DE NOSSO PAI ENTRE OS SANTOS MÁXIMO O CONFESSOR
CENTÚRIAS SOBRE O AMOR[1]
Máximo o Confessor
Nosso santo Padre Máximo o Confessor, viveu sob o
reinado de Constantino Pogonates, ao redor do ano 670. Ele foi o primeiro
contendor da heresia dos monotelitas. Inicialmente elevado à corte imperial e
honrado com a dignidade de primeiro secretário, ele logo deixou seus encargos
deste mundo e partiu para os combates da ascese. Tendo se aproximado da fonte
da sabedoria, continuamente irrigada pelas águas límpidas das divinas
Escrituras, ele deixou escoar de si rios de ensinamentos e escritos que se
espalharam até os confins da terra. Também nós, com os presentes capítulos,
repassamos neste livro a água doce que ressuscita os mortos e a oferecemos aos
que se acham tomados da bela sede da sabedoria, a fim de que bebam em
abundância e não estejam mais sedentos. Pois o conhecimento e o trabalho do
santo amor deificante são aqui tratados com toda a sabedoria. A glória
infalível da mais alta teologia é aqui confirmada e o mistério da economia do
Verbo é explicado piedosamente. A contemplação ativa das virtudes divinas é
revelada na luz da ciência. A liga abominável dos vícios e das paixões
contrárias encontra-se aqui estigmatizada. Em uma palavra, nestes textos brilha
o ordenamento dos comportamentos e encontram-se conservados como tesouros um
grande número de temas auxiliares por meio dos quais, libertados de toda
malícia e chegados ao estado da virtude, podemos nos tornar cidadãos dos céus e
descobrir a glória divina. E ainda acrescentamos aos capítulos o comentário de
são Máximo ao “Pai Nosso”, que é de longe o mais eminente e promete ser de
grande valia para quem o ler.
Photius diz de Máximo: “Sua frase é tensa como uma
corda, seus períodos ultrapassam prazerosamente as medidas, seus pensamentos se
revestem de esplendor, e ele não tenta empregar as palavras em seu sentido
próprio... No entanto, se ele chega a alguém cuja inteligência se compraz em
desenvolver as elevações e as contemplações, nada há de mais trabalhado e mais
estudados do que elas.”
*
A
vida de são Máximo o Confessor (580-662) aparenta-se, num certo sentido, à de
são Paulo. Aquilo que são Paulo significou para os apóstolos, são Máximo foi para
os monges. Ele poderia ter sido o contrário de um monge: nascido de uma família
nobre de Constantinopla, muito instruído, ele foi de início um dos mais altos
funcionários do Império Bizantino e sem dúvida o próprio secretário do
imperador Heráclito. Mas, com pouco mais de trinta anos, em 614, ele ingressou
no mosteiro, primeiro em Crisópolis, na outra margem do Bósforo, depois em
Císico. Depois de 626, a invasão persa e a conquista árabe fizeram dele um
errante. Na África ele passou algum tempo tranquilo. Mas o errante havia
demasiado estudado os Padres e a Escritura, ele cultivava profundas amizades
ortodoxas, em particular com Sofrônio, o patriarca de Jerusalém, e conservava
de sua frequentação com o poder um agudo senso de responsabilidade de homem engajado
na história. Mais do que qualquer um, ele não poderia permanecer indiferente à
sorte da cristandade. Ele acabou por se opor radicalmente ao compromisso
doutrinal buscado pelo poder instalado em Constantinopla para impedir as
comunidades do Oriente adeptas do monofisismo de tender para o Islam.
Ao
defender o dogma da Calcedônia (duas naturezas, portanto duas energias e duas
vontades em Cristo em uma só pessoa plenamente divina e plenamente humana),
Máximo confirmava em nome de Cristo o direito do homem à liberdade de Deus.
Mas, como Cristo e como Paulo, ele se deixou envolver na armadilha de um
processo político. Levado à força para Constantinopla em 653, diversas vezes
condenado, diversas vezes exilado, intratável, ele morreu em seu último exílio,
no Cáucaso, com a idade de 82 anos, tendo a língua e a mão direita cortadas.
Mas, assim como Cristo e Paulo não transigiram com os mandamentos e os
impedimentos da lei judaica, também Máximo não se compôs, nem para contê-los,
com as consequências e os transbordamentos do monofisismo. Entre o Oriente e o
Ocidente ele manteve a estrita verdade do Evangelho. Seu testemunho não deixa
de ser atual.
Pela
amplitude dos escritos atribuídos ao seu nome na antologia, como pela sua
conduta de vida, a intransigência de seu engajamento e seu gênio de
recapitulação e de síntese, são Máximo o Confessor é certamente o testemunho
que melhor concorda com a intenção profunda dos editores da Filocalia grega:
transmitir ao mundo e confiar à história a silenciosa profecia dos monges e seu
amor pela beleza divina. Os trechos escolhidos (quatro centúrias sobre a
caridade, sete centúrias sobre a teologia e um comentário à oração dominical)
são antes de tudo filocálicos. Em nenhum momento eles colocam em causa outra
coisa do que a nossa relação fundamental com o mistério e a revelação do Deus
vivo.
As
quatro centúrias sobre a caridade são sem dúvida uma das primeiras obras de
Máximo, compostas na calma do mosteiro de Císico antes de 626. Máximo condensou
aí aquilo que sete séculos de vida cristã atestaram de mais central: a
preeminência absoluta do amor. A colocação é clara e límpida, como um cristal.
Reflexões e sentenças balizam as vias morais que permitem alcançar o amor
divino que “ama a todos os homens por igual”. Mas elas também denunciam os
impasses nos quais toda vida perde seu sentido e seu objetivo. A concisão do
pensamento, o rigor das fórmulas, a precisão do traço, a pertinência dos
conselhos, fazem desta coletânea como que uma épura do Evangelho. A criação é
boa. Nada é naturalmente mau. O mal está sempre no mau uso da criação;
“Renunciar aos pensamentos passionais, conclui Máximo, torna monge o homem
interior”.
As
sete centúrias sobre a teologia são a reunião de duas obras diferentes. A
primeira (compreendendo as duas primeiras centúrias, sobre a teologia e a
encarnação do Filho de Deus) é uma obra de Máximo escrita sem dúvida no início
de seu exílio africano, entre 630 e 634. As outras (os capítulos diversos da
terceira à sétima centúrias, sobre a teologia, a economia, a virtude e o vício)
são uma compilação, geralmente datada do século XI, na qual se sucedem extratos
de obras do próprio são Máximo (as Cartas,
as Questões a Thalassius, as Ambígua), comentários do compilador e
algumas passagens de textos de Denis o Areopagita. Com toda evidência, esta
compilação convém perfeitamente às afinidades da antologia filocálica devido
aos textos que atestam e confortam a teologia vivida. “Não conhecer o Verbo na
carne, diz Máximo, senão para progredir para a glória”. A energia divina que
criou o mundo trabalha e se cumpre em nós no sexto, no sétimo e no oitavo dia.
O homem coroa a criação no sexto dia porque lhe é dado passar deste ao sétimo,
da criação à hesíquia, e do sétimo ao oitavo, da hesíquia à deificação. Assim
tudo é dado. Mas tudo deve ser recebido, assumido, cumprido. Máximo afirma:
“Cada qual é o intendente de sua própria graça”.
A
interpretação do “Pai Nosso” foi sem dúvida escrita também por volta de 630.
Trata-se de um obra forte e densa – a um tempo meditação e exortação – que faz
passar e brilhar ao redor das palavras da oração dominical o sopro da vida e a
luz do conhecimento: uma humilde e magistral lição de teologia.
Para
Máximo, como para toda a tradição filocálica, o dever maior do cristão é a
ascese do intelecto, o qual deve suplantar os sentidos, não para empurrar
adiante o conhecimento do mundo, como fazemos hoje, mas para conhecer a Deus no
começo e no fim do mundo, uma vez que a vida espiritual não tem outro objetivo
do que fazer passar os sentido ao intelecto e este ao coração, para então
oferecer o coração a Deus. Assim o corpo do homem é a alma viva que faz
retornar a Deus toda a criação. Integrando de uma só vez Orígenes, Evagro,
Denis e os Capadócios, na mesma hora em que se mostra humanamente impossível estabelecer
sobre o mundo um império cristão unificado, Máximo assume esta tradição dos
monges, sua experiência e seu vocabulário, mas a expõe aos ventos da história
como à incandescência do Juízo final. O testemunho cristão é assim, mais uma
vez, como que fundido no cadinho do Evangelho e da atualidade. O monaquismo é
também um anúncio humano da boa nova. A contemplação não exclui o testemunho
histórico: para Máximo, ela o exige. Nele o homem do mundo encontrou suas
raízes no monge, e o monge encontrou suas raízes no confessor da fé e no
mártir: a própria estatura e o exemplo do testemunho fiel e verdadeiro.
PRÓLOGO
A Elpídio, Padre.
Além
do tratado sobre a vida ascética. Eis aqui igualmente a obra sobre o amor que
eu envio à sua beatitude, Padre Elpídio, em quatro centúrias de capítulos,
assim como há quatro evangelhos. Talvez nada aí seja digno de sua atenção; ao
menos, nada aí está abaixo daquilo que nos foi possível fazer. Porém, que sua
santidade o saiba: estes não são frutos de minha reflexão. Eu percorri os
escritos dos santos Padres, escolhi aquilo que concentra o intelecto sobre o
tema do amor, e resumi em frases curtas o essencial de longos discursos, a fim
de que eles possam ser abarcados de um só relance por serem fáceis de
memorizar. Envio, portanto, estas centúrias à sua santidade, pedindo-lhe que as
leia com benevolência, não buscando nelas senão aquilo que pode ser útil, não
vendo o quanto eu me exprimo mal, e que ore por minha mediocridade tão
desprovida de utilidade espiritual.
Eu
lhe peço ainda que não pense que eu escrevi essas coisas para importuná-lo.
Pois eu fiz o que me foi ordenado. Digo isto porque hoje em dia são muitos os
que importunam os outros com discursos, mas que são poucos os que instruem ou
que se deixam instruir pelas obras. É melhor, assim, nos darmos ao trabalho de
nos aplicar a cada uma dos capítulos; pois nem todos esses capítulos são fáceis
de serem captados por todos. A maior parte precisa ser longamente examinada,
mesmo se sua expressão parecer muito simples. Talvez um deles se mostre útil à
alma. Mas, pela graça de Deus, ele não se mostrará jamais senão àquele que o
ler sem nenhuma curiosidade, com temor e amor a Deus. Quanto aos que lerem esta
obra ou qualquer outra, não para seu benefício espiritual, mas para buscar
palavras com o objetivo de acusar o autor ou de se fazer passar por ele, por
presunção, por mais sábio que seja, a este nada de útil surgirá em parte alguma.
PRIMEIRA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR
1. O amor é uma disposição boa da alma, segundo a qual nada do que existe lhe é preferível ao conhecimento de Deus. E é impossível a alguém apaixonado pelas coisas terrestres alcançar este amor.
2.
O amor nasce da impassibilidade; a impassibilidade, da esperança em Deus; a
esperança, da paciência e da longanimidade; estas, da temperança em tudo; a
temperança, do temor a Deus; e o temor, da fé em Deus.
3.
Quem crê no Senhor teme o castigo. Quem teme o castigo se protege das paixões.
Quem se protege das paixões suporta as aflições. Quem suporta as aflições terá
a esperança de Deus. A esperança em Deus separa o intelecto de todo pendor
terrestre. E aquele cujo intelecto estiver assim separado terá o amor de Deus.
4.
Quem ama a Deus prefere seu conhecimento a tudo o que ele criou, e persevera
nele sem cessar, com todo o seu desejo.
5.
Se todos os seres foram criados por Deus e para Deus e se Deus é maior do que
tudo o que ele criou, quem abandona a Deus e se liga ao que é menor mostra que,
a Deus, prefere suas criaturas.
6.
Quem tem seu intelecto fixado no amor a Deus despreza todo o visível, incluindo
seu próprio corpo, como se este lhe fosse estranho.
7.
Se a alma é mais alta do que o corpo, e se Deus que criou o mundo é
incomparavelmente mais alto do que ele, quem prefere o corpo à alma e a Deus o
mundo que ele criou em nada difere dos idólatras.
8.
Quem afastou o seu intelecto do amor e da assiduidade que devemos a Deus para
ligá-lo a qualquer coisa de sensível, prefere o corpo à alma e aos Deus Criador
suas criaturas.
9.
Se a vida do intelecto está na iluminação do conhecimento, e se esta iluminação
nasce do amor a Deus, é certo dizer que nada é maior do que o amor divino.
10.
Quando, pelo desejo ardente do amor, o intelecto emigra para Deus, ele deixa de
sentir os seres. Inteiramente iluminado pela luz infinita de Deus, ele se torna
insensível a tudo o que Deus criou, assim como o olho já não vê as estrelas
quando o sol se levanta.
11.
Todas as virtudes auxiliam o intelecto a alcançar o desejo ardente de Deus, mas
acima de todas está a prece pura. Por esta prece, elevando-se a Deus como sobre
asas, o intelecto se separa de todos os seres.
12.
Quando o intelecto é arrebatado para o amor pelo conhecimento de Deus e,
separado dos seres, sente a infinitude divina, então, tocado pelo temor como o
divino Isaías, ele toma consciência de sua própria baixeza e é levado a
pronunciar as palavras do profeta: “Infeliz de mim! Estou perdido; pois sou um
homem de lábios impuros. Estou no meio de um povo de lábios impuros. E vi com
meus olhos o Rei, Senhor dos Exércitos”[2].
13.
Quem ama a Deus não pode deixar de amar aos homens como a si mesmo, mesmo que
tenha que suportar as paixões daqueles que ainda não foram purificados. E
quando estes se corrigem, ele se regozija com uma alegria transbordante e
indizível.
14.
Impura é a alma [passional] cheia de maus pensamentos, de concupiscência e de
ódio.
15.
Quem percebe em seu coração um traço de ódio contra um homem, qualquer que
seja, é inteiramente estranho ao amor a Deus. Pois o amor a Deus não suporta o
ódio ao homem.
16.
“Quem me ama, diz o Senhor, observará meus mandamentos[3].
Ora, este é o meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros[4]”.
Assim, quem não ama seu próximo não segue o mandamento. E quem não observa o
mandamento não é capaz de amar o Senhor.
17.
Feliz o homem capaz de amar a todos os homens igualmente.
18.
Feliz o homem que não se liga a nada do que é corruptível ou passageiro.
19.
Feliz o intelecto que ultrapassou todos os seres e não cessa de extrair suas
delícias da beleza de Deus.
20.
Quem cuida da carne para satisfazer sua concupiscência[5],
e que, pelas coisas que passam, para ela quer o seu próximo, adora a criatura
em lugar do Criador[6].
21.
Quem guarda seu corpo fora dos prazeres e das doenças faz dele um companheiro a
serviço do que está mais alto.
22.
Quem foge de todas as concupiscências mundanas[7]
coloca a si mesmo acima de toda a matéria [de toda a tristeza] do mundo.
23.
Quem ama a Deus ama também totalmente a seu próximo. Este homem não guardará
para si o que possui, mas o dispensa como Deus, dando a cada um aquilo de que
ele necessita.
24.
Quem dá esmola imitando a Deus ignora a diferença entre o malandro e o bom, o
justo e o injusto[8], uma
vez que ambos sofrem em seus corpos. Ele dá a todos igualmente, conforme as
suas necessidades, mesmo que prefira, em sua boa vontade, o homem virtuoso ao
homem depravado.
25.
Assim como Deus, que é por natureza bom e impassível, ama todos os seres e todas
as suas obras igualmente, mas glorifica o homem virtuoso porque este está unido
a ele pelo conhecimento [pela vontade], e, em sua bondade, tem piedade do homem
depravado e o traz de volta instruindo-o no século, também aquele que, por seu
próprio movimento, é bom e impassível, ama a todos os homens igualmente. Ele
ama o homem virtuoso por sua natureza e sua boa vontade. E ama o homem
depravado por sua natureza e pela compaixão, sentindo piedade por ele como por
um louco que caminha nas trevas.
26.
Não apenas dividir o que se possui revela a arte de amar, mas, mais ainda,
transmitir a palavra e servir aos outros em seus corpos.
27.
Aquele que realmente renunciou às coisas do mundo e que serve a seu próximo por
amor, sem nenhuma hipocrisia, rapidamente se liberta de todas as paixões e
começa a ter parte no amor e no conhecimento de Deus.
28.
Quem possui em si mesmo o amor divino não tem nenhuma dificuldade em seguir ao
Senhor seu Deus, como disse o divino Jeremias[9],
mas suporta nobremente todo sofrimento, toda injúria, toda violência, sem
querer nenhum mal a pessoa alguma.
29.
Quando você for ultrajado por alguém ou for desprezado em qualquer coisa,
proteja-se dos pensamentos de cólera, para que não aconteça deles o separarem
do amor pela tristeza e o levem para o país da cólera.
30.
Quando você for ultrajado ou desonrado, saiba que isto é de grande auxílio,
pois a desonra afasta de você a vanglória.
31.
Assim como a lembrança do fogo não aquece o corpo, a fé sem amor não opera na
alma a iluminação do conhecimento.
32.
Assim como a luz do sol atrai o olho saudável, também o conhecimento de Deus
atrai para si, naturalmente, pelo amor, o intelecto puro.
33.
O intelecto é puro quando está separado da ignorância e iluminado pela luz de
Deus.
34.
A alma é pura quando se liberta das paixões e não cessa de se regozijar no amor
a Deus.
35.
A paixão vergonhosa é um movimento da alma contra a natureza.
36.
A impassibilidade é um estado apaziguado da alma, no qual é difícil a esta
voltar-se para o mal.
37.
Aquele que colheu os frutos do amor com seus esforços não os deixa mais, ainda
que sofra mil males. Veja o caso de Etiene[10],
o discípulo de Cristo, com seus companheiros, e do próprio Cristo, rezando por
seus assassinos e pedindo a Deus que os perdoasse porque “não sabiam o que
faziam[11]”.
38.
Ter paciência e fazer o bem[12]
são sinais do amor, e quem se irrita e faz o mal mostra assim ser estranho ao
amor. E quem é estranho ao amor é estranho a Deus, pois Deus é amor[13].
39.
Não diga que você é o templo do Senhor, disse o divino Jeremias[14].
Não diga: “A simples fé em nosso Senhor Jesus Cristo pode me salvar”. Pois isto
é impossível se, com suas obras, você não acrescentar à fé o amor. Crer simplesmente,
os demônios também creem e tremem[15].
40.
A obra do amor é o bem feito de bom coração ao próximo, a longanimidade, a
paciência, o uso das coisas segundo a razão correta.
41.
Quem ama a Deus não aflige ninguém e não se aflige contra ninguém por causa das
coisas que acontecem. Ele não inspira nem conhece senão uma tristeza, a
tristeza salutar que o bem-aventurado Paulo conheceu e que ele inspirou aos
Coríntios[16].
42.
Quem ama a Deus leva sobre a terra uma vida angélica, jejuando e velando,
cantando e orando, e pensando sempre no bem dos homens,
43.
Quando desejamos uma coisa lutamos para adquiri-la. Ora, de tudo o que há de
bom e desejável, o melhor e mais desejável é, sem comparação, o divino. De
quanto ardor devemos dar provas para obter isto que, por natureza, é bom e
desejável!
44.
Não manche sua carne com atos infames, não suje sua alma com maus pensamentos,
e a paz de Deus virá sobre você, trazendo o amor.
45.
Trate duramente a carne nos jejuns e nas vigílias, consagre-se à oração e à salmodia
sem descanso, e a santificação da castidade virá a você, trazendo consigo o
amor.
46.
Aquele que foi considerado digno do conhecimento divino e que adquiriu no mor
sua iluminação, jamais será levado pelo espírito da vanglória. Mas a vanglória
carrega facilmente quem ainda não foi considerado digno do conhecimento de
Deus. Assim, se este homem se volta para Deus em tudo o que este lhe pede que
faça, ser-lhe-á facilitado, graças a Deis, evitar a vanglória, por ele tudo fez
por Deus.
47.
Quem ainda não alcançou o conhecimento divino que opera o amor, orgulha-se
daquilo que faz conforme a Deus. Mas quem foi julgado digno de atingir este
conhecimento diz com todo seu coração as palavras do patriarca Abraão, quando
lhe foi dado ver a aparição divina: “Eu sou terra e cinzas[17]”.
48.
Quem teme a Deus tem por companhia constante a humildade. E pelos pensamentos
que esta lhe inspira, ele chega ao amor divino e à ação de graças. Ela lhe
lembra como ele vivia antes conforme o mundo, as perdas de todo tipo, as
tentações que ele conheceu desde a juventude, como o Senhor o libertou de tudo
isso[18]
e o fez passar da vida passional à existência conforme a Deus. Então, com
temor, ele receberá o amor e, cheio de profunda humildade, não cessará de
render graças ao benfeitor e guia de nossas vidas.
49.
Não manche seu intelecto acolhendo pensamentos de concupiscência e de cólera,
para não cair da oração pura no espírito da acídia.
50.
Assim que começa a acolher em si os pensamentos maus ou imundos, o intelecto
perde a liberdade que antes possuía de se confiar a Deus.
51.
Quando um movimento de cólera o perturba, o insensato dominado pela paixão se
apressa inconsideradamente em fugir dos irmãos; e quando é queimado pela
concupiscência, muda de opinião e retorna correndo para eles. Nos dois casos, o
sábio faz o contrário: quando em cólera, evita afligir-se contra os irmãos, e,
quando assaltado pela concupiscência, se proíbe qualquer impulso ou relação
irracional.
52.
Não abandone o mosteiro no momento das tentações, mas suporte nobremente a onda
dos pensamentos, em especial os de tristeza e acídia. Assim, providencialmente
testado pelas aflições, você afirmará ainda mais sua esperança em Deus[19].
Mas se você deixar o mosteiro não passará pelas provações, ficando preguiçoso e
escorregadio.
53.
Se você não quiser decair do amor de Deus, não deixe seu irmão ir dormir aflito
por sua causa, e não durma afligido contra ele. Reconcilie-se com seu irmão e,
com a consciência pura, ofereça ao Cristo, numa prece fervorosa, o dom do amor[20].
54.
Se todos os carismas do Espírito são inúteis para quem os possui, se este não
tiver o amor, conforme o divino Apóstolo[21],
quanto fervor devemos ter em adquirir o amor!
55.
Se o amor não causa mal ao próximo[22],
aquele que inveja seu irmão, que se entristece com seu renome, que suja com
ironias a consideração que ele recebe ou lhe estende uma armadilha
maldosamente, como não será este estranho ao amor e sujeito ao Julgamento
eterno?
56.
Se o amor é o cumprimento da lei[23],
aquele que investe contra seu irmão, que faz intrigas contra ele, que lhe
deseja o mal, que se regozija quando ele cai, será um transgressor da lei e
digno do castigo eterno.
57.
Se quem calunia e julga seu irmão calunia e julga a lei[24],
e se a lei de Cristo é o amor, como não perderá o caluniador o amor de Cristo e
não se colocará sob os golpes do castigo eterno?
58.
Não dê ouvidos ao que diz a língua do caluniador, e que sua língua não fale ao
ouvido de quem gosta de dizer maldades. Não sinta prazer em falar contra seu
próximo nem em escutar o que se diz contra ele, a fim de não perder o amor
divino e não se tornar estranho à vida eterna.
59.
Não sofra se ultrajarem seu pai nem encoraje quem o desonra, para que o Senhor
não despeje sua cólera sobre as suas obras e não o destrua, retirando-o do
mundo dos vivos[25].
60.
Feche seus ouvidos à boca de quem calunia, a fim de não cometer com ele um
duplo pecado, acostumando-se com uma paixão perigosa e não impedindo o
caluniador de falar a torto e a direito contra seu próximo.
61.
“E eu lhes digo, ordenou o Senhor: amem os seus inimigos, façam o bem a quem os
odeia, rezem por aqueles que tentam destruí-los[26]”.
Porque terá ele dado esta ordem? Para nos livrar da aversão, da tristeza, da
cólera, do ressentimento, e para nos tornar dignos do amor perfeito, este bem
que é impossível possuir se não amarmos a todos os homens igualmente, à
imitação de Deus que ama a todos os homens igualmente e que quer que todos
sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade[27].
62.
“Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo
contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda!
Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se
alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele![28]”
Porque? Para que nos guardemos sem cólera, sem perturbação, sem tristeza, para
instruir o outro com sua recusa ao mal, e para conduzi-los, a ambos, como um
bom Pai [em sua bondade] sob o jugo do amor.
63.
Guardamos em nós imagens passionais das coisas que nos afetaram. Assim, quem
dominar as imagens passionais desdenhará com certeza as coisas das quais elas
provêm. Pois o combate contra as lembranças é mais duro do que o combate contra
as coisas, assim como pecar em pensamento é mais fácil do que pecar em ato.
64.
Dentre as paixões, algumas são corporais e outras são psíquicas. As paixões
corporais têm sua origem no corpo. As paixões psíquicas têm sua origem nas
coisas exteriores. O amor e a temperança eliminam tanto umas como outras. O
amor elimina as paixões psíquicas, e a temperança elimina as paixões corporais.
65.
Dentre as paixões, algumas pertencem à porção ardente da alma, enquanto outras
pertencem à porção concupiscente. Ambas são suscitadas pelos sentidos, mas
apenas quando a alma se encontra afastada do amor e da temperança.
66.
É mais difícil combater as paixões da parte ardente do que da parte
concupiscente. É por isso que o Senhor deu contra o ardor um remédio mais
forte: o mandamento do amor.
67.
Todas as demais paixões estão ligadas, seja somente à parte ardente ou à parte
concupiscente da alma, seja ainda à parte racional, como o esquecimento e a
ignorância. Mas a acídia, que age sobre todas as potências da alma, ao mesmo
tempo suscita quase todas as paixões. Por isso ela é a mais grave de todas. É o
que quis dizer o Senhor, quando deu o remédio contra ela: “Com sua paciência
vocês salvarão suas almas[29]”.
68.
Jamais ofenda algum de seus irmãos, e menos ainda de maneira irracional. Se ele
não suportar a aflição ele poderá ir embora, e você jamais conseguirá evitar a
reprovação de sua consciência que sempre, no momento da oração, trará tristeza
a você e privará seu intelecto da confiança divina.
69.
Não ligue para as suspeitas nem para os homens que o querem escandalizar com
certas coisas. Pois aqueles que, de um modo ou de outro, se escandalizam com as coisas que lhes
acontecem, quer as tenham desejado, quer não, ignoram o caminho da paz que,
através do amor, conduz ao conhecimento de Deus aqueles que estão tomados pelo
amor.
70.
Quem ainda é afetado pelo caráter dos homens ainda não possui o amor perfeito;
por exemplo, alguém que ama a um e detesta a outro, ou que às vezes ama, às
vezes detesta a mesma pessoa pelas mesmas razões.
71.
O amor perfeito não retalha a natureza única e mesma dos homens por terem eles
caracteres diferentes, mas, visando sempre esta natureza, ama a todos os homens
igualmente. Ele ama os virtuosos como amigos, e os depravados como inimigos,
fazendo-lhes o bem, suportando-os com paciência, suportando o que vem deles,
jamais levando em consideração a malícia[30],
chegando mesmo a sofrer por eles se se apresentar a ocasião. Assim ele os
tornará amigos, se isto for possível. Senão, ele não abandonará sua
determinação: ele mostrará sempre seus frutos a todos os homens igualmente.
Nosso Senhor e Deus Jesus Cristo, mostrando o amor que nos dedica, sofreu pela
humanidade inteira[31]
e deu a esperança da ressurreição a todos igualmente, mesmo que cada um, por
suas obras, atraia sobre si a glória ou o castigo.
72.
Quem não desdenha a glória como a desonra, a riqueza como a indigência, o
prazer como a dor, ainda não adquiriu o amor perfeito. Pois o amor perfeito não
só despreza tudo isso, como ainda a vida que passa e a morte.
73.
Escute aqueles a quem foi dado o amor perfeito. Ouça o que eles dizem: “Quem
nos separará do amor de Cristo? A aflição? A angústia? A perseguição? A fome? O
desnudamento? O perigo? A espada? Segundo o que está escrito, por sua causa
somos levados à morte todos os dias, como bezerros ao sacrifício. Mas em todas
essas provações, somos mais do que vencedores por aquele que nos amou. Pois eu
estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados,
nem as potências, nem o presente, nem o futuro, nem a altura, nem a
profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus que
está em Jesus Cristo nosso Senhor[32]”.
74.
E sobre o amor ao próximo, ouça o que eles dizem: “Digo a verdade em Cristo,
não minto, e disso me dá testemunho a minha consciência pelo Espírito Santo:
tenho uma grande dor e um contínuo sofrimento no coração. Sim, eu gostaria de
ser amaldiçoado e separado de Cristo em favor dos meus irmãos de raça e sangue.
Eles são israelitas...[33]”
e assim por diante. Assim como Moisés[34]
e os demais santos.
75.
Quem não desdenha a glória e o prazer, bem como o amor ao dinheiro que os faz
crescer e que eles engendram, não será capaz de suprimir as razões do ardor. E
se ele não suprimir essas coisas, ele não será capaz de atingir o amor
perfeito.
76.
A humildade e o sofrimento libertam o homem de todos os pecados. A primeira
suprime as paixões da alma; o segundo, as do corpo. É isto que azia o
bem-aventurado Davi, quando orava a Deus dizendo: “Veja minha miséria e minhas
penas, e retire de mim todos os pecados[35]”.
77.
Por meio dos mandamentos, o Senhor concede a impassibilidade aos que os praticam.
E, com seus divinos ensinamentos, ele outorga a iluminação do conhecimento.
78.
Tudo o que o Senhor ensina versa, ou sobre Deus, ou a respeito dos seres
visíveis e invisíveis, ou sobre a providência e o juízo que operam neles.
79.
A compaixão cura a parte ardente da alma. O jejum consome o desejo. Quanto à
oração, ela purifica o intelecto e o prepara à contemplação dos seres. Foi
também para as potências da alma que o Senhor nos deu os mandamentos.
80.
“Aprendam comigo, que sou manso e humilde de coração[36]”,
etc. A mansidão protege contra as perturbações do ardor. E a humildade liberta
o intelecto do orgulho e da vanglória.
81.
O temor a Deus é duplo. De um lado, ele nasce em nós da ameaça do castigo, e
nesta ordem engendra a temperança, a esperança em Deus e a impassibilidade, de
onde provém o amor. De outro lado, ele está ligado a este amor: ele traz sempre
para a alma a piedade, a fim de que, por meio da liberdade do amor, jamais
cheguemos a desdenhar de Deus.
82.
O amor perfeito elimina a primeira forma de temor[37],
porque a alma que possui amor não tem mais medo do castigo. Mas a segunda forma
de temor permanece sempre, porque está ligada ao amor, como foi dito. À
primeira forma de amor aplicam-se as palavras: “Por temor ao Senhor os homens
se afastam do mal[38]”,
e também: “O temor ao Senhor é o começo da sabedoria[39]”.
À segunda forma: “Nada falta aos que o temem[40]”.
83.
“Mortifiquem seus membros que estão sobre a terra, a prostituição, a impureza,
a paixão, a má concupiscência, a cupidez[41]”,
etc. O Apóstolo chama de “terra” o cuidado com a carne. Ele chama de
“prostituição” o ato do pecado. De “impureza”, o consentimento. De “paixão”, os
pensamentos passionais, e de “má concupiscência” a simples aceitação do
pensamento do desejo. E chamou de “cupidez” a matéria que engendra e faz
crescer a paixão. São todos estes vícios que o Apostolo ordenou mortificarmos,
porque eles são os membros do cuidado com a carne.
84.
Primeiro a memória traz ao intelecto um simples pensamento. Se este pensamento
persiste, surge a paixão. Se a paixão não é descartada, ela inclina o intelecto
ao consentimento. E quando o consentimento se faz presente, chegamos ao ato do
pecado. O sábio Apóstolo, escrevendo aos cristãos de todas as nações, lhes
ordena que acabem primeiro com o resultado do pecado, para depois, remontando
passo a passo e ordenadamente, chegar até a sua causa. E a causa é a cupidez
que, como foi dito, engendra e alimenta a paixão. Ela aqui pode significar a
gula, que é a mãe e a nutriz da prostituição. Pois a cupidez é má não apenas
quando ligada ao dinheiro, mas também quando está relacionada com a
alimentação. Da mesma forma, a temperança se aplica não apenas à alimentação,
mas também ao dinheiro.
85.
Assim como um pardal preso pela pata tomba por terra, retido pelo laço, se
tentar voar, também o intelecto que ainda não atingiu a impassibilidade cai por
terra, retido pelas paixões, se tentar voar na direção do conhecimento das
coisas do céu.
86.
Quando o intelecto está totalmente livre das paixões, então, sem se voltar, ele
se encaminha para a contemplação dos seres, sobre o caminho que conduz ao
conhecimento da Santa Trindade.
87.
Uma vez purificado, o intelecto, percebendo o sentido das coisas, é levado por
elas à contemplação espiritual. Mas se, por negligência, ele se torna impuro,
ele cria para si muitas representações de outras coisas em sua simplicidade e,
ao receber aquilo que provém dos homens, volta-se para pensamentos de infâmia
ou de malícia.
88.
Quando, no momento da oração, jamais um pensamento do mundo vem para perturbar
o intelecto, saiba que você não está longe das fronteiras da impassibilidade.
89.
Quando a alma começa a sentir-se em boa saúde, então as imagens que surgem nos
sonhos lhe aparecem simples e sem nenhuma perturbação.
90.
Assim como a beleza do visível atrai o olho sensível, o conhecimento do
invisível atrai para si o intelecto puro. Entendo como “invisíveis” os seres
incorpóreos.
91.
É muito bom não ser afetado pelas coisas, mas é melhor ainda permanecer
impassível diante das suas imagens. Pois a guerra que os demônios nos fazem
através dos pensamentos é mais árdua do que a que eles nos fazem por meio das
coisas.
92.
Quem conquistou as virtudes e está cumulado pelas riquezas do conhecimento,
vendo as coisas, daí em diante, na sua natureza, age e fala sempre conforme a
razão, sem jamais se perder. Com efeito, é pelo uso racional ou irracional das
coisas que fazemos que nos tornamos virtuosos os depravados.
93.
Quer o corpo vigie, quer durma, se surgem no coração pensamentos simples sobre
as coisas, este é um sinal de extrema impassibilidade.
94.
Pela prática dos mandamentos o intelecto se despoja das paixões. Pela
contemplação espiritual do visível, ele se despoja dos pensamentos passionais
das coisas. Pelo conhecimento do invisível ele se despoja da contemplação do
visível. Enfim, ele se despoja do conhecimento do invisível pelo conhecimento
da Santíssima Trindade.
95.
Assim como o sol, ao se levantar e iluminar o mundo, revela a si mesmo e revela
as coisas que ele ilumine, também o sol de justiça[42],
quando se ergue sobre o intelecto puro, revela a si mesmo e revela as razões de
tudo o que, por meio dele, sempre foi e sempre será.
96.
Não conhecemos a Deus por sua essência, mas pela grandeza de sua obra e pela
sua providência nos seres. É por estas coisas que, como num espelho,
compreendemos sua bondade, sabedoria e poder infinitos[43].
97.
O intelecto puro se encontra, ou bem nos pensamentos simples das coisas
humanas, ou bem na contemplação natural do visível, ou bem na contemplação do
invisível, ou bem na luz da Santíssima Trindade.
98.
O intelecto que alcançou a contemplação das coisas visíveis ou bem sonda suas
razões naturais, ou busca seus significados, ou busca sua causa.
99.
Ao se aplicar à contemplação das coisas visíveis, o intelecto busca suas razões
naturais, a causa de sua origem, suas conseqüências e a ação que sobre elas
exerce o Providência e o Julgamento.
100.
Mas, chegando a Deus e abrasado por seu desejo, o intelecto busca primeiro as
razões de sua essência, por não encontrar consolo em nada que se pareça
consigo. Ora, isto é impossível, e também inacessível a toda natureza criada.
Ele então consola-se com aquilo que o cerca, ou seja, com a eternidade, o
infinito, o ilimitado, a bondade, a sabedoria, o poder que criou, governa e
julga os seres. Somente isto – a infinitude e esta impossibilidade de conhecer
– é compreensível para ele, como bem o disseram os teólogos Gregório[44]
e Denis[45].
SEGUNDA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR
1. Quem
ama verdadeiramente a Deus ora sem que absolutamente nada o distraia. E também
quem ora sem se distrair ama a Deus verdadeiramente. Mas aquele cujo intelecto
ainda está ligado a qualquer coisa de terrestre não consegue orar sem se
distrair.
2.
O intelecto que se debruça sobre uma coisa sensível com certeza sente por esta
coisa uma paixão, como a concupiscência, a tristeza, a cólera ou o
ressentimento. E se ele não desdenhar esta coisa, ele não conseguirá se livrar
desta paixão.
3.
As paixões que subjugam o intelecto se ligam às coisas materiais e, separando-o
de Deus, o levam a que se ocupe destas coisas. Mas se o amor a Deus for mais
forte, ele cortará os laços levando-o não apenas a desprezar as coisas
sensíveis, mas a própria vida, esta vida passageira.
4.
A obra dos mandamentos é tornar simples os pensamentos sobre as coisas. A obra
da leitura e da contemplação é levar o intelecto para fora de toda matéria e de
toda forma. É assim que chegamos a orar sem distrações.
5.
Para libertar perfeitamente o intelecto das paixões, a ponto de que ele possa
orar sem se distrair, a via ativa não é suficiente, se não for seguida por
muitas contemplações espirituais. De fato, a via ativa não liberta o intelecto
senão da intemperança e da aversão. Mas as contemplações espirituais o separam
totalmente do esquecimento e da ignorância. Assim ele poderá orar como se deve.
6.
Existem dois estados elevados da prece pura: um é dado aos ativos, outro aos
contemplativos. Um nasce do temor a Deus e da boa esperança. O outro nasce do eros
divino e de uma purificação extrema. O primeiro pode ser reconhecido pelos
seguintes sinais: quando o intelecto se recolhe para longe de todos os
pensamentos do mundo, como se o próprio Deus lhe estivesse próximo – e, de
fato, ele está – ele ora sem de deixar distrair nem perturbar. O segundo por
ser reconhecido assim: no próprio impulso da oração o intelecto é arrebatado
pela luz infinita de Deus, perde toda sensação de si mesmo e já não percebe
mais nenhum outro ser, senão Aquele único que, por intermédio do amor, opera nele
uma tal iluminação. Então, levado até as razões de Deus, ele recebe imagens
suas puras e claras.
7.
Nós nos ligamos totalmente àquilo que amamos e, para disto não sermos privados,
desdenhamos tudo o que se lhe opõe. Quem ama a Deus dedica-se à prece pura e
rejeita por si só toda paixão que o impeça de orar.
8.
Quem rejeitou o egoísmo, a complacência para consigo mesmo, a mãe das paixões,
com a ajuda de Deus se desembaraça facilmente das outras paixões, como a
cólera, a tristeza, o ressentimento, etc. Mas quem é tomado pela primeira
paixão é ferido pela segunda, mesmo que não queira. O egoismo é a paixão que
temos pelo corpo.
9.
É por estas cinco razões que os homens amam uns aos outros, de modo louvável ou
de modo condenável: ou por amor a Deus, como o homem virtuoso ama a todos os
homens e como aquele que ainda não é virtuoso ama o homem virtuoso; ou por
natureza, como os pais amam aos filhos e reciprocamente; ou por vanglória, como
aquele que é glorificado ama aquele que o glorifica; ou por amor ao dinheiro,
como aquele que recebe ama o que é rico; ou por amor ao prazer, como aquele que
cuida do seu ventre e das coisas do baixo ventre. A primeira razão é louvável,
a segunda é medíocre; as demais são marcadas pela paixão.
10.
Se você detesta alguns homens, se por outros você não sente nem amor nem
aversão, se a alguns você ama moderadamente enquanto a outros ama fortemente,
saiba por estas desigualdades que você ainda está longe do amor perfeito, que
se propõe a amar a todos os homens igualmente.
11.
“Afaste-se do mal e faça o bem[46]”.
Quer dizer: combata os inimigos para reduzir as paixões. Depois vele e seja
nobre, para que elas não cresçam. Então combata novamente, para adquirir as
virtudes, Depois vele e seja sóbrio, para mantê-las. Isto é o que podemos
chamar de trabalhar e guardar[47].
12.
Aqueles a quem Deus permitiu nos testar, ou bem aquecem o desejo na alma, ou
bem perturbam seu ardor, ou entenebrecem a razão, o enchem de dores o corpo, ou
roubam o que ele possui.
13.
Ou bem os demônios nos tentam por si mesmos, ou bem armam contra nós aqueles
que não temem ao Senhor. Eles nos tentam por si mesmos quando permanecemos sós
e longe dos homens, como o Senhor no deserto[48].
E eles nos tentam por intermédio dos homens quando vivemos em seu meio, como o
Senhor foi testado pelos fariseus[49].
Mas nós, com os olhos postos em nosso modelo, devemos rejeitá-los de um lado e
de outro.
14.
Quando o intelecto começa a progredir no amor a Deus, então o demônio da
blasfêmia começa a tentá-lo e lhe sugere pensamentos que nenhum homem saberia
produzir, e que somente o diabo é capaz de suscitar com sua arte maléfica. Ele
faz isto por invejar o amado de Deus e para que este, caindo em desespero por
causa desses pensamentos, não mais ouse voar em sua direção com suas orações
habituais. Mas o maldito falha em seu objetivo, pois ele nos oprime
inicialmente, mas, depois de termos sido combatidos e de lutarmos por nós
mesmos, nos tornamos mais experientes e mais verdadeiros no amor a Deus. “Que
sua espada lhe trespasse o coração e que seu arco se quebre[50]”.
15.
Quando se aplica ao visível, o intelecto percebe naturalmente as coisas por
intermédio dos sentidos. Nem o intelecto, nem a percepção natural, nem as
coisas, nem os sentidos são um mal. Estas coisas são obras de Deus. Então, o
que é o mal? É claro que o mal é a paixão que está ligada ao pensamento
natural. Mas o uso dos pensamentos não pode ficar ligado às paixões, se o
intelecto estiver vigilante.
16.
A paixão é um movimento da alma contra a natureza, por amor irracional ou por
aversão irrefletida em relação a uma coisa sensível ou por causa dela. Pelo
amor irracional pelas comidas, pelas mulheres, pelo dinheiro, pela glória
passageira ou por qualquer outra coisa sensível, ou por causa dela. E pela
aversão irrefletida, como eu disse, por uma das coisas que mencionei, ou por
outras coisas, ou por causa delas.
17.
A malícia consiste num julgamento errôneo dos pensamentos, que se segue ao
abuso das coisas. É assim que acontece com relação às mulheres. O julgamento
justo, a regra, é unir-se a ela para procriar e ter filhos. Quem não vê senão o
prazer se engana, seu juízo é falso: ele considera como um bem aquilo que não é
um bem e, unindo-se à mulher, abusa dela. O mesmo acontece com todas as outras
coisas e todos os outros pensamentos.
18.
Quando, expulsando-o para longe da castidade, os demônios rodeiam o intelecto
com pensamentos de prostituição, diga chorando ao Mestre: “Eles me afastaram,
eles me cercaram[51].
Minha alegria, liberte-me daqueles que me cercaram[52]”,
e você será salvo.
19.
Pesado é o demônio da prostituição. Ele ataca duramente os que combatem a
paixão, sobretudo quando, por negligência, eles deixam de ter uma alimentação
simples e encontram com mulheres. Pela doçura do prazer ele engana secretamente
o intelecto, e depois, quando este repousa, investe sobre ele com lembranças e,
inflamando o corpo, suscita nele toda espécie de formas. Então lhe pede que
consinta no pecado. Se você não quiser que tais formas se grudem em você, tome
sobre si o jejum, o sofrimento, as vigílias, a bela hesíquia e a prece
contínua.
20.
Aqueles que não cessam de perseguir nossa alma o fazem por meio dos pensamentos
passionais, a fim de atirá-la no pecado pela reflexão ou pela ação. Caso
encontrem um intelecto resolvido a não os acolher, eles ficam confusos e se
retiram[53].
E se o encontram absorvido na contemplação espiritual, eles fogem e depressa
são tomados da maior confusão[54].
21.
Aquele que unta seu intelecto para os combates sagrados e que dele expulsa os
pensamentos passionais faz o papel do diácono. O que o ilumina com o
conhecimento dos seres e destrói o falso conhecimento faz o papel do padre. E o
que o leva à perfeição pela santa mirra do conhecimento e da adoração da
Santíssima Trindade [do conhecimento da adorável e santa Trindade] faz o papel
do bispo.
22.
Os demônios perdem a força quando em nós decrescem as paixões sob o efeito dos
mandamentos. E eles perecem quando as paixões desaparecem até o fim pela
impassibilidade. Pois então eles não mais encontram o porquê de estarem na alma
e a combaterem. É isto que significa: “Eles perderam a força e morreram diante
de sua face[55]”.
23.
Dentre os homens, alguns refreiam as paixões por um medo puramente humano.
Outros, por vaidade. Outros, por temperança. Outros, enfim, são libertos das
paixões pelos julgamentos de Deus[56].
24.
As palavras do Senhor seguem sempre um destes quatro caminhos: os mandamentos,
os ensinamentos, as ameaças e as promessas. É para seguir por estes caminhos
que suportamos todos os tormentos da vida dura: os jejuns, as vigílias, dormir
no chão, as penas e as fatigas suportadas no serviço aos outros, as injúrias,
os ultrajes, as torturas, a morte e outras provações semelhantes. Com efeito,
foi dito: “Pelas palavras de sua boca eu percorri caminhos rudes[57]”.
25.
A recompensa da temperança é a impassibilidade, e a recompensa da fé é o
conhecimento. Ora, a impassibilidade engendra o discernimento, e o conhecimento
engendra o amor a Deus.
26.
O intelecto que caminha direito sobre a via da ação progride para a prudência, e
o que marcha sobre o caminho da contemplação progride para o conhecimento. É
próprio da prudência levar o que combate ao discernimento da virtude e do
vício. É próprio do conhecimento conduzir quem dele partilha às razões dos
seres incorpóreos e dos seres corpóreos. Mas o intelecto recebe a graça da
teologia quando, ultrapassando nas asas do amor tudo o que foi dito e
alcançando a contemplação, penetra pelo Espírito a razão que revela a Deus, na
medida em que isto é possível a uma inteligência humana.
27.
Se você pretende alcançar a teologia, o conhecimento de Deus, não busque as razões do próprio Deus.
Uma inteligência humana é incapaz de encontrá-las, tanto quanto a de qualquer
outra criatura de Deus. Apenas considere os atributos que o rodeiam, como a
eternidade, a infinitude, o ilimitado, a bondade, a sabedoria, o poder que
criou, governa e julga os seres. Pois dentre os homens será um grande teólogo
aquele que descobrir, por pouco que seja, a razão destes atributos.
28.
Poderoso será o homem que unir o conhecimento à ação. Por meio de desta última,
ele apaziguará o ardor e consumirá o desejo. Pelo outro ele dará asas ao
intelecto e emigrará para Deus.
29.
Quando o Senhor disse: “Meu Pai e eu somos um[58]”,
ele se referiu à identidade da essência. Mas quando ele disse: “Eu estou no Pai
e o Pai está em mim[59]”,
ele revelou que as Pessoas são inseparáveis. Os triteístas[60]
que separam o Filho e o Pai mergulham assim num impasse cercado de abismos.
Pois, ou bem eles afirmam que o Filho é eterno com o Pai, mas separando um do
outro, e então são obrigados a afirmar que o Filho não nasceu do Pai e a
declarar que existem três Deuses e três princípios; ou bem eles afirmam que o
Filho nasceu do Pai, mas o separam, e então são obrigados a afirmar que o Filho
não é eterno com o Pai e que o Mestre dos tempos está submetido ao tempo. É
preciso, assim, com o grande Gregório[61],
manter um Deus único e confessar as três Pessoas, cada qual com aquilo que lhe
é próprio. Pois, segundo o mesmo Gregório, Deus é dividido, mas indivisivelmente,
e as três Pessoas são uma, mas permanecem separadas. A divisão e a união são
assim paradoxais. Com efeito, o que haveria de paradoxal, se o Filho e o Pai
fossem unidos e separados como um homem e outro homem, sem mais?
30.
Aquele que é perfeito no amor e que chegou ao cume da impassibilidade ignora a
diferença entre si mesmo e o outro, ou entre aquilo que lhe é próprio e o que
lhe é estranho, ou entre o crente e o descrente, entre o escravo e o homem
livre, entre homem e mulher. Ao contrário, elevado acima da tirania das paixões
e não vendo senão uma única natureza nos homens, ele os considera a todos
igualmente e tem por todos o mesmo sentimento. Pois então não existe mais para
ele “nem grego nem judeu, nem homem nem mulher, nem escravo nem homem livre,
mas apenas Cristo que é tudo em todos[62]”.
31.
Os demônios extraem os meios de suscitar em nós pensamentos passionais das
paixões que repousam no fundo da alma. Depois, combatendo a inteligência com
estes pensamentos, eles a forçam a consentir no pecado. Vencido o intelecto,
eles o conduzem de pecado em pecado. Conseguindo isto[63],
enfim, com o intelecto cativo daí por diante, eles o levam ao ato. Depois de
terem devastado a alma com pensamentos, eles se retiram, deixando ao intelecto
apenas o ídolo do pecado, do qual o Senhor disse: “Quando vocês virem a
abominação da desolação erguida no lugar santo, quem ler compreenda![64]”
O lugar santo e o templo de Deus são o intelecto do homem aonde, após
devastarem a alma com pensamentos passionais, os demônios erguem o ídolo do
pecado. Quem leu os escritos de Josefo[65]
sabe o quanto isto já aconteceu na história. Mas alguns dizem que isto
acontecerá novamente quando vier o Anticristo.
32.
Existem três forças que nos levam ao bem: as sementes naturais, os santos poderes
e a boa vontade. As sementes naturais, quando fazemos aos outros o que queremos
que nos façam[66],
ou quando sentimos compaixão à vista de um homem na miséria ou passando
necessidades. Os santos poderes, quando, levados a fazer uma boa ação,
encontramos um bom auxílio e a fazemos bem. A boa vontade quando, discernindo
entre o bem e o mal, escolhemos o bem.
33.
Existem também três forças que nos levam ao mal: as paixões, os demônios e a má
vontade. As paixões, quando desejamos algo de forma irracional, como comer em
demasia e sem necessidade, ou desfrutar de um mulher que sequer é a esposa
recusando gerar filhos ou quando, da mesma forma, nos irritamos ou nos
afligimos, por exemplo, contra um homem que nos ultrajou ou que nos lesou. Os
demônios, quando aproveitam o momento e nos atacam na hora em que estamos
negligentes, suscitando de repente contra nós, com grande violência, estas
paixões e outras semelhantes. Enfim, a má vontade, quando, sabendo onde está o
bem, escolhemos o mal.
34.
As recompensas das penas da virtude são a impassibilidade e o conhecimento.
Estes permitem entrar no Reino dos céus, assim como as paixões e a ignorância
conduzem ao castigo eterno. Assim, aquele que busca as penas pela glória dos
homens e não para seu próprio bem, ouvirá a Escritura dizer-lhe: “Vocês pedem e
não recebem, porque não sabem pedir[67]”.
35.
Muitas coisas que os homens fazem são naturalmente boas. Mas elas podem também
não ser boas por causa de sua motivação. Assim, o jejum, as vigílias, a prece,
a salmodia, a esmola e a hospitalidade são por natureza boas obras, mas, quando
feitas por vaidade, deixam de ser boas.
36.
Em tudo o que fazemos, Deus procura o objetivo: se agimos em função dele, ou
por outra razão.
37.
Quando você ouvir a Escritura dizer: “Você dará a cada um conforme suas obras[68]”,
entenda que Deus recompensa as boas obras, não as que são feitas contra o justo
objetivo, mesmo que pareçam boas, mas apenas as que evidentemente conduzem ao
justo objetivo. Pois o julgamento de Deus não visa o que acontece, mas o
objetivo daquilo que acontece.
38.
O demônio do orgulho segue dois caminhos em sua malícia. Ou bem ele persuade o
monge a atribuir as boas obras a si mesmo, e não a Deus que dispensa os bens e
concorre para seu cumprimento, ou bem, se não pode persuadi-lo, ele o incita a
desprezar os irmãos monges que ainda são imperfeitos. Mas quem se deixa levar a
tais coisas ignora que é o diabo que o está persuadindo a recusar a ajuda de
Deus. Pois, se ele despreza os que não conseguiram levar as obras até o fim,
ele pressupõe que evidentemente alcançou o bem por suas próprias forças, o que
é impossível, porque o Senhor disse: “Sem mim, vocês nada podem[69]”.
Mesmo que a obra seja dirigida para o bem, nossa fraqueza é incapaz de chegar
ao fim sem Aquele que dispensa os bens.
39.
Quem conheceu a fraqueza da natureza humana pode adquirir a experiência do
poder de Deus. Com este poder, ele conseguiu concluir diversas boas obras e se
esforça por cumprir muitas outras, mas jamais despreza outro homem. Pois ele
sabe: assim como Deus o ajudou e o libertou de tantas paixões e dificuldades,
ele também pode, quando quiser, ajudar todos os demais, em especial os que
combatem por ele, mesmo que, por julgamentos que são só seus, ele não nos
liberte de todas as paixões de uma só vez, mas, como um bom médico que ama o
homem, ele cure por meio de remédios que convêm a cada um dos que se esforçam.
40.
Quando as paixões deixam de estar ativas, chega o orgulho, ou devido às causas
das quais nos livramos, ou devido aos demônios que se retiraram
enganadoramente.
41.
Quase todos os pecados vêm pelo prazer e se vão com o sofrimento e a aflição,
pelo arrependimento voluntário, ou ainda pelo desencaminhamento suscitado pelo
desejo da providência. “Pois se nós julgamos a nós mesmos, não seremos
julgados. Mas, julgados pelo Senhor, somos castigados para não sermos
condenados com o mundo[70]”.
42.
Quando uma provação chega a você de improviso, não acuse aquele por meio de
quem ela o alcançou, mas pergunte-se porque ela lhe foi dada, e aí você encontrará
um benefício. Pois, seja por esta provação, seja por outra, é preciso beber o
absinto dos julgamentos de Deus.
43.
Malvado como você é, não recuse o sofrimento, a fim de que, humilhado por ele,
você possa vomitar seu orgulho.
44.
Dentre as provas, algumas trazem prazeres ao homem, outras trazem aflições,
outras sofrimentos corporais. Pois, conforme as causas das paixões, que estão
na alma, o médico das almas aplica o remédio segundo seu julgamento.
45.
A irrupção das provações traz a alguns a remissão dos pecados já cometidos. Em
outros, dissipa os pecados que estão para ser cometidos. Em outros ainda,
impede pecados que poderiam surgir no futuro. Sem falar nas provações que vêm
para nos sondar, como as de Jó.
46.
O homem sensato, considerando que os julgamentos de Deus o curam, suporta com
reconhecimento as infelicidades que trazidas por estes julgamentos, pois se
lembra de que estas infelicidades não têm outras causas do que seus próprios
pecados. Mas o insensato, que ignora a sábia providência de Deus, imagina que
ou Deus ou os homens são a origem dos seus males, quando peca e é castigado.
47.
Existem remédios que detêm as paixões em seu movimento e não lhes permitem
prosseguir e crescer. Existem outros que as enfraquecem e reduzem. Assim, o
jejum, as penas e as vigílias impedem a concupiscência de crescer. Mas a
anacorese, a contemplação, a prece, o ardente desejo de Deus a enfraquecem e
extinguem. O mesmo acontece com o ardor: a paciência, a ausência de
ressentimento, a mansidão o detêm; e o amor, a compaixão, a bondade e a
bem-aventurança o reduzem.
48. Naquele cujo intelecto está continuamente
voltado para Deus, mesmo a concupiscência aumenta o desejo ardente de Deus, e o
ardor se volta inteiramente para o amor
divino. Por ter conhecido a iluminação divina
por longo tempo, ele se tornou inteiro luminoso. E, encerrando em si
mesmo a parte de seu ser submetida às paixões, ele a dirigiu para o desejo de
Deus, ardente, insaciável, como foi dito, e para o amor sem fim, fazendo-a passar do terrestre
ao divino.
49.
Quem não se indispõe com o homem que o ofendeu, que não se irrita e não tem
ressentimento contra ele, nem por isso chegou ao ponto de amá-lo. Mas mesmo que
não o ame ainda, consegue não devolver o mal com o mal, conforme o mandamento[71].
Mas ainda não é capaz de devolver o bem pelo mal. Pois ser capaz de fazer o bem
a quem nos maltratou[72]
não é dado senão ao perfeito amor espiritual.
50.
Quem não ama a alguém, nem por isso o odeia. Também quem não odeia uma pessoa
não está necessariamente em condições de amá-la. Pode-se permanecer a meio
caminho, sem amar nem odiar. Pois só os cinco modos citados no nono capítulo
desta centúria podem suscitar o estado de amor: o modo louvável, o medíocre e
os demais, condenáveis.
51.
Quando você perceber que seu intelecto se compraz em ocupar-se das coisas da
matéria e sente prazer em pensar sempre nessas coisas, saiba que você as ama
mais do que a Deus. Pois aonde está seu tesouro, disse o Senhor, ali estará
também seu coração[73].
52.
O intelecto que se liga a Deus e passa com ele todo seu tempo em prece e no
amor torna-se sábio, bom, forte, benevolente, compassivo, paciente, em uma
palavra, traz em si quase todas as propriedades de Deus. Mas se ele se afasta
de Deus, ou bem ele se torna como um animal que não ama senão seu prazer, ou
bem se torna como uma fera que, por causa das coisas da matéria, ataca os
homens.
53.
A Escritura chama de mundo as coisas da matéria; e os mundanos são aqueles cujo
intelecto se ocupa destas coisas. É para eles que, para faze-los voltarem a si,
a Escritura diz: “Não amem o mundo, nem o que está no mundo. A concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos, a ostentação da vida, não são de Deus,
mas do mundo[74]”,
etc.
54.
É monge aquele que afastou seu intelecto das coisas da matéria e que, pela
temperança, pelo amor, a salmodia e a prece, permanece ligado a Deus.
55.
O monge ativo é, no sentido espiritual, um adestrador de animais, pois as obras
morais têm como figura os animais. É por isso que Jacó dizia: “Seus filhos são
homens que adestrarão animais[75]”.
Mas o monge gnóstico é um pastor de ovelhas, pois os pensamentos têm como
figura as ovelhas. O intelecto as leva a pastar nas montanhas das
contemplações. Assim, “todo pastor de ovelhas é uma abominação aos olhos dos
Egípcios[76]”,
como o é aos olhos das potências adversas.
56.
Quando o corpo é levado pelos sentidos para suas próprias concupiscências e
seus próprios prazeres, o intelecto enganado segue as imaginações e os impulsos
do corpo e consente neles. Mas o intelecto virtuoso permanece temperante e
resiste às imaginações e aos impulsos passionais. São contrário, ele se esforça
por tornar melhores tais movimentos.
57.
Dentre as virtudes, algumas são do corpo, outras são da alma. As virtudes do
corpo são o jejum, as vigílias, o dormir sobre o chão, o servir aos outros, o
trabalho das mãos para não ser um fardo para ninguém ou para partilhar[77],
etc. As virtudes da alma são o amor, a paciência, a mansidão, a temperança[78],
a oração, etc. Assim, se por qualquer necessidade ou qualquer estado do corpo,
como uma doença ou outra coisa, nos acontecer de não podermos trabalhar as
virtudes corporais de que falamos, temos o perdão do Senhor, que conhece a
causa disto. Mas se não trabalhamos as virtudes da alma não temos nenhuma
justificação, pois elas não estão submetidas à necessidade.
58.
A quem o possui, o amor a Deus permite desprezar todos os prazeres passageiros,
toda pena e toda tristeza. Convença-se disto pelo exemplo dos santos, que
sofreram de tudo por Cristo.
59.
Proteja-se da mãe dos vícios, a complacência para consigo mesmo, o egoísmo, que
é o afeto irracional que sentimos pelo corpo. Pois é disto, evidentemente, que
nascem os três primeiros pensamentos tolos, passionais, fundamentais, que são a
gula, a cupidez e a vanglória, que aparentemente têm sua origem nas exigências
do corpo. É deles que provêm toda a série dos vícios. É preciso portanto,
necessariamente, se proteger da complacência para consigo mesmo e combatê-la
com muita sobriedade e vigilância Pois quando ela desaparece, todos os
pensamentos que dela vieram desaparecem com ela.
60.
A paixão do egoísmo sugere ao monge que tenha piedade de seu corpo e que o
alimente além da conta, aparentemente para mantê-lo e dirigi-lo, mas na verdade
para atraí-lo pouco a pouco e atirá-lo no abismo do amor ao prazer. Quanto ao
homem do mundo, ela lhe propõe cuidar deste corpo desde cedo, para satisfazer
sua concupiscência[79].
61.
Diz-se que o mais elevado estado da prece é o seguinte: no momento da oração o
intelecto se encontra fora da carne e do mundo, de toda matéria e de toda
forma. Quem mantém este estado sem falhar, em verdade ora continuamente[80].
62.
Assim como o corpo ao morrer se separa totalmente das coisas do mundo, também a
alma que se aplica em permanecer neste estado elevado de oração, e que morre,
se separa de todos os pensamentos do mundo. Pois se ela não morrer esta morte,
ela não conseguirá se encontrar e viver com Deus.
63.
Que ninguém o engane, monge, convencendo-o de que é possível ser salvo ao mesmo
tempo em que se permanece servil ao prazer e à vanglória.
64.
Do mesmo modo como o corpo pela pelas coisas e que as virtudes o ensinam a se
tornar casto, também o intelecto peca pelos pensamentos passionais e as
virtudes da alma o ensinam a se tornar casto, vendo as coisas com toda pureza e
impassibilidade.
65.
Assim como as noites se sucedem aos dias e os invernos aos verões, também as
aflições e as dores se seguem à vanglória e ao prazer, tanto no século presente
como no futuro.
66.
Não é possível que aquele que pecou escape ao Juízo final se, aqui em baixo,
ele não se impuser penas e não seja oprimido pela infelicidade.
67.
Diz-se que existem cinco razões pelas quais Deus permite que sejamos combatidos
pelos demônios. A primeira é para que, à custa de sermos atacados e de
contra-atacarmos, alcancemos o discernimento entre a virtude e o vício. A
segunda é para que, depois de havermos adquirido as virtudes pelo combate e as
penas, a guardemos firmemente e sem falhas. A terceira é para que, progredindo
na virtude, não nos tornemos orgulhosos, mas nos mantenhamos humildes. A quarta
é para que, testados pelo mal, sintamos por ele uma aversão total[81].
Enfim e acima de tudo, para que, tornados impassíveis, não esqueçamos nossa
própria fraqueza nem o poder d'Aquele que nos socorreu.
68.
Assim como o intelecto de um homem faminto imagina pão e o de um homem sedento
imagina água, o intelecto do guloso imagina todo tipo de alimentos, o intelecto
daquele que ama o prazer imagina formas femininas, o intelecto do vaidoso
imagina glórias vindas dos homens, o intelecto do rancoroso imagina vinganças
contra quem o ofendeu, o intelecto do invejoso imagina como fazer o mal àquele a quem inveja, e assim com
todas as demais paixões. Pois o intelecto perturbado pelas paixões acolhe os
pensamentos passionais, quer o corpo esteja acordado, quer durma.
69.
Quando cresce a concupiscência, o intelecto imagina em sonhos a matéria dos
prazeres. Quando cresce o ardor, o intelecto vê o que suscita o temor.
Secundados por nossa própria inteligência, os demônios impuros fazem aumentar
naturalmente as paixões excitando-as. Mas os santos anjos as reduzem,
levando-nos à prática das virtudes.
70.
O desejo da alma, quando excitado com frequência, suscita um estado – o amor
pelo prazer – que a alma tem dificuldade em transformar. E o ardor, quando
continuamente perturbado, torna a inteligência medrosa e preguiçosa. A ascese
contínua do jejum, das vigílias e da oração cura o desejo. A bondade, a
benevolência, o amor e a piedade curam o ardor.
71.
Ou bem os demônios nos combatem pelas coisas, ou bem nos combatem pelos
pensamentos passionais que estão nas coisas. Por meio das coisas, eles combatem
aqueles que vivem no meio delas. Pelos pensamentos, eles combatem os que vivem
separados delas.
72.
Assim como é mais fácil pecar em pensamento do que pecar em ato, também o
combate contra os pensamentos é mais difícil do que o combate contra as coisas.
73.
As coisas existem fora do intelecto, mas seus pensamentos existem dentro. Está,
portanto, no intelecto usarmos bem ou mal as duas coisas. Pois o mau uso das
coisas segue o mau uso dos pensamentos.
74.
O intelecto recebe os pensamentos passionais por três caminhos: pela sensação,
pela compleição do corpo, pela memória. Pela sensação quando as coisas pelas
quais nos apaixonamos a atingem, levando o intelecto a ter pensamentos
passionais. Pela compleição do corpo quando este, alterado por regimes
desregrados, pela ação dos demônios ou por alguma enfermidade, empurra por sua
vez o intelecto para os pensamentos passionais ou para os caminhos da
prostituição. Enfim pela memória, quando esta faz ressurgir as lembranças de
coisas que nos atormentaram, conduzindo igualmente o intelecto aos pensamentos
passionais.
75.
Dentre as coisas que Deus nos deu para nos servirem, algumas se encontram na
alma, outras no corpo, outras ao redor do corpo. Assim, na alma estão as
potências, no corpo os sentidos e os demais membros, e ao redor do corpo os
alimentos, as posses, o dinheiro, etc. O bom ou o mau uso dessas coisas e de
suas modalidades mostrará se somos virtuosos ou falsos.
76.
Dentre as modalidades das coisas, algumas dizem respeito ao que existe dentro
da alma, outras ao que está no corpo, outras ao que rodeia o corpo. Assim, na
alma estão o conhecimento e a ignorância, o esquecimento e a lembrança, o amor
e o ódio, a tristeza e a alegria, etc. No corpo estão o prazer e a dor, o uso e
a privação dos sentidos, a saúde e a doença, a vida e a morte, e outras
modalidades semelhantes. Ao redor do corpo estão a fecundidade e a esterilidade,
a riqueza e a pobreza, a glória e o desprezo, etc. Dentre essas modalidades,
algumas são consideradas como bens, outras como males. Mas nenhuma delas é má,
propriamente falando. É pelo uso que delas fazemos que elas se revelam boas ou
más.
77.
O conhecimento é naturalmente bom, assim como a saúde. Entretanto seus
contrários, mais do que eles, foram úteis para muitos. Pois, nos homens falsos,
o conhecimento não conduz ao bem, embora ele seja naturalmente bom, como eu
disse. E também, em tais homens, a saúde, a riqueza, a alegria não conduzem ao
bem. Elas não lhes trazem nenhum benefício. Serão úteis a eles seus contrários?
Se assim for, eles não lhes serão um mal, propriamente falando, ainda que o
pareçam.
78.
Não faça mau uso dos pensamentos, para não ser constrangido a fazer também mau
uso das coisas. Pois se não pecarmos primeiro em pensamento, jamais chegaremos
a pecar em ato.
79.
A imagem do terrestre são os vícios fundamentais, como a demência, a preguiça,
o deboche, a injustiça. A imagem do celeste são as virtudes fundamentais, como
a sabedoria, a coragem, a castidade, a justiça. E, assim como carregamos a
imagem do terrestre, carregaremos também a imagem do celeste[82].
80.
Se você quiser encontrar o caminho que conduz à vida[83],
procure-o sobre a via, esta via que diz: “Eu sou a via, a porta, a verdade e a
vi[84]a”,
e você o encontrará. Mas procure com todas as suas forças, trabalhe, pois são
poucos os que encontram o caminho[85].
Procure, para não ficar de fora destes poucos, para não ser contado com a maioria.
81.
A alma se afasta dos pecados por cinco caminhos: por medo dos homens, por medo
do Juízo, pela retribuição futura, pelo amor a Deus ou, finalmente, pela
consciência, quando ela bate.
82.
Alguns dizem que o mal não existiria nos seres se alguma outra potência não nos
atraísse para ele. Ora, esta potência não é outra coisa do que nossa
negligência em exercer a atividade natural do intelecto. É por isso que aqueles
que se dedicam a exercer esta atividade só fazem o bem, sempre, e nunca o mal.
Assim, se você quiser se desvencilhar da negligência por meio da atividade
natural do intelecto, expulse a malícia, que é o uso errôneo dos pensamentos, à
qual se segue o mau uso das coisas.
83.
Está na natureza da parte racional que existe em nós submeter-se ao Verbo de
Deus e dominar a parte irracional que também existe em nós. Que esta ordem seja
guardada por todos, e o mal desaparecerá dos seres, bem como aquilo que nos
atrai para ele.
84.
Dentre os pensamentos, alguns são simples, outros são compostos. Os pensamentos
simples são os pensamentos impassíveis; os pensamentos compostos são os
pensamentos passionais, porque eles são feitos de paixão e de reflexão. Sendo
assim, é possível vermos muitos pensamentos simples se seguirem a pensamentos
compostos, quando estes tendem para o lado da reflexão. Tomemos o ouro: um
pensamento relativo ao ouro pode surgir na memória de qualquer pessoa, mas, se
alguém pensar então no roubo, terá cometido um pensamento em seu intelecto. À
lembrança do ouro sucederam-se as lembranças da bolsa, do cofre no quarto, etc.
A lembrança do ouro veio composta, pois nela havia paixão. Mas as lembranças da
bolsa e do cofre eram simples, porque o intelecto não tinha paixão por estas
coisas. O mesmo acontece com todos os demais pensamentos, quer se trate da
vanglória, da mulher ou de outras causas de paixão. Os pensamentos que se
seguem a um pensamento passional não são todos passionais, como vimos. Podemos
assim conhecer quais são os pensamentos passionais e quais são os outros.
85.
Alguns dizem que, durante o sono, os demônios tocam as partes genitais do corpo
e o empurram à paixão da prostituição; depois, por seu próprio movimento, a
paixão suscita no intelecto, por meio da memória, a forma da mulher. Outros
dizem que os demônios aparecem ao intelecto sob a forma de mulher, tocando as
partes genitais do corpo, provocando o desejo e que é daí que vêm as
imaginações. Outros ainda dizem que a paixão que domina o demônio quando ele se
aproxima excita nossa própria paixão e que assim a alma se liga aos
pensamentos, suscitando formas neles pela memória. O mesmo acontece com todas
as outras imaginações passionais: uns dizem que elas surgem de um modo, outros
que elas surgem de outro. Porém, qualquer que seja o modo dos quais falamos, os
demônios não têm poder de suscitar uma paixão, qualquer que seja ela, se na
alma existirem o amor e a temperança, quer o corpo durma, quer esteja acordado.
86.
Dentre os mandamentos da Lei, alguns devem ser guardados tanto espiritual
quanto corporalmente, outros apenas espiritualmente. Assim, “não cometer
adultério”, “não matar”, “não roubar”, e outros semelhantes[86],
devem ser guardados tanto corporal como espiritualmente; e, espiritualmente,
eles devem sê-lo três vezes mais. Mas circuncidar[87],
observar o sábado[88],
imolar o cordeiro, comer os ázimos e as ervas amargas[89],
e outros mandamentos semelhantes, só devem ser guardados espiritualmente.
87.
Existem nos monges três estados fundamentais da ética. O primeiro consiste em
não pecar em ato. O segundo, em não deixar permanecer na alma pensamentos
passionais. O terceiro, em observar impassivelmente em pensamento a forma das
mulheres e a imagem daqueles que nos ofenderam.
88.
O pobre é aquele que renunciou a tudo o que era seu, que não possui sobre a
terra absolutamente nada além de seu corpo, e que, depois de haver destruído
até a relação que nos une ao corpo, confiou a Deus e aos homens piedosos o
cuidado de o dirigir.
89.
Dentre os ricos, alguns possuem sem paixão: privados de seus bens, eles não se
afligem, como quem aceita com alegria perder o que é seu[90].
Outros possuem com paixão: ameaçados de serem despojados, eles se tornam
tristes, como o rico do Evangelho que foi embora entristecido[91].
Privados de seus bens, eles se afligem até a morte. É a provação que revela o estado
impassível e o estado passional.
90.
Os demônios combatem os que alcançam as alturas da oração, para impedi-los de
perceber em toda pureza as coisas sensíveis. Eles combatem os gnósticos para
que neles permaneçam pensamentos passionais. Eles atacam os ativos para
persuadi-los a pecar em atos. Os miseráveis os combatem de todas as maneiras,
para separar de Deus os homens.
91.
Aqueles que, levados pela providência divina, dedicam-se à piedade nesta vida,
são submetidos a três provas: ao dom das doçuras, como a saúde, a beleza, a
fecundidade, a fortuna, a glória, etc.; à irrupção de desgraças, com a perda
dos filhos, da fortuna e da glória; ao que faz sofrer o corpo, como as
enfermidades, os suplícios, etc. Aos primeiros, o Senhor diz: “Se alguém não renuncia
a tudo o que possui, este não pode ser meu discípulo[92]”.
Aos outros, ele diz: “Por sua paciência vocês serão salvos[93]”.
92.
É dito que as seguintes quatro causas alteram a compleição do corpo e fornecem
ao intelecto, por intermédio dele, pensamentos passionais ou impassíveis: os
anjos, os demônios, o ar que respiramos e os alimentos que ingerimos. Diz-se
que os anjos transformam pela palavra, que os demônios transformam pelo toque,
que o ar transforma por suas variações, e que o alimento transforma pela
qualidade, a quantidade ou a raridade do que comemos. Sem falar das alterações
que, pela memória, a audição e a visão, modificam a compleição do corpo se a
alma for primeiro afetada pelas aflições ou alegrias que lhe acontecem. Quando
é assim afetada, a alma transforma a compleição do corpo. Mas quando a própria
compleição do corpo é transformada pelo que mencionamos, então é ela que leva
os pensamentos ao intelecto.
93.
A morte é propriamente a separação de Deus[94],
e o aguilhão da morte é o pecado. Ao recebê-la, Adão foi simultaneamente
exilado para longe da Árvore da Vida, longe do Paraíso e longe de Deus[95].
A morte do corpo segue-se necessariamente a esta separação. Quanto à vida, ela
é propriamente Aquele que disse: “Eu sou a vida[96]”.
Foi ele quem, penetrando na morte, devolveu a vida ao homem que estava morto.
94.
Quem escreve livros escreve, seja para alimentar sua própria memória, seja para
servir aos outros, seja pelos dois motivos, ou ainda para prejudicar alguém,
por ostentação ou por necessidade.
95.
Os verdes campos são a virtude ativa; e a água do repouso[97]
é o conhecimento dos seres criados.
96.
A sombra da morte é a vida humana. Assim, se alguém está com Deus e Deus com
ele, ele pode dizer claramente: “Enquanto eu caminhava sob a sombra da morte eu
não temia o mal, porque você estava comigo[98]”.
97.
Um intelecto puro vê as coisas corretamente. A palavra experiente as exprime
com clareza. Um ouvido refinado as escuta. Mas o homem desprovido destes três
dons maltrata quem lhe fala.
98.
Está com Deus quem conhece a Santíssima Trindade, sua criação e sua
providência, e que conserva na impassibilidade a parte da alma submetida às
paixões.
99.
Diz-se que o bastão representa o Julgamento de Deus, e que o cajado significa a
Providência. Quem conheceu um e outro pode dizer: “Seu bastão e seu cajado são
o que me consola[99]”.
100.
Quando o intelecto se despojou das paixões e acha-se iluminado pela
contemplação dos seres, ele pode alcançar a Deus e orar com se deve.
TERCEIRA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR
1.
O uso racional dos pensamentos e das coisas engendra a castidade [o amor] e o
conhecimento. Seu uso irracional engendra o deboche, o ódio e a ignorância.
2.
“Você preparou uma mesa para mim[100]”,
etc. A mesa significa aqui a virtude ativa. Com efeito, é ela que nos foi
preparada por Cristo em face daqueles que nos afligem. O óleo que unta o
intelecto significa a contemplação das criaturas. A taça divina significa o
conhecimento de Deus. Sua piedade significa seu Verbo, que é igualmente Deus.
Pois, por sua encarnação, este nos acompanha todos os dias, até que tenha
alcançado todos os que serão salvos, como Paulo[101].
A casa significa o Reino, onde serão restabelecidos todos os santos. E a
duração dos dias significa a vida eterna.
3.
Os vícios nos vêm por um mau uso das potências da alma, tanto do desejo quanto
da razão. O mau uso da potência racional é a ignorância e a demência; o mau uso
da potência ardente e ardorosa é o ódio e o deboche. Mas o uso natural dessas
potências é o conhecimento e a sabedoria, o amor e a castidade. Assim sendo,
nada do que foi criado e feito por Deus é mau.
4.
Não é o alimento que é mau, mas a gula; não é a procriação dos filhos, mas a
prostituição; nem a riqueza, mas a avareza; nem a glória, mas a vaidade. Sendo
assim, nada do que existe é mau. Mau é somente o mau uso, que surge quando o
intelecto negligencia sua cultura natural.
5.
Nos demônios, como diz o bem-aventurado Denis[102],
o mal é o ardor desprovido de razão, o desejo desprovido de inteligência, a
imaginação exagerada. A irracionalidade, a desinteligência e o exagero são, por
definição, uma privação da razão, da inteligência e da atenção. Ora, a privação
é secundária, ela vem depois da possessão. Houve um tempo em que os demônios
eram providos de razão, inteligência e sábia atenção. Sendo assim, tampouco os
demônios são maus por natureza, mas se tornaram maus pelo mau uso das potências
naturais.
6.
Dentre as paixões, algumas engendram o deboche, outras engendram o ódio, outras
engendram o deboche e o ódio.
7.
Falar e comer demais leva ao deboche. A avareza e a vaidade conduzem ao ódio ao
próximo. A mãe desses vícios é a complacência para consigo mesmo, o egoísmo,
que leva ao deboche e ao ódio.
8.
O egoísmo é a afeição passional e irracional que alguém sente por seu próprio
corpo. Ao egoísmo se opõem o amor e a temperança. É claro que quem tem o
egoísmo tem também todas as paixões.
9.
“Ninguém, diz o Apóstolo, jamais odiou sua própria carne[103]”.
Mas é claro que ele próprio tratou rudemente e sujeitou sua carne[104],
não lhe concedendo mais do que alimento e vestes[105],
e apenas na medida necessária à vida. É assim que se ama a carne fora de
qualquer paixão, que a nutrimos como servidores do divino, que a confortamos
apenas com as coisas que satisfazem às suas necessidades.
10.
A quem amamos, nos dedicamos a servi-lo em tudo. Portanto, se amamos a Deus,
nos dedicaremos em tudo a fazer o que lhe agrada[106].
Mas se amamos a carne, nos dedicaremos a fazer o que lhe é agradável.
11.
A Deus agrada o amor, a castidade, a contemplação, a oração. À carne agradam a
gulodice, o deboche e tudo o que os faz crescer. É por isso que aqueles que
vivem para a carne não podem agradar a Deus[107].
Mas os que estão com Cristo crucificaram a carne com as paixões e a
concupiscência[108].
12.
Se o intelecto se volta para Deus, ele domina o corpo e não lhe concede nada
além do necessário para viver. Mas se ele se volta para a carne, ele fica
submetido às paixões, sempre cuidando dela para satisfazer-lhe a concupiscência[109].
13.
Se você quiser se tornar mestre dos pensamentos, vigie as paixões: você
expulsará facilmente do intelecto os pensamentos passionais. Assim, para
combater a prostituição, vele, jejue, trabalhe, viva na solidão; para combater
a cólera e a tristeza, despreze a glória, a desonra e as coisas materiais; para
combater o ressentimento, reze por que lhe ofendeu, e você será libertado.
14.
Não se compare com os mais fracos dos homens, mas dedique-se sempre aos
mandamentos do amor. Comparando-se com os mais fracos, você será engolido pelo
abismo da presunção; dedicando-se ao mandamento, você progredirá até o cume da
humildade.
15.
Se você guarda sempre o mandamento do amor, você nunca será para outros homens
uma fonte de amargura por afligi-lo. Caso contrário, é claro que, preferindo as
coisas que passam e disputando sua posse, você estará combatendo seu irmão.
16.
A maior parte dos homens não busca o ouro pela necessidade, mas para servir ao
seu prazer.
17.
Existem três causas para o amor ao dinheiro: o gosto pelo prazer, a vaidade e a
falta de fé. Mas a mais grave é a falta de fé.
18.
Quem tem gosto nos prazeres ama o dinheiro para com ele viver no meio das
delícias. O vaidoso o ama para adquirir para si a glória. Quem não tem fé o ama
para escondê-lo e guardá-lo, por temer a fome, a velhice, a doença ou o exílio.
Ele confia mais no dinheiro do que em Deus que criou o mundo todo e vela até
pelos últimos e os menores seres vivos.
19.
Quatro tipos de homens dão importância ao dinheiro: os três de que falamos, e o
ecônomo, o administrador que gere uma comunidade. Mas apenas este,
evidentemente, distribui o dinheiro como se deve, a fim de poder dar sempre a
cada um na medida daquilo que ele precisa.
20.
Todos os pensamentos passionais ou bem excitam o desejo da alma ou bem
perturbam seu ardor e sua razão. Então o intelecto se torna cego, incapaz de
assumir a contemplação espiritual e os voos da oração. É por isso que o monge,
em especial aquele que vive na hesíquia, deve estar rigorosamente atento aos
pensamentos, conhecê-los e suprimir suas causas. Eis como ele pode conhecê-los:
por exemplo, a lembrança passional das mulheres excita o desejo na alma; a
causa desta lembrança é a intemperança no comer e no beber, assim como as
conversas frequentes e sem motivo com as próprias mulheres. Ora, esta lembrança
pode ser apagada com a fome, a sede, as vigílias e a anacorese. Quanto ao
ardor, ele é perturbado pela lembrança passional das aflições: a causa desta
lembrança é o gosto pelo prazer, a vaidade, o amor pelas coisas materiais, pois
o passional se aflige por estar privado destas coisas, ou por não conseguir
obtê-las. Mas se elas são desdenhadas e consideradas como nada, sua lembrança é
apagada pelo amor a Deus.
21.
Deus conhece a si mesmo. Ele também conhece aquilo que ele criou. Da mesma
forma, as Santas Potências conhecem a Deus, e também conhecem aquilo que Deus
criou. Mas elas não conhecem a Deus nem aquilo que ele criou da mesma maneira
como Deus se conhece e conhece suas criaturas.
22.
Deus conhece a si mesmo por sua essência bem-aventurada. E ele conhece suas
criaturas por sua sabedoria, por meio da qual e na qual tudo ele faz. Mas as
Santas Potências conhecem a Deus por participação, e ele próprio está acima de
toda participação. E é pela percepção daquilo que elas contemplam nas criaturas
que elas as conhecem.
23.
As criaturas são exteriores ao intelecto. Este só percebe interiormente aquilo
que ele contempla. Mas o mesmo não acontece com Deus, eterno, infinito,
ilimitado, que concede às criaturas estarem bem e serem sempre.
24.
A natureza dotada de razão e de inteligência participa do Deus santo por seu
próprio ser, por sua aptidão em estar bem – vale dizer, por sua aptidão para a
bondade e a sabedoria, e pela graça de sempre ser. É assim que ela conhece a
Deus. Mas ela conhece aquilo que Deus criou, com eu disse, pela percepção da
sabedoria e de sua arte, que ela contempla nas criaturas e que se encontra em
estado puro no intelecto, fora de toda matéria.
25.
Ao conceder ao ser a natureza dotada de razão e de inteligência, Deus, em sua
extrema bondade, lhe comunicou quatro das qualidades divinas por meio das quais
ele abraça, protege e salva suas criaturas: o ser, o ser sempre, a bondade e a
sabedoria. Ele concedeu as duas primeiras à natureza em sua essência. E
concedeu as duas outras – a bondade e a sabedoria – à aptidão de conhecer, a
fim de que a criatura chegue por participação àquilo que ele é por essência; é
por isso que se diz que a criatura é feita à imagem e semelhança de Deus. À
imagem, por ser a própria imagem d’Aquele que é, e por ser sempre a própria
imagem d’Aquele que é sempre. E à semelhança, por ser boa, da mesma bondade
d’Aquele que é bom, e sábia, da mesma sabedoria d’Aquele que é sábio. Ela é
pela graça aquilo que Deus é por natureza. Assim, toda natureza dotada de razão
é à imagem de Deus; mas à sua semelhança, somente os bons e os sábios.
26.
A natureza dotada de razão e inteligência se divide em duas: a natureza
angélica e a natureza humana. A natureza angélica se divide em duas tendências
gerais e em dois grupos – os santos e os malditos – ou seja, em potências
santas e em demônios impuros. A natureza humana se divide também em duas
tendências, em homens piedosos e ímpios.
27.
Deus, que é a própria existência, a própria bondade, a própria sabedoria, e
que, a bem dizer, está muito acima de todas estas qualidades, não possui
absolutamente nada em si que lhe seja contrário. Mas as criaturas, que não
existem senão pela participação e pela graça, mesmo aquelas dotadas de razão e
intelecto e são aptas à bondade e à sabedoria, têm em si seus contrários: com a
existência, a inexistência; com a aptidão para a bondade e a sabedoria, a
malícia e a ignorância. Ora, existir sempre, ou não existir, está nas mãos do
Criador. Mas participar ou não de sua bondade e de sua sabedoria, depende da vontade
dos seres racionais.
28.
Ao afirmar que a essência das coisas existe com Deus por toda a eternidade e
que ela não recebe dele senão suas próprias qualidades, os Gregos dizem que não
existe nada contrário à essência e que só existem contrários nas qualidades.
Nós dizemos que apenas a essência divina não tem contrário, pois ela é eterna e
infinita, e concede a eternidade aos outros; mas que a essência dos seres
possui seu contrário, que é o nada; que Aquele que é plenamente tem o poder de
fazer com que esta essência seja para sempre, ou que não seja; e que ele não
volta atrás naquilo que ele concedeu. É por isso que a essência das coisas é
para sempre, e será, por ser mantida pelo poder que domina o universo, ainda
que ela possua seu contrário, como foi dito, pois ela foi trazida do nada ao
ser, e é da vontade de Deus que ela possua o ser ou o nada.
29.
Assim como o mal é a privação do bem e a ignorância é a privação do
conhecimento, também o nada é a privação do ser, não do Ser em si, pois este
não possui contrário, mas para o ser por participação. Ora, a privação do bem e
do conhecimento depende da resolução das criaturas. Mas a privação do ser
depende da vontade do Criador que, em sua bondade, quer sempre que os seres
sejam, e que recebam sempre suas benesses.
30.
Dentre as criaturas, algumas são dotadas de razão e intelecto e recebem seus
contrários, como a virtude e o vício, o conhecimento e a ignorância, enquanto
outras são os diversos corpos compostos por contrários, como a terra, o ar, o
fogo e a água. Os primeiros são inteiramente incorpóreos e imateriais, mesmo
que alguns estejam unidos a um corpo. Os demais não são constituídos senão por
matéria e forma.
31.
Todos os corpos são, por natureza, imóveis. Eles se movem por meio da alma: uns
por uma alma dotada de razão, outros por uma alma privada de razão, outros por
uma alma insensível.
32.
Dentre as potências da alma, uma está voltada para a alimentação e o
crescimento, outra à imaginação e à impulsão, outra à razão e à inteligência.
As plantas só participam da primeira potência; os animais irracionais
acrescentam a esta a segunda. Enfim, os homens acrescentam a terceira às duas
primeiras. Ora, as duas primeiras potências são corruptíveis; mas a terceira se
revela incorruptível e imortal.
33.
As santas potências transmitem a iluminação umas às outras. Elas a transmitem à
natureza humana, seja pela virtude, seja pelo conhecimento que há nelas. Elas
transmitem a virtude à imitação de Deus, a virtude com a qual fazem o bem a si
mesmas e entre si, e às potências que estão abaixo delas, trabalhando para
torná-las semelhantes a Deus. E transmitem o conhecimento, ou sobre Deus, por
meio de uma visão mais elevada (pois foi dito: “Tu és o Altíssimo por toda a
eternidade, Senhor[110]”);
ou sobre os incorporais, por uma visão mais profunda; ou sobre os corpos, por
uma visão mais precisa; ou sobre a providência, por uma visão mais penetrante;
ou sobre o Juízo, por uma visão mais clara.
34.
A impureza do intelecto está, em primeiro lugar, em possuir um falso conhecimento;
em segundo lugar, em ignorar um dos universais (falo do intelecto humano, pois
o intelecto dos anjos não ignora coisa alguma, ainda que parcialmente); em
terceiro, em ter pensamentos passionais; e, em quarto, em consentir no pecado.
35.
A impureza da alma está em não agir conforme a natureza. Pois é assim que
nascem no intelecto os pensamentos passionais. A alma age segundo a natureza
quando, solicitadas pelas coisas e por seus pensamentos, as potências que a
levam à paixão – o ardor e o desejo – permanecem impassíveis.
36.
A impureza do corpo é o pecado em ato.
37.
Aquele que não sente nenhuma paixão pelas coisas do mundo ama a hesíquia. Quem
não ama nada do que é humano ama a todos os homens. Aquele a quem ninguém
escandaliza por suas faltas e seus pensamentos suspeitos, tem o conhecimento de
Deus e do divino.
38.
É uma grande coisa não sentir paixão pelas coisas; mas é ainda maior permanecer
impassível diante dos seus pensamentos.
39.
Amor e temperança mantêm o intelecto impassível diante das coisas e de seus
pensamentos.
40.
O intelecto daquele que é amado por Deus combate, não as coisas, nem seus
pensamentos, mas as paixões que estão ligadas aos pensamentos. Assim, ele
combate não as mulheres, nem os ofensores, nem suas imagens, mas as paixões
ligadas às imagens.
41.
Todo o combate do monge contra os demônios consiste em separar as paixões dos
pensamentos, pois, sem isto, é impossível de as coisas com impassibilidade.
42.
Não confundir a coisa, o pensamento e a paixão. Assim, a coisa pode ser uma
mulher, um homem, o ouro, etc. O pensamento é a simples lembrança destas
coisas. A paixão é o afeto irracional ou a aversão irrefletida por alguma
destas coisas. Assim, é contra as paixões que luta o monge.
43.
O pensamento passional é composto de paixão e pensamento. Separemos o
pensamento da paixão, e o que resta é um pensamento simples. Se o quisermos,
podemos separá-los por meio do amor espiritual e da temperança.
44.
As virtudes separam o intelecto das paixões. As contemplações espirituais o
separam dos simples pensamentos. Enfim, a oração pura o conduz para junto de
Deus.
45.
As virtudes passam pelo conhecimento das criaturas. O conhecimento passa por
aquele que conhece. E o que conhece passa por Aquele que é conhecido no
“desconhecimento” e que conhece além de todo conhecimento.
46.
Na superabundância de sua plenitude, Deu não deu existência às criaturas porque
tivesse necessidade de alguma coisa[111],
mas para que as criaturas fossem felizes por participar de sua semelhança, e
para que ele próprio se regozijasse com suas obras[112],
vendo-as, cumuladas de alegria, bebendo do inesgotável.
47.
Existem no mundo muitos pobres de espírito, mas não como deveria, ser. Existem
muitos aflitos, mas porque não têm mais dinheiro ou porque perderam seus filhos.
Existem muitos mansos, mas para se dedicarem às paixões impuras. Existem muitos
famintos e sedentos, mas para tomar o que é dos outros e se beneficiar
injustamente. Existem muitos complacentes, mas para satisfazer o corpo e as
coisas do corpo. Existem muitos corações puros, mas por vaidade. Existem
Pacíficos, mas porque submetem a alma à carne. Existem muitos perseguidos, mas
porque se entregam à desordem. Muitos, enfim, são ultrajados, mas por pecados
infames. Bem-aventurados são apenas os que tudo isto fazem e aguentam por
Cristo. Por quê? Porque o Reino dos céus é deles, porque eles verão a Deus[113],
etc. Não é porque eles fazem e aguentam tudo isto que eles são bem-aventurados
– pois aqueles de que falamos também o fazem e aguentam – mas porque eles o fazem
e aguentam por Cristo.
48.
Em tudo o que fazemos, como já foi dito mais de uma vez, Deus procura nosso
objetivo: se agimos por ele, ou por alguma outra finalidade. Assim, se
quisermos fazer o bem, não tenhamos como objetivo agradar aos homens, mas nos
encaminharmos para Deus. Desta maneira, com os olhos sempre voltados para ele,
façamos tudo por ele para que, suportando as penas, não percamos a recompensa.
49.
No momento da oração, rejeite do intelecto até mesmo os simples pensamentos das
coisas humanas e mais tudo o que você viu das criaturas, a fim de não perder
Aquele que é incomparavelmente mais elevado do que todos os seres, imaginando
coisas mais baixas.
50.
Se amarmos verdadeiramente a Deus, por este mesmo amor rejeitaremos as paixões.
Ora, amar a Deus significa preferi-lo ao mundo, é preferir a alma à carne,
desprezando as coisas mundanas e consagrando-se sempre a Deus pela temperança,
pelo amor, pela oração, pela salmodia e por tudo o que se lhes segue.
51.
Se, nos consagrando longamente a Deus, vigiarmos a parte passional da alma, não
cederemos aos ataques dos pensamentos. Ao contrário, contemplando-os com mais
precisão e suprimindo suas causas, nos tornaremos mais clarividentes, até que
se cumpram em nós as palavras: “Meu olho viu os inimigos e meu ouvido escutou
os que tramavam o mal e se levantavam contra mim[114]”.
52.
Quando você perceber que seu intelecto permanece na piedade e na justiça mesmo
quando está voltado para as coisas do mundo, saiba que também seu corpo
permanecerá sem pecado. Mas quando você ver seu intelecto ocupado em pensar nos
pecados, saiba que seu corpo não tardará a cair neles.
53.
Assim como o mundo do corpo são as coisas, o mundo do intelecto são os
pensamentos. E assim como o corpo se prostitui com o corpo da mulher, o
intelecto se prostitui com o pensamento da mulher, imaginando seu corpo. Pois
ele vê a imagem de seu próprio corpo unido em pensamento à imagem da mulher, do
mesmo modo como ele repele em pensamento a imagem de alguém que o ofendeu. O
mesmo acontece com os outros pecados. Pois aquilo que o corpo faz em ato no
mundo das coisas, o intelecto faz no mundo dos pensamentos.
54.
Não há porque se assustar, espantar ou perturbar, porque Deus Pai não julga
ninguém e por ter ele entregue todo julgamento ao Filho. Diz o Filho: “Não
julguem, para que não sejam julgados[115].
Não condenem, para não serem condenados[116]”.
Também o Apóstolo: “Não julguem antes do tempo, até que venha o Senhor[117]”
e “Com o julgamento com que você julga a outros, você condenará a si próprio[118]”.
Mas os homens, sem se preocupar em chorar seus próprios pecados, tiraram do
Filho o julgamento. E eles mesmos, como se fossem sem pecado, passaram a julgar
e condenar uns aos outros. Diante disto, o céu se perturbou e a terra tremeu.
Mas eles permaneceram insensíveis e não se envergonham de nada.
55.
Aquele que se ocupa dos pecados dos outros e que julga seu irmão com base numa
simples suspeita, ainda nem começou a se arrepender. Ele não tenta conhecer
seus próprios pecados, que na verdade são mais pesados do que uma grande massa
de chumbo. Ele também não entendeu de onde vem ao homem seu coração duro, que
ama a vaidade e busca a mentira[119].
É por isso que, como um louco em meio às trevas[120],
sem se preocupar com seus próprios pecados, ele imagina os dos outros, reais ou
supostos.
56.
O egoísmo, como já foi dito muitas vezes, está na origem de todos os
pensamentos passionais, pois é dele que nascem os três vícios capitais da
concupiscência: a gula, a avareza e a vanglória. Da gula nasce a prostituição,
da avareza a cupidez, da vanglória o orgulho. Todos os demais vícios – a
cólera, a tristeza, o ressentimento, a inveja, a maledicência, etc – seguem-se
a um destes três. Desta forma estas paixões ligam o intelecto às coisas
materiais, atiram-no por terra, cobrem-no com uma pesada pedra, ainda que ele
próprio seja mais leve e vivo do que o fogo.
57.
A origem de todas as paixões é o egoísmo. O egoísmo é o afeto irracional pelo
corpo. Aquele que o destrói, destrói ao mesmo tempo todas as paixões que dele
provêm.
58.
Assim como os pais sentem afeto pelos corpos que engendraram, também o
intelecto está naturalmente ligado às suas próprias razões. E assim como os
pais apaixonados acham que seus filhos são os melhores e mais dotados, também o
intelecto tolo acha suas próprias razões as mais sensatas do mundo, ainda que
elas sejam as piores de todas. Mas não é assim que o sábio considera suas
razões. Quando ele está convencido de que elas são verdadeiras e boas, é aí que
ele duvida de seu próprio julgamento. Ele submete suas razões e seus
julgamentos aos de outros sábios, por medo de correr ou de ter corrido em vão[121].
É deles que ele receberá a confirmação.
59.
Quando você conseguir vencer algumas das paixões mais infamantes, como a gula,
a prostituição, a cólera ou a cupidez, logo surgirá em você o pensamento da
vanglória. E, se você conseguir vencer esta última, surgirá em seguida o
pensamento do orgulho.
60.
Todas as paixões infames, quando se apoderam da alma, dela expulsam o
pensamento da vanglória. Mas quando elas são vencidas, desencadeia-se na alma
este pensamento.
61.
Quer seja destruída, quer permaneça, a vanglória engendra o orgulho. Se ela é
destruída, suscita a presunção; se permanece, suscita a jactância.
62.
A ação oculta destrói a vanglória, e atribuir a Deus tudo o que se faz de bom
destrói o orgulho.
63.
Quem se tornou digno de receber o conhecimento de Deus e que realmente
desfrutou deste prazer, desdenhará todos os prazeres engendrados pela
concupiscência.
64.
Quem cobiça as coisas terrestres cobiça ou as comidas, ou os prazeres do baixo
ventre, ou a glória humana, ou o dinheiro, ou qualquer outra coisa provocada
por estas paixões. E se o intelecto não encontra nada de melhor para onde
dirigir seu desejo, ele não será capaz de desprezar estas coisas. Mas o
conhecimento de Deus e do divino é incomparavelmente melhor.
65.
Os que desprezam os prazeres o fazem por temor, ou graças à esperança, ou
graças ao conhecimento, ou por amor a Deus.
66.
O conhecimento desapaixonado das coisas divinas não leva de modo algum o
intelecto a desprezar as coisas materiais, mas antes se assemelha a um simples
pensamento de uma coisa sensível. É por isso que podemos encontrar tantos
homens que, mesmo tendo um grande conhecimento, chafurdam na lama como porcos.
Tendo sido inicialmente um pouco purificados por sua aplicação e tendo
alcançado o conhecimento, eles se deixaram vencer e se tornaram como Saul, que
foi considerado digno da realeza[122],
mas governou de modo indigno e foi privado de seu cargo pela cólera terrível de
Deus.
67.
Assim como o simples pensamento das coisas humanas não obriga o intelecto a
desprezar as coisas de Deus, também o simples conhecimento das coisas de Deus
não leva absolutamente o intelecto a desdenhar as coisas humanas. Pois em nosso
estado atual não vemos a verdade senão pelas sombras e as imagens, e é por isso
que temos necessidade da bem-aventurada afeição do santo amor que liga o
intelecto àquilo que a contemplação espiritual vê, e que o conduz a preferir o
imaterial ao material, e ao sensível o inteligível e o divino.
68.
Quem afastou as paixões e simplificou os pensamentos, nem por isso os voltou
para o divino. Talvez ele já não seja afetado pelas coisas humanas, mas ele
ainda não é afetado pelas coisas divinas. É o que acontece àqueles que são apenas
ativos, mas ainda não foram considerados dignos do conhecimento. Eles se abstêm
das paixões por medo do castigo, ou pela esperança do Reino.
69.
É pela fé que caminhamos, não pela visão. E é através de espelhos e enigmas que
possuímos a virtude[123].
Assim, precisamos nos dedicar muito ao divino, a fim de que, meditando sobre
ele e permanecendo constantemente com ele, alcancemos um estado de contemplação
do qual seja difícil que nos separemos.
70.
Se, logo após de termos afastado um pouco as causas das paixões, nós nos
dedicamos às contemplações espirituais, porém sem lhes consagrarmos todo nosso
tempo e sem as tornarmos nossa própria obra, logo retornaremos às paixões da
carne, sem termos colhido outro fruto do que um simples conhecimento mesclado
de presunção. Este conhecimento acabará por entenebrecer pouco a pouco, e o
intelecto outra vez se voltará inteiramente às coisas materiais.
71.
Uma paixão de amor condenável faz com que o intelecto se ocupe de coisas
materiais. Uma paixão de amor digna de louvores o liga às coisas divinas. Pois
o intelecto costuma se estender sobre as coisas às quais ele se prende. E é
para estas coisas sobre as quais ele se debruça que ele volta seu desejo e seu
amor: seja para as coisas inteligíveis que lhe são próprias, seja para as
coisas e as paixões da carne.
72.
Deus criou o mundo visível e o mundo invisível. Vale dizer que ele próprio fez
tanto a alma como o corpo. Ora, se o mundo visível é bom, como será o
invisível? E se o invisível é mais elevado do que o visível, quão mais alto que
os dois será Deus, que os criou? Assim, se o Criador de todos os bens é mais
alto do que todas as criaturas, porque razão o intelecto, deixando de lado o
que é mais elevado do que tudo, se ocupa com o que há de mais inferior a tudo,
ou seja, das paixões da carne? Está claro que, por viver entre as paixões desde
o nascimento, por estar acostumado com elas, ele ainda não conhece por uma
perfeita experiência aquilo que é maior e mais alto do que tudo. Mas se, por
uma longa ascese consistente em temperança nos prazeres e em meditação do
divino, o retirarmos pouco a pouco deste estado, ele se debruçará
progressivamente sobre as coisas de Deus e conhecerá sua própria dignidade. E,
no final, ele dirigirá todo seu desejo para Deus.
73.
Aquele que fala dos pecados do seu irmão desapaixonadamente, pode fazê-lo por
duas razões: ou para corrigi-lo, ou para ser útil a outra pessoa. Fora destas
razões, se ele falar disto ao irmão ou a qualquer outro, ele o insultará ou o
ultrajará, e não deixará de ser abandonado por Deus. Ele cairá na mesma falta
ou em outra qualquer e, denunciado e insultado pelos outros, será confundido.
74.
Pessoas que cometem, o mesmo pecado em ato não têm a mesma razão para tal, mas
razões diversas. Assim, uma coisa é pecar por hábito, outra pecar de surpresa.
Aquele que é surpreendido por uma falta não pensava nela antes do pecado e nela
não pensará após o pecado, mas ficará aflito com o que aconteceu. Quem peca por
hábito é o contrário. Antes, ele não cessava de pecar em pensamento, e depois
do ato ele permanece no mesmo estado.
75.
Quem busca as virtudes por vanglória, é claro que será também pela vanglória
que buscará o conhecimento. E é evidente que tal pessoa não fará nem dirá nada
para a edificação, mas em tudo perseguirá a glória que espera dos que o virem
ou escutarem. Enfim ele é desnudado em sua paixão quando alguns condenam seus
atos ou suas palavras. Ele então fica triste, não porque não os tenha edificado
– pois não era este seu objetivo – mas porque foi desprezado.
76.
Esta é a prova da paixão da avareza: receber com alegria e partilhar com
tristeza. Um homem assim não será capaz de prover as necessidades dos outros.
77.
Suportamos pacientemente o sofrimento pelas seguintes razões: por amor a Deus,
pela esperança da recompensa, pelo temor do castigo, por medo dos homens, por
natureza, por prazer, por um benefício, por vanglória ou por necessidade.
78.
Uma coisa é estar desembaraçado dos pensamentos, outra é estar liberto das
paixões. Muitas vezes nos desembaraçamos dos pensamentos porque não estão neles
as coisas às quais nos levam as paixões. Mas estas permanecem ocultas na alma e
se mostram desde que reapareçam as coisas. É preciso, assim guardar o intelecto
diante das coisas e saber por quais ele está apaixonado.
79.
Um amigo verdadeiro é aquele que, no momento da provação, suporta junto com seu
próximo, como se fossem suas – sem perturbação nem aflição – as aflições,
constrangimentos e infortúnios trazidos pelas circunstâncias.
80.
Não desdenhe a consciência que o aconselha sempre o melhor. Pois ela lhe
transmite o julgamento de Deus e dos anjos, ela o livra das sujeiras escondidas
no coração, e, no momento do êxodo, ela lhe permite apresentar-se livre diante
de Deus.
81.
Se você quiser ser instruído e comedido e não estar escravizado da paixão nem
da presunção procure sempre nos seres o que está oculto ao seu conhecimento. Ao
descobrir o grande número e a enorme diversidade de coisas que lhe escapam,
você ficará espantado com sua ignorância e se tornará menos arrogante.
Conhecendo a si mesmo, você compreenderá então muitas coisas grandes e
maravilhosas. Acreditar que se sabe impede, com efeito, de progredir no
conhecimento.
82.
Quem quiser ser verdadeiramente salvo não deve se opor aos remédios do médico,
tais como as aflições e as tristezas que
os acontecimentos tantas vezes carregam. Quem se opõe não sabe o que se estes
remédios encerram, nem o que acontecerá àquele que deles tirar proveito.
83.
A vanglória e a avareza engendram uma à outra. Os vaidosos enriquecem e os
ricos são vaidosos. Mas estes são homens do mundo. Mas o monge, se não possui
nada, pode se tornar ainda mais vaidoso; e se tem dinheiro o esconde, com
vergonha de possuir algo que não corresponde ao seu estado.
84.
Esta é a vanglória do monge: extrair vaidade da virtude e de suas consequências.
E este é seu orgulho: glorificar-se de suas ações corretas, desprezar os
outros, atribuir estas ações a si mesmo e não a Deus. Quanto ao homem do mundo,
estes são seu orgulho e sua vanglória: extrair vaidade e glorificar-se da
beleza, da riqueza, do poder e da sabedoria.
85.
As virtudes dos homens do mundo são os defeitos dos monges, e as virtudes dos
monges são os defeitos dos homens do mundo. Assim é que as virtudes dos homens
do mundo são a riqueza, a glória, o poder, as delícias, a felicidade em ter
filhos e tudo o mais. Se o monge chegar neste ponto, está perdido. As virtudes
do monge são a despossessão, a obscuridade, a impotência, a temperança, a vida
dura e tudo o que se segue. Se aquele que ama o mundo chega a este ponto contra
sua vontade, vê isto como uma grande queda, e corre o risco de se suicidar.
Alguns o fizeram.
86.
Os alimentos estão fundamentados em duas razões: alimentar e servir de remédio.
Portanto, quem os toma fora destas duas razões, por abusarem daquilo que Deus
nos deu para nos servirmos e só buscarem desfrutar disto, está condenado. Em
todas as coisas, o pecado é o abuso.
87.
A humildade consiste numa prece contínua entre penas e lágrimas. Por não cessar
de pedir o socorro de Deus, ela impede a pessoa de confiar tolamente em seu
próprio poder e seu próprio saber, e também de se considerar acima dos outros.
Estas coisas são as duras enfermidades da paixão do orgulho.
88.
Uma coisa é combater o simples pensamento, para que ele não suscite a paixão, e
outra é combater o pensamento passional, para que não surja o consentimento.
Porém, um e outro combate visam evitar que o pensamento se torne inveterado.
89.
A tristeza está ligada ao ressentimento. Quando o intelecto vê com tristeza o
rosto de um irmão em seu espelho, é claro que aí existe ressentimento contra
ele. Os caminhos dos que guardam rancor conduzem à morte[124],
pois todo homem que guarda rancor é injusto.
90.
Se você se ressente de alguém, reze por ele e você impedirá a paixão de ir
adiante. Com a oração, você subtrairá a tristeza da lembrança do mal que ele
lhe fez. Alcançando o amor e a bem-aventurança, você apagará completamente a
paixão de sua alma. E se outro tiver ressentimento contra você, faça o bem a
ele, seja humilde, viva em paz com ele, e você se livrará da paixão.
91.
É difícil apaziguar a tristeza de alguém que o inveja, pois ele considera como
sua infelicidade aquilo que ele inveja em você. E só será possível apaziguar
esta tristeza escondendo aquilo que ele inveja em você. Mas se aquilo que ele
inveja é útil para outros, ao mesmo tempo em que o aflige, que partido tomar? É
preciso ser útil à maioria, mas sem negligenciar aquele homem, na medida do
possível, nem se deixar levar pela malícia de sua paixão, pois não é a paixão,
mas o homem que está sob sua influência, que você deve defender. É preciso,
assim, humildemente, que você considere este homem como mais do que você, e
preferi-lo a você em todo tempo e lugar. Quanto à sua própria inveja, você pode
apaziguá-la se você se regozija com a pessoa que você inveja quando ela se
regozija, e afligir-se com ela quando ela se aflige. Assim você cumprirá as
palavras do Apóstolo: “Alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que
choram[125]”.
92.
Nosso intelecto oscila entre duas forças, cada qual com sua ação própria. Uma
suscita a virtude, outra o vício. Vale dizer que o intelecto é presa simultânea
de um anjo e de um demônio. Mas ele tem o poder de seguir ou de combater a quem
ele quiser.
93.
As santas potências nos conduzem ao bem. As sementes naturais e a boa vontade
nos auxiliam. Mas as paixões e a má vontade suscitam os ataques dos demônios.
94.
Quando Deus se manifesta, ele ensina ao intelecto a inteligência pura; também
as santas potências o arrastam para o bem, e mesmo a natureza das coisas,
quando ele a contempla.
95.
É preciso que o intelecto a quem foi dado o conhecimento guarde longe de toda
paixão os pensamentos das coisas, longe de todo erro aquilo que ele vê na
contemplação, e longe de toda perturbação o estado de oração. Mas ele não
consegue manter tudo isto longe dos levantes da carne se estiver enfumaçado
pelas intrigas dos demônios.
96.
O que nos entristece não é a mesma coisa que nos irrita, pois o que provoca a
tristeza é mais forte do que o que provoca a irritação. Assim uma coisa se
quebrou, outra se perdeu, alguém morreu: nós ficamos tristes. Mas em outras
ocasiões ficamos tristes e irritados, porque nos falta a filosofia.
97.
Quando o intelecto recebe os pensamentos das coisas, ele toma naturalmente a
forma de cada um destes pensamentos. Quando ele as contempla espiritualmente,
ele se transfigura de diversas maneiras conforme aquilo que vê. Mas quando ele
está em Deus, ele perde toda forma e toda figura, pois, contemplando o único,
ele se torna único e inteiramente luminoso.
98.
Perfeita é a alma cujo poder de paixão está inteiramente voltado para Deus.
99.
Perfeito é o intelecto quando, para além de todo conhecimento, ele conhece o
mais do que desconhecido numa ignorância que ultrapassa toda ignorância; quando
ele contempla as razões universais de suas criaturas, e quando recebe de Deus o
conhecimento que abarca a providência e o julgamento referentes às criaturas,
na medida, é claro, em que isto é possível aos homens.
100.
O tempo se divide em três. A fé se estende sobre os três períodos, a esperança
sobre um só. A fé e a esperança têm limite. Mas o amor permanece pelos séculos
infinitos, mais do que unido ao mais do que infinito que sempre cresce para
além de todo crescimento. É por isso que a maior de todas as virtudes é o amor[126].
QUARTA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR
1.
Antes de tudo, quando considera a infinitude absoluta de Deus, este oceano
inalcançável e tão desejado, o intelecto admira. Depois ele se espanta com o
pensamento de ele tenha levado os seres do nada à existência. Mas assim como
sua grandeza não tem limites[127],
sua sabedoria é insondável[128].
2.
De fato, como ele não se admiraria, ao contemplar este oceano de bondade, que
ultrapassa a admiração? Como não se sentiria transportado, ao considerar como e
de onde proveio o ser feito de razão e inteligência? E os quatro elementos de
que são feitos os corpos, sem que nenhuma matéria tenha preexistido
anteriormente à sua gênese? E o que é este poder que, tendo posto mãos à obra,
os fez ser? É isto que os filhos dos Gregos não aceitam, eles que ignoram a
bondade todo-poderosa, sua sabedoria e conhecimento ativos, que ultrapassam o
intelecto.
3.
Deus, que, de toda eternidade, é Criador, criou quando quis, pelo Verbo
consubstancial e pelo Espírito, em sua infinita bondade. E não me pergunte por
qual razão ele criou naquele momento, uma vez que ele é bom eternamente. Pois
eu afirmo que a sabedoria insondável da essência divina escapa ao conhecimento
humano.
4.
Quando quis, Deus fez nascer e crescer os seres cujo conhecimento preexistia
nele por toda eternidade. Pois é absurdo duvidar que o Deus poderoso seja capaz
de dar nascimento a um ser quando quiser.
5.
Procure a razão pela qual Deus criou. Pois você pode sabê-lo. Mas não procure como
e porque ele criou num determinado momento, porque isto escapa à sua
inteligência. Dentre as coisas de Deus, algumas são compreensíveis, outras são
incompreensíveis aos homens. Uma contemplação sem freios pode levar ao abismo,
já dizia um santo.
6.
Alguns dizem que as criaturas existem com Deus de toda eternidade, o que é
impossível. Pois como os seres que, em tudo, são finitos, poderiam existir de
toda eternidade com Aquele que é totalmente infinito? Ou como seriam eles
propriamente criaturas, se fossem eternos com o Criador? Ora, é isto que
afirmam os Gregos, que dizem que Deus não é o Criador do ser, mas apenas das
qualidades. Mas nós que conhecemos o Deus todo-poderoso, dizemos que ele é
Criador, não somente das qualidades, mas dos seres que formou. Ora, se é assim,
as criaturas não existem com Deus de toda a eternidade.
7.
Em um sentido, é possível conhecer Deus e o divino, e noutro sentido, é
impossível conhecê-los. É possível conhecer a Deus contemplando o que o cerca,
mas é impossível conhecê-lo pelo que ele é em si mesmo.
8.
Não procure na essência simples e infinita da Santíssima Trindade estados e
qualidades próprias, a fim de não fazer dela um ser composto, como o são as
criaturas: conceber a Deus desta maneira é absurdo e sacrílego.
9.
Simples, única, sem qualidades, pacífica e calma é a essência infinita,
todo-poderosa, criadora do universo. Mas todas as criaturas são compostas de
essência e acidente, e têm sempre necessidade da divina Providência, pois não
está livre das mudanças.
10.
Toda natureza dotada de inteligência e sentidos, uma vez levada à existência,
recebe de Deus a capacidade de perceber os seres. Dotada de intelecto, recebe
intelecções; dotada de sentidos, recebe sensações.
11.
Deus é somente participado. Mas a criatura participa e transmite. Ela participa
do ser e só transmite o ser bem; mas a natureza corporal transmite de uma
maneira, e a natureza incorpórea de outra.
12.
A natureza incorpórea transmite o ser bem quando ela fala, quando age, quando é
contemplada. A natureza corpórea o transmite apenas quando é contemplada.
13.
Que a natureza dotada de intelecto e razão exista para sempre ou não exista
depende da vontade d’Aquele que criou todos os bens. Mas utilizar estes bens no
bom sentido, ou desviá-los, depende da vontade das criaturas.
14.
Não é no ser das criaturas que descobrimos o mal, mas em seus movimentos falsos
e desprovidos de razão.
15.
A alma é mesclada segundo a razão quando seu desejo é comandado pela
temperança, quando seu ardor está ligado ao amor desviando-se da aversão,
quando sua razão conduz a Deus pela oração e a contemplação espiritual.
16.
Quem, no momento das provações, falta com a paciência às aflições que lhe
chegam e se afasta do amor de seus irmãos espirituais, ainda não possui o amor
perfeito nem o conhecimento profundo da providência divina.
17.
O objetivo da Providência é de unificar pela fé direita e o amor espiritual
aqueles que de muitas maneiras o mal despedaçou. Foi por isso que sofreu o
Salvador: reunir na unidade[129]
os filhos de Deus que estavam dispersos. Portanto, aquele que não aguenta o que
o incomoda, que não suporta o que o aflige, que não assume suas penas, não
caminha pela via do amor divino e falta com o objetivo da Providência.
18.
Se o amor é paciente e benevolente[130],
quem perde a coragem quando chegam as aflições, e por causa disso faz mal aos
que o afligiram, cortando-os do amor que a eles deve, como não decairá da
finalidade da Providência divina?
19.
Vele sobre si mesmo. Tome cuidado para que o mal que o separa de seu irmão não
esteja nele, mas em você. Apresse-se em se reconciliar com ele[131],
a fim de não contrariar o mandamento do amor.
20.
Não desdenhe o mandamento do amor. É por meio dele que você será filho de Deus.
Mas se você o transgredir você se tornará filho da Geena.
21.
As seguintes coisas afastam o amor entre amigos: invejar ou ser invejado, lesar
ou ser lesado, ofender ou ser ofendido, suspeitar. Você, em alguma ocasião, não
fez algo que o afastasse do amor do seu amigo?
22.
Você já foi provado por causa do seu irmão, e a tristeza já o levou à aversão?
Não se deixe vencer pela aversão, mas vença a aversão com o amor. Eis como você
vencerá: orando sinceramente a Deus por ele, dando-lhe o direito de defesa, ou
mesmo assistindo-o para justificá-lo, considerando ser você mesmo o responsável
por sua provação, e suportando-a com paciência até que a nuvem tenha passado.
23.
Paciente é aquele que aguarda o fim da provação e que recebe a glória da
perseverança.
24.
O homem paciente possui uma grande sabedoria[132].
Pois ele reporta à finalidade tudo o que lhe acontece, e suporta as aflições
aguardando este final. Ora, segundo o Apóstolo[133],
o fim é a vida eterna. E a vida eterna é que o conheçamos, ao único e
verdadeiro Deus, e ao que foi por ele enviado, Jesus Cristo[134].
25.
Não consinta perder o amor espiritual, pois nenhuma outra via de salvação foi
deixada aos homens.
26.
Não julgue como falso e mentiroso o irmão que ontem você considerava como
espiritual e virtuoso, pela aversão que a calúnia do maligno hoje lhe inspira
contra ele. Com paciente amor, pensando no bem de ontem, expulse de sua alma a
aversão de hoje.
27.
Não fale mal hoje de quem ontem você louvava a bondade e glorificava a virtude,
considerando-o falso e mentiroso porque o amor em você se transformou em
aversão. Não condene seu irmão para justificar a raiva maldosa que existe em
você. Continue a louvá-lo, ainda que a tristeza o oprima, e você retornará
facilmente ao amor salutar.
28.
Misturando inconscientemente a condenação às palavras quando você conversa com
outros irmãos, não altere os elogios que habitualmente são feitos ao seu irmão,
por causa de algo que ele lhe tenha feito sofrer e que ainda permanece em você.
Mas, em suas conversas, louve-o com toda pureza, ore sinceramente por ele com
por si mesmo, e logo você estará livre da perigosa aversão.
29.
Não diga: “Não tenho raiva de meu irmão”, se você rejeita sua lembrança. Escute
o que disse Moisés: “Você não odiará seu irmão em pensamento. Você o
repreenderá, e não cairá em estado de pecado por causa dele[135]”.
30.
Se porventura um irmão, tentado, persiste em falar mal de você, não se deixe
arrastar para fora do estado de amor quando o próprio demônio maligno o
perturbar em pensamentos. Você não decairá do amor se, injuriado, você bendizer[136]
e se, difamado, você for benevolente. Este é o caminho que permite amar a
sabedoria, segundo Cristo. Quem não o segue não permanece nele.
31.
Não considere como benevolentes as palavras que, em você, trazem a tristeza e
suscitam a aversão por um irmão, mesmo que elas pareçam ser verdadeiras.
Afaste-se delas como de serpentes mortais, a fim de evitar que os outros falem
mal e libertar da malícia sua alma.
32.
Não fira seu irmão com palavras em forma de enigmas a fim de que, recebendo
dele a mesma coisa, você não afaste de ambos o estado de amor. Mas, com a
liberdade do amor, vá até ele, repreenda-o, a fim de livrar a vocês dois da
perturbação e da aflição, depois de suprimir as causas da tristeza.
33.
Examine sua consciência com todo rigor, para saber se não é você o responsável
pelo fato de que seu irmão não se reconciliou consigo. E não tente enganá-la, a
ela que conhece seus segredos, que o acusa no
momento do êxodo, e na qual você tropeça durante a prece.
34.
Não se lembre, enquanto você está em paz, daquilo que seu irmão lhe disse na
hora da aflição, que ele o ultrajou ou que ele falou de você a outro e que você
ficou sabendo depois. Não se lembre, para não cair na funesta aversão contra
seu irmão, se deixando levar por pensamentos de ressentimento.
35.
Uma alma racional que nutre aversão contra um homem não pode estar em paz com
Deus, que nos deu os mandamentos. “Pois, disse ele, se você não perdoa as
faltas aos homens, também o Pai celeste não perdoará as suas faltas[137]”.
Se este homem não quer ficar em paz com você, ao menos não sinta raiva dele,
orando sinceramente por ele e não falando mal dele a ninguém.
36.
A paz profunda dos santos anjos é comandada por estas duas disposições: amar a
Deus e amar uns aos outros. O mesmo acontece aos santos desde a origem dos
séculos. É exatamente disto que foi dito: “Nestes dois mandamentos estão
pendurados toda a Lei e os Profetas[138]”.
37.
Não tenha complacência para consigo mesmo, nem aversão pelo seu irmão. Não ame
a si mesmo, e você amará a Deus.
38.
Se você decidiu viver entre irmãos espirituais, deixe suas vontades na porta.
De outro modo você não poderá ficar em paz, nem com Deus, nem com os que vivem
com você.
39.
Aquele que conseguiu alcançar o amor perfeito e que regrou toda a sua vida
sobre este amor, este diz “Senhor Jesus” no Espírito Santo[139].
[Caso contrário, é também o contrário que acontece.]
40.
O amor a Deus gosta de dar asas ao intelecto para que este voe para Deus. O
amor ao próximo predispõe a sempre desejar o bem para ele.
41. Quem é ainda tomado de vanglória ou que está
preso a qualquer coisa de material, se aflige pelos bens corporais e os prefere
aos homens, ou sente rancor por eles, ou tem raiva deles, ou ainda fica sujeito
a pensamentos infames. Estes sentimentos são totalmente estranhos à alma que
ama a Deus.
42.
Quando você não diz nem faz nada de infame em seu pensamento, quando você não
guarda rancor contra quem o lesou ou falou mal de você, e quando no momento da
oração você conserva seu intelecto longe de toda matéria e de toda forma, saiba
que você atingiu a medida da impassibilidade e do amor perfeito.
43.
Não é pequeno o combate para se livrar da vanglória. Libertamo-nos dela por um
exercício oculto das virtudes e por uma prece constante. O sinal da libertação
e não guardar mais rancor por quem falou ou fala mal.
44.
Se você quiser ser justo, dê a cada parte sua aquilo que lhe cabe, quero dizer,
à alma e ao corpo. À parte racional da alma, dê leituras, contemplações
espirituais e oração. À parte ardente, dê o amor espiritual que se opõe à
aversão. À parte concupiscente, dê a castidade e a temperança. Enfim, à carne,
dê alimentos e vestes, apenas na medida do necessário[140].
45.
O intelecto age conforme a natureza quando mantém submissas as paixões,
contempla as razões dos seres e se dirige a Deus.
46.
Assim como a saúde e a doença se veem no corpo das pessoas, como a luz e as
trevas se veem nos olhos, também a virtude e o vício se veem na alma, e o
conhecimento e a ignorância se veem no intelecto.
47.
O cristão encontra seu amor pela sabedoria nestas três causas: nos mandamentos,
nos dogmas e na fé. Os mandamentos desligam o intelecto das paixões. Os dogmas
o levam ao conhecimento dos seres. A fé o conduz à contemplação da Santíssima
Trindade.
48.
Dentre os que combatem, uns não fazem mais do que afastar os pensamentos
passionais, outros afastam as próprias paixões. Afastamos os pensamentos pela salmodia,
a prece, a elevação ou qualquer outra atividade apropriada. Afastamos as
paixões desprezando as coisas para as quais elas querem nos arrastar.
49.
Existem coisas pelas quais nos apaixonamos. Apaixonamo-nos por mulheres, pelo
dinheiro, pelos presentes, e outras coisas mais. Podemos esquecer as mulheres
quando, depois da anacorese, cansamos o corpo adequadamente por meio da
temperança. Esquecemos do dinheiro quando persuadimos o pensamento a se manter
dentro daquilo que é apenas necessário. Esquecemos a glória quando amamos a
obra oculta das virtudes, que só a Deus aparecem. O mesmo acontece com as
outras coisas. Quem as esquece jamais sente aversão por ninguém.
50.
Quem renunciou às coisas, às mulheres, ao dinheiro e a todo o resto, fez monge
de seu homem exterior, mas ainda não tornou monge seu homem interior. Mas quem
renunciou até aos pensamentos passionais sobre estas coisas fez monge seu homem
interior, que é o intelecto. É fácil fazer monge ao homem exterior, desde que
se queira. Mas não é pequeno o combate para se fazer monge ao homem interior.
51.
Quem, nesta geração, libertou-se totalmente dos pensamentos passionais e foi
considerado digno da prece sempre pura e imaterial, que é o signo do monge
interior?
52.
Numerosas paixões estão escondidas em nossas almas. Elas se revelam quando
aparecem as coisas pelas quais nós tendemos.
53.
Na ausência das coisas, podemos ser perturbados pelas paixões e atingir uma
impassibilidade parcial. Mas se as coisas aparecem, logo as paixões arrastam o
intelecto.
54.
Não considere que você adquiriu a impassibilidade perfeita enquanto estiver
ausente a coisa que apela sua paixão. Mas se ela aparecer, e nem ela, nem sua
lembrança subsequente o distraírem, saiba que você atingiu as fronteiras da
impassibilidade. Entretanto, evite toda e qualquer presunção. Pois se a
impassibilidade durar, a virtude destruirá as paixões; mas se for
negligenciada, ela as despertará.
55.
Aquele que ama a Cristo imita-o de todas as maneiras, na medida em que lhe for
possível. Assim, Cristo jamais deixou de fazer o bem a todos os homens. Diante
da ingratidão e da blasfêmia, ele era paciente. Ferido, condenado à morte, ele
a tudo suportou sem pensar mal de ninguém. Estas três atitudes são a obra de
amor ao próximo; sem elas, quem diz que ama a Cristo, ou que encontrou seu
Reino, se engana. Pois Cristo afirma: “Não é aquele que me diz: 'Senhor!
Senhor!' que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai[141]”.
E também: “Quem me ama, que siga meus mandamentos[142]”,
e assim por diante.
56.
Os mandamentos do Salvador não tem outro objetivo do que o de libertar o
intelecto da desordem e do ódio, conduzi-lo ao amor de Deus e ao próximo, de
onde nasce o esplendor do santo conhecimento de suas obras.
57.
Se você recebeu de Deus um conhecimento parcial, não negligencie o amor e a
temperança. Pois, purificando a parte passional da alma, o amor e a temperança
a preparam para o caminho do conhecimento.
58.
O caminho do conhecimento é a impassibilidade e a humildade; sem elas, ninguém
verá o Senhor.
59.
O conhecimento infla e o amor edifica[143].
Una o amor ao conhecimento e você não terá orgulho, tornando-se um construtor
espiritual, edificando a si mesmo e edificando os que se aproximarem de você.
60.
Uma vez que o amor não inveja, não se irite contra os invejosos, não exiba
aquilo que invejam em você, não imagine já ter alcançado a meta[144]
e confesse sem rubor ignorar o que não sabe. Assim o intelecto é separado do
orgulho e preparado para progredir no conhecimento.
61.
A presunção e a inveja, sobretudo no começo, seguem de certo modo naturalmente
o conhecimento. A presunção o segue internamente. A inveja tanto interna quanto
externamente; internamente, voltada para os que possuem o conhecimento;
externamente, a partir dos que ignoram. Mas o amor reverte estas três coisas:
reverte a presunção, por não inflá-la; reverte a inveja interior, porque ele
não é invejoso; e reverte a inveja exterior, porque ele é paciente e bom[145].
Assim, é preciso àquele que tem o conhecimento agarrar-se igualmente ao amor,
para proteger o intelecto de todo ferimento.
62.
Quem recebeu o carisma do conhecimento mas sente azedume, ressentimento ou
aversão contra alguém, se parece com alguém que feriu os olhos nos espinhos e
cardos. Por isso, o conhecimento necessariamente precisa do amor.
63.
Não passe todo o tempo ocupando-se da carne, mas ordene a ela uma ascese que
corresponda às suas forças, e volte todo o seu intelecto para o interior. Pois,
“o exercício do corpo é útil o seu tanto, mas a piedade é útil em tudo[146]”,
e assim por diante.
64.
Quem se consagra sem descanso às coisas interiores é casto, paciente, bom e
humilde. E não apenas isto: ele também contempla, é teólogo, e reza. É o que
diz o Apóstolo: “Caminhem pelo Espírito[147]”,
etc.
65.
Quem não sabe marchar sobre o caminho espiritual não toma conta dos pensamentos
passionais, mas passa todo o tempo ocupando-se da carne. Ele se atira à gula,
ao deboche, à tristeza, à cólera, ao ressentimento. Assim ele entenebrece a
inteligência. Ou então, ele abusa da ascese e perturba a reflexão.
66.
A Escritura não proíbe nada daquilo que Deus nos deu para nosso uso. Mas ela
reprime o abuso e corrige a irracionalidade. Assim, ela não proíbe comer, nem
fazer filhos, nem possuir bens e geri-los como se deve. Mas ela proíbe ser
guloso, prostituir-se, etc.. Ela também não proíbe de pensar nestas coisas,
pois elas foram feitas para isso; mas ela proíbe pensar nelas com paixão.
67.
Dentre as ações que fazemos conforme a Deus, algumas fazemos para cumprir os
mandamentos. Outras fazemos, não para obedecer a um mandamento, mas, por assim dizer, como uma
oferenda voluntária. As primeiras, que respondem por algum mandamento, são por
exemplo: amar a Deus e a o próximo, não cometer adultério, não matar, etc. Se
os transgredirmos, seremos condenados. As segundas, que não respondem por
nenhum mandamento, são por exemplo: a virgindade, o celibato, a pobreza, a
anacorese, etc. [Estas ações são como dons.] Se, por fraqueza, não conseguimos
cumprir corretamente algum dos mandamentos de Cristo, graças a estes dons
atrairemos sobre nós a compaixão de nosso bom Mestre.
68.
Aquele que honra o celibato ou a virgindade deve necessariamente manter
cingidos os rins e acesa a lâmpada[148].
Os rins, cingidos pela temperança; e a lâmpada, acesa pela oração, a
contemplação e o amor espiritual.
69.
Alguns irmãos pensam que em nada participam dos carismas do Espírito Santo. Por
causa de sua negligência em praticar os mandamentos, eles não sabem que quem
mantém inalterada a fé em Cristo reúne em si todos os carismas divinos. Uma vez
que, pela inércia, estamos afastados do amor ativo que devíamos dedicar-lhe,
este amor que nos descortina os tesouros de Deus escondidos em nós, é claro que
vamos achar que não temos parte nos carismas divinos.
70.
Se Cristo permanecer em nossos corações pela fé[149],
segundo o Apóstolo divino, e se os tesouros da sabedoria e do conhecimento
estão escondidos nele[150],
então todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos em nossos
corações. Mas eles só se revelam ao amor na medida da purificação de cada qual,
purificação esta suscitada pelos mandamentos.
71.
Este é o tesouro escondido no campo[151]
do seu coração, e que você ainda não encontrou devido à sua preguiça. Pois, se
você o tivesse encontrado, você teria vendido tudo o que possui para comprar
este campo. Mas atualmente você abandonou o campo e procura ao redor dele, onde
você não encontra mais do que espinhas e cardos.
72.
É por isso que o Salvador disse: “Benditos os corações puros, pois eles verão a
Deus[152]”.
Eles o verão, e verão os tesouros que estão nele quando, pelo amor e a
temperança, forem purificados. E tanto mais o verão quanto mais purificados
estiverem previamente.
73.
É por isso que foi dito: “Vendam tudo o que têm, deem-no em esmola e então para
vocês tudo será puro.[153]”
Quem o fizer cessará de se ocupar das coisas do corpo, dedicar-se-á a
purificá-lo da aversão e da desordem do intelecto, que o Senhor chama de
coração. Pois são essas coisas que, manchando o intelecto, não permitem ver a
Cristo residindo nele pela graça do santo batismo.
74.
A Escritura chama as virtudes de “caminhos”. Ora, o amor é a maior de todas as
virtudes. É por isso que o Apóstolo dizia: “Eu lhes mostro agora o caminho por
excelência[154]”,
um caminho que os separa das coisas materiais e os protege de preferir o
temporal ao eterno.
75.
O amor a Deus se opõe à concupiscência, pois ele leva a alma a se abster dos
prazeres. E o amor ao próximo se opõe ao ardor, pois ele a faz desprezar a
glória e o dinheiro. Estes são os dois dinares que o Salvador deu ao hoteleiro[155]
para que ele cuide de você. Mas não seja ingrato, associando-se aos ladrões,
pois do contrário você será de novo agredido e será deixado, já não meio-morto,
mas verdadeiramente morto por inteiro.
76.
Purifique seu intelecto da cólera, do ressentimento e dos pensamentos infames,
e então você poderá encontrar em si mesmo a presença de Cristo.
77.
Quem o iluminou com esta luz que o faz crer na Santíssima Trindade
consubstancial e adorada? Ou quem lhe permitiu conhecer a economia da
encarnação do Uno e da Santa Trindade? Quem lhe ensinou as razões dos
incorporais, ou da gênese e do fim do mundo visível, ou da ressurreição dos
mortos e da vida eterna, ou da glória do Reino dos céus e do terrível Juízo?
Não foi a graça de Cristo que permanece em você, esta graça que é a garantia do
Espírito Santo? O que existe de maior do que esta graça? O que existe de melhor
do que esta sabedoria e este conhecimento? O que existe de mais alto do que
estas promessas? Mas, se somos inertes e negligentes, se não nos purificamos
das paixões que nos mancham e cegam nosso intelecto, para nos tornarmos capazes
de ver, mais claro do que o sol, as razões destas coisas, ao menos não as
atribuamos a nós mesmos, não neguemos a presença da graça em nós.
78.
Deus, que lhe prometeu os bens eternos[156]
e que deu a seu coração a garantia do Espírito[157],
ordenou a você velar sobre sua vida, a fim de que o homem interior, liberto das
paixões, comece desde já a usufruir dos bens que virão.
79.
Se você foi considerado digno das mais altas contemplações divinas, aplique-se
de todo coração ao amor e à temperança, a fim de que, guardando sem perturbação
aquilo que em você está submetido às paixões, você não seja privado da luz de
sua alma.
80. Refreie o ardor de sua alma por meio do amor. Submeta seu desejo por meio da temperança. Dê asas à sua razão por meio da prece. Assim, a luz de seu intelecto não se extinguirá jamais.
81. Estes são os comportamentos que destroem o amor: o desprezo, a injustiça, a calúnia relativa à fé e à conduta, os golpes, os ferimentos, etc., quer estes comportamentos visem a pessoa em causa, quer um de seu próximos ou amigos. Aquele que destrói o amor com estes comportamentos, não conhece o objetivo dos mandamentos de Cristo.
82.
Aplique-se o quanto puder em amar a todos os homens. Se você ainda consegue, ao
menos não odeie a ninguém. Mas você também não conseguirá fazer isto se não
desprezar as coisas do mundo.
83.
Alguém blasfemou? Não o despreze, mas deteste a blasfêmia e o demônio que o
levou a blasfemar. Mas se você detesta aquele que blasfemou, você odeia a um
homem e assim você transgrediu um mandamento. Aquilo que este homem fez por
palavras, você o faz em ação. Mas se você conservar o mandamento, você dará
prova de amor. Ajude este homem o mais que puder, a fim de livrá-lo do mal.
84.
Cristo não quer que você sinta contra um homem a menor aversão, o menor
azedume, a menor cólera ou o menor ressentimento por qualquer coisa temporal,
qualquer que seja. É isto o que proclamam os Evangelhos todo o tempo.
85.
Muitos falam, poucos fazem. Mas ninguém deve alterar a palavra de Deus por sua
própria negligência. Devemos confessar nossa fraqueza e não escondermos a
verdade de Deus, a fim de não sermos acusados, ou de transgressão dos
mandamentos, ou de má interpretação da palavra de Deus.
86.
O amor e a temperança libertam a alma das paixões. A leitura e a contemplação
separam o intelecto da ignorância, e o estado de prece o conduz diante do
próprio Deus.
87.
Quando os demônios nos veem desprezar as coisas do mundo para não odiarmos os
homens por causa delas e assim decairmos do amor, então eles suscitam calúnias
contra nós a fim de que, não suportando a tristeza, odiemos os caluniadores.
88.
Não há pena maior para a alma do que a calúnia, quer sejamos caluniados na fé,
quer na conduta. Ninguém consegue se livrar dela, senão aquele que, como Suzana[158],
olha para Deus, o único que nos pode livrar, como a ela, das infelicidades,
mostrar aos homens toda a verdade, como fez por ela, e consolar a alma por meio
de esperança.
89.
Quanto mais você rezar com toda a sua alma por aquele que o caluniou, mais Deus
mostrará a verdade aos que haviam se escandalizado.
90.
Somente Deus é bom por natureza[159].
E somente aquele que imita a Deus é bom por resolução. Pois seu objetivo é unir
aos maus Àquele que é bom por natureza, para que eles se tornem bons. É por
isso que, ultrajado por eles, ele os abençoou; perseguido, ele suportou;
difamado, ele intercedeu[160];
levado à morte, ele ainda orou por eles. Ele fez tudo para não decair do
objetivo do amor, que é nosso próprio Deus[161].
91.
Os mandamentos do Senhor nos ensinam a usar racionalmente as coisas que estão
em nosso meio. O uso racional dessas coisas purifica o estado da alma. E o
estado de pureza gera a impassibilidade, da qual nasce o amor perfeito.
92.
Aquele que, submetido a uma tentação, não é capaz de fechar os olhos para falta
real ou aparente de seu amigo, ainda não possui a impassibilidade. Pois as
paixões enterradas na alma, profundamente perturbadas, cegam a reflexão e não
permitem ver a luz da verdade, e discernir o melhor do pior, Este homem ainda
não adquiriu o amor perfeito, o amor que extingue o temor do Juízo[162].
93.
Nada vale mais do que um amigo fiel[163].
Pois ele considera que as agruras de seu amigo são suas, e suporta com ele
sofrendo-as até a morte.
94.
Muitos são os amigos no tempo da prosperidade[164];
mas quando chegam as provações, dificilmente encontramos um sequer.
95.
É preciso amar a todos os homens com toda a alma, colocar apenas em Deus a
esperança e honrá-lo com toda a força. Pois enquanto ele nos protege, os amigos
nos cercam e os inimigos nada podem contra nós. Mas se ele nos abandona, os
amigos se afastam de nós e os inimigos se atiram sobre nós.
96.
Existem quatro formas principais de abandono. O que deriva da economia divina –
foi o que aconteceu ao Senhor – a fim de que, pelo abandono aparente, os que
foram abandonados sejam salvos. Aquele que conduz a uma prova – que aconteceu a
Jó e a José – a fim de revelar em um uma coluna de coragem e no outro uma
coluna de castidade. O que se refere à educação paterna – que aconteceu ao
Apóstolo – a fim de que, humilhando-se, ele guardasse a superabundância da
graça. Enfim, aquele pelo qual Deus se retira – o que aconteceu com os judeus –
a fim de que, castigados, eles se inclinassem para o arrependimento. Todas
estas formas de abandono são salutares e cheias de bondade de Deus e de seu
amor pelo homem.
97.
Os que observam rigorosamente os mandamentos e são realmente iniciados nos
julgamentos divinos, não abandonam seus amigos quando Deus permite que eles
sejam testados. Mas os que desprezam os mandamentos e não são iniciados nos
julgamentos divinos, regozijam-se com seus amigos quando eles prosperam, mas o
abandonam quando ele é testado e sofre, e muitas vezes se acertam com seus
adversários.
98.
Os amigos de Cristo amam verdadeiramente a todos os seres, mas não são amados
por todos. Os amigos do mundo também não são amados por todos. Os amigos de
Cristo perseveram até o fim em seu amor. Mas os amigos do mundo perseveram até
que o mundo os leve a se voltarem uns contra os outros.
99.
Um amigo fiel é uma sólida proteção[165].
Para o amigo que prospera ele é um bom conselheiro e uma ajuda fraternal. Para
o amigo que sofre, ele é no mais alto grau uma verdadeira providência e um
defensor compassivo.
100.
Muitos falaram abundantemente do amor. Mas se você procurar o próprio amor,
você só o encontrará nos discípulos de Cristo. Pois somente eles têm como
mestre do amor o Amor verdadeiro, este amor do qual se disse: “Ainda que eu
tenha o dom da profecia, ainda que eu conheça todos os mistérios e toda a
ciência, se eu não possuir o amor, de nada me valerão essas coisas[166]”.
Assim, aquele que possui o amor possui a Deus mesmo, pois “Deus é amor[167]”.
A
ele a glória e o poder por todos os séculos. Amém.
[1] Nas quatro primeiras Centúrias a palavra ágape se refere ao sentido original do
termo e está traduzida como “amor”.
[2] Isaías 6:5
[3] João 14:
15.23.
[4] João 15: 12.
[5] Cf. Romanos
13: 4
[6] Cf. Romanos
1: 25.
[8] Cf. Mateus
5: 45.
[9] Cf. Jeremias
17: 16.
[10] Cf. Atos 7:
60.
[12] Cf. I Coríntios
14: 4.
[13] Cf. I João
4: 8.
[14] Cf. Jeremias
7: 4.
[15] Cf. Tiago 2:
19.
[16] Cf. II Coríntios
7: 8-11.
[17] Cf. Gênesis
18: 27.
[19] Cf. II Coríntios
1: 7.
[20] Cf. Mateus
5: 23-24.
[21] Cf. I Coríntios
13:3.
[22] Cf. Romanos
13: 10.
[23] Cf. Romanos
13: 10.
[24] Cf. Tiago 4:
11.
[25] Cf. Deuteronômio
6: 15.
[27] Cf. I Timóteo
2: 4.
[28] Mateus 5:
39-41.
[30] Cf. I Coríntios
13: 5.
[31] Cf. Romanos
5: 8.
[32] Romanos 8:
35-39.
[33] Romanos 9:
1-4.
[34] Cf. Êxodo
32: 32.
[35] Salmo 24
(25): 18.
[37] Cf. I João 4:
18.
[38] Provérbios
15: 27.
[39] Salmo 110
(111): 10.
[40] Salmo 33
(34): 10.
[43] Cf. Romanos
1: 20 e I Coríntios 13: 12.
[44] Gregório de Nazianze, Discurso XXXVIII, 7; XLV, 3.
[46] Salmo 33
(34): 15.
[47] Cf. Gênesis
2: 15.
[48] Cf. Mateus
4: 1-10.
[49] Cf. Mateus
16: 1, etc.
[50] Salmo 36
(37): 15.
[51] Salmo 16
(17): 11.
[53] Cf. Isaías
41: 11.
[54] Salmo 6: 11.
[55] Salmo 9: 4.
[56] Os “julgamentos de Deus” são as provas e os castigos
por meio dos quais Deus corrige os homens durante suas vidas terrestres, antes
do Juízo final.
[58] João 10: 30.
[59] João 14: 11.
[60] Heresia que
surgiu entre os cristãos e que pregava existirem três Pessoas em Deus,
considerando por conseguinte três essências, três substâncias, três deuses.
[61] Gregório de Nazianze, Discurso XIII, 4; XXV, 17; XXVIII, 1; XXXI, 14; XXXIX, 12.
[62] Cf. Gálatas
3: 28; Colossenses 3: 11.
[63] Cf. Tiago 1:
15.
[64] Mateus 25:
15.
[65] Flavius Josefus, Guerras
dos Judeus VI, IV, 3-5; VII, I, 3.
[68] Salmo 61
(62), 13.
[70] I Coríntios
11: 31-32.
[71] Cf. Romanos
12: 17.
[73] Cf. Mateus
6: 21.
[74] I João 2:
15-16.
[75] Gênesis 46:
34.
[76] Gênesis 46:
34.
[77] Cf. I Tessalonicenses
2: 9; Efésios 4: 28.
[79] Cf. Romanos
13: 14.
[80] Cf. I Tessalonicenses
5: 17.
[82] Cf. I Coríntios
15: 49.
[83] Cf. Mateus
7: 14.
[84] João 10: 7-9
e 14: 6.
[85] Cf. Mateus
7: 14.
[87] Cf. Levítico
12: 3.
[88] Cf. Êxodo
31: 13.
[89] Cf. Êxodo
12: 8 e 23: 15.
[90] Cf. Hebreus
10: 34.
[91] Cf. Mateus
19: 22.
[92] Lucas 14:
33.
[93] Lucas 21:
19.
[94] Cf. I Coríntios
15: 56.
[96] João 11: 25.
[97] Cf. Salmo 22
(23): 2.
[98] Salmo 22
(23): 4.
[100] Salmo 22
(23): 5.
[101] Cf. Filipenses
3: 12.
[102] Denis o Areopagita, Nomes Divinos IV, 23.
[103] Efésios 5:
29.
[104] Cf. I Coríntios
9: 7.
[105] Cf. I Timóteo
6: 8.
[106] Cf. I João
3: 22.
[107] Cf. Romanos
8: 8.
[108] Cf. Gálatas
5: 24.
[109] Cf. Romanos
13: 14.
[110] Salmo 91
(92): 9.
[111] Cf. Atos 17:
25.
[112] Cf. Salmo
103 (104): 31.
[113] Cf. Mateus
5: 3-12.
[114] Salmo 91
(92): 12.
[115] Mateus 7:
11.
[116] Lucas 6: 37.
[117] I Coríntios
4: 5.
[118] Romanos 2:
1.
[119] Salmo 4: 3.
[120] Cf. Salmo 81
(82): 5.
[121] Cf. Gálatas
2: 2.
[122] Cf. I Samuel
15: 10-11.
[123] Cf. I Coríntios
13: 12 e II Coríntios 5: 7.
[124] Cf. Provérbios
12: 28.
[126] Cf. I Coríntios
13: 13.
[127] Salmo 144
(145): 1.
[128] Cf. Isaías 40:
28.
[129] Cf. João 11:
52.
[130] Cf. I Coríntios
13: 4.
[131] Cf. Mateus
5: 24.
[132] Cf. Provérbios
14: 29.
[133] Cf. Romanos
6: 22.
[134] Cf. João 17:
3.
[135] Levítico 19:
17.
[136] Cf. I Coríntios
4: 12.
[137] Mateus 6:
14-15.
[138] Mateus 22:
40.
[139] Cf. I Coríntios
12: 3.
[140] Cf. I Timóteo
6: 8.
[141] Mateus 7:
21.
[142] João 14:
15-23.
[143] Cf. I Coríntios
8: 1.
[144] Cf. Filipenses
3: 13.
[145] Cf. I Coríntios 13:
4.
[146] I Timóteo 4:
8.
[147] Gálatas 5:
16.
[148] Cf. Lucas
12: 32.
[149] Cf. Efésios
3: 17.
[150] Cf. Colossenses
2: 3.
[151] Cf. Mateus
13: 44.
[152] Mateus 5: 8.
[153] Lucas 11: 41
e 12: 33.
[154] I Coríntios
12: 31.
[155] Cf. Lucas
10: 35.
[156] Cf. Tito 1:
2.
[157] Cf. II Coríntios
1: 22.
[158] Cf. Daniel
13.
[159] Cf. Mateus
19: 17.
[160] Cf. I Coríntios
4: 12-13.
[161] Cf. I João
4: 8.
[162] Cf. I João
4: 18.
[163] Eclesiastes
6: 15.
[164] Cf. Provérbios
18: 4.
[165] Cf. Eclesiastes
6: 14.
[166] Cf. I Coríntios
13: 2.
[167] I João 4: 8.
Muito obrigado por disponibilizar o texto de São Máximo.
ResponderExcluirLuiz Barretto
Muito obrigado por disponibilizar o texto de São Máximo.
ResponderExcluirLuiz Barretto
Obrigado! Quem é o tradutor?
ResponderExcluirExcelente!
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