Filocalia Tomo I Volume 3 - Máximo o Confessor: Centúrias I, II e III sobre o Amor


DE NOSSO PAI ENTRE OS SANTOS MÁXIMO O CONFESSOR
CENTÚRIAS SOBRE O AMOR[1]


Máximo o Confessor

 

 

Nosso santo Padre Máximo o Confessor, viveu sob o reinado de Constantino Pogonates, ao redor do ano 670. Ele foi o primeiro contendor da heresia dos monotelitas. Inicialmente elevado à corte imperial e honrado com a dignidade de primeiro secretário, ele logo deixou seus encargos deste mundo e partiu para os combates da ascese. Tendo se aproximado da fonte da sabedoria, continuamente irrigada pelas águas límpidas das divinas Escrituras, ele deixou escoar de si rios de ensinamentos e escritos que se espalharam até os confins da terra. Também nós, com os presentes capítulos, repassamos neste livro a água doce que ressuscita os mortos e a oferecemos aos que se acham tomados da bela sede da sabedoria, a fim de que bebam em abundância e não estejam mais sedentos. Pois o conhecimento e o trabalho do santo amor deificante são aqui tratados com toda a sabedoria. A glória infalível da mais alta teologia é aqui confirmada e o mistério da economia do Verbo é explicado piedosamente. A contemplação ativa das virtudes divinas é revelada na luz da ciência. A liga abominável dos vícios e das paixões contrárias encontra-se aqui estigmatizada. Em uma palavra, nestes textos brilha o ordenamento dos comportamentos e encontram-se conservados como tesouros um grande número de temas auxiliares por meio dos quais, libertados de toda malícia e chegados ao estado da virtude, podemos nos tornar cidadãos dos céus e descobrir a glória divina. E ainda acrescentamos aos capítulos o comentário de são Máximo ao “Pai Nosso”, que é de longe o mais eminente e promete ser de grande valia para quem o ler.

 

Photius diz de Máximo: “Sua frase é tensa como uma corda, seus períodos ultrapassam prazerosamente as medidas, seus pensamentos se revestem de esplendor, e ele não tenta empregar as palavras em seu sentido próprio... No entanto, se ele chega a alguém cuja inteligência se compraz em desenvolver as elevações e as contemplações, nada há de mais trabalhado e mais estudados do que elas.”

 

 

*

 

A vida de são Máximo o Confessor (580-662) aparenta-se, num certo sentido, à de são Paulo. Aquilo que são Paulo significou para os apóstolos, são Máximo foi para os monges. Ele poderia ter sido o contrário de um monge: nascido de uma família nobre de Constantinopla, muito instruído, ele foi de início um dos mais altos funcionários do Império Bizantino e sem dúvida o próprio secretário do imperador Heráclito. Mas, com pouco mais de trinta anos, em 614, ele ingressou no mosteiro, primeiro em Crisópolis, na outra margem do Bósforo, depois em Císico. Depois de 626, a invasão persa e a conquista árabe fizeram dele um errante. Na África ele passou algum tempo tranquilo. Mas o errante havia demasiado estudado os Padres e a Escritura, ele cultivava profundas amizades ortodoxas, em particular com Sofrônio, o patriarca de Jerusalém, e conservava de sua frequentação com o poder um agudo senso de responsabilidade de homem engajado na história. Mais do que qualquer um, ele não poderia permanecer indiferente à sorte da cristandade. Ele acabou por se opor radicalmente ao compromisso doutrinal buscado pelo poder instalado em Constantinopla para impedir as comunidades do Oriente adeptas do monofisismo de tender para o Islam.

 

Ao defender o dogma da Calcedônia (duas naturezas, portanto duas energias e duas vontades em Cristo em uma só pessoa plenamente divina e plenamente humana), Máximo confirmava em nome de Cristo o direito do homem à liberdade de Deus. Mas, como Cristo e como Paulo, ele se deixou envolver na armadilha de um processo político. Levado à força para Constantinopla em 653, diversas vezes condenado, diversas vezes exilado, intratável, ele morreu em seu último exílio, no Cáucaso, com a idade de 82 anos, tendo a língua e a mão direita cortadas. Mas, assim como Cristo e Paulo não transigiram com os mandamentos e os impedimentos da lei judaica, também Máximo não se compôs, nem para contê-los, com as consequências e os transbordamentos do monofisismo. Entre o Oriente e o Ocidente ele manteve a estrita verdade do Evangelho. Seu testemunho não deixa de ser atual.

 

Pela amplitude dos escritos atribuídos ao seu nome na antologia, como pela sua conduta de vida, a intransigência de seu engajamento e seu gênio de recapitulação e de síntese, são Máximo o Confessor é certamente o testemunho que melhor concorda com a intenção profunda dos editores da Filocalia grega: transmitir ao mundo e confiar à história a silenciosa profecia dos monges e seu amor pela beleza divina. Os trechos escolhidos (quatro centúrias sobre a caridade, sete centúrias sobre a teologia e um comentário à oração dominical) são antes de tudo filocálicos. Em nenhum momento eles colocam em causa outra coisa do que a nossa relação fundamental com o mistério e a revelação do Deus vivo.

 

As quatro centúrias sobre a caridade são sem dúvida uma das primeiras obras de Máximo, compostas na calma do mosteiro de Císico antes de 626. Máximo condensou aí aquilo que sete séculos de vida cristã atestaram de mais central: a preeminência absoluta do amor. A colocação é clara e límpida, como um cristal. Reflexões e sentenças balizam as vias morais que permitem alcançar o amor divino que “ama a todos os homens por igual”. Mas elas também denunciam os impasses nos quais toda vida perde seu sentido e seu objetivo. A concisão do pensamento, o rigor das fórmulas, a precisão do traço, a pertinência dos conselhos, fazem desta coletânea como que uma épura do Evangelho. A criação é boa. Nada é naturalmente mau. O mal está sempre no mau uso da criação; “Renunciar aos pensamentos passionais, conclui Máximo, torna monge o homem interior”.

 

As sete centúrias sobre a teologia são a reunião de duas obras diferentes. A primeira (compreendendo as duas primeiras centúrias, sobre a teologia e a encarnação do Filho de Deus) é uma obra de Máximo escrita sem dúvida no início de seu exílio africano, entre 630 e 634. As outras (os capítulos diversos da terceira à sétima centúrias, sobre a teologia, a economia, a virtude e o vício) são uma compilação, geralmente datada do século XI, na qual se sucedem extratos de obras do próprio são Máximo (as Cartas, as Questões a Thalassius, as Ambígua), comentários do compilador e algumas passagens de textos de Denis o Areopagita. Com toda evidência, esta compilação convém perfeitamente às afinidades da antologia filocálica devido aos textos que atestam e confortam a teologia vivida. “Não conhecer o Verbo na carne, diz Máximo, senão para progredir para a glória”. A energia divina que criou o mundo trabalha e se cumpre em nós no sexto, no sétimo e no oitavo dia. O homem coroa a criação no sexto dia porque lhe é dado passar deste ao sétimo, da criação à hesíquia, e do sétimo ao oitavo, da hesíquia à deificação. Assim tudo é dado. Mas tudo deve ser recebido, assumido, cumprido. Máximo afirma: “Cada qual é o intendente de sua própria graça”.

 

A interpretação do “Pai Nosso” foi sem dúvida escrita também por volta de 630. Trata-se de um obra forte e densa – a um tempo meditação e exortação – que faz passar e brilhar ao redor das palavras da oração dominical o sopro da vida e a luz do conhecimento: uma humilde e magistral lição de teologia.

 

Para Máximo, como para toda a tradição filocálica, o dever maior do cristão é a ascese do intelecto, o qual deve suplantar os sentidos, não para empurrar adiante o conhecimento do mundo, como fazemos hoje, mas para conhecer a Deus no começo e no fim do mundo, uma vez que a vida espiritual não tem outro objetivo do que fazer passar os sentido ao intelecto e este ao coração, para então oferecer o coração a Deus. Assim o corpo do homem é a alma viva que faz retornar a Deus toda a criação. Integrando de uma só vez Orígenes, Evagro, Denis e os Capadócios, na mesma hora em que se mostra humanamente impossível estabelecer sobre o mundo um império cristão unificado, Máximo assume esta tradição dos monges, sua experiência e seu vocabulário, mas a expõe aos ventos da história como à incandescência do Juízo final. O testemunho cristão é assim, mais uma vez, como que fundido no cadinho do Evangelho e da atualidade. O monaquismo é também um anúncio humano da boa nova. A contemplação não exclui o testemunho histórico: para Máximo, ela o exige. Nele o homem do mundo encontrou suas raízes no monge, e o monge encontrou suas raízes no confessor da fé e no mártir: a própria estatura e o exemplo do testemunho fiel e verdadeiro.

 

 

 
PRÓLOGO

A Elpídio, Padre.


Além do tratado sobre a vida ascética. Eis aqui igualmente a obra sobre o amor que eu envio à sua beatitude, Padre Elpídio, em quatro centúrias de capítulos, assim como há quatro evangelhos. Talvez nada aí seja digno de sua atenção; ao menos, nada aí está abaixo daquilo que nos foi possível fazer. Porém, que sua santidade o saiba: estes não são frutos de minha reflexão. Eu percorri os escritos dos santos Padres, escolhi aquilo que concentra o intelecto sobre o tema do amor, e resumi em frases curtas o essencial de longos discursos, a fim de que eles possam ser abarcados de um só relance por serem fáceis de memorizar. Envio, portanto, estas centúrias à sua santidade, pedindo-lhe que as leia com benevolência, não buscando nelas senão aquilo que pode ser útil, não vendo o quanto eu me exprimo mal, e que ore por minha mediocridade tão desprovida de utilidade espiritual.


Eu lhe peço ainda que não pense que eu escrevi essas coisas para importuná-lo. Pois eu fiz o que me foi ordenado. Digo isto porque hoje em dia são muitos os que importunam os outros com discursos, mas que são poucos os que instruem ou que se deixam instruir pelas obras. É melhor, assim, nos darmos ao trabalho de nos aplicar a cada uma dos capítulos; pois nem todos esses capítulos são fáceis de serem captados por todos. A maior parte precisa ser longamente examinada, mesmo se sua expressão parecer muito simples. Talvez um deles se mostre útil à alma. Mas, pela graça de Deus, ele não se mostrará jamais senão àquele que o ler sem nenhuma curiosidade, com temor e amor a Deus. Quanto aos que lerem esta obra ou qualquer outra, não para seu benefício espiritual, mas para buscar palavras com o objetivo de acusar o autor ou de se fazer passar por ele, por presunção, por mais sábio que seja, a este nada de útil surgirá em parte alguma.




PRIMEIRA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR

1. O amor é uma disposição boa da alma, segundo a qual nada do que existe lhe é preferível ao conhecimento de Deus. E é impossível a alguém apaixonado pelas coisas terrestres alcançar este amor.

2. O amor nasce da impassibilidade; a impassibilidade, da esperança em Deus; a esperança, da paciência e da longanimidade; estas, da temperança em tudo; a temperança, do temor a Deus; e o temor, da fé em Deus.

3. Quem crê no Senhor teme o castigo. Quem teme o castigo se protege das paixões. Quem se protege das paixões suporta as aflições. Quem suporta as aflições terá a esperança de Deus. A esperança em Deus separa o intelecto de todo pendor terrestre. E aquele cujo intelecto estiver assim separado terá o amor de Deus.

4. Quem ama a Deus prefere seu conhecimento a tudo o que ele criou, e persevera nele sem cessar, com todo o seu desejo.

5. Se todos os seres foram criados por Deus e para Deus e se Deus é maior do que tudo o que ele criou, quem abandona a Deus e se liga ao que é menor mostra que, a Deus, prefere suas criaturas.

6. Quem tem seu intelecto fixado no amor a Deus despreza todo o visível, incluindo seu próprio corpo, como se este lhe fosse estranho.

7. Se a alma é mais alta do que o corpo, e se Deus que criou o mundo é incomparavelmente mais alto do que ele, quem prefere o corpo à alma e a Deus o mundo que ele criou em nada difere dos idólatras.

8. Quem afastou o seu intelecto do amor e da assiduidade que devemos a Deus para ligá-lo a qualquer coisa de sensível, prefere o corpo à alma e aos Deus Criador suas criaturas.

9. Se a vida do intelecto está na iluminação do conhecimento, e se esta iluminação nasce do amor a Deus, é certo dizer que nada é maior do que o amor divino.

10. Quando, pelo desejo ardente do amor, o intelecto emigra para Deus, ele deixa de sentir os seres. Inteiramente iluminado pela luz infinita de Deus, ele se torna insensível a tudo o que Deus criou, assim como o olho já não vê as estrelas quando o sol se levanta.

11. Todas as virtudes auxiliam o intelecto a alcançar o desejo ardente de Deus, mas acima de todas está a prece pura. Por esta prece, elevando-se a Deus como sobre asas, o intelecto se separa de todos os seres.

12. Quando o intelecto é arrebatado para o amor pelo conhecimento de Deus e, separado dos seres, sente a infinitude divina, então, tocado pelo temor como o divino Isaías, ele toma consciência de sua própria baixeza e é levado a pronunciar as palavras do profeta: “Infeliz de mim! Estou perdido; pois sou um homem de lábios impuros. Estou no meio de um povo de lábios impuros. E vi com meus olhos o Rei, Senhor dos Exércitos”[2].

13. Quem ama a Deus não pode deixar de amar aos homens como a si mesmo, mesmo que tenha que suportar as paixões daqueles que ainda não foram purificados. E quando estes se corrigem, ele se regozija com uma alegria transbordante e indizível.

14. Impura é a alma [passional] cheia de maus pensamentos, de concupiscência e de ódio.

15. Quem percebe em seu coração um traço de ódio contra um homem, qualquer que seja, é inteiramente estranho ao amor a Deus. Pois o amor a Deus não suporta o ódio ao homem.

16. “Quem me ama, diz o Senhor, observará meus mandamentos[3]. Ora, este é o meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros[4]”. Assim, quem não ama seu próximo não segue o mandamento. E quem não observa o mandamento não é capaz de amar o Senhor.

17. Feliz o homem capaz de amar a todos os homens igualmente.

18. Feliz o homem que não se liga a nada do que é corruptível ou passageiro.

19. Feliz o intelecto que ultrapassou todos os seres e não cessa de extrair suas delícias da beleza de Deus.

20. Quem cuida da carne para satisfazer sua concupiscência[5], e que, pelas coisas que passam, para ela quer o seu próximo, adora a criatura em lugar do Criador[6].

21. Quem guarda seu corpo fora dos prazeres e das doenças faz dele um companheiro a serviço do que está mais alto.

22. Quem foge de todas as concupiscências mundanas[7] coloca a si mesmo acima de toda a matéria [de toda a tristeza] do mundo.

23. Quem ama a Deus ama também totalmente a seu próximo. Este homem não guardará para si o que possui, mas o dispensa como Deus, dando a cada um aquilo de que ele necessita.

24. Quem dá esmola imitando a Deus ignora a diferença entre o malandro e o bom, o justo e o injusto[8], uma vez que ambos sofrem em seus corpos. Ele dá a todos igualmente, conforme as suas necessidades, mesmo que prefira, em sua boa vontade, o homem virtuoso ao homem depravado.

25. Assim como Deus, que é por natureza bom e impassível, ama todos os seres e todas as suas obras igualmente, mas glorifica o homem virtuoso porque este está unido a ele pelo conhecimento [pela vontade], e, em sua bondade, tem piedade do homem depravado e o traz de volta instruindo-o no século, também aquele que, por seu próprio movimento, é bom e impassível, ama a todos os homens igualmente. Ele ama o homem virtuoso por sua natureza e sua boa vontade. E ama o homem depravado por sua natureza e pela compaixão, sentindo piedade por ele como por um louco que caminha nas trevas.

26. Não apenas dividir o que se possui revela a arte de amar, mas, mais ainda, transmitir a palavra e servir aos outros em seus corpos.

27. Aquele que realmente renunciou às coisas do mundo e que serve a seu próximo por amor, sem nenhuma hipocrisia, rapidamente se liberta de todas as paixões e começa a ter parte no amor e no conhecimento de Deus.

28. Quem possui em si mesmo o amor divino não tem nenhuma dificuldade em seguir ao Senhor seu Deus, como disse o divino Jeremias[9], mas suporta nobremente todo sofrimento, toda injúria, toda violência, sem querer nenhum mal a pessoa alguma.
29. Quando você for ultrajado por alguém ou for desprezado em qualquer coisa, proteja-se dos pensamentos de cólera, para que não aconteça deles o separarem do amor pela tristeza e o levem para o país da cólera.

30. Quando você for ultrajado ou desonrado, saiba que isto é de grande auxílio, pois a desonra afasta de você a vanglória.

31. Assim como a lembrança do fogo não aquece o corpo, a fé sem amor não opera na alma a iluminação do conhecimento.

32. Assim como a luz do sol atrai o olho saudável, também o conhecimento de Deus atrai para si, naturalmente, pelo amor, o intelecto puro.

33. O intelecto é puro quando está separado da ignorância e iluminado pela luz de Deus.

34. A alma é pura quando se liberta das paixões e não cessa de se regozijar no amor a Deus.

35. A paixão vergonhosa é um movimento da alma contra a natureza.

36. A impassibilidade é um estado apaziguado da alma, no qual é difícil a esta voltar-se para o mal.

37. Aquele que colheu os frutos do amor com seus esforços não os deixa mais, ainda que sofra mil males. Veja o caso de Etiene[10], o discípulo de Cristo, com seus companheiros, e do próprio Cristo, rezando por seus assassinos e pedindo a Deus que os perdoasse porque “não sabiam o que faziam[11]”.

38. Ter paciência e fazer o bem[12] são sinais do amor, e quem se irrita e faz o mal mostra assim ser estranho ao amor. E quem é estranho ao amor é estranho a Deus, pois Deus é amor[13].

39. Não diga que você é o templo do Senhor, disse o divino Jeremias[14]. Não diga: “A simples fé em nosso Senhor Jesus Cristo pode me salvar”. Pois isto é impossível se, com suas obras, você não acrescentar à fé o amor. Crer simplesmente, os demônios também creem e tremem[15].

40. A obra do amor é o bem feito de bom coração ao próximo, a longanimidade, a paciência, o uso das coisas segundo a razão correta.

41. Quem ama a Deus não aflige ninguém e não se aflige contra ninguém por causa das coisas que acontecem. Ele não inspira nem conhece senão uma tristeza, a tristeza salutar que o bem-aventurado Paulo conheceu e que ele inspirou aos Coríntios[16].

42. Quem ama a Deus leva sobre a terra uma vida angélica, jejuando e velando, cantando e orando, e pensando sempre no bem dos homens,

43. Quando desejamos uma coisa lutamos para adquiri-la. Ora, de tudo o que há de bom e desejável, o melhor e mais desejável é, sem comparação, o divino. De quanto ardor devemos dar provas para obter isto que, por natureza, é bom e desejável!

44. Não manche sua carne com atos infames, não suje sua alma com maus pensamentos, e a paz de Deus virá sobre você, trazendo o amor.

45. Trate duramente a carne nos jejuns e nas vigílias, consagre-se à oração e à salmodia sem descanso, e a santificação da castidade virá a você, trazendo consigo o amor.

46. Aquele que foi considerado digno do conhecimento divino e que adquiriu no mor sua iluminação, jamais será levado pelo espírito da vanglória. Mas a vanglória carrega facilmente quem ainda não foi considerado digno do conhecimento de Deus. Assim, se este homem se volta para Deus em tudo o que este lhe pede que faça, ser-lhe-á facilitado, graças a Deis, evitar a vanglória, por ele tudo fez por Deus.

47. Quem ainda não alcançou o conhecimento divino que opera o amor, orgulha-se daquilo que faz conforme a Deus. Mas quem foi julgado digno de atingir este conhecimento diz com todo seu coração as palavras do patriarca Abraão, quando lhe foi dado ver a aparição divina: “Eu sou terra e cinzas[17]”.

48. Quem teme a Deus tem por companhia constante a humildade. E pelos pensamentos que esta lhe inspira, ele chega ao amor divino e à ação de graças. Ela lhe lembra como ele vivia antes conforme o mundo, as perdas de todo tipo, as tentações que ele conheceu desde a juventude, como o Senhor o libertou de tudo isso[18] e o fez passar da vida passional à existência conforme a Deus. Então, com temor, ele receberá o amor e, cheio de profunda humildade, não cessará de render graças ao benfeitor e guia de nossas vidas.

49. Não manche seu intelecto acolhendo pensamentos de concupiscência e de cólera, para não cair da oração pura no espírito da acídia.

50. Assim que começa a acolher em si os pensamentos maus ou imundos, o intelecto perde a liberdade que antes possuía de se confiar a Deus.

51. Quando um movimento de cólera o perturba, o insensato dominado pela paixão se apressa inconsideradamente em fugir dos irmãos; e quando é queimado pela concupiscência, muda de opinião e retorna correndo para eles. Nos dois casos, o sábio faz o contrário: quando em cólera, evita afligir-se contra os irmãos, e, quando assaltado pela concupiscência, se proíbe qualquer impulso ou relação irracional.
52. Não abandone o mosteiro no momento das tentações, mas suporte nobremente a onda dos pensamentos, em especial os de tristeza e acídia. Assim, providencialmente testado pelas aflições, você afirmará ainda mais sua esperança em Deus[19]. Mas se você deixar o mosteiro não passará pelas provações, ficando preguiçoso e escorregadio.

53. Se você não quiser decair do amor de Deus, não deixe seu irmão ir dormir aflito por sua causa, e não durma afligido contra ele. Reconcilie-se com seu irmão e, com a consciência pura, ofereça ao Cristo, numa prece fervorosa, o dom do amor[20].

54. Se todos os carismas do Espírito são inúteis para quem os possui, se este não tiver o amor, conforme o divino Apóstolo[21], quanto fervor devemos ter em adquirir o amor!

55. Se o amor não causa mal ao próximo[22], aquele que inveja seu irmão, que se entristece com seu renome, que suja com ironias a consideração que ele recebe ou lhe estende uma armadilha maldosamente, como não será este estranho ao amor e sujeito ao Julgamento eterno?

56. Se o amor é o cumprimento da lei[23], aquele que investe contra seu irmão, que faz intrigas contra ele, que lhe deseja o mal, que se regozija quando ele cai, será um transgressor da lei e digno do castigo eterno.

57. Se quem calunia e julga seu irmão calunia e julga a lei[24], e se a lei de Cristo é o amor, como não perderá o caluniador o amor de Cristo e não se colocará sob os golpes do castigo eterno?

58. Não dê ouvidos ao que diz a língua do caluniador, e que sua língua não fale ao ouvido de quem gosta de dizer maldades. Não sinta prazer em falar contra seu próximo nem em escutar o que se diz contra ele, a fim de não perder o amor divino e não se tornar estranho à vida eterna.

59. Não sofra se ultrajarem seu pai nem encoraje quem o desonra, para que o Senhor não despeje sua cólera sobre as suas obras e não o destrua, retirando-o do mundo dos vivos[25].

60. Feche seus ouvidos à boca de quem calunia, a fim de não cometer com ele um duplo pecado, acostumando-se com uma paixão perigosa e não impedindo o caluniador de falar a torto e a direito contra seu próximo.

61. “E eu lhes digo, ordenou o Senhor: amem os seus inimigos, façam o bem a quem os odeia, rezem por aqueles que tentam destruí-los[26]”. Porque terá ele dado esta ordem? Para nos livrar da aversão, da tristeza, da cólera, do ressentimento, e para nos tornar dignos do amor perfeito, este bem que é impossível possuir se não amarmos a todos os homens igualmente, à imitação de Deus que ama a todos os homens igualmente e que quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade[27].

62. “Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele![28]” Porque? Para que nos guardemos sem cólera, sem perturbação, sem tristeza, para instruir o outro com sua recusa ao mal, e para conduzi-los, a ambos, como um bom Pai [em sua bondade] sob o jugo do amor.

63. Guardamos em nós imagens passionais das coisas que nos afetaram. Assim, quem dominar as imagens passionais desdenhará com certeza as coisas das quais elas provêm. Pois o combate contra as lembranças é mais duro do que o combate contra as coisas, assim como pecar em pensamento é mais fácil do que pecar em ato.

64. Dentre as paixões, algumas são corporais e outras são psíquicas. As paixões corporais têm sua origem no corpo. As paixões psíquicas têm sua origem nas coisas exteriores. O amor e a temperança eliminam tanto umas como outras. O amor elimina as paixões psíquicas, e a temperança elimina as paixões corporais.
65. Dentre as paixões, algumas pertencem à porção ardente da alma, enquanto outras pertencem à porção concupiscente. Ambas são suscitadas pelos sentidos, mas apenas quando a alma se encontra afastada do amor e da temperança.

66. É mais difícil combater as paixões da parte ardente do que da parte concupiscente. É por isso que o Senhor deu contra o ardor um remédio mais forte: o mandamento do amor.

67. Todas as demais paixões estão ligadas, seja somente à parte ardente ou à parte concupiscente da alma, seja ainda à parte racional, como o esquecimento e a ignorância. Mas a acídia, que age sobre todas as potências da alma, ao mesmo tempo suscita quase todas as paixões. Por isso ela é a mais grave de todas. É o que quis dizer o Senhor, quando deu o remédio contra ela: “Com sua paciência vocês salvarão suas almas[29]”.

68. Jamais ofenda algum de seus irmãos, e menos ainda de maneira irracional. Se ele não suportar a aflição ele poderá ir embora, e você jamais conseguirá evitar a reprovação de sua consciência que sempre, no momento da oração, trará tristeza a você e privará seu intelecto da confiança divina.

69. Não ligue para as suspeitas nem para os homens que o querem escandalizar com certas coisas. Pois aqueles que, de um modo ou de  outro, se escandalizam com as coisas que lhes acontecem, quer as tenham desejado, quer não, ignoram o caminho da paz que, através do amor, conduz ao conhecimento de Deus aqueles que estão tomados pelo amor.

70. Quem ainda é afetado pelo caráter dos homens ainda não possui o amor perfeito; por exemplo, alguém que ama a um e detesta a outro, ou que às vezes ama, às vezes detesta a mesma pessoa pelas mesmas razões.

71. O amor perfeito não retalha a natureza única e mesma dos homens por terem eles caracteres diferentes, mas, visando sempre esta natureza, ama a todos os homens igualmente. Ele ama os virtuosos como amigos, e os depravados como inimigos, fazendo-lhes o bem, suportando-os com paciência, suportando o que vem deles, jamais levando em consideração a malícia[30], chegando mesmo a sofrer por eles se se apresentar a ocasião. Assim ele os tornará amigos, se isto for possível. Senão, ele não abandonará sua determinação: ele mostrará sempre seus frutos a todos os homens igualmente. Nosso Senhor e Deus Jesus Cristo, mostrando o amor que nos dedica, sofreu pela humanidade inteira[31] e deu a esperança da ressurreição a todos igualmente, mesmo que cada um, por suas obras, atraia sobre si a glória ou o castigo.

72. Quem não desdenha a glória como a desonra, a riqueza como a indigência, o prazer como a dor, ainda não adquiriu o amor perfeito. Pois o amor perfeito não só despreza tudo isso, como ainda a vida que passa e a morte.

73. Escute aqueles a quem foi dado o amor perfeito. Ouça o que eles dizem: “Quem nos separará do amor de Cristo? A aflição? A angústia? A perseguição? A fome? O desnudamento? O perigo? A espada? Segundo o que está escrito, por sua causa somos levados à morte todos os dias, como bezerros ao sacrifício. Mas em todas essas provações, somos mais do que vencedores por aquele que nos amou. Pois eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potências, nem o presente, nem o futuro, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus que está em Jesus Cristo nosso Senhor[32]”.

74. E sobre o amor ao próximo, ouça o que eles dizem: “Digo a verdade em Cristo, não minto, e disso me dá testemunho a minha consciência pelo Espírito Santo: tenho uma grande dor e um contínuo sofrimento no coração. Sim, eu gostaria de ser amaldiçoado e separado de Cristo em favor dos meus irmãos de raça e sangue. Eles são israelitas...[33]” e assim por diante. Assim como Moisés[34] e os demais santos.

75. Quem não desdenha a glória e o prazer, bem como o amor ao dinheiro que os faz crescer e que eles engendram, não será capaz de suprimir as razões do ardor. E se ele não suprimir essas coisas, ele não será capaz de atingir o amor perfeito.

76. A humildade e o sofrimento libertam o homem de todos os pecados. A primeira suprime as paixões da alma; o segundo, as do corpo. É isto que azia o bem-aventurado Davi, quando orava a Deus dizendo: “Veja minha miséria e minhas penas, e retire de mim todos os pecados[35]”.

77. Por meio dos mandamentos, o Senhor concede a impassibilidade aos que os praticam. E, com seus divinos ensinamentos, ele outorga a iluminação do conhecimento.

78. Tudo o que o Senhor ensina versa, ou sobre Deus, ou a respeito dos seres visíveis e invisíveis, ou sobre a providência e o juízo que operam neles.

79. A compaixão cura a parte ardente da alma. O jejum consome o desejo. Quanto à oração, ela purifica o intelecto e o prepara à contemplação dos seres. Foi também para as potências da alma que o Senhor nos deu os mandamentos.

80. “Aprendam comigo, que sou manso e humilde de coração[36]”, etc. A mansidão protege contra as perturbações do ardor. E a humildade liberta o intelecto do orgulho e da vanglória.

81. O temor a Deus é duplo. De um lado, ele nasce em nós da ameaça do castigo, e nesta ordem engendra a temperança, a esperança em Deus e a impassibilidade, de onde provém o amor. De outro lado, ele está ligado a este amor: ele traz sempre para a alma a piedade, a fim de que, por meio da liberdade do amor, jamais cheguemos a desdenhar de Deus.

82. O amor perfeito elimina a primeira forma de temor[37], porque a alma que possui amor não tem mais medo do castigo. Mas a segunda forma de temor permanece sempre, porque está ligada ao amor, como foi dito. À primeira forma de amor aplicam-se as palavras: “Por temor ao Senhor os homens se afastam do mal[38]”, e também: “O temor ao Senhor é o começo da sabedoria[39]”. À segunda forma: “Nada falta aos que o temem[40]”.

83. “Mortifiquem seus membros que estão sobre a terra, a prostituição, a impureza, a paixão, a má concupiscência, a cupidez[41]”, etc. O Apóstolo chama de “terra” o cuidado com a carne. Ele chama de “prostituição” o ato do pecado. De “impureza”, o consentimento. De “paixão”, os pensamentos passionais, e de “má concupiscência” a simples aceitação do pensamento do desejo. E chamou de “cupidez” a matéria que engendra e faz crescer a paixão. São todos estes vícios que o Apostolo ordenou mortificarmos, porque eles são os membros do cuidado com a carne.

84. Primeiro a memória traz ao intelecto um simples pensamento. Se este pensamento persiste, surge a paixão. Se a paixão não é descartada, ela inclina o intelecto ao consentimento. E quando o consentimento se faz presente, chegamos ao ato do pecado. O sábio Apóstolo, escrevendo aos cristãos de todas as nações, lhes ordena que acabem primeiro com o resultado do pecado, para depois, remontando passo a passo e ordenadamente, chegar até a sua causa. E a causa é a cupidez que, como foi dito, engendra e alimenta a paixão. Ela aqui pode significar a gula, que é a mãe e a nutriz da prostituição. Pois a cupidez é má não apenas quando ligada ao dinheiro, mas também quando está relacionada com a alimentação. Da mesma forma, a temperança se aplica não apenas à alimentação, mas também ao dinheiro.

85. Assim como um pardal preso pela pata tomba por terra, retido pelo laço, se tentar voar, também o intelecto que ainda não atingiu a impassibilidade cai por terra, retido pelas paixões, se tentar voar na direção do conhecimento das coisas do céu.

86. Quando o intelecto está totalmente livre das paixões, então, sem se voltar, ele se encaminha para a contemplação dos seres, sobre o caminho que conduz ao conhecimento da Santa Trindade.

87. Uma vez purificado, o intelecto, percebendo o sentido das coisas, é levado por elas à contemplação espiritual. Mas se, por negligência, ele se torna impuro, ele cria para si muitas representações de outras coisas em sua simplicidade e, ao receber aquilo que provém dos homens, volta-se para pensamentos de infâmia ou de malícia.

88. Quando, no momento da oração, jamais um pensamento do mundo vem para perturbar o intelecto, saiba que você não está longe das fronteiras da impassibilidade.

89. Quando a alma começa a sentir-se em boa saúde, então as imagens que surgem nos sonhos lhe aparecem simples e sem nenhuma perturbação.

90. Assim como a beleza do visível atrai o olho sensível, o conhecimento do invisível atrai para si o intelecto puro. Entendo como “invisíveis” os seres incorpóreos.

91. É muito bom não ser afetado pelas coisas, mas é melhor ainda permanecer impassível diante das suas imagens. Pois a guerra que os demônios nos fazem através dos pensamentos é mais árdua do que a que eles nos fazem por meio das coisas.

92. Quem conquistou as virtudes e está cumulado pelas riquezas do conhecimento, vendo as coisas, daí em diante, na sua natureza, age e fala sempre conforme a razão, sem jamais se perder. Com efeito, é pelo uso racional ou irracional das coisas que fazemos que nos tornamos virtuosos os depravados.

93. Quer o corpo vigie, quer durma, se surgem no coração pensamentos simples sobre as coisas, este é um sinal de extrema impassibilidade.

94. Pela prática dos mandamentos o intelecto se despoja das paixões. Pela contemplação espiritual do visível, ele se despoja dos pensamentos passionais das coisas. Pelo conhecimento do invisível ele se despoja da contemplação do visível. Enfim, ele se despoja do conhecimento do invisível pelo conhecimento da Santíssima Trindade.

95. Assim como o sol, ao se levantar e iluminar o mundo, revela a si mesmo e revela as coisas que ele ilumine, também o sol de justiça[42], quando se ergue sobre o intelecto puro, revela a si mesmo e revela as razões de tudo o que, por meio dele, sempre foi e sempre será.

96. Não conhecemos a Deus por sua essência, mas pela grandeza de sua obra e pela sua providência nos seres. É por estas coisas que, como num espelho, compreendemos sua bondade, sabedoria e poder infinitos[43].

97. O intelecto puro se encontra, ou bem nos pensamentos simples das coisas humanas, ou bem na contemplação natural do visível, ou bem na contemplação do invisível, ou bem na luz da Santíssima Trindade.

98. O intelecto que alcançou a contemplação das coisas visíveis ou bem sonda suas razões naturais, ou busca seus significados, ou busca sua causa.

99. Ao se aplicar à contemplação das coisas visíveis, o intelecto busca suas razões naturais, a causa de sua origem, suas conseqüências e a ação que sobre elas exerce o Providência e o Julgamento.

100. Mas, chegando a Deus e abrasado por seu desejo, o intelecto busca primeiro as razões de sua essência, por não encontrar consolo em nada que se pareça consigo. Ora, isto é impossível, e também inacessível a toda natureza criada. Ele então consola-se com aquilo que o cerca, ou seja, com a eternidade, o infinito, o ilimitado, a bondade, a sabedoria, o poder que criou, governa e julga os seres. Somente isto – a infinitude e esta impossibilidade de conhecer – é compreensível para ele, como bem o disseram os teólogos Gregório[44] e Denis[45].


 
SEGUNDA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR


1. Quem ama verdadeiramente a Deus ora sem que absolutamente nada o distraia. E também quem ora sem se distrair ama a Deus verdadeiramente. Mas aquele cujo intelecto ainda está ligado a qualquer coisa de terrestre não consegue orar sem se distrair.

2. O intelecto que se debruça sobre uma coisa sensível com certeza sente por esta coisa uma paixão, como a concupiscência, a tristeza, a cólera ou o ressentimento. E se ele não desdenhar esta coisa, ele não conseguirá se livrar desta paixão.

3. As paixões que subjugam o intelecto se ligam às coisas materiais e, separando-o de Deus, o levam a que se ocupe destas coisas. Mas se o amor a Deus for mais forte, ele cortará os laços levando-o não apenas a desprezar as coisas sensíveis, mas a própria vida, esta vida passageira.
4. A obra dos mandamentos é tornar simples os pensamentos sobre as coisas. A obra da leitura e da contemplação é levar o intelecto para fora de toda matéria e de toda forma. É assim que chegamos a orar sem distrações.

5. Para libertar perfeitamente o intelecto das paixões, a ponto de que ele possa orar sem se distrair, a via ativa não é suficiente, se não for seguida por muitas contemplações espirituais. De fato, a via ativa não liberta o intelecto senão da intemperança e da aversão. Mas as contemplações espirituais o separam totalmente do esquecimento e da ignorância. Assim ele poderá orar como se deve.

6. Existem dois estados elevados da prece pura: um é dado aos ativos, outro aos contemplativos. Um nasce do temor a Deus e da boa esperança. O outro nasce do eros divino e de uma purificação extrema. O primeiro pode ser reconhecido pelos seguintes sinais: quando o intelecto se recolhe para longe de todos os pensamentos do mundo, como se o próprio Deus lhe estivesse próximo – e, de fato, ele está – ele ora sem de deixar distrair nem perturbar. O segundo por ser reconhecido assim: no próprio impulso da oração o intelecto é arrebatado pela luz infinita de Deus, perde toda sensação de si mesmo e já não percebe mais nenhum outro ser, senão Aquele único que, por intermédio do amor, opera nele uma tal iluminação. Então, levado até as razões de Deus, ele recebe imagens suas puras e claras.

7. Nós nos ligamos totalmente àquilo que amamos e, para disto não sermos privados, desdenhamos tudo o que se lhe opõe. Quem ama a Deus dedica-se à prece pura e rejeita por si só toda paixão que o impeça de orar.

8. Quem rejeitou o egoísmo, a complacência para consigo mesmo, a mãe das paixões, com a ajuda de Deus se desembaraça facilmente das outras paixões, como a cólera, a tristeza, o ressentimento, etc. Mas quem é tomado pela primeira paixão é ferido pela segunda, mesmo que não queira. O egoismo é a paixão que temos pelo corpo.

9. É por estas cinco razões que os homens amam uns aos outros, de modo louvável ou de modo condenável: ou por amor a Deus, como o homem virtuoso ama a todos os homens e como aquele que ainda não é virtuoso ama o homem virtuoso; ou por natureza, como os pais amam aos filhos e reciprocamente; ou por vanglória, como aquele que é glorificado ama aquele que o glorifica; ou por amor ao dinheiro, como aquele que recebe ama o que é rico; ou por amor ao prazer, como aquele que cuida do seu ventre e das coisas do baixo ventre. A primeira razão é louvável, a segunda é medíocre; as demais são marcadas pela paixão.

10. Se você detesta alguns homens, se por outros você não sente nem amor nem aversão, se a alguns você ama moderadamente enquanto a outros ama fortemente, saiba por estas desigualdades que você ainda está longe do amor perfeito, que se propõe a amar a todos os homens igualmente.

11. “Afaste-se do mal e faça o bem[46]”. Quer dizer: combata os inimigos para reduzir as paixões. Depois vele e seja nobre, para que elas não cresçam. Então combata novamente, para adquirir as virtudes, Depois vele e seja sóbrio, para mantê-las. Isto é o que podemos chamar de trabalhar e guardar[47].

12. Aqueles a quem Deus permitiu nos testar, ou bem aquecem o desejo na alma, ou bem perturbam seu ardor, ou entenebrecem a razão, o enchem de dores o corpo, ou roubam o que ele possui.

13. Ou bem os demônios nos tentam por si mesmos, ou bem armam contra nós aqueles que não temem ao Senhor. Eles nos tentam por si mesmos quando permanecemos sós e longe dos homens, como o Senhor no deserto[48]. E eles nos tentam por intermédio dos homens quando vivemos em seu meio, como o Senhor foi testado pelos fariseus[49]. Mas nós, com os olhos postos em nosso modelo, devemos rejeitá-los de um lado e de outro.

14. Quando o intelecto começa a progredir no amor a Deus, então o demônio da blasfêmia começa a tentá-lo e lhe sugere pensamentos que nenhum homem saberia produzir, e que somente o diabo é capaz de suscitar com sua arte maléfica. Ele faz isto por invejar o amado de Deus e para que este, caindo em desespero por causa desses pensamentos, não mais ouse voar em sua direção com suas orações habituais. Mas o maldito falha em seu objetivo, pois ele nos oprime inicialmente, mas, depois de termos sido combatidos e de lutarmos por nós mesmos, nos tornamos mais experientes e mais verdadeiros no amor a Deus. “Que sua espada lhe trespasse o coração e que seu arco se quebre[50]”.

15. Quando se aplica ao visível, o intelecto percebe naturalmente as coisas por intermédio dos sentidos. Nem o intelecto, nem a percepção natural, nem as coisas, nem os sentidos são um mal. Estas coisas são obras de Deus. Então, o que é o mal? É claro que o mal é a paixão que está ligada ao pensamento natural. Mas o uso dos pensamentos não pode ficar ligado às paixões, se o intelecto estiver vigilante.

16. A paixão é um movimento da alma contra a natureza, por amor irracional ou por aversão irrefletida em relação a uma coisa sensível ou por causa dela. Pelo amor irracional pelas comidas, pelas mulheres, pelo dinheiro, pela glória passageira ou por qualquer outra coisa sensível, ou por causa dela. E pela aversão irrefletida, como eu disse, por uma das coisas que mencionei, ou por outras coisas, ou por causa delas.

17. A malícia consiste num julgamento errôneo dos pensamentos, que se segue ao abuso das coisas. É assim que acontece com relação às mulheres. O julgamento justo, a regra, é unir-se a ela para procriar e ter filhos. Quem não vê senão o prazer se engana, seu juízo é falso: ele considera como um bem aquilo que não é um bem e, unindo-se à mulher, abusa dela. O mesmo acontece com todas as outras coisas e todos os outros pensamentos.

18. Quando, expulsando-o para longe da castidade, os demônios rodeiam o intelecto com pensamentos de prostituição, diga chorando ao Mestre: “Eles me afastaram, eles me cercaram[51]. Minha alegria, liberte-me daqueles que me cercaram[52]”, e você será salvo.

19. Pesado é o demônio da prostituição. Ele ataca duramente os que combatem a paixão, sobretudo quando, por negligência, eles deixam de ter uma alimentação simples e encontram com mulheres. Pela doçura do prazer ele engana secretamente o intelecto, e depois, quando este repousa, investe sobre ele com lembranças e, inflamando o corpo, suscita nele toda espécie de formas. Então lhe pede que consinta no pecado. Se você não quiser que tais formas se grudem em você, tome sobre si o jejum, o sofrimento, as vigílias, a bela hesíquia e a prece contínua.

20. Aqueles que não cessam de perseguir nossa alma o fazem por meio dos pensamentos passionais, a fim de atirá-la no pecado pela reflexão ou pela ação. Caso encontrem um intelecto resolvido a não os acolher, eles ficam confusos e se retiram[53]. E se o encontram absorvido na contemplação espiritual, eles fogem e depressa são tomados da maior confusão[54].
21. Aquele que unta seu intelecto para os combates sagrados e que dele expulsa os pensamentos passionais faz o papel do diácono. O que o ilumina com o conhecimento dos seres e destrói o falso conhecimento faz o papel do padre. E o que o leva à perfeição pela santa mirra do conhecimento e da adoração da Santíssima Trindade [do conhecimento da adorável e santa Trindade] faz o papel do bispo.

22. Os demônios perdem a força quando em nós decrescem as paixões sob o efeito dos mandamentos. E eles perecem quando as paixões desaparecem até o fim pela impassibilidade. Pois então eles não mais encontram o porquê de estarem na alma e a combaterem. É isto que significa: “Eles perderam a força e morreram diante de sua face[55]”.

23. Dentre os homens, alguns refreiam as paixões por um medo puramente humano. Outros, por vaidade. Outros, por temperança. Outros, enfim, são libertos das paixões pelos julgamentos de Deus[56].

24. As palavras do Senhor seguem sempre um destes quatro caminhos: os mandamentos, os ensinamentos, as ameaças e as promessas. É para seguir por estes caminhos que suportamos todos os tormentos da vida dura: os jejuns, as vigílias, dormir no chão, as penas e as fatigas suportadas no serviço aos outros, as injúrias, os ultrajes, as torturas, a morte e outras provações semelhantes. Com efeito, foi dito: “Pelas palavras de sua boca eu percorri caminhos rudes[57]”.

25. A recompensa da temperança é a impassibilidade, e a recompensa da fé é o conhecimento. Ora, a impassibilidade engendra o discernimento, e o conhecimento engendra o amor a Deus.
26. O intelecto que caminha direito sobre a via da ação progride para a prudência, e o que marcha sobre o caminho da contemplação progride para o conhecimento. É próprio da prudência levar o que combate ao discernimento da virtude e do vício. É próprio do conhecimento conduzir quem dele partilha às razões dos seres incorpóreos e dos seres corpóreos. Mas o intelecto recebe a graça da teologia quando, ultrapassando nas asas do amor tudo o que foi dito e alcançando a contemplação, penetra pelo Espírito a razão que revela a Deus, na medida em que isto é possível a uma inteligência humana.

27. Se você pretende alcançar a teologia, o conhecimento de  Deus, não busque as razões do próprio Deus. Uma inteligência humana é incapaz de encontrá-las, tanto quanto a de qualquer outra criatura de Deus. Apenas considere os atributos que o rodeiam, como a eternidade, a infinitude, o ilimitado, a bondade, a sabedoria, o poder que criou, governa e julga os seres. Pois dentre os homens será um grande teólogo aquele que descobrir, por pouco que seja, a razão destes atributos.

28. Poderoso será o homem que unir o conhecimento à ação. Por meio de desta última, ele apaziguará o ardor e consumirá o desejo. Pelo outro ele dará asas ao intelecto e emigrará para Deus.

29. Quando o Senhor disse: “Meu Pai e eu somos um[58]”, ele se referiu à identidade da essência. Mas quando ele disse: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim[59]”, ele revelou que as Pessoas são inseparáveis. Os triteístas[60] que separam o Filho e o Pai mergulham assim num impasse cercado de abismos. Pois, ou bem eles afirmam que o Filho é eterno com o Pai, mas separando um do outro, e então são obrigados a afirmar que o Filho não nasceu do Pai e a declarar que existem três Deuses e três princípios; ou bem eles afirmam que o Filho nasceu do Pai, mas o separam, e então são obrigados a afirmar que o Filho não é eterno com o Pai e que o Mestre dos tempos está submetido ao tempo. É preciso, assim, com o grande Gregório[61], manter um Deus único e confessar as três Pessoas, cada qual com aquilo que lhe é próprio. Pois, segundo o mesmo Gregório, Deus é dividido, mas indivisivelmente, e as três Pessoas são uma, mas permanecem separadas. A divisão e a união são assim paradoxais. Com efeito, o que haveria de paradoxal, se o Filho e o Pai fossem unidos e separados como um homem e outro homem, sem mais?

30. Aquele que é perfeito no amor e que chegou ao cume da impassibilidade ignora a diferença entre si mesmo e o outro, ou entre aquilo que lhe é próprio e o que lhe é estranho, ou entre o crente e o descrente, entre o escravo e o homem livre, entre homem e mulher. Ao contrário, elevado acima da tirania das paixões e não vendo senão uma única natureza nos homens, ele os considera a todos igualmente e tem por todos o mesmo sentimento. Pois então não existe mais para ele “nem grego nem judeu, nem homem nem mulher, nem escravo nem homem livre, mas apenas Cristo que é tudo em todos[62]”.

31. Os demônios extraem os meios de suscitar em nós pensamentos passionais das paixões que repousam no fundo da alma. Depois, combatendo a inteligência com estes pensamentos, eles a forçam a consentir no pecado. Vencido o intelecto, eles o conduzem de pecado em pecado. Conseguindo isto[63], enfim, com o intelecto cativo daí por diante, eles o levam ao ato. Depois de terem devastado a alma com pensamentos, eles se retiram, deixando ao intelecto apenas o ídolo do pecado, do qual o Senhor disse: “Quando vocês virem a abominação da desolação erguida no lugar santo, quem ler compreenda![64]” O lugar santo e o templo de Deus são o intelecto do homem aonde, após devastarem a alma com pensamentos passionais, os demônios erguem o ídolo do pecado. Quem leu os escritos de Josefo[65] sabe o quanto isto já aconteceu na história. Mas alguns dizem que isto acontecerá novamente quando vier o Anticristo.

32. Existem três forças que nos levam ao bem: as sementes naturais, os santos poderes e a boa vontade. As sementes naturais, quando fazemos aos outros o que queremos que nos façam[66], ou quando sentimos compaixão à vista de um homem na miséria ou passando necessidades. Os santos poderes, quando, levados a fazer uma boa ação, encontramos um bom auxílio e a fazemos bem. A boa vontade quando, discernindo entre o bem e o mal, escolhemos o bem.
33. Existem também três forças que nos levam ao mal: as paixões, os demônios e a má vontade. As paixões, quando desejamos algo de forma irracional, como comer em demasia e sem necessidade, ou desfrutar de um mulher que sequer é a esposa recusando gerar filhos ou quando, da mesma forma, nos irritamos ou nos afligimos, por exemplo, contra um homem que nos ultrajou ou que nos lesou. Os demônios, quando aproveitam o momento e nos atacam na hora em que estamos negligentes, suscitando de repente contra nós, com grande violência, estas paixões e outras semelhantes. Enfim, a má vontade, quando, sabendo onde está o bem, escolhemos o mal.

34. As recompensas das penas da virtude são a impassibilidade e o conhecimento. Estes permitem entrar no Reino dos céus, assim como as paixões e a ignorância conduzem ao castigo eterno. Assim, aquele que busca as penas pela glória dos homens e não para seu próprio bem, ouvirá a Escritura dizer-lhe: “Vocês pedem e não recebem, porque não sabem pedir[67]”.

35. Muitas coisas que os homens fazem são naturalmente boas. Mas elas podem também não ser boas por causa de sua motivação. Assim, o jejum, as vigílias, a prece, a salmodia, a esmola e a hospitalidade são por natureza boas obras, mas, quando feitas por vaidade, deixam de ser boas.

36. Em tudo o que fazemos, Deus procura o objetivo: se agimos em função dele, ou por outra razão.

37. Quando você ouvir a Escritura dizer: “Você dará a cada um conforme suas obras[68]”, entenda que Deus recompensa as boas obras, não as que são feitas contra o justo objetivo, mesmo que pareçam boas, mas apenas as que evidentemente conduzem ao justo objetivo. Pois o julgamento de Deus não visa o que acontece, mas o objetivo daquilo que acontece.

38. O demônio do orgulho segue dois caminhos em sua malícia. Ou bem ele persuade o monge a atribuir as boas obras a si mesmo, e não a Deus que dispensa os bens e concorre para seu cumprimento, ou bem, se não pode persuadi-lo, ele o incita a desprezar os irmãos monges que ainda são imperfeitos. Mas quem se deixa levar a tais coisas ignora que é o diabo que o está persuadindo a recusar a ajuda de Deus. Pois, se ele despreza os que não conseguiram levar as obras até o fim, ele pressupõe que evidentemente alcançou o bem por suas próprias forças, o que é impossível, porque o Senhor disse: “Sem mim, vocês nada podem[69]”. Mesmo que a obra seja dirigida para o bem, nossa fraqueza é incapaz de chegar ao fim sem Aquele que dispensa os bens.

39. Quem conheceu a fraqueza da natureza humana pode adquirir a experiência do poder de Deus. Com este poder, ele conseguiu concluir diversas boas obras e se esforça por cumprir muitas outras, mas jamais despreza outro homem. Pois ele sabe: assim como Deus o ajudou e o libertou de tantas paixões e dificuldades, ele também pode, quando quiser, ajudar todos os demais, em especial os que combatem por ele, mesmo que, por julgamentos que são só seus, ele não nos liberte de todas as paixões de uma só vez, mas, como um bom médico que ama o homem, ele cure por meio de remédios que convêm a cada um dos que se esforçam.

40. Quando as paixões deixam de estar ativas, chega o orgulho, ou devido às causas das quais nos livramos, ou devido aos demônios que se retiraram enganadoramente.

41. Quase todos os pecados vêm pelo prazer e se vão com o sofrimento e a aflição, pelo arrependimento voluntário, ou ainda pelo desencaminhamento suscitado pelo desejo da providência. “Pois se nós julgamos a nós mesmos, não seremos julgados. Mas, julgados pelo Senhor, somos castigados para não sermos condenados com o mundo[70]”.
42. Quando uma provação chega a você de improviso, não acuse aquele por meio de quem ela o alcançou, mas pergunte-se porque ela lhe foi dada, e aí você encontrará um benefício. Pois, seja por esta provação, seja por outra, é preciso beber o absinto dos julgamentos de Deus.

43. Malvado como você é, não recuse o sofrimento, a fim de que, humilhado por ele, você possa vomitar seu orgulho.

44. Dentre as provas, algumas trazem prazeres ao homem, outras trazem aflições, outras sofrimentos corporais. Pois, conforme as causas das paixões, que estão na alma, o médico das almas aplica o remédio segundo seu julgamento.

45. A irrupção das provações traz a alguns a remissão dos pecados já cometidos. Em outros, dissipa os pecados que estão para ser cometidos. Em outros ainda, impede pecados que poderiam surgir no futuro. Sem falar nas provações que vêm para nos sondar, como as de Jó.

46. O homem sensato, considerando que os julgamentos de Deus o curam, suporta com reconhecimento as infelicidades que trazidas por estes julgamentos, pois se lembra de que estas infelicidades não têm outras causas do que seus próprios pecados. Mas o insensato, que ignora a sábia providência de Deus, imagina que ou Deus ou os homens são a origem dos seus males, quando peca e é castigado.

47. Existem remédios que detêm as paixões em seu movimento e não lhes permitem prosseguir e crescer. Existem outros que as enfraquecem e reduzem. Assim, o jejum, as penas e as vigílias impedem a concupiscência de crescer. Mas a anacorese, a contemplação, a prece, o ardente desejo de Deus a enfraquecem e extinguem. O mesmo acontece com o ardor: a paciência, a ausência de ressentimento, a mansidão o detêm; e o amor, a compaixão, a bondade e a bem-aventurança o reduzem.

48.  Naquele cujo intelecto está continuamente voltado para Deus, mesmo a concupiscência aumenta o desejo ardente de Deus, e o ardor se volta  inteiramente para o amor divino. Por ter conhecido a iluminação divina  por longo tempo, ele se tornou inteiro luminoso. E, encerrando em si mesmo a parte de seu ser submetida às paixões, ele a dirigiu para o desejo de Deus, ardente, insaciável, como foi dito, e para  o amor sem fim, fazendo-a passar do terrestre ao divino.

49. Quem não se indispõe com o homem que o ofendeu, que não se irrita e não tem ressentimento contra ele, nem por isso chegou ao ponto de amá-lo. Mas mesmo que não o ame ainda, consegue não devolver o mal com o mal, conforme o mandamento[71]. Mas ainda não é capaz de devolver o bem pelo mal. Pois ser capaz de fazer o bem a quem nos maltratou[72] não é dado senão ao perfeito amor espiritual.

50. Quem não ama a alguém, nem por isso o odeia. Também quem não odeia uma pessoa não está necessariamente em condições de amá-la. Pode-se permanecer a meio caminho, sem amar nem odiar. Pois só os cinco modos citados no nono capítulo desta centúria podem suscitar o estado de amor: o modo louvável, o medíocre e os demais, condenáveis.
51. Quando você perceber que seu intelecto se compraz em ocupar-se das coisas da matéria e sente prazer em pensar sempre nessas coisas, saiba que você as ama mais do que a Deus. Pois aonde está seu tesouro, disse o Senhor, ali estará também seu coração[73].

52. O intelecto que se liga a Deus e passa com ele todo seu tempo em prece e no amor torna-se sábio, bom, forte, benevolente, compassivo, paciente, em uma palavra, traz em si quase todas as propriedades de Deus. Mas se ele se afasta de Deus, ou bem ele se torna como um animal que não ama senão seu prazer, ou bem se torna como uma fera que, por causa das coisas da matéria, ataca os homens.

53. A Escritura chama de mundo as coisas da matéria; e os mundanos são aqueles cujo intelecto se ocupa destas coisas. É para eles que, para faze-los voltarem a si, a Escritura diz: “Não amem o mundo, nem o que está no mundo. A concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos, a ostentação da vida, não são de Deus, mas do mundo[74]”, etc.

54. É monge aquele que afastou seu intelecto das coisas da matéria e que, pela temperança, pelo amor, a salmodia e a prece, permanece ligado a Deus.

55. O monge ativo é, no sentido espiritual, um adestrador de animais, pois as obras morais têm como figura os animais. É por isso que Jacó dizia: “Seus filhos são homens que adestrarão animais[75]”. Mas o monge gnóstico é um pastor de ovelhas, pois os pensamentos têm como figura as ovelhas. O intelecto as leva a pastar nas montanhas das contemplações. Assim, “todo pastor de ovelhas é uma abominação aos olhos dos Egípcios[76]”, como o é aos olhos das potências adversas.

56. Quando o corpo é levado pelos sentidos para suas próprias concupiscências e seus próprios prazeres, o intelecto enganado segue as imaginações e os impulsos do corpo e consente neles. Mas o intelecto virtuoso permanece temperante e resiste às imaginações e aos impulsos passionais. São contrário, ele se esforça por tornar melhores tais movimentos.

57. Dentre as virtudes, algumas são do corpo, outras são da alma. As virtudes do corpo são o jejum, as vigílias, o dormir sobre o chão, o servir aos outros, o trabalho das mãos para não ser um fardo para ninguém ou para partilhar[77], etc. As virtudes da alma são o amor, a paciência, a mansidão, a temperança[78], a oração, etc. Assim, se por qualquer necessidade ou qualquer estado do corpo, como uma doença ou outra coisa, nos acontecer de não podermos trabalhar as virtudes corporais de que falamos, temos o perdão do Senhor, que conhece a causa disto. Mas se não trabalhamos as virtudes da alma não temos nenhuma justificação, pois elas não estão submetidas à necessidade.


58. A quem o possui, o amor a Deus permite desprezar todos os prazeres passageiros, toda pena e toda tristeza. Convença-se disto pelo exemplo dos santos, que sofreram de tudo por Cristo.

59. Proteja-se da mãe dos vícios, a complacência para consigo mesmo, o egoísmo, que é o afeto irracional que sentimos pelo corpo. Pois é disto, evidentemente, que nascem os três primeiros pensamentos tolos, passionais, fundamentais, que são a gula, a cupidez e a vanglória, que aparentemente têm sua origem nas exigências do corpo. É deles que provêm toda a série dos vícios. É preciso portanto, necessariamente, se proteger da complacência para consigo mesmo e combatê-la com muita sobriedade e vigilância Pois quando ela desaparece, todos os pensamentos que dela vieram desaparecem com ela.

60. A paixão do egoísmo sugere ao monge que tenha piedade de seu corpo e que o alimente além da conta, aparentemente para mantê-lo e dirigi-lo, mas na verdade para atraí-lo pouco a pouco e atirá-lo no abismo do amor ao prazer. Quanto ao homem do mundo, ela lhe propõe cuidar deste corpo desde cedo, para satisfazer sua concupiscência[79].

61. Diz-se que o mais elevado estado da prece é o seguinte: no momento da oração o intelecto se encontra fora da carne e do mundo, de toda matéria e de toda forma. Quem mantém este estado sem falhar, em verdade ora continuamente[80].

62. Assim como o corpo ao morrer se separa totalmente das coisas do mundo, também a alma que se aplica em permanecer neste estado elevado de oração, e que morre, se separa de todos os pensamentos do mundo. Pois se ela não morrer esta morte, ela não conseguirá se encontrar e viver com Deus.

63. Que ninguém o engane, monge, convencendo-o de que é possível ser salvo ao mesmo tempo em que se permanece servil ao prazer e à vanglória.

64. Do mesmo modo como o corpo pela pelas coisas e que as virtudes o ensinam a se tornar casto, também o intelecto peca pelos pensamentos passionais e as virtudes da alma o ensinam a se tornar casto, vendo as coisas com toda pureza e impassibilidade.

65. Assim como as noites se sucedem aos dias e os invernos aos verões, também as aflições e as dores se seguem à vanglória e ao prazer, tanto no século presente como no futuro.

66. Não é possível que aquele que pecou escape ao Juízo final se, aqui em baixo, ele não se impuser penas e não seja oprimido pela infelicidade.
67. Diz-se que existem cinco razões pelas quais Deus permite que sejamos combatidos pelos demônios. A primeira é para que, à custa de sermos atacados e de contra-atacarmos, alcancemos o discernimento entre a virtude e o vício. A segunda é para que, depois de havermos adquirido as virtudes pelo combate e as penas, a guardemos firmemente e sem falhas. A terceira é para que, progredindo na virtude, não nos tornemos orgulhosos, mas nos mantenhamos humildes. A quarta é para que, testados pelo mal, sintamos por ele uma aversão total[81]. Enfim e acima de tudo, para que, tornados impassíveis, não esqueçamos nossa própria fraqueza nem o poder d'Aquele que nos socorreu.

68. Assim como o intelecto de um homem faminto imagina pão e o de um homem sedento imagina água, o intelecto do guloso imagina todo tipo de alimentos, o intelecto daquele que ama o prazer imagina formas femininas, o intelecto do vaidoso imagina glórias vindas dos homens, o intelecto do rancoroso imagina vinganças contra quem o ofendeu, o intelecto do invejoso imagina como  fazer o mal àquele a quem inveja, e assim com todas as demais paixões. Pois o intelecto perturbado pelas paixões acolhe os pensamentos passionais, quer o corpo esteja acordado, quer durma.

69. Quando cresce a concupiscência, o intelecto imagina em sonhos a matéria dos prazeres. Quando cresce o ardor, o intelecto vê o que suscita o temor. Secundados por nossa própria inteligência, os demônios impuros fazem aumentar naturalmente as paixões excitando-as. Mas os santos anjos as reduzem, levando-nos à prática das virtudes.

70. O desejo da alma, quando excitado com frequência, suscita um estado – o amor pelo prazer – que a alma tem dificuldade em transformar. E o ardor, quando continuamente perturbado, torna a inteligência medrosa e preguiçosa. A ascese contínua do jejum, das vigílias e da oração cura o desejo. A bondade, a benevolência, o amor e a piedade curam o ardor.

71. Ou bem os demônios nos combatem pelas coisas, ou bem nos combatem pelos pensamentos passionais que estão nas coisas. Por meio das coisas, eles combatem aqueles que vivem no meio delas. Pelos pensamentos, eles combatem os que vivem separados delas.

72. Assim como é mais fácil pecar em pensamento do que pecar em ato, também o combate contra os pensamentos é mais difícil do que o combate contra as coisas.

73. As coisas existem fora do intelecto, mas seus pensamentos existem dentro. Está, portanto, no intelecto usarmos bem ou mal as duas coisas. Pois o mau uso das coisas segue o mau uso dos pensamentos.

74. O intelecto recebe os pensamentos passionais por três caminhos: pela sensação, pela compleição do corpo, pela memória. Pela sensação quando as coisas pelas quais nos apaixonamos a atingem, levando o intelecto a ter pensamentos passionais. Pela compleição do corpo quando este, alterado por regimes desregrados, pela ação dos demônios ou por alguma enfermidade, empurra por sua vez o intelecto para os pensamentos passionais ou para os caminhos da prostituição. Enfim pela memória, quando esta faz ressurgir as lembranças de coisas que nos atormentaram, conduzindo igualmente o intelecto aos pensamentos passionais.

75. Dentre as coisas que Deus nos deu para nos servirem, algumas se encontram na alma, outras no corpo, outras ao redor do corpo. Assim, na alma estão as potências, no corpo os sentidos e os demais membros, e ao redor do corpo os alimentos, as posses, o dinheiro, etc. O bom ou o mau uso dessas coisas e de suas modalidades mostrará se somos virtuosos ou falsos.

76. Dentre as modalidades das coisas, algumas dizem respeito ao que existe dentro da alma, outras ao que está no corpo, outras ao que rodeia o corpo. Assim, na alma estão o conhecimento e a ignorância, o esquecimento e a lembrança, o amor e o ódio, a tristeza e a alegria, etc. No corpo estão o prazer e a dor, o uso e a privação dos sentidos, a saúde e a doença, a vida e a morte, e outras modalidades semelhantes. Ao redor do corpo estão a fecundidade e a esterilidade, a riqueza e a pobreza, a glória e o desprezo, etc. Dentre essas modalidades, algumas são consideradas como bens, outras como males. Mas nenhuma delas é má, propriamente falando. É pelo uso que delas fazemos que elas se revelam boas ou más.

77. O conhecimento é naturalmente bom, assim como a saúde. Entretanto seus contrários, mais do que eles, foram úteis para muitos. Pois, nos homens falsos, o conhecimento não conduz ao bem, embora ele seja naturalmente bom, como eu disse. E também, em tais homens, a saúde, a riqueza, a alegria não conduzem ao bem. Elas não lhes trazem nenhum benefício. Serão úteis a eles seus contrários? Se assim for, eles não lhes serão um mal, propriamente falando, ainda que o pareçam.

78. Não faça mau uso dos pensamentos, para não ser constrangido a fazer também mau uso das coisas. Pois se não pecarmos primeiro em pensamento, jamais chegaremos a pecar em ato.

79. A imagem do terrestre são os vícios fundamentais, como a demência, a preguiça, o deboche, a injustiça. A imagem do celeste são as virtudes fundamentais, como a sabedoria, a coragem, a castidade, a justiça. E, assim como carregamos a imagem do terrestre, carregaremos também a imagem do celeste[82].

80. Se você quiser encontrar o caminho que conduz à vida[83], procure-o sobre a via, esta via que diz: “Eu sou a via, a porta, a verdade e a vi[84]a”, e você o encontrará. Mas procure com todas as suas forças, trabalhe, pois são poucos os que encontram o caminho[85]. Procure, para não ficar de fora destes poucos, para não ser contado com a maioria.

81. A alma se afasta dos pecados por cinco caminhos: por medo dos homens, por medo do Juízo, pela retribuição futura, pelo amor a Deus ou, finalmente, pela consciência, quando ela bate.

82. Alguns dizem que o mal não existiria nos seres se alguma outra potência não nos atraísse para ele. Ora, esta potência não é outra coisa do que nossa negligência em exercer a atividade natural do intelecto. É por isso que aqueles que se dedicam a exercer esta atividade só fazem o bem, sempre, e nunca o mal. Assim, se você quiser se desvencilhar da negligência por meio da atividade natural do intelecto, expulse a malícia, que é o uso errôneo dos pensamentos, à qual se segue o mau uso das coisas.

83. Está na natureza da parte racional que existe em nós submeter-se ao Verbo de Deus e dominar a parte irracional que também existe em nós. Que esta ordem seja guardada por todos, e o mal desaparecerá dos seres, bem como aquilo que nos atrai para ele.

84. Dentre os pensamentos, alguns são simples, outros são compostos. Os pensamentos simples são os pensamentos impassíveis; os pensamentos compostos são os pensamentos passionais, porque eles são feitos de paixão e de reflexão. Sendo assim, é possível vermos muitos pensamentos simples se seguirem a pensamentos compostos, quando estes tendem para o lado da reflexão. Tomemos o ouro: um pensamento relativo ao ouro pode surgir na memória de qualquer pessoa, mas, se alguém pensar então no roubo, terá cometido um pensamento em seu intelecto. À lembrança do ouro sucederam-se as lembranças da bolsa, do cofre no quarto, etc. A lembrança do ouro veio composta, pois nela havia paixão. Mas as lembranças da bolsa e do cofre eram simples, porque o intelecto não tinha paixão por estas coisas. O mesmo acontece com todos os demais pensamentos, quer se trate da vanglória, da mulher ou de outras causas de paixão. Os pensamentos que se seguem a um pensamento passional não são todos passionais, como vimos. Podemos assim conhecer quais são os pensamentos passionais e quais são os outros.

85. Alguns dizem que, durante o sono, os demônios tocam as partes genitais do corpo e o empurram à paixão da prostituição; depois, por seu próprio movimento, a paixão suscita no intelecto, por meio da memória, a forma da mulher. Outros dizem que os demônios aparecem ao intelecto sob a forma de mulher, tocando as partes genitais do corpo, provocando o desejo e que é daí que vêm as imaginações. Outros ainda dizem que a paixão que domina o demônio quando ele se aproxima excita nossa própria paixão e que assim a alma se liga aos pensamentos, suscitando formas neles pela memória. O mesmo acontece com todas as outras imaginações passionais: uns dizem que elas surgem de um modo, outros que elas surgem de outro. Porém, qualquer que seja o modo dos quais falamos, os demônios não têm poder de suscitar uma paixão, qualquer que seja ela, se na alma existirem o amor e a temperança, quer o corpo durma, quer esteja acordado.

86. Dentre os mandamentos da Lei, alguns devem ser guardados tanto espiritual quanto corporalmente, outros apenas espiritualmente. Assim, “não cometer adultério”, “não matar”, “não roubar”, e outros semelhantes[86], devem ser guardados tanto corporal como espiritualmente; e, espiritualmente, eles devem sê-lo três vezes mais. Mas circuncidar[87], observar o sábado[88], imolar o cordeiro, comer os ázimos e as ervas amargas[89], e outros mandamentos semelhantes, só devem ser guardados espiritualmente.

87. Existem nos monges três estados fundamentais da ética. O primeiro consiste em não pecar em ato. O segundo, em não deixar permanecer na alma pensamentos passionais. O terceiro, em observar impassivelmente em pensamento a forma das mulheres e a imagem daqueles que nos ofenderam.

88. O pobre é aquele que renunciou a tudo o que era seu, que não possui sobre a terra absolutamente nada além de seu corpo, e que, depois de haver destruído até a relação que nos une ao corpo, confiou a Deus e aos homens piedosos o cuidado de o dirigir.

89. Dentre os ricos, alguns possuem sem paixão: privados de seus bens, eles não se afligem, como quem aceita com alegria perder o que é seu[90]. Outros possuem com paixão: ameaçados de serem despojados, eles se tornam tristes, como o rico do Evangelho que foi embora entristecido[91]. Privados de seus bens, eles se afligem até a morte. É a provação que revela o estado impassível e o estado passional.

90. Os demônios combatem os que alcançam as alturas da oração, para impedi-los de perceber em toda pureza as coisas sensíveis. Eles combatem os gnósticos para que neles permaneçam pensamentos passionais. Eles atacam os ativos para persuadi-los a pecar em atos. Os miseráveis os combatem de todas as maneiras, para separar de Deus os homens.

91. Aqueles que, levados pela providência divina, dedicam-se à piedade nesta vida, são submetidos a três provas: ao dom das doçuras, como a saúde, a beleza, a fecundidade, a fortuna, a glória, etc.; à irrupção de desgraças, com a perda dos filhos, da fortuna e da glória; ao que faz sofrer o corpo, como as enfermidades, os suplícios, etc. Aos primeiros, o Senhor diz: “Se alguém não renuncia a tudo o que possui, este não pode ser meu discípulo[92]”. Aos outros, ele diz: “Por sua paciência vocês serão salvos[93]”.

92. É dito que as seguintes quatro causas alteram a compleição do corpo e fornecem ao intelecto, por intermédio dele, pensamentos passionais ou impassíveis: os anjos, os demônios, o ar que respiramos e os alimentos que ingerimos. Diz-se que os anjos transformam pela palavra, que os demônios transformam pelo toque, que o ar transforma por suas variações, e que o alimento transforma pela qualidade, a quantidade ou a raridade do que comemos. Sem falar das alterações que, pela memória, a audição e a visão, modificam a compleição do corpo se a alma for primeiro afetada pelas aflições ou alegrias que lhe acontecem. Quando é assim afetada, a alma transforma a compleição do corpo. Mas quando a própria compleição do corpo é transformada pelo que mencionamos, então é ela que leva os pensamentos ao intelecto.

93. A morte é propriamente a separação de Deus[94], e o aguilhão da morte é o pecado. Ao recebê-la, Adão foi simultaneamente exilado para longe da Árvore da Vida, longe do Paraíso e longe de Deus[95]. A morte do corpo segue-se necessariamente a esta separação. Quanto à vida, ela é propriamente Aquele que disse: “Eu sou a vida[96]”. Foi ele quem, penetrando na morte, devolveu a vida ao homem que estava morto.

94. Quem escreve livros escreve, seja para alimentar sua própria memória, seja para servir aos outros, seja pelos dois motivos, ou ainda para prejudicar alguém, por ostentação ou por necessidade.

95. Os verdes campos são a virtude ativa; e a água do repouso[97] é o conhecimento dos seres criados.

96. A sombra da morte é a vida humana. Assim, se alguém está com Deus e Deus com ele, ele pode dizer claramente: “Enquanto eu caminhava sob a sombra da morte eu não temia o mal, porque você estava comigo[98]”.
97. Um intelecto puro vê as coisas corretamente. A palavra experiente as exprime com clareza. Um ouvido refinado as escuta. Mas o homem desprovido destes três dons maltrata quem lhe fala.

98. Está com Deus quem conhece a Santíssima Trindade, sua criação e sua providência, e que conserva na impassibilidade a parte da alma submetida às paixões.

99. Diz-se que o bastão representa o Julgamento de Deus, e que o cajado significa a Providência. Quem conheceu um e outro pode dizer: “Seu bastão e seu cajado são o que me consola[99]”.

100. Quando o intelecto se despojou das paixões e acha-se iluminado pela contemplação dos seres, ele pode alcançar a Deus e orar com se deve.



TERCEIRA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR
1. O uso racional dos pensamentos e das coisas engendra a castidade [o amor] e o conhecimento. Seu uso irracional engendra o deboche, o ódio e a ignorância.

2. “Você preparou uma mesa para mim[100]”, etc. A mesa significa aqui a virtude ativa. Com efeito, é ela que nos foi preparada por Cristo em face daqueles que nos afligem. O óleo que unta o intelecto significa a contemplação das criaturas. A taça divina significa o conhecimento de Deus. Sua piedade significa seu Verbo, que é igualmente Deus. Pois, por sua encarnação, este nos acompanha todos os dias, até que tenha alcançado todos os que serão salvos, como Paulo[101]. A casa significa o Reino, onde serão restabelecidos todos os santos. E a duração dos dias significa a vida eterna.

3. Os vícios nos vêm por um mau uso das potências da alma, tanto do desejo quanto da razão. O mau uso da potência racional é a ignorância e a demência; o mau uso da potência ardente e ardorosa é o ódio e o deboche. Mas o uso natural dessas potências é o conhecimento e a sabedoria, o amor e a castidade. Assim sendo, nada do que foi criado e feito por Deus é mau.

4. Não é o alimento que é mau, mas a gula; não é a procriação dos filhos, mas a prostituição; nem a riqueza, mas a avareza; nem a glória, mas a vaidade. Sendo assim, nada do que existe é mau. Mau é somente o mau uso, que surge quando o intelecto negligencia sua cultura natural.

5. Nos demônios, como diz o bem-aventurado Denis[102], o mal é o ardor desprovido de razão, o desejo desprovido de inteligência, a imaginação exagerada. A irracionalidade, a desinteligência e o exagero são, por definição, uma privação da razão, da inteligência e da atenção. Ora, a privação é secundária, ela vem depois da possessão. Houve um tempo em que os demônios eram providos de razão, inteligência e sábia atenção. Sendo assim, tampouco os demônios são maus por natureza, mas se tornaram maus pelo mau uso das potências naturais.

6. Dentre as paixões, algumas engendram o deboche, outras engendram o ódio, outras engendram o deboche e o ódio.

7. Falar e comer demais leva ao deboche. A avareza e a vaidade conduzem ao ódio ao próximo. A mãe desses vícios é a complacência para consigo mesmo, o egoísmo, que leva ao deboche e ao ódio.

8. O egoísmo é a afeição passional e irracional que alguém sente por seu próprio corpo. Ao egoísmo se opõem o amor e a temperança. É claro que quem tem o egoísmo tem também todas as paixões.

9. “Ninguém, diz o Apóstolo, jamais odiou sua própria carne[103]”. Mas é claro que ele próprio tratou rudemente e sujeitou sua carne[104], não lhe concedendo mais do que alimento e vestes[105], e apenas na medida necessária à vida. É assim que se ama a carne fora de qualquer paixão, que a nutrimos como servidores do divino, que a confortamos apenas com as coisas que satisfazem às suas necessidades.

10. A quem amamos, nos dedicamos a servi-lo em tudo. Portanto, se amamos a Deus, nos dedicaremos em tudo a fazer o que lhe agrada[106]. Mas se amamos a carne, nos dedicaremos a fazer o que lhe é agradável.

11. A Deus agrada o amor, a castidade, a contemplação, a oração. À carne agradam a gulodice, o deboche e tudo o que os faz crescer. É por isso que aqueles que vivem para a carne não podem agradar a Deus[107]. Mas os que estão com Cristo crucificaram a carne com as paixões e a concupiscência[108].

12. Se o intelecto se volta para Deus, ele domina o corpo e não lhe concede nada além do necessário para viver. Mas se ele se volta para a carne, ele fica submetido às paixões, sempre cuidando dela para satisfazer-lhe a concupiscência[109].

13. Se você quiser se tornar mestre dos pensamentos, vigie as paixões: você expulsará facilmente do intelecto os pensamentos passionais. Assim, para combater a prostituição, vele, jejue, trabalhe, viva na solidão; para combater a cólera e a tristeza, despreze a glória, a desonra e as coisas materiais; para combater o ressentimento, reze por que lhe ofendeu, e você será libertado.

14. Não se compare com os mais fracos dos homens, mas dedique-se sempre aos mandamentos do amor. Comparando-se com os mais fracos, você será engolido pelo abismo da presunção; dedicando-se ao mandamento, você progredirá até o cume da humildade.

15. Se você guarda sempre o mandamento do amor, você nunca será para outros homens uma fonte de amargura por afligi-lo. Caso contrário, é claro que, preferindo as coisas que passam e disputando sua posse, você estará combatendo seu irmão.

16. A maior parte dos homens não busca o ouro pela necessidade, mas para servir ao seu prazer.

17. Existem três causas para o amor ao dinheiro: o gosto pelo prazer, a vaidade e a falta de fé. Mas a mais grave é a falta de fé.

18. Quem tem gosto nos prazeres ama o dinheiro para com ele viver no meio das delícias. O vaidoso o ama para adquirir para si a glória. Quem não tem fé o ama para escondê-lo e guardá-lo, por temer a fome, a velhice, a doença ou o exílio. Ele confia mais no dinheiro do que em Deus que criou o mundo todo e vela até pelos últimos e os menores seres vivos.

19. Quatro tipos de homens dão importância ao dinheiro: os três de que falamos, e o ecônomo, o administrador que gere uma comunidade. Mas apenas este, evidentemente, distribui o dinheiro como se deve, a fim de poder dar sempre a cada um na medida daquilo que ele precisa.


20. Todos os pensamentos passionais ou bem excitam o desejo da alma ou bem perturbam seu ardor e sua razão. Então o intelecto se torna cego, incapaz de assumir a contemplação espiritual e os voos da oração. É por isso que o monge, em especial aquele que vive na hesíquia, deve estar rigorosamente atento aos pensamentos, conhecê-los e suprimir suas causas. Eis como ele pode conhecê-los: por exemplo, a lembrança passional das mulheres excita o desejo na alma; a causa desta lembrança é a intemperança no comer e no beber, assim como as conversas frequentes e sem motivo com as próprias mulheres. Ora, esta lembrança pode ser apagada com a fome, a sede, as vigílias e a anacorese. Quanto ao ardor, ele é perturbado pela lembrança passional das aflições: a causa desta lembrança é o gosto pelo prazer, a vaidade, o amor pelas coisas materiais, pois o passional se aflige por estar privado destas coisas, ou por não conseguir obtê-las. Mas se elas são desdenhadas e consideradas como nada, sua lembrança é apagada pelo amor a Deus.

21. Deus conhece a si mesmo. Ele também conhece aquilo que ele criou. Da mesma forma, as Santas Potências conhecem a Deus, e também conhecem aquilo que Deus criou. Mas elas não conhecem a Deus nem aquilo que ele criou da mesma maneira como Deus se conhece e conhece suas criaturas.

22. Deus conhece a si mesmo por sua essência bem-aventurada. E ele conhece suas criaturas por sua sabedoria, por meio da qual e na qual tudo ele faz. Mas as Santas Potências conhecem a Deus por participação, e ele próprio está acima de toda participação. E é pela percepção daquilo que elas contemplam nas criaturas que elas as conhecem.

23. As criaturas são exteriores ao intelecto. Este só percebe interiormente aquilo que ele contempla. Mas o mesmo não acontece com Deus, eterno, infinito, ilimitado, que concede às criaturas estarem bem e serem sempre.

24. A natureza dotada de razão e de inteligência participa do Deus santo por seu próprio ser, por sua aptidão em estar bem – vale dizer, por sua aptidão para a bondade e a sabedoria, e pela graça de sempre ser. É assim que ela conhece a Deus. Mas ela conhece aquilo que Deus criou, com eu disse, pela percepção da sabedoria e de sua arte, que ela contempla nas criaturas e que se encontra em estado puro no intelecto, fora de toda matéria.

25. Ao conceder ao ser a natureza dotada de razão e de inteligência, Deus, em sua extrema bondade, lhe comunicou quatro das qualidades divinas por meio das quais ele abraça, protege e salva suas criaturas: o ser, o ser sempre, a bondade e a sabedoria. Ele concedeu as duas primeiras à natureza em sua essência. E concedeu as duas outras – a bondade e a sabedoria – à aptidão de conhecer, a fim de que a criatura chegue por participação àquilo que ele é por essência; é por isso que se diz que a criatura é feita à imagem e semelhança de Deus. À imagem, por ser a própria imagem d’Aquele que é, e por ser sempre a própria imagem d’Aquele que é sempre. E à semelhança, por ser boa, da mesma bondade d’Aquele que é bom, e sábia, da mesma sabedoria d’Aquele que é sábio. Ela é pela graça aquilo que Deus é por natureza. Assim, toda natureza dotada de razão é à imagem de Deus; mas à sua semelhança, somente os bons e os sábios.

26. A natureza dotada de razão e inteligência se divide em duas: a natureza angélica e a natureza humana. A natureza angélica se divide em duas tendências gerais e em dois grupos – os santos e os malditos – ou seja, em potências santas e em demônios impuros. A natureza humana se divide também em duas tendências, em homens piedosos e ímpios.

27. Deus, que é a própria existência, a própria bondade, a própria sabedoria, e que, a bem dizer, está muito acima de todas estas qualidades, não possui absolutamente nada em si que lhe seja contrário. Mas as criaturas, que não existem senão pela participação e pela graça, mesmo aquelas dotadas de razão e intelecto e são aptas à bondade e à sabedoria, têm em si seus contrários: com a existência, a inexistência; com a aptidão para a bondade e a sabedoria, a malícia e a ignorância. Ora, existir sempre, ou não existir, está nas mãos do Criador. Mas participar ou não de sua bondade e de sua sabedoria, depende da vontade dos seres racionais.

28. Ao afirmar que a essência das coisas existe com Deus por toda a eternidade e que ela não recebe dele senão suas próprias qualidades, os Gregos dizem que não existe nada contrário à essência e que só existem contrários nas qualidades. Nós dizemos que apenas a essência divina não tem contrário, pois ela é eterna e infinita, e concede a eternidade aos outros; mas que a essência dos seres possui seu contrário, que é o nada; que Aquele que é plenamente tem o poder de fazer com que esta essência seja para sempre, ou que não seja; e que ele não volta atrás naquilo que ele concedeu. É por isso que a essência das coisas é para sempre, e será, por ser mantida pelo poder que domina o universo, ainda que ela possua seu contrário, como foi dito, pois ela foi trazida do nada ao ser, e é da vontade de Deus que ela possua o ser ou o nada.

29. Assim como o mal é a privação do bem e a ignorância é a privação do conhecimento, também o nada é a privação do ser, não do Ser em si, pois este não possui contrário, mas para o ser por participação. Ora, a privação do bem e do conhecimento depende da resolução das criaturas. Mas a privação do ser depende da vontade do Criador que, em sua bondade, quer sempre que os seres sejam, e que recebam sempre suas benesses.

30. Dentre as criaturas, algumas são dotadas de razão e intelecto e recebem seus contrários, como a virtude e o vício, o conhecimento e a ignorância, enquanto outras são os diversos corpos compostos por contrários, como a terra, o ar, o fogo e a água. Os primeiros são inteiramente incorpóreos e imateriais, mesmo que alguns estejam unidos a um corpo. Os demais não são constituídos senão por matéria e forma.

31. Todos os corpos são, por natureza, imóveis. Eles se movem por meio da alma: uns por uma alma dotada de razão, outros por uma alma privada de razão, outros por uma alma insensível.

32. Dentre as potências da alma, uma está voltada para a alimentação e o crescimento, outra à imaginação e à impulsão, outra à razão e à inteligência. As plantas só participam da primeira potência; os animais irracionais acrescentam a esta a segunda. Enfim, os homens acrescentam a terceira às duas primeiras. Ora, as duas primeiras potências são corruptíveis; mas a terceira se revela incorruptível e imortal.
33. As santas potências transmitem a iluminação umas às outras. Elas a transmitem à natureza humana, seja pela virtude, seja pelo conhecimento que há nelas. Elas transmitem a virtude à imitação de Deus, a virtude com a qual fazem o bem a si mesmas e entre si, e às potências que estão abaixo delas, trabalhando para torná-las semelhantes a Deus. E transmitem o conhecimento, ou sobre Deus, por meio de uma visão mais elevada (pois foi dito: “Tu és o Altíssimo por toda a eternidade, Senhor[110]”); ou sobre os incorporais, por uma visão mais profunda; ou sobre os corpos, por uma visão mais precisa; ou sobre a providência, por uma visão mais penetrante; ou sobre o Juízo, por uma visão mais clara.
34. A impureza do intelecto está, em primeiro lugar, em possuir um falso conhecimento; em segundo lugar, em ignorar um dos universais (falo do intelecto humano, pois o intelecto dos anjos não ignora coisa alguma, ainda que parcialmente); em terceiro, em ter pensamentos passionais; e, em quarto, em consentir no pecado.

35. A impureza da alma está em não agir conforme a natureza. Pois é assim que nascem no intelecto os pensamentos passionais. A alma age segundo a natureza quando, solicitadas pelas coisas e por seus pensamentos, as potências que a levam à paixão – o ardor e o desejo – permanecem impassíveis.

36. A impureza do corpo é o pecado em ato.

37. Aquele que não sente nenhuma paixão pelas coisas do mundo ama a hesíquia. Quem não ama nada do que é humano ama a todos os homens. Aquele a quem ninguém escandaliza por suas faltas e seus pensamentos suspeitos, tem o conhecimento de Deus e do divino.

38. É uma grande coisa não sentir paixão pelas coisas; mas é ainda maior permanecer impassível diante dos seus pensamentos.

39. Amor e temperança mantêm o intelecto impassível diante das coisas e de seus pensamentos.

40. O intelecto daquele que é amado por Deus combate, não as coisas, nem seus pensamentos, mas as paixões que estão ligadas aos pensamentos. Assim, ele combate não as mulheres, nem os ofensores, nem suas imagens, mas as paixões ligadas às imagens.

41. Todo o combate do monge contra os demônios consiste em separar as paixões dos pensamentos, pois, sem isto, é impossível de as coisas com impassibilidade.

42. Não confundir a coisa, o pensamento e a paixão. Assim, a coisa pode ser uma mulher, um homem, o ouro, etc. O pensamento é a simples lembrança destas coisas. A paixão é o afeto irracional ou a aversão irrefletida por alguma destas coisas. Assim, é contra as paixões que luta o monge.

43. O pensamento passional é composto de paixão e pensamento. Separemos o pensamento da paixão, e o que resta é um pensamento simples. Se o quisermos, podemos separá-los por meio do amor espiritual e da temperança.

44. As virtudes separam o intelecto das paixões. As contemplações espirituais o separam dos simples pensamentos. Enfim, a oração pura o conduz para junto de Deus.

45. As virtudes passam pelo conhecimento das criaturas. O conhecimento passa por aquele que conhece. E o que conhece passa por Aquele que é conhecido no “desconhecimento” e que conhece além de todo conhecimento.

46. Na superabundância de sua plenitude, Deu não deu existência às criaturas porque tivesse necessidade de alguma coisa[111], mas para que as criaturas fossem felizes por participar de sua semelhança, e para que ele próprio se regozijasse com suas obras[112], vendo-as, cumuladas de alegria, bebendo do inesgotável.

47. Existem no mundo muitos pobres de espírito, mas não como deveria, ser. Existem muitos aflitos, mas porque não têm mais dinheiro ou porque perderam seus filhos. Existem muitos mansos, mas para se dedicarem às paixões impuras. Existem muitos famintos e sedentos, mas para tomar o que é dos outros e se beneficiar injustamente. Existem muitos complacentes, mas para satisfazer o corpo e as coisas do corpo. Existem muitos corações puros, mas por vaidade. Existem Pacíficos, mas porque submetem a alma à carne. Existem muitos perseguidos, mas porque se entregam à desordem. Muitos, enfim, são ultrajados, mas por pecados infames. Bem-aventurados são apenas os que tudo isto fazem e aguentam por Cristo. Por quê? Porque o Reino dos céus é deles, porque eles verão a Deus[113], etc. Não é porque eles fazem e aguentam tudo isto que eles são bem-aventurados – pois aqueles de que falamos também o fazem e aguentam – mas porque eles o fazem e aguentam por Cristo.

48. Em tudo o que fazemos, como já foi dito mais de uma vez, Deus procura nosso objetivo: se agimos por ele, ou por alguma outra finalidade. Assim, se quisermos fazer o bem, não tenhamos como objetivo agradar aos homens, mas nos encaminharmos para Deus. Desta maneira, com os olhos sempre voltados para ele, façamos tudo por ele para que, suportando as penas, não percamos a recompensa.

49. No momento da oração, rejeite do intelecto até mesmo os simples pensamentos das coisas humanas e mais tudo o que você viu das criaturas, a fim de não perder Aquele que é incomparavelmente mais elevado do que todos os seres, imaginando coisas mais baixas.
50. Se amarmos verdadeiramente a Deus, por este mesmo amor rejeitaremos as paixões. Ora, amar a Deus significa preferi-lo ao mundo, é preferir a alma à carne, desprezando as coisas mundanas e consagrando-se sempre a Deus pela temperança, pelo amor, pela oração, pela salmodia e por tudo o que se lhes segue.

51. Se, nos consagrando longamente a Deus, vigiarmos a parte passional da alma, não cederemos aos ataques dos pensamentos. Ao contrário, contemplando-os com mais precisão e suprimindo suas causas, nos tornaremos mais clarividentes, até que se cumpram em nós as palavras: “Meu olho viu os inimigos e meu ouvido escutou os que tramavam o mal e se levantavam contra mim[114]”.

52. Quando você perceber que seu intelecto permanece na piedade e na justiça mesmo quando está voltado para as coisas do mundo, saiba que também seu corpo permanecerá sem pecado. Mas quando você ver seu intelecto ocupado em pensar nos pecados, saiba que seu corpo não tardará a cair neles.

53. Assim como o mundo do corpo são as coisas, o mundo do intelecto são os pensamentos. E assim como o corpo se prostitui com o corpo da mulher, o intelecto se prostitui com o pensamento da mulher, imaginando seu corpo. Pois ele vê a imagem de seu próprio corpo unido em pensamento à imagem da mulher, do mesmo modo como ele repele em pensamento a imagem de alguém que o ofendeu. O mesmo acontece com os outros pecados. Pois aquilo que o corpo faz em ato no mundo das coisas, o intelecto faz no mundo dos pensamentos.

54. Não há porque se assustar, espantar ou perturbar, porque Deus Pai não julga ninguém e por ter ele entregue todo julgamento ao Filho. Diz o Filho: “Não julguem, para que não sejam julgados[115]. Não condenem, para não serem condenados[116]”. Também o Apóstolo: “Não julguem antes do tempo, até que venha o Senhor[117]” e “Com o julgamento com que você julga a outros, você condenará a si próprio[118]”. Mas os homens, sem se preocupar em chorar seus próprios pecados, tiraram do Filho o julgamento. E eles mesmos, como se fossem sem pecado, passaram a julgar e condenar uns aos outros. Diante disto, o céu se perturbou e a terra tremeu. Mas eles permaneceram insensíveis e não se envergonham de nada.

55. Aquele que se ocupa dos pecados dos outros e que julga seu irmão com base numa simples suspeita, ainda nem começou a se arrepender. Ele não tenta conhecer seus próprios pecados, que na verdade são mais pesados do que uma grande massa de chumbo. Ele também não entendeu de onde vem ao homem seu coração duro, que ama a vaidade e busca a mentira[119]. É por isso que, como um louco em meio às trevas[120], sem se preocupar com seus próprios pecados, ele imagina os dos outros, reais ou supostos.

56. O egoísmo, como já foi dito muitas vezes, está na origem de todos os pensamentos passionais, pois é dele que nascem os três vícios capitais da concupiscência: a gula, a avareza e a vanglória. Da gula nasce a prostituição, da avareza a cupidez, da vanglória o orgulho. Todos os demais vícios – a cólera, a tristeza, o ressentimento, a inveja, a maledicência, etc – seguem-se a um destes três. Desta forma estas paixões ligam o intelecto às coisas materiais, atiram-no por terra, cobrem-no com uma pesada pedra, ainda que ele próprio seja mais leve e vivo do que o fogo.

57. A origem de todas as paixões é o egoísmo. O egoísmo é o afeto irracional pelo corpo. Aquele que o destrói, destrói ao mesmo tempo todas as paixões que dele provêm.

58. Assim como os pais sentem afeto pelos corpos que engendraram, também o intelecto está naturalmente ligado às suas próprias razões. E assim como os pais apaixonados acham que seus filhos são os melhores e mais dotados, também o intelecto tolo acha suas próprias razões as mais sensatas do mundo, ainda que elas sejam as piores de todas. Mas não é assim que o sábio considera suas razões. Quando ele está convencido de que elas são verdadeiras e boas, é aí que ele duvida de seu próprio julgamento. Ele submete suas razões e seus julgamentos aos de outros sábios, por medo de correr ou de ter corrido em vão[121]. É deles que ele receberá a confirmação.

59. Quando você conseguir vencer algumas das paixões mais infamantes, como a gula, a prostituição, a cólera ou a cupidez, logo surgirá em você o pensamento da vanglória. E, se você conseguir vencer esta última, surgirá em seguida o pensamento do orgulho.

60. Todas as paixões infames, quando se apoderam da alma, dela expulsam o pensamento da vanglória. Mas quando elas são vencidas, desencadeia-se na alma este pensamento.
61. Quer seja destruída, quer permaneça, a vanglória engendra o orgulho. Se ela é destruída, suscita a presunção; se permanece, suscita a jactância.

62. A ação oculta destrói a vanglória, e atribuir a Deus tudo o que se faz de bom destrói o orgulho.

63. Quem se tornou digno de receber o conhecimento de Deus e que realmente desfrutou deste prazer, desdenhará todos os prazeres engendrados pela concupiscência.

64. Quem cobiça as coisas terrestres cobiça ou as comidas, ou os prazeres do baixo ventre, ou a glória humana, ou o dinheiro, ou qualquer outra coisa provocada por estas paixões. E se o intelecto não encontra nada de melhor para onde dirigir seu desejo, ele não será capaz de desprezar estas coisas. Mas o conhecimento de Deus e do divino é incomparavelmente melhor.
65. Os que desprezam os prazeres o fazem por temor, ou graças à esperança, ou graças ao conhecimento, ou por amor a Deus.

66. O conhecimento desapaixonado das coisas divinas não leva de modo algum o intelecto a desprezar as coisas materiais, mas antes se assemelha a um simples pensamento de uma coisa sensível. É por isso que podemos encontrar tantos homens que, mesmo tendo um grande conhecimento, chafurdam na lama como porcos. Tendo sido inicialmente um pouco purificados por sua aplicação e tendo alcançado o conhecimento, eles se deixaram vencer e se tornaram como Saul, que foi considerado digno da realeza[122], mas governou de modo indigno e foi privado de seu cargo pela cólera terrível de Deus.

67. Assim como o simples pensamento das coisas humanas não obriga o intelecto a desprezar as coisas de Deus, também o simples conhecimento das coisas de Deus não leva absolutamente o intelecto a desdenhar as coisas humanas. Pois em nosso estado atual não vemos a verdade senão pelas sombras e as imagens, e é por isso que temos necessidade da bem-aventurada afeição do santo amor que liga o intelecto àquilo que a contemplação espiritual vê, e que o conduz a preferir o imaterial ao material, e ao sensível o inteligível e o divino.

68. Quem afastou as paixões e simplificou os pensamentos, nem por isso os voltou para o divino. Talvez ele já não seja afetado pelas coisas humanas, mas ele ainda não é afetado pelas coisas divinas. É o que acontece àqueles que são apenas ativos, mas ainda não foram considerados dignos do conhecimento. Eles se abstêm das paixões por medo do castigo, ou pela esperança do Reino.

69. É pela fé que caminhamos, não pela visão. E é através de espelhos e enigmas que possuímos a virtude[123]. Assim, precisamos nos dedicar muito ao divino, a fim de que, meditando sobre ele e permanecendo constantemente com ele, alcancemos um estado de contemplação do qual seja difícil que nos separemos.

70. Se, logo após de termos afastado um pouco as causas das paixões, nós nos dedicamos às contemplações espirituais, porém sem lhes consagrarmos todo nosso tempo e sem as tornarmos nossa própria obra, logo retornaremos às paixões da carne, sem termos colhido outro fruto do que um simples conhecimento mesclado de presunção. Este conhecimento acabará por entenebrecer pouco a pouco, e o intelecto outra vez se voltará inteiramente às coisas materiais.

71. Uma paixão de amor condenável faz com que o intelecto se ocupe de coisas materiais. Uma paixão de amor digna de louvores o liga às coisas divinas. Pois o intelecto costuma se estender sobre as coisas às quais ele se prende. E é para estas coisas sobre as quais ele se debruça que ele volta seu desejo e seu amor: seja para as coisas inteligíveis que lhe são próprias, seja para as coisas e as paixões da carne.

72. Deus criou o mundo visível e o mundo invisível. Vale dizer que ele próprio fez tanto a alma como o corpo. Ora, se o mundo visível é bom, como será o invisível? E se o invisível é mais elevado do que o visível, quão mais alto que os dois será Deus, que os criou? Assim, se o Criador de todos os bens é mais alto do que todas as criaturas, porque razão o intelecto, deixando de lado o que é mais elevado do que tudo, se ocupa com o que há de mais inferior a tudo, ou seja, das paixões da carne? Está claro que, por viver entre as paixões desde o nascimento, por estar acostumado com elas, ele ainda não conhece por uma perfeita experiência aquilo que é maior e mais alto do que tudo. Mas se, por uma longa ascese consistente em temperança nos prazeres e em meditação do divino, o retirarmos pouco a pouco deste estado, ele se debruçará progressivamente sobre as coisas de Deus e conhecerá sua própria dignidade. E, no final, ele dirigirá todo seu desejo para Deus.

73. Aquele que fala dos pecados do seu irmão desapaixonadamente, pode fazê-lo por duas razões: ou para corrigi-lo, ou para ser útil a outra pessoa. Fora destas razões, se ele falar disto ao irmão ou a qualquer outro, ele o insultará ou o ultrajará, e não deixará de ser abandonado por Deus. Ele cairá na mesma falta ou em outra qualquer e, denunciado e insultado pelos outros, será confundido.

74. Pessoas que cometem, o mesmo pecado em ato não têm a mesma razão para tal, mas razões diversas. Assim, uma coisa é pecar por hábito, outra pecar de surpresa. Aquele que é surpreendido por uma falta não pensava nela antes do pecado e nela não pensará após o pecado, mas ficará aflito com o que aconteceu. Quem peca por hábito é o contrário. Antes, ele não cessava de pecar em pensamento, e depois do ato ele permanece no mesmo estado.

75. Quem busca as virtudes por vanglória, é claro que será também pela vanglória que buscará o conhecimento. E é evidente que tal pessoa não fará nem dirá nada para a edificação, mas em tudo perseguirá a glória que espera dos que o virem ou escutarem. Enfim ele é desnudado em sua paixão quando alguns condenam seus atos ou suas palavras. Ele então fica triste, não porque não os tenha edificado – pois não era este seu objetivo – mas porque foi desprezado.

76. Esta é a prova da paixão da avareza: receber com alegria e partilhar com tristeza. Um homem assim não será capaz de prover as necessidades dos outros.

77. Suportamos pacientemente o sofrimento pelas seguintes razões: por amor a Deus, pela esperança da recompensa, pelo temor do castigo, por medo dos homens, por natureza, por prazer, por um benefício, por vanglória ou por necessidade.

78. Uma coisa é estar desembaraçado dos pensamentos, outra é estar liberto das paixões. Muitas vezes nos desembaraçamos dos pensamentos porque não estão neles as coisas às quais nos levam as paixões. Mas estas permanecem ocultas na alma e se mostram desde que reapareçam as coisas. É preciso, assim guardar o intelecto diante das coisas e saber por quais ele está apaixonado.
79. Um amigo verdadeiro é aquele que, no momento da provação, suporta junto com seu próximo, como se fossem suas – sem perturbação nem aflição – as aflições, constrangimentos e infortúnios trazidos pelas circunstâncias.

80. Não desdenhe a consciência que o aconselha sempre o melhor. Pois ela lhe transmite o julgamento de Deus e dos anjos, ela o livra das sujeiras escondidas no coração, e, no momento do êxodo, ela lhe permite apresentar-se livre diante de Deus.

81. Se você quiser ser instruído e comedido e não estar escravizado da paixão nem da presunção procure sempre nos seres o que está oculto ao seu conhecimento. Ao descobrir o grande número e a enorme diversidade de coisas que lhe escapam, você ficará espantado com sua ignorância e se tornará menos arrogante. Conhecendo a si mesmo, você compreenderá então muitas coisas grandes e maravilhosas. Acreditar que se sabe impede, com efeito, de progredir no conhecimento.

82. Quem quiser ser verdadeiramente salvo não deve se opor aos remédios do médico, tais como as aflições e as tristezas  que os acontecimentos tantas vezes carregam. Quem se opõe não sabe o que se estes remédios encerram, nem o que acontecerá àquele que deles tirar proveito.

83. A vanglória e a avareza engendram uma à outra. Os vaidosos enriquecem e os ricos são vaidosos. Mas estes são homens do mundo. Mas o monge, se não possui nada, pode se tornar ainda mais vaidoso; e se tem dinheiro o esconde, com vergonha de possuir algo que não corresponde ao seu estado.

84. Esta é a vanglória do monge: extrair vaidade da virtude e de suas consequências. E este é seu orgulho: glorificar-se de suas ações corretas, desprezar os outros, atribuir estas ações a si mesmo e não a Deus. Quanto ao homem do mundo, estes são seu orgulho e sua vanglória: extrair vaidade e glorificar-se da beleza, da riqueza, do poder e da sabedoria.

85. As virtudes dos homens do mundo são os defeitos dos monges, e as virtudes dos monges são os defeitos dos homens do mundo. Assim é que as virtudes dos homens do mundo são a riqueza, a glória, o poder, as delícias, a felicidade em ter filhos e tudo o mais. Se o monge chegar neste ponto, está perdido. As virtudes do monge são a despossessão, a obscuridade, a impotência, a temperança, a vida dura e tudo o que se segue. Se aquele que ama o mundo chega a este ponto contra sua vontade, vê isto como uma grande queda, e corre o risco de se suicidar. Alguns o fizeram.

86. Os alimentos estão fundamentados em duas razões: alimentar e servir de remédio. Portanto, quem os toma fora destas duas razões, por abusarem daquilo que Deus nos deu para nos servirmos e só buscarem desfrutar disto, está condenado. Em todas as coisas, o pecado é o abuso.

87. A humildade consiste numa prece contínua entre penas e lágrimas. Por não cessar de pedir o socorro de Deus, ela impede a pessoa de confiar tolamente em seu próprio poder e seu próprio saber, e também de se considerar acima dos outros. Estas coisas são as duras enfermidades da paixão do orgulho.

88. Uma coisa é combater o simples pensamento, para que ele não suscite a paixão, e outra é combater o pensamento passional, para que não surja o consentimento. Porém, um e outro combate visam evitar que o pensamento se torne inveterado.

89. A tristeza está ligada ao ressentimento. Quando o intelecto vê com tristeza o rosto de um irmão em seu espelho, é claro que aí existe ressentimento contra ele. Os caminhos dos que guardam rancor conduzem à morte[124], pois todo homem que guarda rancor é injusto.

90. Se você se ressente de alguém, reze por ele e você impedirá a paixão de ir adiante. Com a oração, você subtrairá a tristeza da lembrança do mal que ele lhe fez. Alcançando o amor e a bem-aventurança, você apagará completamente a paixão de sua alma. E se outro tiver ressentimento contra você, faça o bem a ele, seja humilde, viva em paz com ele, e você se livrará da paixão.
91. É difícil apaziguar a tristeza de alguém que o inveja, pois ele considera como sua infelicidade aquilo que ele inveja em você. E só será possível apaziguar esta tristeza escondendo aquilo que ele inveja em você. Mas se aquilo que ele inveja é útil para outros, ao mesmo tempo em que o aflige, que partido tomar? É preciso ser útil à maioria, mas sem negligenciar aquele homem, na medida do possível, nem se deixar levar pela malícia de sua paixão, pois não é a paixão, mas o homem que está sob sua influência, que você deve defender. É preciso, assim, humildemente, que você considere este homem como mais do que você, e preferi-lo a você em todo tempo e lugar. Quanto à sua própria inveja, você pode apaziguá-la se você se regozija com a pessoa que você inveja quando ela se regozija, e afligir-se com ela quando ela se aflige. Assim você cumprirá as palavras do Apóstolo: “Alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram[125]”.

92. Nosso intelecto oscila entre duas forças, cada qual com sua ação própria. Uma suscita a virtude, outra o vício. Vale dizer que o intelecto é presa simultânea de um anjo e de um demônio. Mas ele tem o poder de seguir ou de combater a quem ele quiser.

93. As santas potências nos conduzem ao bem. As sementes naturais e a boa vontade nos auxiliam. Mas as paixões e a má vontade suscitam os ataques dos demônios.

94. Quando Deus se manifesta, ele ensina ao intelecto a inteligência pura; também as santas potências o arrastam para o bem, e mesmo a natureza das coisas, quando ele a contempla.

95. É preciso que o intelecto a quem foi dado o conhecimento guarde longe de toda paixão os pensamentos das coisas, longe de todo erro aquilo que ele vê na contemplação, e longe de toda perturbação o estado de oração. Mas ele não consegue manter tudo isto longe dos levantes da carne se estiver enfumaçado pelas intrigas dos demônios.

96. O que nos entristece não é a mesma coisa que nos irrita, pois o que provoca a tristeza é mais forte do que o que provoca a irritação. Assim uma coisa se quebrou, outra se perdeu, alguém morreu: nós ficamos tristes. Mas em outras ocasiões ficamos tristes e irritados, porque nos falta a filosofia.
97. Quando o intelecto recebe os pensamentos das coisas, ele toma naturalmente a forma de cada um destes pensamentos. Quando ele as contempla espiritualmente, ele se transfigura de diversas maneiras conforme aquilo que vê. Mas quando ele está em Deus, ele perde toda forma e toda figura, pois, contemplando o único, ele se torna único e inteiramente luminoso.

98. Perfeita é a alma cujo poder de paixão está inteiramente voltado para Deus.

99. Perfeito é o intelecto quando, para além de todo conhecimento, ele conhece o mais do que desconhecido numa ignorância que ultrapassa toda ignorância; quando ele contempla as razões universais de suas criaturas, e quando recebe de Deus o conhecimento que abarca a providência e o julgamento referentes às criaturas, na medida, é claro, em que isto é possível aos homens.

100. O tempo se divide em três. A fé se estende sobre os três períodos, a esperança sobre um só. A fé e a esperança têm limite. Mas o amor permanece pelos séculos infinitos, mais do que unido ao mais do que infinito que sempre cresce para além de todo crescimento. É por isso que a maior de todas as virtudes é o amor[126].


 
QUARTA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR


1. Antes de tudo, quando considera a infinitude absoluta de Deus, este oceano inalcançável e tão desejado, o intelecto admira. Depois ele se espanta com o pensamento de ele tenha levado os seres do nada à existência. Mas assim como sua grandeza não tem limites[127], sua sabedoria é insondável[128].

2. De fato, como ele não se admiraria, ao contemplar este oceano de bondade, que ultrapassa a admiração? Como não se sentiria transportado, ao considerar como e de onde proveio o ser feito de razão e inteligência? E os quatro elementos de que são feitos os corpos, sem que nenhuma matéria tenha preexistido anteriormente à sua gênese? E o que é este poder que, tendo posto mãos à obra, os fez ser? É isto que os filhos dos Gregos não aceitam, eles que ignoram a bondade todo-poderosa, sua sabedoria e conhecimento ativos, que ultrapassam o intelecto.
3. Deus, que, de toda eternidade, é Criador, criou quando quis, pelo Verbo consubstancial e pelo Espírito, em sua infinita bondade. E não me pergunte por qual razão ele criou naquele momento, uma vez que ele é bom eternamente. Pois eu afirmo que a sabedoria insondável da essência divina escapa ao conhecimento humano.

4. Quando quis, Deus fez nascer e crescer os seres cujo conhecimento preexistia nele por toda eternidade. Pois é absurdo duvidar que o Deus poderoso seja capaz de dar nascimento a um ser quando quiser.

5. Procure a razão pela qual Deus criou. Pois você pode sabê-lo. Mas não procure como e porque ele criou num determinado momento, porque isto escapa à sua inteligência. Dentre as coisas de Deus, algumas são compreensíveis, outras são incompreensíveis aos homens. Uma contemplação sem freios pode levar ao abismo, já dizia um santo.
6. Alguns dizem que as criaturas existem com Deus de toda eternidade, o que é impossível. Pois como os seres que, em tudo, são finitos, poderiam existir de toda eternidade com Aquele que é totalmente infinito? Ou como seriam eles propriamente criaturas, se fossem eternos com o Criador? Ora, é isto que afirmam os Gregos, que dizem que Deus não é o Criador do ser, mas apenas das qualidades. Mas nós que conhecemos o Deus todo-poderoso, dizemos que ele é Criador, não somente das qualidades, mas dos seres que formou. Ora, se é assim, as criaturas não existem com Deus de toda a eternidade.

7. Em um sentido, é possível conhecer Deus e o divino, e noutro sentido, é impossível conhecê-los. É possível conhecer a Deus contemplando o que o cerca, mas é impossível conhecê-lo pelo que ele é em si mesmo.

8. Não procure na essência simples e infinita da Santíssima Trindade estados e qualidades próprias, a fim de não fazer dela um ser composto, como o são as criaturas: conceber a Deus desta maneira é absurdo e sacrílego.

9. Simples, única, sem qualidades, pacífica e calma é a essência infinita, todo-poderosa, criadora do universo. Mas todas as criaturas são compostas de essência e acidente, e têm sempre necessidade da divina Providência, pois não está livre das mudanças.

10. Toda natureza dotada de inteligência e sentidos, uma vez levada à existência, recebe de Deus a capacidade de perceber os seres. Dotada de intelecto, recebe intelecções; dotada de sentidos, recebe sensações.

11. Deus é somente participado. Mas a criatura participa e transmite. Ela participa do ser e só transmite o ser bem; mas a natureza corporal transmite de uma maneira, e a natureza incorpórea de outra.

12. A natureza incorpórea transmite o ser bem quando ela fala, quando age, quando é contemplada. A natureza corpórea o transmite apenas quando é contemplada.

13. Que a natureza dotada de intelecto e razão exista para sempre ou não exista depende da vontade d’Aquele que criou todos os bens. Mas utilizar estes bens no bom sentido, ou desviá-los, depende da vontade das criaturas.

14. Não é no ser das criaturas que descobrimos o mal, mas em seus movimentos falsos e desprovidos de razão.

15. A alma é mesclada segundo a razão quando seu desejo é comandado pela temperança, quando seu ardor está ligado ao amor desviando-se da aversão, quando sua razão conduz a Deus pela oração e a contemplação espiritual.

16. Quem, no momento das provações, falta com a paciência às aflições que lhe chegam e se afasta do amor de seus irmãos espirituais, ainda não possui o amor perfeito nem o conhecimento profundo da providência divina.

17. O objetivo da Providência é de unificar pela fé direita e o amor espiritual aqueles que de muitas maneiras o mal despedaçou. Foi por isso que sofreu o Salvador: reunir na unidade[129] os filhos de Deus que estavam dispersos. Portanto, aquele que não aguenta o que o incomoda, que não suporta o que o aflige, que não assume suas penas, não caminha pela via do amor divino e falta com o objetivo da Providência.

18. Se o amor é paciente e benevolente[130], quem perde a coragem quando chegam as aflições, e por causa disso faz mal aos que o afligiram, cortando-os do amor que a eles deve, como não decairá da finalidade da Providência divina?

19. Vele sobre si mesmo. Tome cuidado para que o mal que o separa de seu irmão não esteja nele, mas em você. Apresse-se em se reconciliar com ele[131], a fim de não contrariar o mandamento do amor.

20. Não desdenhe o mandamento do amor. É por meio dele que você será filho de Deus. Mas se você o transgredir você se tornará filho da Geena.

21. As seguintes coisas afastam o amor entre amigos: invejar ou ser invejado, lesar ou ser lesado, ofender ou ser ofendido, suspeitar. Você, em alguma ocasião, não fez algo que o afastasse do amor do seu amigo?

22. Você já foi provado por causa do seu irmão, e a tristeza já o levou à aversão? Não se deixe vencer pela aversão, mas vença a aversão com o amor. Eis como você vencerá: orando sinceramente a Deus por ele, dando-lhe o direito de defesa, ou mesmo assistindo-o para justificá-lo, considerando ser você mesmo o responsável por sua provação, e suportando-a com paciência até que a nuvem tenha passado.

23. Paciente é aquele que aguarda o fim da provação e que recebe a glória da perseverança.

24. O homem paciente possui uma grande sabedoria[132]. Pois ele reporta à finalidade tudo o que lhe acontece, e suporta as aflições aguardando este final. Ora, segundo o Apóstolo[133], o fim é a vida eterna. E a vida eterna é que o conheçamos, ao único e verdadeiro Deus, e ao que foi por ele enviado, Jesus Cristo[134].

25. Não consinta perder o amor espiritual, pois nenhuma outra via de salvação foi deixada aos homens.

26. Não julgue como falso e mentiroso o irmão que ontem você considerava como espiritual e virtuoso, pela aversão que a calúnia do maligno hoje lhe inspira contra ele. Com paciente amor, pensando no bem de ontem, expulse de sua alma a aversão de hoje.

27. Não fale mal hoje de quem ontem você louvava a bondade e glorificava a virtude, considerando-o falso e mentiroso porque o amor em você se transformou em aversão. Não condene seu irmão para justificar a raiva maldosa que existe em você. Continue a louvá-lo, ainda que a tristeza o oprima, e você retornará facilmente ao amor salutar.

28. Misturando inconscientemente a condenação às palavras quando você conversa com outros irmãos, não altere os elogios que habitualmente são feitos ao seu irmão, por causa de algo que ele lhe tenha feito sofrer e que ainda permanece em você. Mas, em suas conversas, louve-o com toda pureza, ore sinceramente por ele com por si mesmo, e logo você estará livre da perigosa aversão.

29. Não diga: “Não tenho raiva de meu irmão”, se você rejeita sua lembrança. Escute o que disse Moisés: “Você não odiará seu irmão em pensamento. Você o repreenderá, e não cairá em estado de pecado por causa dele[135]”.
30. Se porventura um irmão, tentado, persiste em falar mal de você, não se deixe arrastar para fora do estado de amor quando o próprio demônio maligno o perturbar em pensamentos. Você não decairá do amor se, injuriado, você bendizer[136] e se, difamado, você for benevolente. Este é o caminho que permite amar a sabedoria, segundo Cristo. Quem não o segue não permanece nele.

31. Não considere como benevolentes as palavras que, em você, trazem a tristeza e suscitam a aversão por um irmão, mesmo que elas pareçam ser verdadeiras. Afaste-se delas como de serpentes mortais, a fim de evitar que os outros falem mal e libertar da malícia sua alma.

32. Não fira seu irmão com palavras em forma de enigmas a fim de que, recebendo dele a mesma coisa, você não afaste de ambos o estado de amor. Mas, com a liberdade do amor, vá até ele, repreenda-o, a fim de livrar a vocês dois da perturbação e da aflição, depois de suprimir as causas da tristeza.

33. Examine sua consciência com todo rigor, para saber se não é você o responsável pelo fato de que seu irmão não se reconciliou consigo. E não tente enganá-la, a ela que conhece seus segredos, que o acusa no  momento do êxodo, e na qual você tropeça durante a prece.

34. Não se lembre, enquanto você está em paz, daquilo que seu irmão lhe disse na hora da aflição, que ele o ultrajou ou que ele falou de você a outro e que você ficou sabendo depois. Não se lembre, para não cair na funesta aversão contra seu irmão, se deixando levar por pensamentos de ressentimento.

35. Uma alma racional que nutre aversão contra um homem não pode estar em paz com Deus, que nos deu os mandamentos. “Pois, disse ele, se você não perdoa as faltas aos homens, também o Pai celeste não perdoará as suas faltas[137]”. Se este homem não quer ficar em paz com você, ao menos não sinta raiva dele, orando sinceramente por ele e não falando mal dele a ninguém.

36. A paz profunda dos santos anjos é comandada por estas duas disposições: amar a Deus e amar uns aos outros. O mesmo acontece aos santos desde a origem dos séculos. É exatamente disto que foi dito: “Nestes dois mandamentos estão pendurados toda a Lei e os Profetas[138]”.

37. Não tenha complacência para consigo mesmo, nem aversão pelo seu irmão. Não ame a si mesmo, e você amará a Deus.

38. Se você decidiu viver entre irmãos espirituais, deixe suas vontades na porta. De outro modo você não poderá ficar em paz, nem com Deus, nem com os que vivem com você.

39. Aquele que conseguiu alcançar o amor perfeito e que regrou toda a sua vida sobre este amor, este diz “Senhor Jesus” no Espírito Santo[139]. [Caso contrário, é também o contrário que acontece.]

40. O amor a Deus gosta de dar asas ao intelecto para que este voe para Deus. O amor ao próximo predispõe a sempre desejar o bem para ele.

41.  Quem é ainda tomado de vanglória ou que está preso a qualquer coisa de material, se aflige pelos bens corporais e os prefere aos homens, ou sente rancor por eles, ou tem raiva deles, ou ainda fica sujeito a pensamentos infames. Estes sentimentos são totalmente estranhos à alma que ama a Deus.

42. Quando você não diz nem faz nada de infame em seu pensamento, quando você não guarda rancor contra quem o lesou ou falou mal de você, e quando no momento da oração você conserva seu intelecto longe de toda matéria e de toda forma, saiba que você atingiu a medida da impassibilidade e do amor perfeito.

43. Não é pequeno o combate para se livrar da vanglória. Libertamo-nos dela por um exercício oculto das virtudes e por uma prece constante. O sinal da libertação e não guardar mais rancor por quem falou ou fala mal.

44. Se você quiser ser justo, dê a cada parte sua aquilo que lhe cabe, quero dizer, à alma e ao corpo. À parte racional da alma, dê leituras, contemplações espirituais e oração. À parte ardente, dê o amor espiritual que se opõe à aversão. À parte concupiscente, dê a castidade e a temperança. Enfim, à carne, dê alimentos e vestes, apenas na medida do necessário[140].

45. O intelecto age conforme a natureza quando mantém submissas as paixões, contempla as razões dos seres e se dirige a Deus.

46. Assim como a saúde e a doença se veem no corpo das pessoas, como a luz e as trevas se veem nos olhos, também a virtude e o vício se veem na alma, e o conhecimento e a ignorância se veem no intelecto.

47. O cristão encontra seu amor pela sabedoria nestas três causas: nos mandamentos, nos dogmas e na fé. Os mandamentos desligam o intelecto das paixões. Os dogmas o levam ao conhecimento dos seres. A fé o conduz à contemplação da Santíssima Trindade.

48. Dentre os que combatem, uns não fazem mais do que afastar os pensamentos passionais, outros afastam as próprias paixões. Afastamos os pensamentos pela salmodia, a prece, a elevação ou qualquer outra atividade apropriada. Afastamos as paixões desprezando as coisas para as quais elas querem nos arrastar.

49. Existem coisas pelas quais nos apaixonamos. Apaixonamo-nos por mulheres, pelo dinheiro, pelos presentes, e outras coisas mais. Podemos esquecer as mulheres quando, depois da anacorese, cansamos o corpo adequadamente por meio da temperança. Esquecemos do dinheiro quando persuadimos o pensamento a se manter dentro daquilo que é apenas necessário. Esquecemos a glória quando amamos a obra oculta das virtudes, que só a Deus aparecem. O mesmo acontece com as outras coisas. Quem as esquece jamais sente aversão por ninguém.

50. Quem renunciou às coisas, às mulheres, ao dinheiro e a todo o resto, fez monge de seu homem exterior, mas ainda não tornou monge seu homem interior. Mas quem renunciou até aos pensamentos passionais sobre estas coisas fez monge seu homem interior, que é o intelecto. É fácil fazer monge ao homem exterior, desde que se queira. Mas não é pequeno o combate para se fazer monge ao homem interior.

51. Quem, nesta geração, libertou-se totalmente dos pensamentos passionais e foi considerado digno da prece sempre pura e imaterial, que é o signo do monge interior?

52. Numerosas paixões estão escondidas em nossas almas. Elas se revelam quando aparecem as coisas pelas quais nós tendemos.

53. Na ausência das coisas, podemos ser perturbados pelas paixões e atingir uma impassibilidade parcial. Mas se as coisas aparecem, logo as paixões arrastam o intelecto.

54. Não considere que você adquiriu a impassibilidade perfeita enquanto estiver ausente a coisa que apela sua paixão. Mas se ela aparecer, e nem ela, nem sua lembrança subsequente o distraírem, saiba que você atingiu as fronteiras da impassibilidade. Entretanto, evite toda e qualquer presunção. Pois se a impassibilidade durar, a virtude destruirá as paixões; mas se for negligenciada, ela as despertará.

55. Aquele que ama a Cristo imita-o de todas as maneiras, na medida em que lhe for possível. Assim, Cristo jamais deixou de fazer o bem a todos os homens. Diante da ingratidão e da blasfêmia, ele era paciente. Ferido, condenado à morte, ele a tudo suportou sem pensar mal de ninguém. Estas três atitudes são a obra de amor ao próximo; sem elas, quem diz que ama a Cristo, ou que encontrou seu Reino, se engana. Pois Cristo afirma: “Não é aquele que me diz: 'Senhor! Senhor!' que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai[141]”. E também: “Quem me ama, que siga meus mandamentos[142]”, e assim por diante.

56. Os mandamentos do Salvador não tem outro objetivo do que o de libertar o intelecto da desordem e do ódio, conduzi-lo ao amor de Deus e ao próximo, de onde nasce o esplendor do santo conhecimento de suas obras.

57. Se você recebeu de Deus um conhecimento parcial, não negligencie o amor e a temperança. Pois, purificando a parte passional da alma, o amor e a temperança a preparam para o caminho do conhecimento.
58. O caminho do conhecimento é a impassibilidade e a humildade; sem elas, ninguém verá o Senhor.

59. O conhecimento infla e o amor edifica[143]. Una o amor ao conhecimento e você não terá orgulho, tornando-se um construtor espiritual, edificando a si mesmo e edificando os que se aproximarem de você.

60. Uma vez que o amor não inveja, não se irite contra os invejosos, não exiba aquilo que invejam em você, não imagine já ter alcançado a meta[144] e confesse sem rubor ignorar o que não sabe. Assim o intelecto é separado do orgulho e preparado para progredir no conhecimento.

61. A presunção e a inveja, sobretudo no começo, seguem de certo modo naturalmente o conhecimento. A presunção o segue internamente. A inveja tanto interna quanto externamente; internamente, voltada para os que possuem o conhecimento; externamente, a partir dos que ignoram. Mas o amor reverte estas três coisas: reverte a presunção, por não inflá-la; reverte a inveja interior, porque ele não é invejoso; e reverte a inveja exterior, porque ele é paciente e bom[145]. Assim, é preciso àquele que tem o conhecimento agarrar-se igualmente ao amor, para proteger o intelecto de todo ferimento.

62. Quem recebeu o carisma do conhecimento mas sente azedume, ressentimento ou aversão contra alguém, se parece com alguém que feriu os olhos nos espinhos e cardos. Por isso, o conhecimento necessariamente precisa do amor.

63. Não passe todo o tempo ocupando-se da carne, mas ordene a ela uma ascese que corresponda às suas forças, e volte todo o seu intelecto para o interior. Pois, “o exercício do corpo é útil o seu tanto, mas a piedade é útil em tudo[146]”, e assim por diante.
64. Quem se consagra sem descanso às coisas interiores é casto, paciente, bom e humilde. E não apenas isto: ele também contempla, é teólogo, e reza. É o que diz o Apóstolo: “Caminhem pelo Espírito[147]”, etc.

65. Quem não sabe marchar sobre o caminho espiritual não toma conta dos pensamentos passionais, mas passa todo o tempo ocupando-se da carne. Ele se atira à gula, ao deboche, à tristeza, à cólera, ao ressentimento. Assim ele entenebrece a inteligência. Ou então, ele abusa da ascese e perturba a reflexão.

66. A Escritura não proíbe nada daquilo que Deus nos deu para nosso uso. Mas ela reprime o abuso e corrige a irracionalidade. Assim, ela não proíbe comer, nem fazer filhos, nem possuir bens e geri-los como se deve. Mas ela proíbe ser guloso, prostituir-se, etc.. Ela também não proíbe de pensar nestas coisas, pois elas foram feitas para isso; mas ela proíbe pensar nelas com paixão.

67. Dentre as ações que fazemos conforme a Deus, algumas fazemos para cumprir os mandamentos. Outras fazemos, não para obedecer a um  mandamento, mas, por assim dizer, como uma oferenda voluntária. As primeiras, que respondem por algum mandamento, são por exemplo: amar a Deus e a o próximo, não cometer adultério, não matar, etc. Se os transgredirmos, seremos condenados. As segundas, que não respondem por nenhum mandamento, são por exemplo: a virgindade, o celibato, a pobreza, a anacorese, etc. [Estas ações são como dons.] Se, por fraqueza, não conseguimos cumprir corretamente algum dos mandamentos de Cristo, graças a estes dons atrairemos sobre nós a compaixão de nosso bom Mestre.

68. Aquele que honra o celibato ou a virgindade deve necessariamente manter cingidos os rins e acesa a lâmpada[148]. Os rins, cingidos pela temperança; e a lâmpada, acesa pela oração, a contemplação e o amor espiritual.

69. Alguns irmãos pensam que em nada participam dos carismas do Espírito Santo. Por causa de sua negligência em praticar os mandamentos, eles não sabem que quem mantém inalterada a fé em Cristo reúne em si todos os carismas divinos. Uma vez que, pela inércia, estamos afastados do amor ativo que devíamos dedicar-lhe, este amor que nos descortina os tesouros de Deus escondidos em nós, é claro que vamos achar que não temos parte nos carismas divinos.

70. Se Cristo permanecer em nossos corações pela fé[149], segundo o Apóstolo divino, e se os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos nele[150], então todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos em nossos corações. Mas eles só se revelam ao amor na medida da purificação de cada qual, purificação esta suscitada pelos mandamentos.

71. Este é o tesouro escondido no campo[151] do seu coração, e que você ainda não encontrou devido à sua preguiça. Pois, se você o tivesse encontrado, você teria vendido tudo o que possui para comprar este campo. Mas atualmente você abandonou o campo e procura ao redor dele, onde você não encontra mais do que espinhas e cardos.

72. É por isso que o Salvador disse: “Benditos os corações puros, pois eles verão a Deus[152]”. Eles o verão, e verão os tesouros que estão nele quando, pelo amor e a temperança, forem purificados. E tanto mais o verão quanto mais purificados estiverem previamente.

73. É por isso que foi dito: “Vendam tudo o que têm, deem-no em esmola e então para vocês tudo será puro.[153]” Quem o fizer cessará de se ocupar das coisas do corpo, dedicar-se-á a purificá-lo da aversão e da desordem do intelecto, que o Senhor chama de coração. Pois são essas coisas que, manchando o intelecto, não permitem ver a Cristo residindo nele pela graça do santo batismo.

74. A Escritura chama as virtudes de “caminhos”. Ora, o amor é a maior de todas as virtudes. É por isso que o Apóstolo dizia: “Eu lhes mostro agora o caminho por excelência[154]”, um caminho que os separa das coisas materiais e os protege de preferir o temporal ao eterno.

75. O amor a Deus se opõe à concupiscência, pois ele leva a alma a se abster dos prazeres. E o amor ao próximo se opõe ao ardor, pois ele a faz desprezar a glória e o dinheiro. Estes são os dois dinares que o Salvador deu ao hoteleiro[155] para que ele cuide de você. Mas não seja ingrato, associando-se aos ladrões, pois do contrário você será de novo agredido e será deixado, já não meio-morto, mas verdadeiramente morto por inteiro.

76. Purifique seu intelecto da cólera, do ressentimento e dos pensamentos infames, e então você poderá encontrar em si mesmo a presença de Cristo.

77. Quem o iluminou com esta luz que o faz crer na Santíssima Trindade consubstancial e adorada? Ou quem lhe permitiu conhecer a economia da encarnação do Uno e da Santa Trindade? Quem lhe ensinou as razões dos incorporais, ou da gênese e do fim do mundo visível, ou da ressurreição dos mortos e da vida eterna, ou da glória do Reino dos céus e do terrível Juízo? Não foi a graça de Cristo que permanece em você, esta graça que é a garantia do Espírito Santo? O que existe de maior do que esta graça? O que existe de melhor do que esta sabedoria e este conhecimento? O que existe de mais alto do que estas promessas? Mas, se somos inertes e negligentes, se não nos purificamos das paixões que nos mancham e cegam nosso intelecto, para nos tornarmos capazes de ver, mais claro do que o sol, as razões destas coisas, ao menos não as atribuamos a nós mesmos, não neguemos a presença da graça em nós.

78. Deus, que lhe prometeu os bens eternos[156] e que deu a seu coração a garantia do Espírito[157], ordenou a você velar sobre sua vida, a fim de que o homem interior, liberto das paixões, comece desde já a usufruir dos bens que virão.

79. Se você foi considerado digno das mais altas contemplações divinas, aplique-se de todo coração ao amor e à temperança, a fim de que, guardando sem perturbação aquilo que em você está submetido às paixões, você não seja privado da luz de sua alma.

80. Refreie o ardor de sua alma por meio do amor. Submeta seu desejo por meio da temperança. Dê asas à sua razão por meio da prece. Assim, a luz de seu intelecto não se extinguirá jamais.

81. Estes são os comportamentos que destroem o amor: o desprezo, a injustiça, a calúnia relativa à fé e à conduta, os golpes, os ferimentos, etc., quer estes comportamentos visem a pessoa em causa, quer um de seu próximos ou amigos. Aquele que destrói o amor com estes comportamentos, não conhece o objetivo dos mandamentos de Cristo.

82. Aplique-se o quanto puder em amar a todos os homens. Se você ainda consegue, ao menos não odeie a ninguém. Mas você também não conseguirá fazer isto se não desprezar as coisas do mundo.

83. Alguém blasfemou? Não o despreze, mas deteste a blasfêmia e o demônio que o levou a blasfemar. Mas se você detesta aquele que blasfemou, você odeia a um homem e assim você transgrediu um mandamento. Aquilo que este homem fez por palavras, você o faz em ação. Mas se você conservar o mandamento, você dará prova de amor. Ajude este homem o mais que puder, a fim de livrá-lo do mal.

84. Cristo não quer que você sinta contra um homem a menor aversão, o menor azedume, a menor cólera ou o menor ressentimento por qualquer coisa temporal, qualquer que seja. É isto o que proclamam os Evangelhos todo o tempo.

85. Muitos falam, poucos fazem. Mas ninguém deve alterar a palavra de Deus por sua própria negligência. Devemos confessar nossa fraqueza e não escondermos a verdade de Deus, a fim de não sermos acusados, ou de transgressão dos mandamentos, ou de má interpretação da palavra de Deus.

86. O amor e a temperança libertam a alma das paixões. A leitura e a contemplação separam o intelecto da ignorância, e o estado de prece o conduz diante do próprio Deus.

87. Quando os demônios nos veem desprezar as coisas do mundo para não odiarmos os homens por causa delas e assim decairmos do amor, então eles suscitam calúnias contra nós a fim de que, não suportando a tristeza, odiemos os caluniadores.

88. Não há pena maior para a alma do que a calúnia, quer sejamos caluniados na fé, quer na conduta. Ninguém consegue se livrar dela, senão aquele que, como Suzana[158], olha para Deus, o único que nos pode livrar, como a ela, das infelicidades, mostrar aos homens toda a verdade, como fez por ela, e consolar a alma por meio de esperança.

89. Quanto mais você rezar com toda a sua alma por aquele que o caluniou, mais Deus mostrará a verdade aos que haviam se escandalizado.

90. Somente Deus é bom por natureza[159]. E somente aquele que imita a Deus é bom por resolução. Pois seu objetivo é unir aos maus Àquele que é bom por natureza, para que eles se tornem bons. É por isso que, ultrajado por eles, ele os abençoou; perseguido, ele suportou; difamado, ele intercedeu[160]; levado à morte, ele ainda orou por eles. Ele fez tudo para não decair do objetivo do amor, que é nosso próprio Deus[161].

91. Os mandamentos do Senhor nos ensinam a usar racionalmente as coisas que estão em nosso meio. O uso racional dessas coisas purifica o estado da alma. E o estado de pureza gera a impassibilidade, da qual nasce o amor perfeito.

92. Aquele que, submetido a uma tentação, não é capaz de fechar os olhos para falta real ou aparente de seu amigo, ainda não possui a impassibilidade. Pois as paixões enterradas na alma, profundamente perturbadas, cegam a reflexão e não permitem ver a luz da verdade, e discernir o melhor do pior, Este homem ainda não adquiriu o amor perfeito, o amor que extingue o temor do Juízo[162].

93. Nada vale mais do que um amigo fiel[163]. Pois ele considera que as agruras de seu amigo são suas, e suporta com ele sofrendo-as até a morte.

94. Muitos são os amigos no tempo da prosperidade[164]; mas quando chegam as provações, dificilmente encontramos um sequer.

95. É preciso amar a todos os homens com toda a alma, colocar apenas em Deus a esperança e honrá-lo com toda a força. Pois enquanto ele nos protege, os amigos nos cercam e os inimigos nada podem contra nós. Mas se ele nos abandona, os amigos se afastam de nós e os inimigos se atiram sobre nós.

96. Existem quatro formas principais de abandono. O que deriva da economia divina – foi o que aconteceu ao Senhor – a fim de que, pelo abandono aparente, os que foram abandonados sejam salvos. Aquele que conduz a uma prova – que aconteceu a Jó e a José – a fim de revelar em um uma coluna de coragem e no outro uma coluna de castidade. O que se refere à educação paterna – que aconteceu ao Apóstolo – a fim de que, humilhando-se, ele guardasse a superabundância da graça. Enfim, aquele pelo qual Deus se retira – o que aconteceu com os judeus – a fim de que, castigados, eles se inclinassem para o arrependimento. Todas estas formas de abandono são salutares e cheias de bondade de Deus e de seu amor pelo homem.

97. Os que observam rigorosamente os mandamentos e são realmente iniciados nos julgamentos divinos, não abandonam seus amigos quando Deus permite que eles sejam testados. Mas os que desprezam os mandamentos e não são iniciados nos julgamentos divinos, regozijam-se com seus amigos quando eles prosperam, mas o abandonam quando ele é testado e sofre, e muitas vezes se acertam com seus adversários.

98. Os amigos de Cristo amam verdadeiramente a todos os seres, mas não são amados por todos. Os amigos do mundo também não são amados por todos. Os amigos de Cristo perseveram até o fim em seu amor. Mas os amigos do mundo perseveram até que o mundo os leve a se voltarem uns contra os outros.

99. Um amigo fiel é uma sólida proteção[165]. Para o amigo que prospera ele é um bom conselheiro e uma ajuda fraternal. Para o amigo que sofre, ele é no mais alto grau uma verdadeira providência e um defensor compassivo.
100. Muitos falaram abundantemente do amor. Mas se você procurar o próprio amor, você só o encontrará nos discípulos de Cristo. Pois somente eles têm como mestre do amor o Amor verdadeiro, este amor do qual se disse: “Ainda que eu tenha o dom da profecia, ainda que eu conheça todos os mistérios e toda a ciência, se eu não possuir o amor, de nada me valerão essas coisas[166]”. Assim, aquele que possui o amor possui a Deus mesmo, pois “Deus é amor[167]”.


A ele a glória e o poder por todos os séculos. Amém.



[1] Nas quatro primeiras Centúrias a palavra ágape se refere ao sentido original do termo e está traduzida como “amor”.
[2] Isaías 6:5
[3] João 14: 15.23.
[4] João 15: 12.
[5] Cf. Romanos 13: 4
[6] Cf. Romanos 1: 25.
[7] Cf. Tito 2: 12.
[8] Cf. Mateus 5: 45.
[9] Cf. Jeremias 17: 16.
[10] Cf. Atos 7: 60.
[11] Cf. Lucas 23: 24.
[12] Cf. I Coríntios 14: 4.
[13] Cf. I João 4: 8.
[14] Cf. Jeremias 7: 4.
[15] Cf. Tiago 2: 19.
[16] Cf. II Coríntios 7: 8-11.
[17] Cf. Gênesis 18: 27.
[18] Cf. II Timóteo 3: 11.
[19] Cf. II Coríntios 1: 7.
[20] Cf. Mateus 5: 23-24.
[21] Cf. I Coríntios 13:3.
[22] Cf. Romanos 13: 10.
[23] Cf. Romanos 13: 10.
[24] Cf. Tiago 4: 11.
[25] Cf. Deuteronômio 6: 15.
[26] Mateus 5: 44.
[27] Cf. I Timóteo 2: 4.
[28] Mateus 5: 39-41.
[29] Lucas 21: 19.
[30] Cf. I Coríntios 13: 5.
[31] Cf. Romanos 5: 8.
[32] Romanos 8: 35-39.
[33] Romanos 9: 1-4.
[34] Cf. Êxodo 32: 32.
[35] Salmo 24 (25): 18.
[36] Mateus 11: 29.
[37] Cf. I João 4: 18.
[38] Provérbios 15: 27.
[39] Salmo 110 (111): 10.
[40] Salmo 33 (34): 10.
[41] Colossenses 3: 5.
[42] Malaquias 3: 20.
[43] Cf. Romanos 1: 20 e I Coríntios 13: 12.
[44] Gregório de Nazianze, Discurso XXXVIII, 7; XLV, 3.
[45] Denis o Areopagita, Teologia Mística I, 3.
[46] Salmo 33 (34): 15.
[47] Cf. Gênesis 2: 15.
[48] Cf. Mateus 4: 1-10.
[49] Cf. Mateus 16: 1, etc.
[50] Salmo 36 (37): 15.
[51] Salmo 16 (17): 11.
[52] Salmo 31 (32): 7.
[53] Cf. Isaías 41: 11.
[54] Salmo 6: 11.
[55] Salmo 9: 4.
[56] Os “julgamentos de Deus” são as provas e os castigos por meio dos quais Deus corrige os homens durante suas vidas terrestres, antes do Juízo final.
[57] Salmo 16 (17): 4.
[58] João 10: 30.
[59] João 14: 11.
[60]    Heresia que surgiu entre os cristãos e que pregava existirem três Pessoas em Deus, considerando por conseguinte três essências, três substâncias, três deuses.
[61] Gregório de Nazianze, Discurso XIII, 4; XXV, 17; XXVIII, 1; XXXI, 14; XXXIX, 12.
[62] Cf. Gálatas 3: 28; Colossenses 3: 11.
[63] Cf. Tiago 1: 15.
[64] Mateus 25: 15.
[65] Flavius Josefus, Guerras dos Judeus VI, IV, 3-5; VII, I, 3.
[66] Cf. Lucas 6: 31.
[67] Tiago 4: 3.
[68] Salmo 61 (62), 13.
[69] João 15: 15.
[70] I Coríntios 11: 31-32.
[71] Cf. Romanos 12: 17.
[72] Cf. Mateus 5: 44.
[73] Cf. Mateus 6: 21.
[74] I João 2: 15-16.
[75] Gênesis 46: 34.
[76] Gênesis 46: 34.
[77] Cf. I Tessalonicenses 2: 9; Efésios 4: 28.
[78] Cf. Gálatas 5: 22.
[79] Cf. Romanos 13: 14.
[80] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
[81] Cf. Salmo 138 (139): 22.
[82] Cf. I Coríntios 15: 49.
[83] Cf. Mateus 7: 14.
[84] João 10: 7-9 e 14: 6.
[85] Cf. Mateus 7: 14.
[86] Cf. Êxodo 20: 13 e ss.
[87] Cf. Levítico 12: 3.
[88] Cf. Êxodo 31: 13.
[89] Cf. Êxodo 12: 8 e 23: 15.
[90] Cf. Hebreus 10: 34.
[91] Cf. Mateus 19: 22.
[92] Lucas 14: 33.
[93] Lucas 21: 19.
[94] Cf. I Coríntios 15: 56.
[95] Cf. Gênesis, 3.
[96] João 11: 25.
[97] Cf. Salmo 22 (23): 2.
[98] Salmo 22 (23): 4.
[99] Salmo 22 (23): 4.
[100] Salmo 22 (23): 5.
[101] Cf. Filipenses 3: 12.
[102] Denis o Areopagita, Nomes Divinos IV, 23.
[103] Efésios 5: 29.
[104] Cf. I Coríntios 9: 7.
[105] Cf. I Timóteo 6: 8.
[106] Cf. I João 3: 22.
[107] Cf. Romanos 8: 8.
[108] Cf. Gálatas 5: 24.
[109] Cf. Romanos 13: 14.
[110] Salmo 91 (92): 9.
[111] Cf. Atos 17: 25.
[112] Cf. Salmo 103 (104): 31.
[113] Cf. Mateus 5: 3-12.
[114] Salmo 91 (92): 12.
[115] Mateus 7: 11.
[116] Lucas 6: 37.
[117] I Coríntios 4: 5.
[118] Romanos 2: 1.
[119] Salmo 4: 3.
[120] Cf. Salmo 81 (82): 5.
[121] Cf. Gálatas 2: 2.
[122] Cf. I Samuel 15: 10-11.
[123] Cf. I Coríntios 13: 12 e II Coríntios 5: 7.
[124] Cf. Provérbios 12: 28.
[125] Romanos 12: 15.
[126] Cf. I Coríntios 13: 13.
[127] Salmo 144 (145): 1.
[128] Cf. Isaías 40: 28.
[129] Cf. João 11: 52.
[130] Cf. I Coríntios 13: 4.
[131] Cf. Mateus 5: 24.
[132] Cf. Provérbios 14: 29.
[133] Cf. Romanos 6: 22.
[134] Cf. João 17: 3.
[135] Levítico 19: 17.
[136] Cf. I Coríntios 4: 12.
[137] Mateus 6: 14-15.
[138] Mateus 22: 40.
[139] Cf. I Coríntios 12: 3.
[140] Cf. I Timóteo 6: 8.
[141] Mateus 7: 21.
[142] João 14: 15-23.
[143] Cf. I Coríntios 8: 1.
[144] Cf. Filipenses 3: 13.
[145] Cf. I Coríntios 13: 4.
[146] I Timóteo 4: 8.
[147] Gálatas 5: 16.
[148] Cf. Lucas 12: 32.
[149] Cf. Efésios 3: 17.
[150] Cf. Colossenses 2: 3.
[151] Cf. Mateus 13: 44.
[152] Mateus 5: 8.
[153] Lucas 11: 41 e 12: 33.
[154] I Coríntios 12: 31.
[155] Cf. Lucas 10: 35.
[156] Cf. Tito 1: 2.
[157] Cf. II Coríntios 1: 22.
[158] Cf. Daniel 13.
[159] Cf. Mateus 19: 17.
[160] Cf. I Coríntios 4: 12-13.
[161] Cf. I João 4: 8.
[162] Cf. I João 4: 18.
[163] Eclesiastes 6: 15.
[164] Cf. Provérbios 18: 4.
[165] Cf. Eclesiastes 6: 14.
[166] Cf. I Coríntios 13: 2.
[167] I João 4: 8.

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