundância” de luz[93].
Mas
é preciso ultrapassar também as negações, ou seja toda manobra intelectual, num
impulso existencial no qual a pessoa se recolhe e se lança para além de si
mesma, para além de sua natureza, como disse Vladimir Lossky. Ela chega então
ao segundo momento da apófase: o silêncio em que se ora para além mesmo da
prece, aquilo que a tradição filocálica denomina “prece pura”. O intelecto se
concentra no “coração”, se torna “simples”, “nu”, “sem forma”, um lago
absolutamente calmo onde o Nome de Jesus não é mais do que uma onda
imperceptível, um lago calmo como um espelho. Ou como uma tumba, mas uma tumba
vazia.
Intervém
então o terceiro momento em que a apófase se torna antinômica: a tumba se enche
de luz, luz incriada, treva transluminosa irradiando uma presença – Simeão o
Novo Teólogo fala de uma voz. Compreendemos então da maneira mais concreta o
que significa a distinção entre a essência e as energias, esboçada pelos Padres
capadócios e por Denis o Areopagita (que emprega um outro termo: dynameis,
as potências) e plenamente definida no século XIV por são Gregório Palamas.
Deus é inacessível, mas, pela loucura do amor, ele se dá. Em Cristo, suas
energias participáveis quase se identificam ao Espírito Santo e se comunicam a
nós no interior do encontro ao qual se oferece a “prece pura.
A
essência (ou supra-essência) inacessível e as energias participáveis não são
duas coisas, não dividem a divindade. São, de certo modo, as modalidades da
existência pessoal absoluta que se reserva sem recusar e se entrega sem se
confundir. O Deus vivo transcende sua própria transcendência para se unir
realmente a nós. Pois ele é ao mesmo tempo Segredo e Amor. “Todo inteiro ele se
manifesta e todo inteiro ele não se manifesta... Todo inteiro ele participa e
todo inteiro ele permanece imparticipável[94]”.
Energeia é um termo aristotélico que significa ação, operação. O Deus
inacessível age para se dar, a ação é também doação que vem da essência: do
Princípio a seu Outro, a seu Sopro, luz comunicando-se ao Pai, pelo Filho, no
Espírito Santo.
São
Gregório Palamas, com efeito, prefere à noção de energia a de luz, como um dado
da experiência. Esta luz preencheu o céu e a terra quando de sua criação, mas
os homens, por uma cegueira parcial, têm a tendência seja de ocultá-la, seja de
idolatrá-la. Somente na humanidade de Cristo ela se concentra e irradia sem ser
desnaturada, revelando-se sobre o monte no momento da Transfiguração,
preenchendo nosso coração pela iniciação batismal, antecipando na eucaristia a
renovação do céu e da terra pois, diz Palamas, a Luz do Tabor “tem o valor da
segunda vinda de Cristo[95]”.
Toda
a Filocalia implica esta teologia palamita. Não é por acaso que os
autores do século XIV ocupam um quarto da obra e que Nicodemo o Hagiorita
preparou uma edição integral das obras de Palamas, edição que foi impedida pela
polícia austríaca! A Filocalia insiste a um tempo na aproximação
negativa do mistério e na realidade da “deificação”, uma palavra empregada seis
vezes por Nicodemo na primeira página de seu prefácio.
As
energias divinas penetram o universo de sorte que a antinomia em que culmina a
apófase abre o espaço para uma aproximação simbólica desta. É preciso, escreve
Denis, “louvar todo o conjunto da divina Origem por não possuir nenhum nome e
por possuir a todos... Esta causa de tudo que ultrapassa tudo, é a um tempo o
anonimato que lhe convém e todos os nomes, de todos os seres...” Pois “esta Origem
divina está ao mesmo tempo no seio do universo e além do céu, Sol, Estrela,
Fogo, Água, Sopro, Orvalho, Nuvem, Rochedo absoluto, (...) em uma palavra tudo
o que é e nada do que é[96]”.
A Páscoa interior confirma e aprofunda a “contemplação da natureza” e a dos logoi
de Deus na história. A apófase funda uma cosmologia de encarnação e uma
espantosa filosofia da comunhão dos homens entre si, pois a
distinção-identidade entre essência e energias, entre segredo e amor, aplica-se
igualmente às pessoas humanas. “O eu, escreve Serge Boulgakov, deve ser
sugerido de maneira antinômica, ao modo da teologia negativa (...). A palavra
“eu” constitui para cada qual um signo a um tempo místico e inteligível que nos
guia para um abismo inefável, para uma treva de onde jorram sem cessar gotas de
luz[97]”.
XI
DEIFICAÇÃO
Podemos
ler, nos Apotegmas, que um irmão, indo à cela do abade Arsênio, ao entreabrir a
porta “viu o abade inteiramente como um fogo[98]”.
A
deificação não é a abolição do humano mas seu cumprimento na graça, pois “Deus
é ele próprio a vida daqueles que participam dele[99]”.
O
lugar da deificação é Cristo. Nele, o Espírito comunica aos homens uma filiação
divina renovada. O homem, arrastado pelos espaços trinitários, participa do
nascimento eterno do Filho, ou seja, do mistério, em Deus mesmo, da unidade na
alteridade e da alteridade na unidade.
O
mundo das “energias” é o Reino dos céus onde Deus inteiro se une a nós ao mesmo
tempo em que permanece inteiramente inacessível. É por isso que o mundo
comporta um número infinito de “moradas”.
O
Reino é e será cada vez mais uma visão face a face: na luz do Espírito está o
rosto de Cristo e, como ele disse, “quem me viu, viu o Pai[100]”.
Daqui
de baixo, o homem se torna um ressuscitado. É a “pequena ressurreição” de que
fala Evagro. Ela reúne, para além do retorno à origem, a última parúsia, o
último retorno de Cristo sobre a terra, pois Cristo é o alfa e o ômega.
Os
santos são os germes da ressurreição. Eles fazem subir à superfície da história
“o fogo escondido e como que sufocado sob as cinzas deste mundo[101]”.
Na
“prece pura”, o intelecto unido ao coração vê “sua própria luz[102]”,
ele “vê seu estado semelhante à safira ou à cor do firmamento[103]”.
Entretanto a alma cristã, diferentemente do que acontece talvez nas asceses
asiáticas, não se dissolve nesta luz interior. Ela morre para reencontrar a
alteridade de Deus – e do próximo. Ela morre ao esplendor cristalino de sua
própria interioridade que, fechada sob si mesma, poderia, num regime bíblico
(as experiências de outras tradições não correm este risco), se tornar
luciferiana. A gnose, aqui, se torna amor e primeiro morte por amor.
Então
a graça vem como uma embriaguez. Ela arranca a alma de si mesma, de sua própria
transparência, de sua própria complacência talvez. O homem sente em si forças
divinas, mas, com o espanto e a gratidão daquele que compreende que elas vêm de
fora. As energias de Deus o cumulam, mas ele está consciente de recebê-las pela
misericórdia do Inacessível, pela mediação do Crucificado. É por isso que a
deificação implica uma metanoia sempre renovada.
As
energias de Deus cumulam a alma aguçando seu desejo. Quanto mais Deus enche a
alma, mais ela pende para a fonte sempre além de si, para receber ainda mais e
desejar mais ainda, indefinidamente. Pois o homem, passando de “imagem” a
“semelhança” assimila-se cada vez mais a Deus sem poder jamais identificar-se a
ele. Esta é a “epektasis” de Gregório de Nysse: o prefixo epi
denota a presença, o prefixo ek a tensão. Assim se vai “de começo em
começo, por começo que nunca têm fim pois jamais aquele que sobe detém seu
desejo naquilo que já conhece; mas, elevando-se de um desejo maior a um maior
ainda, ele segue sua rota pelo infinito através de ascensões cada vez mais
altas[104]”.
“O amor é um abismo de luz, uma fonte de fogo, escreveu são João Clímaco.
Quanto mais jorra, mais queima aquele que tem sede (...) É por isso que o amor
é uma progressão eterna[105]”.
Salvo
alguns raros, é por lampejos que sentimos aqui em baixo as aproximações da
deificação. Toques de fogos discretos, infinitamente doces, no coração. Ou um
grande balançar deste, quando, tornando-se “olho de fogo”, é invadido pela luz.
“É
fácil saber como e sob quais aspectos a doçura espiritual derruba a alma. Às
vezes, uma alegria inefável e grandes impulsos (...) Às vezes, toda a alma
desce e se mantém oculta nos abismos de
silêncio (...) Às vezes, enfim, ela chega a este ponto cheia de uma dolorosa
doçura que somente as lágrimas conseguem aliviar[106]...”
Apenas
um critério, o da humildade e do amor.
“Senhor
Jesus Cristo, meu Deus, dê-me o arrependimento total, o coração contrito[107]...”,
e a visão – e o serviço – do mundo em Cristo como uma sarça ardente, de todos
os homens em Cristo como um Adão único, “membros uns dos outros”, na imensa
“consubstancialidade” humana[108].
Ao
mesmo tempo, cada um é único.
“Irmão,
eu lhe recomendo o seguinte: que em você o peso da compaixão faça pender a
balança, até que você sinta em seu coração a própria compaixão que Deus tem
pelo mundo[109]”.
Deificado,
portanto capaz de amar, de servir.
Deificado,
portanto crucificado. Crucificado, portanto ressuscitado.
“Ele
se levanta em mim, dentro de meu pobre coração, qual um sol[110]”.
“Eu
sei que não morri, porque estou dentro da vida e tenho toda a vida que jorra
dentro de mim[111]”.
[1]
Prefácio de Nicodemo o Hagiorita.
[2]
Ibidem.
[5] A.
E. Tachiaos, Païssi Velitchkovsky et son
école ascétique et philologique, Tessalônica, 1964. O próprio Païssi,
quando de sua estada em Athos, anterior à de Macário, disse ter conhecido estas
coleções e que começou a traduzi-las para o eslavo. Tratava-se, segundo
Tachiaos, dos Cod. Vatop. 650 (séc.
XIII) e Cod. Vatop. 262 (séc. XV).
[6] João XVII, 22.
[7]
Nicodemo também adaptou para o grego diversas obras católicas.
[8]
Recomendamos a curta mas profunda obra La Prière de Jésus (Chevetogne,
Livre de vie no. 122)
[9]
Nesta introdução tentamos expressar numa linguagem moderna, para homens e
mulheres cuja vida espiritual não pode ser exclusivamente monástica, as
intenções essenciais da Filocalia.
Não hesitamos em pesquisar em toda a tradição patrística e hesiquiasta,
inclusive nos textos que Macário e Nicodemos não incluíram em sua coletânea
porque haviam sido editados (são Isaac o Sírio, em sua versão grega de 1770),
ou porque viriam a ser editados por eles mesmos.
[10]
Tanto o hebraico ruah como o grego pneuma significam “sopro”.
[11]
Gregório de Nazianze, Discuro 45 sobre a Páscoa, 28, PG 36,661.
[12] Lucas
XIV, 21-23.
[13]
Nicolas Cabasilas, La vie em Christ, ed. Chevetogne, 1960, pg. 187-188.
[14] De
l'Incarnation 8, PG 29,996C.
[15] Isaac o Sírio, Carta 4.
[16] João
Damasceno, A fé ortodoxa, PG 94, 616.
[17]
Máximo o Confessor, Ambigua, PG 91,1081
[18] PG
91, 713.
[19] Cf.
Olivier Clement, Dialogue avec le Patriarche Athénagoras, Paris 1976,
pg. 149.
[24] Questões
a Thalassius, PG 90,256.
[26] P.
ex., Hesíquio de Bathos, Capítulos sobre a sobriedade e a vigilância,
44-46.
[27]
Gregório o Sinaíta, 137 sentenças diversas, 70.
[28] Homilias
espirituais de são Macário XV, 48-49.
[29] Marcos
V, 9; Lucas VIII, 30.
[31]
Ibidem
[32]
Evagro o Pôntico, Tratado prático, 53.
[34] João
XV, 5. Inácio e Calixto Xanthopouli, Centúria espiritual 8.
[35] Ibidem,
16B
[36] Romanos
VIII, 20.
[38]
Máximo o Confessor, op. cit., 10,289.
[39] Homilias
46, 5-6.
[46] XXV,
14.
[47] Cf.
J-M Garrigues, Dieu sans l'idée du mal. Limoges, 1984.
[48]
Epílogo a seu tratado Le Paraclet, trad. fr. Paris, 1946, pg.343s.
[50] Do
batismo.
[51] João
Clímaco, A escada santa XXIX, 12.
[52]
Máximo o Confessor, Centúrias sobre o amor I, 2.
[55] 22a.
Homília sobre Josué.
[56] Cf.
Gênese II, 19.
[57] Em O
idiota de Dostoievski.
[59]
Marcos o Monge, Tratados espirituais e teológicos, Do Batismo.
[60]
Obras espirituais, 34o. Tratado.
[61]
Ibidem, 33o. Tratado.
[62] João
Clímaco, A escada santa XI, 5.
[64]
Evagro o Pôntico (346-399), grande letrado que se retirou para o deserto do
Egito, conceituou a experiência monástica original, não sem influência de uma
certa gnose intelectualista.
[65] O
pseudo-Macário (ao redor do ano 400) é o autor das Homílias Espirituais
marcadas por um poderoso retorno às fontes na sensibilidade bíblica e
evangélica, sobretudo joanina.
[68] Salmo
LXX, citado por João Cassiano em suas Conferências X, 8 e 10.
[70] F.
Augieras, Lettres du Mont Athos, ed. Fata Morgana, 1994, pg. 26.
[71] São
Atanásio de Alexandria, Vida de Antonio 91.
[72] João
Clímaco, A escada santa XXVII, 2a. Parte, 26.
[73] Cem
capítulos espirituais 56.
[74]
Essencialmente o Methodos (século XII?), o tratado Sobre a
sobriedade, a vigilância e a guarda do coração de Nicéfora o solitário
(segunda metade do século XIII), as obras de Gregório o Sinaíta e Gregório
Palamas (primeira metade do século XIV), a Centúria de Calixto e Inácio
Xanthopouloi (segunda metade do século XIV) e o Enchiridion (Manual)
de Nicodemo o Hagiorita (fim do século XVIII).
[75] I
Reis XVIII, 42.
[76] A
expressão é de “um monge da Igreja do Oriente” em La Prière de Jésus,
Livre de Vie, 122.
[82] A-F
Lossiev, Filosofia imeni, Moscou, 1927; N. Losski, Histoire de la
philosophie russe, Paris, 1954., pg.308.
[84] Relatos de um Peregrino Russo.
[85]
Issac o Sírio, 20o. Tratado.
[86] João
Cassiano, Conferências X, 11.
[89]
Marcos o Asceta, A lei espiritual 21.
[90] Cf.
Provérbios IX, 1-2.
[91]
Denis o Areopagita, Nomes divinos II, 7.
[92] Basílio
de Cesaréia, Contra Eunomo I, 5; Carta 234; Gregório de Nysse, Contra
Eunomo, livro 12 e 6a. Homília sobre as Beatitudes.
[94] Da
participação a Deus, Coisl. 99, fo. 22.
[95] Defesa
dos santos hesiquiastas, trad. Meuendorff, Louvain, 1959.
[96]
Nomes divinos I, 1, 6.
[99]
Irineu de Lyon, Adv. Haer., V, 7,1.
[101]
Gregório de Nysse, Contra Eunomo 5.
[102]
Diádoco de Foticéia, Cem capítulos espirituais 40.
[103]
Evagro o Pôntico, in Bousset, Apophtegmata, Tübingen, 1923., pg. 316.
[104]
Gregório de Nysse, 8a. Homilia sobre o Cântico dos Cânticos.
[106] João
Cassiano, Conferências IX, 27.
[107] Isaac
o Sírio, 34o. Tratado.
[108] Cf. Sentenças
dos Padres do deserto, cap. XXI, Dos que envelheceram na ascese 24.
[109] Isaac
o Sírio, 34o. Tratado.
[110]
Simeão o Novo Teólogo, Hino I.
[111] Idem,
Hino 13.
Pe. Tito. Sua bênção.
ResponderExcluirGostaria de saber se o texto em português da Filocalia que o senhor dispôs no blog está publicado por alguma editora e, se não, quem é Luis Kehl? Obrigado pela atenção.
diaconobondan@gmail.com