TEODORO DE EDESSA
CEM
CAPÍTULOS
DISCURSO SOBRE A CONTEMPLAÇÃO
Nosso Pai entre os Santos Teodoro viveu sob
os reinados de Heraclius e de Constantino Pogonate, por volta do ano 660. De
início ele levou o combate da vida ascética no mosteiro de São Sabas, depois se
tornou bispo da cidade de Edessa. Numerosos foram os que testemunharam seus
ensinamentos e que deles receberam sua salvação. Ele partiu para a morada
celeste num 19 de julho, conforme atesta o livro que relata sua vida. Não
sabemos com precisão os escritos que ele deixou. Entretanto, inserimos em nossa
coletânea de textos népticos estes cem capítulos compostos por ele. Aos que os
lerem com atenção, eles oferecerão numerosos frutos da santa népsis e do
socorro espiritual; quem busca a salvação, que venha e colha.
No final destes cem capítulos, e ainda sob o
nome de Teodoro, nós acrescentamos o Théorétikon, tratado sobre a contemplação. Considerando que este tratado tem uma
visão néptica semelhante e procede de um estilo análogo, concluímos por estas
semelhanças e sinais que seu verdadeiro autor seja mesmo Teodoro.
A figura de Teodoro de Edessa, na antologia
filocálica, é singular. Não apenas os dois textos a ele atribuídos não são obra
sua, mas sua própria identidade é problemática, pois existem dúvidas quanto à
autenticidade de seu biógrafo (chamado de Basílio de Emessa) e quanto à própria
veracidade de sua biografia. É possível até que Teodoro tenha sido monge no
mosteiro de São Sabas, perto de Jerusalém, e que tenha se tornado bispo de
Edessa, na Mesopotâmia, na primeira metade do século IX. Porém, mais do que uma
soma de testemunhos pessoais, a antologia filocálica é a transmissão milenar de
uma experiência comum e o testemunho de uma progressão. Vistas por este ângulo,
as duas obras que aqui estão ligadas ao nome de Teodoro são exemplares.
Os Cem Capítulos
não passam de uma paráfrase livre de textos de Evagro: uma apologia do monge,
devotada à beleza e à bondade originais, ao respeito fiel ao pai espiritual, à
pobreza, ao silêncio, à memória da morte, à lembrança de Deus, à prece pura, à
herança do Reino, à luz “dulcíssima” na qual estão reunidas a solidão e a
fraternidade para selar uma à outra no coração do “santo amor”. Existe aí como
que uma soma dos ensinamentos fundamentais transmitidos desde o século V pela
via hesiquiasta: trata-se, assim, menos de um plágio literário do que de um
exercício de transmissão.
O Théorétikon,
ou discurso “sobre a contemplação”, é de outra extirpe. Ele só retoma o curso
da ascese para conduzi-lo à incandescência da deificação. A humildade é
doravante integrada naquilo que é aqui chamado de “tensão total e contínua para
a beleza primeira”. O conhecimento cristão é sobrenatural por definição. Ele
acolhe a beleza das criaturas apenas para remontar imediatamente para a causa
em ação de graças, e se comprazer no encantamento e na adoração do Criador. Ele
é dedicado a este esplendor envolvente que o Theorétikon chama de “fluxo divino” ou de “círculo que se inicia no
mesmo e que termina no mesmo”, ou seja, à contemplação da luz incriada: o
testemunho reiterado desses místicos bizantinos que foram contemporâneos do fim
histórico de um Império milenar, e de que autor do discurso parece ser um
epígono, talvez até um epígono posterior ao fim do Império. Seu texto seria
então o mais recente da antologia.
De qualquer maneira, os cem capítulos e o discurso
“sobre a contemplação” parecem bem ser os dois pólos da experiência
hesiquiasta, dos primeiros movimentos dos anacoretas egípcios, nos séculos IV e
V, até o último testemunho, trazido pelos místicos bizantinos do norte da
Grécia, no século XIV. Certamente, Teodoro não passa aqui de um pseudônimo. Mas
entre as fundações e a chave da abóboda, seu nome mesmo designa o essencial: o
“dom de Deus”.
DO NOSSO PAI TEODORO, BISPO DE EDESSA
1. Nós que, pela graça do bom Deus, renunciamos a
Satanás e às suas obras e nos unimos a Cristo pelo banho da regeneração e pela
profissão monástica daí para diante, conservemos seus mandamentos. Não apenas a
dupla promessa, mas também a dívida natural, o exigem de nós. Deus nos criou
bons na origem, e é isto o que devemos ser. Mesmo que o pecado que penetrou em nós
devido à nossa negligência nos tenha levado àquilo que é contra a natureza, nós
fomos chamados pela abundante compaixão de nosso Deus, e fomos renovados pela
paixão do Impassível. Nós fomos resgatados pelo sangue de Cristo[1],
libertados da antiga transgressão transmitida pelo ancestral. Portanto, não
existe nada de grande em nós por termos nos tornado justos. Mas decair da
justiça continua sendo para nós uma coisa lamentável, digna de ser condenada.
2. Assim como uma boa obra, feita sem a fé reta, é inteiramente
morta e ineficaz, também a simples fé, sem as obras da justiça[2],
não nos livrará do fogo eterno. Pois diz o Senhor: aquele que me ama, observa
meus mandamentos[3];
esforcemo-nos para por em prática seus mandamentos, a fim de alcançar a vida
eterna. Mas se desdenharmos a observância desses preceitos, aos quais obedece
toda a criação, como poderemos nos chamar de fiéis? Nós somos honrados acima de
todas as criaturas, mas somos os únicos que desobedecem à ordem d’Aquele que
nos criou, e não expressamos nosso reconhecimento diante do Benfeitor.
3. Observando os mandamentos de Cristo, não lhe damos
nada. Ele não precisa de nada. É ele que nos dá seus bens. Mas nós nos
dedicamos ao serviço de nós mesmos, e suscitamos em nós a vida eterna e o gozo
dos bens inexprimíveis.
4. Devemos evitar e odiar aqueles que se opõem a nós
quando procuramos viver conforma os mandamentos, mesmo que sejam nosso pai ou
nossa mãe, para que não ouçamos: “Aquele que ama a seu pai ou sua mãe, ou
qualquer pessoa, mais do que a mim, não é digno de mim[4]”.
5. Devemos nos dedicar com todas as nossas forças para
trabalharmos nos mandamentos do Senhor, a fim de não permanecermos amarrados
pelos laços, tão difíceis de desatar, dos maus desejos e das paixões que
corrompem a alma[5], e
para que não seja pronunciado contra nós o julgamento da figueira estéril:
“Corte-a, para que ela não ocupe lugar inutilmente[6]”.
“Quem quer que não dê bom fruto, foi dito, será cortado e atirado ao fogo[7]”.
6. Quem é vencido pelos desejos e prazeres e retorna ao
mundo, logo cairá nas armadilhas do pecado. Um pecado cometido uma vez é como
um fogo na folhagem seca, uma pedra numa vertente, uma enchente que alarga as
passagens. Todas estas imagens evocam a perdição daquele que se entrega ao
pecado.
7. Uma vez que vai contra a natureza, a alma, tornada
selvagem, crivada dos espinhos do prazer, torna-se a morada de feras estranhas,
conforme foi dito: “Os centauros repousarão aí, o porco
espinho fará nela seu ninho e os demônios aí encontrarão os centauros[8]”,
que são as diversas paixões da infâmia. Mas a partir do momento em que ela
retornar àquilo que é conforme a natureza (pois ela pode, se quiser, por estar
unida à carne), a partir do momento em que ela for adoçada à força de aplicação
e diligência e que ela viva na lei de Deus, as feras que antes se aninhavam
nela fugirão. Os anjos que cuidam de nossa vida virão e farão deste retorno um
dia de glória[9]. E
a graça do Espírito Santo permanecerá nela, ensinando-a a conhecer o modo de se
proteger e de avançar sempre em direção às alturas.
8. Os Padres chamam a oração de arma espiritual. Não
podemos ir para o combate sem ela, para não sermos capturados e oprimidos no
país dos inimigos. Não é possível adquirir a prece pura sem se agarrar a Deus
com um coração direito. Pois quem dá a oração àquele que ora é o mesmo que
ensina o conhecimento ao homem[10].
9. Não depende de nós que as paixões atormentem nossa
alma e nos combatam. Mas está em nosso poder fazer com que seus pensamentos não
se demorem em nós nem nos perturbem. No primeiro caso não existe pecado, porque
isto não depende de nós. No segundo caso, se resistirmos corajosamente e formos
vencedores, seremos coroados. Mas se formos vencidos pela displicência e a
preguiça, receberemos os castigos.
10. Todas as
paixões nascem de três paixões fundamentais: o amor aos prazeres, o amor ao
dinheiro e o amor à vanglória. Cinco outros espíritos de malícia as seguem, dos
quais provém todo o enxame das paixões e as múltiplas formas de vícios.
Portanto, aquele que vencer as três primeiras que conduzem as outras, derrubará
as outras cinco, e a seguir todas as demais paixões.
11. Tudo o que fizermos sob o efeito de uma paixão,
será também lembrado pela alma com paixão. Mas quando as lembranças apaixonadas
desaparecem do coração e cessam de assaltá-lo, este é o sinal do perdão das
faltas passadas. Pois enquanto a alma vive na paixão, reconhecemos nela o
domínio do pecado.
12. As paixões corporais e materiais diminuem e
perecem naturalmente com os sofrimentos do corpo. Mas as paixões da alma, as
paixões invisíveis, desaparecem com a humildade, a doçura e o amor.
13. A temperança e a humildade consomem o desejo
passional. O amor suaviza o ardor abrasador. Uma oração intensa e a lembrança
de Deus reúnem o pensamento que vagueia. Assim são purificadas as três partes
da alma. Apontando esta via reta, o divino apóstolo disse: “Busquem a paz com
todos e a santificação, sem o que ninguém verá o Senhor[11]”.
14. Alguns se perguntam se são os pensamentos que
suscitam as paixões, ouse são as paixões que suscitam os pensamentos. Uns dizem
uma coisa, outros outra. Quanto a mim, afirmo que os pensamentos provêm das
paixões. Pois se as paixões não estivessem presentes na alma, seus pensamentos
não a perturbariam.
15. É comum que os demônios, que nos combatem sempre,
se oponham às virtudes que nos fortificam e nos convém, mas dêem passo livre a
tudo o que enfraquece e é inoportuno. Eles empurram aqueles que progridem na
submissão a tentar os labores dos hesiquiastas. Por outro lado, eles sugerem
aos hesiquiastas e anacoretas o desejo pela regra cenobítica. Eles utilizam
este método para cada virtude. Mas não ignoremos seus pensamentos, saibamos ver
o bem que é feito a seu tempo e com medida, e inversamente conheçamos tudo o
que é nocivo e que é feito sem medida e fora de seu tempo.
16. Aqueles que estão no mundo e que vivem na própria
matéria das paixões são combatidos e assaltados pelos demônios nas ações. Mas
os que vivem nos desertos e que pouco agem são atormentados pelos pensamentos.
O segundo combate é muito mais difícil do que o primeiro. Aquele, por
intermédio do que fazemos, está ligado ao tempo, ao lugar e à necessidade. O
outro, o do intelecto, é extremamente fluído, difícil de conduzir. Mas para o
combate nesta luta incorpórea, nos foi dada a prece pura, e recebemos por lei
recitá-la continuamente[12].
Ela fortalece o intelecto e o prepara para combate, pois ela pode ser exercida
mesmo sem o corpo.
17. O divino apóstolo referiu-se {a extinção das
paixões quando disse que os discípulos de Cristo crucificaram a carne com as
paixões e os desejos[13].
Com efeito, quando fazemos morrer as paixões e desaparecer os desejos, e
submetemos ao Espírito as necessidades da carne, recebemos a cruz e seguimos a
Cristo[14].
Pois a anacorese não é outra coisa do que a extinção das paixões e a
manifestação da vida secreta em Cristo[15].
18. Aqueles que são atormentados pelos levantes deste
corpo de morte e renunciam a combatê-los todo o tempo, não culpem a carne, mas
a si mesmos. Pois se eles não o tivessem fortalecido, atendendo ao seu desejo[16],
não seriam atormentados assim. Ou então eles não souberam ver os que se
crucificaram com as paixões e os desejos[17]
e carregaram a morte de Jesus em sua carne mortal[18]
, para que esta não se opusesse a eles, mas que trabalhasse com eles para o
bem, dócil e submetida à lei de Deus. Que eles façam o mesmo, e desfrutarão do
mesmo repouso.
19. Todo consentimento do pensamento ou toda
inclinação prazerosa para uma desejo ao qual ele renunciou é um pecado para o
monge. O pensamento começa por obscurecer o intelecto em sua parte sujeita à
paixão, depois a alma se inclina para o prazer, não suportando mais o combate.
É isto que chamamos assentimento, que é um pecado, como foi dito. Se quisermos
contemporizar com ele, começa aquilo que chamamos de paixão. A seguir chega-se
pouco a pouco ao ato efetivo do pecado. É por isso que o profeta glorificou
aqueles que atiraram contra o rochedo os filhos da Babilônia[19].
Para quem tem inteligência e sabedoria, a alusão é clara.
20. Os anjos, que servem ao amor e à paz, se regozijam
com nosso arrependimento[20]
e com nosso progresso na virtude. Eles se apressam em nos cumular com
contemplações espirituais, e abrem para nós tudo o que há de bom. Inversamente,
os demônios, que suscitam a cólera e a malícia, se regozijam quando a virtude
diminui, e fazem todo o esforço para inclinar nossas almas para imaginações
infames.
21. A fé é a bondade bem organizada. Ela gera em nós o
temor a Deus. O temor a Deus nos ensina a observação dos mandamentos, dita
“ativa”. Da observação ativa nasce a preciosa impassibilidade. O filho da
impassibilidade é o amor, que cumpre, concentra e guarda todos os mandamentos[21].
22. Enquanto estão em bom estado, os sentidos sabem
qual enfermidade toma o corpo. Quem não consegue discernir isto sofre de
insensibilidade. Também o intelecto, enquanto mantém a salvo sua própria
energia, conhece suas forças. Ele sabe aonde é atacado mais duramente pelas
paixões, e dirige para esta parte o grosso da luta. Mas isto não é fácil se ele
perde seu tempo na insensibilidade; então ele se parece com alguém que luta à
noite, e não vê os pensamentos que o atacam.
23. Quando nossa razão se aplica firmemente à
contemplação das virtudes, quando nosso desejo não tende senão para esta e para
Cristo que no-la dá, quando nosso ardor está armado contra os demônios, então
nossas forças agem de acordo com a natureza.
24. Toda alma racional tem três partes, segundo
Gregório o Teólogo. Ele chama a virtude formada na razão de inteligência,
consciência e sabedoria; a que se forma no ardor, de coragem e paciência; a que
é formada no desejo, de amor, castidade e temperança. Por todas essas virtudes
reparte-se a justiça, pronta a agir quando for preciso. Por meio da
inteligência, ela combate as potências contrárias e defende as virtudes; por
meio da castidade, ela vê as coisas impassivelmente; por meio do amor, ela leva
cada qual a amar a todos como a si mesmo; pela temperança, ela poda os
prazeres; pela coragem e a paciência, ela se arma para os combates invisíveis.
Esta é a harmonia do instrumento melodioso da alma.
25. Quem se
dedica à castidade e deseja a pureza bem-aventurada, que sem medo de errar
podemos chamar de impassibilidade, deve bater e dominar a carne[22],
pedindo a graça divina com um pensamento humilde, e assim obterá o que deseja.
Mas quem dá ao corpo um excesso de alimentos sofrerá com o espírito da
prostituição. Do mesmo modo que muita água extingue a chama, a fome e a
temperança unidas à humildade da alma afastam a inflamação da carne e as
imaginações infames.
26. Você que ama a Cristo, afaste sempre de si a
paixão do ressentimento. Jamais dê ocasião para a inimizade. Pois o
ressentimento faz seu ninho no coração, como o fogo que se esconde num telhado
de palha. Ao contrário, reze ardentemente por quem lhe afligiu, e faça o bem a
ele, se sua mão puder, a fim de que sua alma seja liberta da morte, e para que
suas palavras sejam livres no momento da prece.
27. Na alma dos humildes repousará o Senhor. Mas no
coração dos orgulhosos moram as paixões da infâmia. De fato, nada lhes dá mais
força contra nós do que os pensamentos altaneiros. E nada desenraiza melhor as
ervas daninhas da alma do que a bem-aventurada humildade, da qual se diz com
razão que destrói as paixões.
28. Que sua alma se purifique dos maus desejos, e que
ela se ilumine com os pensamentos mais nobres. Tenha sempre no espírito o que
foi dito: um coração que ama o prazer é uma prisão e uma cadeia no tempo do
êxodo. Mas um coração que ama o padecer é uma porta aberta. Em verdade, os
anjos orientam e dirigem para a vida bem-aventurada as almas puras que deixam o
corpo. Mas as almas manchadas e que não se arrependem, pois bem, os demônios as
tomarão.
29. Bela é a cabeça ornada com um diadema precioso,
pedras das Índias e pérolas brilhantes. Mas incomparavelmente mais bela é a
alma rica do conhecimento de Deus, iluminada pelas contemplações mais
brilhantes. Ela é a morada do Espírito Santo. Quem poderá descrever com justiça
a beleza desta alma bem-aventurada?
30. Não deixe que a irritação e a cólera habitem em
você. Foi dito que um homem irascível não é um homem nobre[23].
Mas a sabedoria repousará no coração dos mansos. Se a paixão da cólera dominar
a sua alma, os que vivem no mundo serão mais fortes do que você e você será
confundido por não permanecer na solidão de um monge experiente.
31. Em todas as tentações e todos os combates, faça da
oração sua arma invencível, e você vencerá pela graça de Cristo. Que sua prece
seja pura, como nos ensinou um mestre sábio ao dizer: “Quero que os homens orem
em todos os lugares, tendo as mãos piedosas, sem cólera nem disputas[24]”.
Quem negligencia esta oração será entregue às tentações e às paixões.
32. Foi escrito que o vinho alegra o coração do homem[25].
Mas você, que está votado ao luto e às lágrimas, decline desta alegria e
regozije-se com os dons do Espírito. Se é o vinho que o alegra, você viverá com
pensamentos infames e com ele será conduzido a muitas tristezas.
33. Compreenda que não é bebendo vinho que se celebram
as festas, mas renovando o intelecto e purificando a alma. Enchendo seu ventre
de comidas e de vinho, você só conseguirá irritar aquele que preside a festa.
34. Foi-nos ordenado velar nas salmódias, nas orações
e nas leituras, e em especial quando celebramos as festas. Pois o monge que
vela aguça seu pensamento em vista das contemplações nas quais a alma encontra
seu bem. Excesso de sono, ao contrário, torna pesado o intelecto. E quando você
vela, procure não se dedicar a leituras vazias ou a pensamentos maliciosos. É
melhor deitar-se do que velar falando ou pensando em vão.
35. Aquele que leva uma serpente em seu seio e o que
nutre pensamentos maliciosos em seu coração perecerá, um porque fere seu corpo
com uma picada venenosa, outro porque coloca em sua alma um veneno mortal.
Destruamos o mais depressa possível as ninhadas de víboras, e não levemos
pensamentos de malícia no coração, para não sofrermos amargamente.
36. A alma pura é um vaso de eleição, um jardim
fechado, uma fonte selada[26],
um trono dos sentidos. É justo chamá-la assim. Mas a alma manchada de impurezas
está cheia do mau odor do esgoto.
37. As belas vestimentas, o ventre saciado, os
encontros nocivos, enchem a alma de pensamentos maliciosos. Apreendi isto tanto
por experiência como pela prática dos antigos.
38. Que o desejo pelo dinheiro não habite a alma dos
ascetas. Um monge que possui riquezas é como um navio que se enche de água,
batido pelas ondas dos cuidados, e que afunda no abismo da tristeza. O amor
pelo dinheiro é um mal que engendra múltiplas paixões. Com justiça, foi chamado
de raiz de todos os males[27].
39. A pobreza e o silêncio são um tesouro escondido no
campo[28]
da vida monástica. Assim, quando você partir, venda tudo o que possui, dê o
dinheiro aos pobres[29],
adquira este campo, descubra seu tesouro, e guarde-o para si em um refúgio inviolável, a fim de se tornar
rico desta riqueza que nunca se esgota.
40. Se você vive com um pai espiritual e sente toda a
ajuda que dele recebe, que ninguém o separe de seu amor e da vida em comum. Não
o julgue em nada, não o critique, não o ofenda, não diga mal algum dele, não
escute a quem o diminui, não se aproxime de quem o insulta, a fim de não
provocar o Senhor e não ser por ele apagado do livro dos vivos[30].
41. Chega-se à submissão ao cabo de um longo esforço
por meio da renúncia, conforme aprendemos. Mas quem a procura deve cercar-se de
três armas, vale dizer, a fé, a esperança e a caridade[31]
venerável e divina, a fim de que, protegido por elas, sustente o bom combate e
receba a coroa da justiça[32].
42. Não seja o juiz das obras de seu pai espiritual,
mas cumpra com os mandamentos. Pois é costume dos demônios mostrarem a você as
suas falhas para tornar seus ouvidos surdos às suas palavras, ou para afastá-lo
da luta como um fraco e preguiçoso, ou esgotá-lo até o ponto que você não tenha
mais do que pensamentos sem fé, relaxando em você todas as formas da virtude.
43. Quem desobedece aos comandos paternos transgride
os próprios termos da promessa. Mas quem acolhe em si a obediência imola seu
próprio querer sob a espada da humildade, cumprindo, no que lhe diz respeito,
aquilo que Cristo pediu a muitos mártires.
44. Nós sabemos, por experiência própria e por termos
aprendido, que os demônios, os inimigos de nossa vida, são extremamente
ciumentos em relação àqueles que se submetem aos pais espirituais. Eles rangem
os dentes contra eles e imaginam toda sorte de intrigas. O que não fazem, o que
não sugerem, para arrancá-los ao abraço paterno? Eles inventam bons pretextos,
eles fomentam crises, eles suscitam a raiva contra os pais, eles apresentam
suas admoestações como se fossem castigos, eles cravam suas censuras como se
fossem flechas agudas. Como, dizem eles, você que é livre, se tornou o
servidor, o escravo de um mestre impiedoso? Até quando você se cansará sob o
jugo da servidão e ficará provado de ver a luz da liberdade? Eles colocam em
primeiro lugar o acolhimento aos estrangeiros, a visita aos doentes, os
cuidados com os pobres. Depois eles exaltam a mais extrema hesíquia, o
espetáculo da solidão, e semeiam toda espécie de ervas daninhas no coração do
combatente da piedade. Mas eles não buscam outra coisa do que fazê-lo sair do
aprisco espiritual, a se afastar do porto calmo e se atirar no mar agitado
pelas ondas em que perecem as almas. Então eles o tornam cativo sob seu poder e
o fazem cumprir sua vontade perversa.
45. Você que vive submetido a um pai espiritual, não
ignore as armadilhas dos inimigos e dos adversários. Não esqueça sua profissão
de fé e sua promessa a Deus, não se deixe vencer pelos excessos, não tema as
censuras, nem as ironias e as gozações, não ceda aos transbordamentos dos
pensamentos maliciosos, não fuja da severidade paterna, não desonre o nobre
jugo da humildade sob a audácia da auto-suficiência e da presunção. Tenha em
seu coração a palavra do Mestre: “Quem perseverar até o fim será salvo[33]”.
Leve com paciência o curso que lhe foi proposto, tendo sempre diante dos olhos
a Jesus, fundamento e cumprimento da fé[34].
46. Quando o ourives funde o ouro, ele o torna mais
puro. O mesmo acontece com o monge noviço que se entrega aos combates da
submissão e ao fogo das duras provas da vida em Deus. Quando, suportando as
penas e exercendo a paciência, ele aprende a obedecer e refaz seus hábitos,
então ele descobre a humildade, e chega a um estado luminoso, tornando-se digno
dos tesouros celestes, da vida que não morre e do fim bem-aventurado, de onde
fogem a dor e os gemidos[35]
e aonde crescem a alegria e o regozijo contínuos.
47. Uma fé reta e profunda engendra o temor a Deus, e
este nos ensina a observar os mandamentos. Com efeito, foi dito que temer é
observar os mandamentos. Da observação dos mandamentos nasce a virtude ativa,
que é o começo da virtude contemplativa. Seu fruto é a impassibilidade. E é da
impassibilidade que nos vem o amor, do qual fala o discípulo bem-amado: “Deus é
amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele[36]”.
48. Verdadeiramente bela e boa é a vida do monge! Bela
e boa, por ser vivida segundo as condições e as leis colocadas por aqueles que
a fundaram e dirigem, inspirados pelo Espírito Santo. Quem combate por Cristo
deve, com efeito, ter uma existência imaterial, sem tomar parte de nenhum
pensamento ou atividade deste mundo, como disse o Apóstolo: “Ao se alistar no
exército, ninguém se deixará envolver pelas questões da vida civil, se quiser
satisfazer a quem o alistou no regimento[37]”.
49. O monge deve ser imaterial, impassível, sem nenhum
mau desejo, sem preguiça, sem embriagar-se de vinho, não ser descuidado ou
negligente, não amar o dinheiro, nem o prazer, nem a vanglória. Sem se afastar
desses vícios, ninguém consegue atingir a vida angélica. Mas para os que
conseguem levar com sucesso a vida angélica, seu jugo é bom e a carga é leve[38],
pois a esperança divina sustenta e alivia tudo. Uma vida assim é doce. A ação é
alegre. Esta é a boa parte; ela não será tirada[39]
à alma que a possui.
50. Você que deixou os cuidados da vida e entrou para
o combate da ascese, não deseje possuir riquezas para distribuí-las aos pobres.
Esta é mais uma ilusão do Maligno: fazendo o intelecto se ocupar de muitas
coisas, ele o conduz à vaidade. Não tenha mais do que pão e água, para ter o
salário da hospitalidade. E se você não tiver nada, você ainda poderá acolher o
hóspede com toda a bondade de sua simples intenção, conversar com ele,
consolá-lo, e conseguir assim o salário da hospitalidade. No Evangelho você tem
o testemunho do Senhor: a viúva que, com seus dois vinténs, ultrapassou as
intenções e o poder dos ricos.
51. Isto vale para os que vivem na hesíquia. Mas para
aqueles que vivem submetidos a um pai espiritual, que não tenham senão uma
coisa no espírito: não transgredir suas ordens em nada. Se conseguirem isto,
todo o resto ficará bem. Inversamente, se eles se afastarem da rigorosa
disciplina desta vida, eles serão incapazes de qualquer forma de virtude ou de
conduta espiritual.
52. Você que ama a Cristo, receba de mim ainda este
conselho: ame o exílio, afastado das circunstâncias em que vive seu próprio
país. Não se encarregue dos cuidados com os parentes nem com a amizade dos seus
próximos. Fuja da vida na cidade, e persevere no deserto. Diga com o profeta:
“Eis que eu fugi para longe e fiz do deserto a minha moradia[40]”.
53. Procure os lugares do mundo que são isolados e
distantes. Mesmo que lá tudo seja difícil, mesmo que lhe faltem as coisas
necessárias, não tema. Se os inimigos o cercam como abelhas[41]
e marimbondos pérfidos, se o assaltam e atormentam com toda sorte de agressões
e pensamentos, não se assuste, e não se deixe levar a ouvi-los, não fuja da
arena de combate. Antes seja paciente e persevere, permanecendo firme sob o
encanto das palavras do seu cântico: ”Eu perseverei no Senhor. Ele veio a mim e
atendeu minha prece[42]”.
Então você verá as grandes coisas de Deus, a proteção, a solicitude, e todos os
outros caminhos da providência que leva à salvação.
54. Se você ama a Cristo, seus amigos devem ser
pessoas que o ajudam e partilham de sua vida. Pois foi dito: Que seus amigos
sejam homens de paz, irmãos de espírito, pais em santidade, de quem disse o
Senhor: “Minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade do meu Pai que está
nos Céus[43]”.
55. Não sinta desejo por alimentos variados e
suntuosos, nem pelo luxo mortal. Pois foi dito: “Quem vive no luxo, ainda que
vivo, está morto[44]”.
Recuse satisfazer-se com esta abundância, se você puder. Com efeito, foi escrito:
“Não se deixem enganar pela saciedade do ventre[45]”.
56. Recuse as estadias contínuas fora de sua cela, se
você escolheu viver na hesíquia, pois elas fazem muito mal. Elas lhe roubam a
graça, obscurecem a inteligência, esgotam o desejo. Por isso foi dito: “O
turbilhão da concupiscência mina a alma ingênua[46]”.
Rompa com as relações numerosas. Que seu intelecto não esteja atarefado, e que
ele não se desvie do curso da hesíquia.
57. Sentado em sua cela, não deixe que seu trabalho
perca a razão de ser, enchendo-o de ócio. Foi dito que quem viaja sem objetivo
pena em vão. Trabalhe naquilo que é bom, reúna seu intelecto, tenha sempre
diante dos olhos a hora da morte, lembre-se da vaidade do mundo, do quanto ela
é enganadora, impotente e nula. Considere os perigos do terrível julgamento,
quando os demônios, percebendo o que lhes é devido virão para revelar nossos atos tais como foram, as razões e os
desejos que eles próprios provocaram e que nos fizeram assumir como nossos.
Lembre-se dos tormentos do inferno, e de como as almas estão lá encerradas. Mas
lembre-se também deste grande e formidável dia, falo do dia da ressurreição
comum, do comparecimento diante de Deus, e da última decisão do juiz que
ninguém pode enganar. Considere o castigo que surpreenderá os pecadores, a
vergonha da consciência acusada, o descarte para o fogo eterno, para as trevas
sem luz, aonde já não há nada para se ver, o choro e o ranger de dentes[47].
Examine todos os outros castigos. Não cesse de molhar com lágrimas seus
joelhos, suas vestes, o lugar em que estiver. Já vi muitos que, pensando nessas
coisas, choraram todas as lágrimas do seu corpo e purificaram maravilhosamente
todas as potências da alma.
58. Mas lembre-se também dos bens reservados aos
justos: sua presença à direita de Cristo, a bendita voz do Mestre, a herança do
Reino dos céus, do dom que ultrapassa toda inteligência, esta luz doce, a
alegria que não tem fim e que nenhuma tristeza poderá interromper, as moradas
celestes, a vida com os anjos, e tudo o mais que foi prometido àqueles que
reverenciam o Senhor.
59. Que estes pensamentos permaneçam com você, com
você repousem e com você se levantem. Esteja atento para jamais esquecê-los.
Aonde quer que você esteja não subtraia a seu intelecto esta lembrança, a fim
de que os pensamentos maliciosos fujam e que você fique cheio da consolação
divina. A alma que não está cercada das muralhas desta meditação não pode
atingir a hesíquia. Ela será como uma fonte seca, e não merecerá seu nome.
60. Tal é o modo de vida que aqueles que escolheram a
hesíquia devem tomar como lei: jejuar tanto quanto possível, velar, dormir
sobre o solo e adotar todos os sofrimentos que preparam para o repouso futuro.
Pois foi dito que os sofrimentos do tempo presente nada são comparados com a
glória que se revelará a nós[48].
E, sobretudo, carregar em si a prece pura, por assim dizer incessante e
contínua, aquela que é a fortaleza segura, o porto calmo, a salvaguarda das
virtudes, o fim das paixões, a tensão da alma, a purificação do intelecto, o
repouso dos que dormem, o consolo dos que choram. A prece é o reencontro com
Deus, a contemplação do invisível, a certeza dos que desejam, a vida angélica,
o impulso que leva ao bem, o fundamento daquilo que se espera[49].
Asceta, abrace com todas as suas forças esta rainha das virtudes. Reze noite e
dia, quer você perca a coragem, quer esteja seu coração ardente. Reze com temor
e com tremor, com o intelecto sóbrio e desperto, para que o Senhor receba sua
oração. Foi dito que os olhos do Senhor estão sobre os justos e que seu ouvido
está atento à sua oração[50].
61. Um dos antigos[51]
disse com toda justiça que, dentre os demônios que nos atacam, a linha de
frente do combate é formada pelos que nos dispõem à glutoneria, os que nos
incitam o amor pelo dinheiro, e os que nos convidam a procurar a vanglória.
Todos os que vêm depois nada mais fazem do que receber aqueles que foram assim
feridos.
62. Em verdade sabemos, por termos sido marcados, que
não há homem que haja caído por causa de um pecado ou de uma paixão sem que
antes tenha sido ferido por um desses três demônios. Estes, aliás, foram os
três pensamentos que o diabo propôs ao Salvador[52].
Mas nosso Senhor foi mais forte do que eles e ordenou ao diabo que recuasse. E
em sua bondade e amor pelos homens, ele nos deu a vitória sobre ele. Revestido
de um corpo, em tudo sujeito aos mesmos sofrimentos do que nós – embora sem
pecado[53]
– o Mestre nos mostrou o caminho reto da inocência. Se o seguirmos,
reformaremos em nós o homem novo, renovado à imagem d’Aquele que nos criou[54].
63. O salmo de Davi ensina a desprezar com uma
perfeita aversão os demônios, como inimigos de nossa salvação[55].
Esta é uma coisa absolutamente necessária para trabalhar pela virtude. Mas quem
é aquele que despreza com uma perfeita aversão os inimigos? É quem não mais peca
nem em ato nem em pensamento. Enquanto as coisas que nos levam a amar os
demônios – ou seja, as causas das paixões – permanecerem em nós, como chegar a
desprezá-los? Um coração que ama o prazer não consegue ao mesmo tempo nutrir
tal desprezo.
64. A veste nupcial é a impassibilidade da alma
racional que se separou dos prazeres do mundo e renunciou a todas as tolas
concupiscências, para se devotar às meditações do amor de Deus e ao puro
exercício das contemplações. Mas as paixões da infâmia e suas intrigas despojam
o homem da túnica da castidade. Os andrajos rasgados e sujos o degradaram, como
mostram os Evangelhos. Quem é atirado nas trevas de pés e mãos atados teve suas
vestes tecidas com tais pensamentos e tais atos: é deste que o Evangelho diz
não ser digno das bodas divinas e incorruptíveis[56].
65. Um sábio disse a respeito do egoísmo que ele
despreza todos os seres. O perigoso combate no qual o egoísmo nos atira é, com
efeito, o primeiro dentre os pensamentos. Ele é como um tirano. Com os
pensamentos, as três primeiras paixões e as cinco demais se apoderam de nosso
intelecto[57].
66. Eu duvido que seja possível saciar-se de alimentos
e ao mesmo tempo adquirir a impassibilidade. Quando digo impassibilidade, não
me refiro à abstinência do pecado ativo, que é a temperança, mas à
impassibilidade que desenraiza do intelecto os pensamentos passionais e que é
chamada de pureza do coração.
67. É mais fácil purificar uma alma impura do que
trazer à saúde uma alma que tenha sido curada e novamente ferida. Quaisquer que
sejam as faltas nas quais caiam aqueles que acabam de se separar da confusão do
mundo, é para estes mais fácil alcançar a impassibilidade. Mas os que provaram
da bondade das palavras de Deus, que avançaram no caminho da salvação, e que
retrocederam para o pecado, têm grande dificuldade em reencontrar a
impassibilidade. Os primeiros são presa dos estados de malícia e dos maus
hábitos, mas os outros o são do demônio da tristeza, que se agarra às pupilas
dos olhos e oferecem as imagens do pecado. Mas uma alma zelosa e que ama o
sofrimento pode corrigir tudo facilmente, mesmo o que é difícil de consertar,
se for ajudada pela graça divina que nos manifesta seu amor pelo homem e sua
paciência, que nos chama ao arrependimento, e que nas entranhas inefáveis de sua
compaixão recebem aqueles que retornam, como nos ensinam os Evangelhos com a
parábola do filho pródigo[58].
68. Nenhum de nós é capaz de, com suas próprias
forças, sobrepujar as intrigas e as armadilhas do Maligno. Só o podemos pelo
invencível poder de Cristo. Aqueles que, em seu orgulho, pretendem abolir o
pecado com suas asceses e por sua simples vontade estão enganados. O pecado só
pode ser abolido pela graça de Deus, porque ele foi destruído pelo mistério da
cruz. A flama da Igreja, João Crisóstomo, diz com justiça que o a resolução do
homem não é o bastante, se ela não receber um impulso do alto. Reciprocamente,
não ganhamos nada recebendo um impulso do alto se não estivermos resolvidos. É
o que nos mostram Judas e Pedro. O primeiro, que havia recebido um grande
socorro, não tirou nenhuma vantagem dele[59],
pois não estava resolvido e nada deu de si mesmo. O outro, Pedro, estava
resoluto, mas não recebeu nenhum auxílio e tombou[60].
De fato, a virtude é tecida a um só tempo de resolução e graça. Eu lhes peço
então, diz João Crisóstomo, que não durmam deixando tudo repousar nas mãos de
Deus, mas que também não pensem que apenas esforçando-se se poderá obter tudo
por suas próprias penas.
69. Deus não quer que sejamos negligentes; é por isso
que ele não faz tudo sozinho. Ele também não quer que sejamos presunçosos; é
por isso que ele não deixa tudo para nós. Nos dois casos, ele nos tira o que é
nocivo e nos deixa o que é bom. O Salmista tem razão quando nos ensina que se o
Senhor não constrói a casa, aquele que guarda e pena vigia em vão[61].
Pois é impossível caminhar sobre a áspix e o basilisco e pisotear o leão e o
dragão[62],
se antes não nos purificarmos o quanto é possível a um homem, e sem recebermos
a força d’Aquele que disse aos apóstolos: “Eis que eu lhes dou o poder de
pisotear as serpentes e os escorpiões, e todas as potências do inimigo[63]”.
Foi-nos ordenado pedir ao Mestre na oração que não nos deixe cair em tentação e
que nos livre do mal[64].
Pois se não formos libertos das flechas inflamadas do Maligno[65]
e tornados dignos de alcançar a impassibilidade pelo poder e o auxílio de
Cristo, se acreditarmos que com nosso próprio poder e nosso próprio esforço
podemos obter seja lá o que for, penamos em vão. Quem que superar e paralisar
as intrigas do diabo[66]
e comungar da glória divina deve, portanto, dia e noite, com lágrimas e
gemidos, com um desejo insaciável e uma alma ardente, pedir a ajuda e o consolo
de Deus. Quem quiser receber esta ajuda, que torne sua alma pura de toda
fruição do mundo, das paixões e dos desejos contrários. De tais almas, diz
Deus: “Eu permanecerei e caminharei a seu lado[67]”.
Também o Senhor dizia aos seus discípulos: “Quem me ama seguirá meus
mandamentos e meu Pai o amará. Nós viremos e faremos nele nossa moradia[68]”.
70. A respeito dos pensamentos, existe uma sentença de
um dos antigos, muito sábia e fácil de entender. Ele dizia: Julgue os
pensamentos no tribunal do coração; veja se eles são seus, ou se vêm dos
adversários. Os que lhe forem próprios e bons, guarde-os no mais profundo da
alma, como num tesouro inviolável. Mas os pensamentos contrários, castigue-os
sob os golpes do intelecto e da razão, banindo-os, não lhes deixando lugar nem
morada no espaço de sua alma, ou, melhor ainda, trespasse-os com a espada da
prece e da meditação divina. Uma vez que os ladrões fujam, o chefe dos ladrões
terá medo. Com efeito, está dito que quem examina rigorosamente seus
pensamentos é também o que ama verdadeiramente os mandamentos.
71. Que aquele que combate a fim de expulsar os que
lhe fazem guerra e que o oprimem, chame
para lutar a seu lado aliados mais numerosos, ou seja, a humildade da alma, as
penas do corpo, todos os sofrimentos da ascese, a prece de um coração aflito e
a abundância de lágrimas, com canta Davi: “Veja minha humildade e minhas penas,
e perdoe todos os meus pecados[69]”.
E: “Não seja surdo às minhas lágrimas[70]”.
E ainda: “Minhas lágrimas foram meu pão noite e dia[71]”.
E: “Eu misturo minhas lágrimas à minha bebida[72]”.
72. Por meio de numerosos pensamentos, o diabo, o
inimigo de nossa vida[73],
minimiza nossos pecados e muitas vezes os cobre com o esquecimento, a fim de
que, cedendo sob os sofrimentos, não busquemos mais nos lamentar diante de
nossas faltas. Mas nós, irmãos, não esqueçamos nossas faltas, nem nos
esqueçamos de pedir o perdão e de nos arrepender quando somos culpados.
Lembremo-nos sempre dos pecados e não cessemos de chorar sobre eles, a fim de
abrigarmos em nós a boa humildade e de fugirmos das armadilhas da vanglória e
do orgulho.
73. Que ninguém imagine ser capaz de suportar as penas
e adquirir a virtude por suas próprias forças. Pois a causa de todo bem que há
em nós está em Deus, assim como a causa do mal está no demônio que engana nossa
alma. Pelo bem que você fizer, ofereça uma ação de graças ao Criador. Mas
rejeite e devolva ao seu autor todo o mal que o perturbar.
74. Aquele que une a vida ativa e o conhecimento é um
cultivador digno de ser louvado. Ele rega com duas fontes límpidas o campo da
alma. Com efeito, pela contemplação do melhor, o conhecimento dá asas ao ser
novo. E a ação faz morrer os membros que estão sobre a terra, a prostituição, a
impureza, a paixão e a má concupiscência[74].
Uma vez que desapareçam, eclodem as flores das virtudes que trazem os frutos do
Espírito, o amor, a alegria, a paz, a paciência, a nobreza, a bondade, a fé, a
doçura, a temperança. Então este cultivador prudente, que crucificou a carne
com as paixões e as concupiscências[75],
dirá com o pregador teóforo: “Não sou mais eu quem vive, mas Cristo que vive em
mim. Aquilo que eu vivo, vivo pela fé, a fé no filho de Deus que me amou e se
entregou por mim[76]”.
75. Você que ama a Cristo, jamais se esqueça de que
uma paixão que encontra ainda que um só lugar em você enraíza-se duradouramente
e traz outras para o mesmo pomar. Pois, embora as paixões se oponham umas às
outras, assim como os demônios seus autores, todas buscam de forma unânime a
nossa perda.
76. Aquele que com sua ascese consome a flor da carne
e acorrenta todas as suas vontades, carrega os estigmas de Cristo em sua carne
mortal[77].
77. Os sofrimentos da ascese têm seu fim no repouso da
impassibilidade. Mas o desfrute desemboca nas paixões da infâmia.
78. Não fique ligado em contar os longos anos de sua
vida solitária. Nas provações do deserto e na dureza dos combates, não se deixe
levar pela vaidade, mas tenha sempre no espírito das palavras do Mestre: “Eu
sou um servidor inútil[78]”,
que ainda não cumpriu o mandamento. Enquanto permanecemos na vida presente, com
efeito, ainda não fomos chamados do exílio, e ficamos às margens do rio da
Babilônia[79],
fabricando tijolos no Egito[80],
sem ainda ter avistado a terra prometida. Pois ainda não nos despojamos do velho homem corrompido pelos desejos
enganadores[81].
Ainda não trazemos a imagem do celeste, porque carregamos a imagem do terrestre[82].
Não temos do que nos glorificar. Devemos, sim, chorar, rogar Àquele que pode
nos salvar[83]
da servidão do Faraó mais odioso, libertar-nos da cruel tirania e nos permitir
entrar na boa terra da promessa, aonde repousaremos no santuário de Deus e nos
encontraremos à direita da grandeza do Altíssimo. Os bens que ultrapassam o
entendimento não serão obtidos pelas obras com as quais julgamos fazer justiça,
mas pela infinita compaixão de Deus. Não deixemos de derramar lágrimas noite e
dia, como aquele que disse: “Eu me esgoto gemendo. A cada dia eu banho minhas
cobertas, com minhas lágrimas eu molho meu leito[84]”.
Pois “aqueles que semeiam nas lágrimas colherão na alegria[85]”.
79. Afaste de você o espírito da falação[86],
pois ele esconde paixões terríveis: de todos os lados a mentira, a linguagem
desabrida, a zombaria, a grosseria, a estupidez. Foi dito em breves palavras:
“Da falação não demora a aparecer o pecado[87]”.
Mas “o homem silencioso é um trono para os sentidos[88]”. Disse o Senhor: “Pediremos conta de toda
palavra sem fundamento[89]”.
O silêncio é necessário e bom.
80. Foi-nos ordenado não insultar e difamar de volta
aqueles que nos insultam, nos injuriam ou nos difamam de qualquer maneira, mas
ao contrário, louvá-los e bendizê-los. Com efeito, é na medida em que estamos
em paz com os homens que podemos combater os demônios. Mas se nos voltamos
contra os nossos irmãos para combatê-los, ficamos em paz com os demônios. Ora,
nós aprendemos que devemos odiá-los com uma aversão total e levar contra eles
uma guerra sem volta[90].
81. Evite atacar o próximo com uma língua ferina, a
fim de não ser você mesmo atacado pelo destruidor. Pois eu sei, por ter ouvido
a voz do profeta, que é antipático ao Senhor o homem do sangue e da fraude[91],
e que ele destruirá todos os lábios ferinos e as línguas arrogantes[92].
Da mesma forma, evite criticar a falta de seu irmão, para não decair da bondade
e do amor, pois quem não sente amor e bondade por seu irmão não conhece a Deus.
Como diz João, o filho do trovão, o discípulo bem-amado de Cristo: “Deus é amor[93]”.
Com efeito, diz ele, se Cristo, nosso Salvador, “deu sua alma por nós, devemos
dar nossas almas pelos nossos irmãos[94]”.
82. É com razão que o amor é chamado de fonte das
virtudes, fundamento da lei e dos profetas[95].
Vamos até o fundo de nossas penas, até descobrirmos o santo amor. Com ele
expulsaremos a tirania das paixões, nos elevaremos aos céus, carregados pelas
asas das virtudes, e veremos a Deus na medida em que isto é possível á natureza
humana.
83. Se Deus é amor, aquele que tem amor tem a Deus em
si. Mas quando nos falta o amor, ele já não nos ajuda em nada, e não podemos
dizer que amamos a Deus. Pois está escrito: “Se alguém diz que ama a Deus, mas
despreza seu irmão, este homem é um mentiroso[96]”.
E ainda: “Ninguém jamais viu a Deus[97]”,
mas “se nos amarmos uns aos outros, Deus permanecerá em nós e seu amor em nós
será perfeito[98]”.
Vemos assim que, de todos os bens de que fala a santa Escritura, é o amor a
coisa mais vasta e mais extrema. Não há forma de virtude pela qual o homem se
aproxime e reencontre a Deus que não dependa do amor, nem que o amor não
abrace, mantendo-a e protegendo-a de maneira inefável.
84. Quando acolhemos os irmãos que nos visitam, não
pensemos que eles desarrumem ou que rompam a hesíquia, para não decairmos da
lei do amor. Não os acolhamos como se lhes fizéssemos uma graça, mas antes como
se fôssemos nós a receber uma graça sendo-lhes devedores. Ofereçamos nossa
hospitalidade com nossas orações e alegria, como nos mostrou o patriarca
Abrahão. É também o que nos ensina o Teólogo: “Filhos, não amemos em palavras,
com a língua, mas em ato e verdadeiramente. Com isto saberemos que vocês estão
com a verdade[99]”.
85. O patriarca tinha o exercício da hospitalidade no
coração. Diante de sua tenda[100],
ele convidava a todos os que passavam e, para todos, mesmo os ímpios e os
bárbaros, sem distinção, oferecia sua mesa. Foi assim que ele foi considerado
digno do banquete maravilhoso: ele acolheu os anjos e o Mestre do universo.
Velemos, portanto, pela hospitalidade, atenta e resolutamente, a fim de acolher
não apenas os anjos, mas a Deus.O Senhor o disse: “Aquilo que vocês fizerem a
um dos meus pequeninos, a mim o terão feito[101]”.
Assim, é bom fazer o bem a todos, e sobretudo aos que nada podem dar em troca.
86. Aquele que não for condenação pelo seu coração[102],
nem por transgredir as ordens de Deus, nem por sua negligência, nem por haver
acolhido um pensamento contrário, terá este coração digno de ouvir:
“Bem-aventurados os corações puros, pois eles verão a Deus[103]”.
87. Esforcemo-nos para chegar pela razão a educar os
sentidos, em especial os olhos, os ouvidos e a língua, a fim de que ver, ouvir
e falar não se tornem para nós uma paixão, mas um ganho. Pois nada nos arrasta
tanto ao pecado quanto estes órgãos, quando não são educados pela razão. Reciprocamente,
nada é mais disposto do que eles para a obra da salvação, quando a razão os
dirige e regula, e os guia para onde deve e para onde quer. Quando eles estão
em desordem, o olfato relaxa, o tato se dilata inconsideradamente, e o enxame
das paixões nos invade. Mas se estão postos em ordem pela razão, uma grande paz
e uma calma constante se manifestam de todas as partes.
88. Assim como a preciosa mirra, mesmo que encerrada
no recipiente, penetra o ar com seu perfume e enche de prazer não apenas os que
estão próximos, mas também todos ao redor, também o perfume da alma virtuosa
que ama a Deus espalhando-se por todos os sentidos do corpo, revela a virtude
que repousa no interior a todos os que se aproximam. Quem não perceberá o
imenso perfume que repousa no interior, vendo uma língua que não diz nada de
discordante nem de despropositado, mas apenas o que é bom e útil, vendo os
olhos concentrados e os ouvidos que não se voltam para cantos e palavras
impróprias, vendo um caminhar comedido e um rosto que não se torce em riso, mas
apresenta lágrimas e luto? É o que diz o Senhor: “Que a sua luz brilhe diante
dos homens para que eles vejam suas boas obras e glorifiquem seu Pai que está
nos céus[104].”
89. Cristo nosso Deus disse nos Evangelhos que o
caminho era estreito[105].
Mas ele também disse que o jugo era doce e a carga leve[106].
Como conciliar estas duas coisas que parecem contraditórias? Por natureza, a
via pode muito bem ser dura e escarpada, mas com a resolução e a boa esperança
dos que a percorrem ela se torna desejável e digna de amor e ela alegra mais do
que aflige as almas que amam a virtude. Podemos ver, com efeito, que aqueles
que a escolheram seguem pelo caminho estreito e apertado com mais ardor do que
por um caminho largo e vasto. Escute o que diz o bem-aventurado Lucas. Os
apóstolos que haviam sido chicoteados retiraram-se alegres do Conselho[107],
embora normalmente um chicote, por natureza, cause dor e sofrimento, e não
prazer e contentamento. Se os golpes de chibata recebidos por Cristo foram uma
fonte de alegria, o que há de espantoso que os outros sofrimentos e ferimentos
do corpo tenham o mesmo efeito, quando os recebemos pelo mesmo Cristo?
90. Quando as paixões nos tiranizam e nos mantêm
cativos, nos perguntamos por que sofremos tais coisas. Devemos saber que este
cativeiro nos espera sempre que deixamos de nos dedicar à contemplação de Deus.
Mas se colarmos continuamente nosso intelecto a nosso Mestre e Deus, podemos
confiar que o Salvador libertará nossa alma de todo cativeiro de paixões, como
disse o Profeta: “Eu tenho sempre o Senhor diante de mim. Ele está à minha
direita, eu não tombarei jamais[108]”.
O que pode haver de mais doce e mais seguro do que ter sempre o Senhor à nossa
direita, cobrindo-nos e nos protegendo, não permitindo que caiamos? Ora, isto
está ao nosso alcance.
91. Bem disseram os Padres, e de modo irrefutável: um
homem não pode encontrar repouso senão levando dentro de si mesmo o pensamento
de que não existe no mundo mais do que ele e Deus. Então seu intelecto deixa de
girar. Ele deseja a Deus, e não está ligado senão a ele. Este homem encontrará
o verdadeiro repouso. Ele será libertado da tirania das paixões. De fato, foi
dito: “Minha alma está ligada a você. Sua direita me mantém[109]”.
92. O egoísmo, o amor pelos prazeres e a vanglória expulsam
da alma a lembrança de Deus. O egoísmo é a mãe de males sem iguais. Quando a
lembrança de Deus nos falta, o redemoinho de paixões faz em nós sua morada.
93. Quem desenraiza o egoísmo de seu coração dominará
facilmente todas as outras paixões, com a ajuda do Senhor. Com efeito, é do
egoísmo que provêm a cólera e a tristeza, o ressentimento, o amor pelos
prazeres e os excessos de linguagem. Quando este é vencido, as demais paixões
capitulam junto. Chamamos de egoísmo ao estado de paixão que nos faz amar o
corpo e cumprir as vontades da carne.
94. De todo coração queremos estar continuamente e sem
cessar junto daquilo que amamos. E descartamos tudo o que nos impede de nos
aproximarmos do amado e de nos unirmos a ele. Equivale a dizer que quem ama a
Deus deseja sempre encontrá-lo e viver com ele. Ora, isto nos é possível por
meio da oração pura. Devemos nos devotar à oração, tanto quanto pudermos, pois
é ela que nos une ao Mestre, como aconteceu com aquele que disse: “Deus, você é
meu Deus, eu o procuro, minha alma tem sede de você[110]”.
Quem afasta o intelecto de todas as formas de malícia, busca a Deus, e nada
mais o impede de ser tocado pelo amor divino.
95. Aprendemos que a impassibilidade nasce da
temperança e da humildade, e que o conhecimento nasce da fé. A partir daí, a
alma progride em discernimento e em amor. Quando ela acolhe em si o amor
divino, ela se eleva sem relaxar pelas asas da prece pura até as alturas deste
amor, até chegar, como diz o Apóstolo, ao conhecimento do Filho de Deus, ao
homem perfeito, à medida da idade da plenitude de Cristo[111].
96. Pela virtude ativa, o desejo é domado e o ardor é
submetido. Pelo conhecimento e a contemplação o intelecto é dotado de asas e,
elevando-se acima das coisas materiais, parte na direção de Deus e descobre a
verdadeira beatitude.
97. Devemos inicialmente combater para derrubar as
paixões e vencê-las com toda nossa força. Depois devemos adquirir as virtudes e
não deixar nossa alma nem vazia, nem inerte. Enfim – esta é a terceira etapa do
encaminhamento espiritual – devemos guardar sobriamente os frutos de nossas
virtudes e de nossas penas. Foi-nos ordenado, com efeito, não apenas de
trabalhar as penas, mas de guardar vigilantemente[112].
98. “Que seus rins estejam cingidos e suas lâmpadas
acesas[113]”,
disse o Senhor. Cingir bem os rins, que nos torna leves e ligeiros, é a
temperança aliada à humildade do coração. Chamo de temperança o distanciamento
de todas as paixões. E o que ilumina a lâmpada espiritual é a prece pura e o
amor perfeito. Os que assim se preparam são verdadeiramente semelhantes a
homens que acolhem seu Senhor. Quando ele bater à porta, eles abrirão depressa,
e ele entrará e fará neles sua morada juntamente com o Pai e o Espírito Santo[114].
Felizes estes servidores, quando o Senhor vier e os encontrar atentos à espera[115].
99. Como um filho, o monge deve amar a Deus com todo
seu coração e todo seu pensamento[116].
Mas como um servidor, ele deve reverenciá-lo e obedecê-lo e, com temor e
tremor, cumprir suas ordens[117].
Ele deve ter o fervor no espírito, estar revestido com a armadura do Espírito
Santo[118],
desejar o gozo da vida eterna, fazer sem falta tudo o que lhe for ordenado,
estar sóbrio e vigilante e proteger seu coração dos maus pensamentos, conduzir
por meio de uma boa atenção a contínua meditação divina, condenar-se sempre
pela malícia de pensamentos e atos, e preencher aquilo que lhe falta. Ele não
deve glorificar-se por suas boas obras, mas dizer que é um servidor inútil[119],
insuficiente no cumprimento dos seus deveres, a agradecer ao Deus santíssimo, imputar-lhe
a graça das boas obras, nada fazer pela vanglória ou para agradar aos homens,
em tudo agir secretamente e não buscar senão o louvor que vem de Deus[120].
Antes de tudo, e sobretudo, ele deve aquecer sua alma com a fé ortodoxa,
segundo os dogmas divinos que a Igreja católica recebeu dos Apóstolos
predicadores de deus e dos santos Padres. Para aqueles que assim se conduzirem
a recompensa será grande: a vida infinita, a indefectível moradia junto ao Pai,
ao Filho e ao Espírito Santo, a Divindade que é uma só Substância e três
Pessoas.
100. Este é o fim do discurso. “Escute, aí está você,
diz o Eclesiastes, tema a Deus e observe seus mandamentos, que é o que todo
homem deve fazer[121]”.
Eu lhe mostro, diz ele, o caminho real e venerável da salvação: tema a Deus e
observe seus mandamentos. O temor não é aquele que precede os castigos. É o
temor perfeito, que nos torna perfeitos, e que devemos ter por amor d’Aquele
que nos ordenou temer. De fato, se não cometemos o pecado por medo da danação,
se esta não existisse nós faríamos coisas condenáveis, e assim nossa intenção
seria pecadora. Ao contrário, se nos abstemos do pecado não por causa da ameaça
do castigo, mas por desprezarmos e rejeitarmos a malícia, trabalhamos pelo amor
ao Mestre na obra das virtudes, pelo temor de sermos arrastados para longe
delas[122].
Quando tememos transgredir seja lá o que for daquilo que nos foi ordenado,
nosso temor é puro[123].
Ele conduz ao próprio bem e purifica nossas almas, pois ele tem o mesmo poder
que o amor perfeito. Todo homem que sente este temor e que guarda os
mandamentos é perfeito: nada lhe falta. Portanto, sabendo disto, temamos a Deus
e observemos seus mandamentos, a fim de sermos perfeitos e completos de
virtudes[124].
Com o espírito humilhado e o coração contrito[125],
cantemos continuamente ao Senhor a prece que ensinou a grande e divino Arsênio:
“Me Deus, não me abandone. Nada de bom eu faço diante de você, mas por sua
misericórdia, permita-me começar”. Nossa salvação está toda na compaixão e no
amor de Deus pelo homem. A ele a glória, o poder e a adoração, ao Pai, ao Filho
e ao Espírito Santo, agora e para todo o sempre, pelos séculos dos séculos.
Amém.
DO NOSSO PAI TEODORO, BISPO DE EDESSA
DISCURSO SOBRE A CONTEMPLAÇÃO
Que combate maior existe do que romper este inflexível
laço, libertarmo-nos do culto da matéria e adquirir o estado de beleza? Para
fugir à matéria, a alma deve ser verdadeiramente nobre e corajosa. Mas não
devemos apenas nos dedicar à purificação das paixões, o que em si não é a
virtude, embora seja uma preparação para ela. Para nos purificarmos do estado
de malícia é preciso ainda que adquiramos as virtudes. A purificação da alma,
na ordem da razão, é a libertação e a perfeita desaparição dos caracteres
inferiores e enganosos, quero dizer, como o afirma o Teólogo, dos cuidados e
perturbações desta vida, das tendências defeituosas e das noções impróprias. Na
ordem do desejo, purificar a alma significa não mais tender para a matéria, não
considerar os sentidos e ser dócil à razão. Enfim, na ordem do ardor, purificar
a alma significa não se perturbar com aquilo que acontece. Depois desta
purificação, quando as potências da morte estiverem mortas e relegadas, é
possível alcançar a elevação e a deificação. É preciso afastar-se do mal e
fazer o bem[126].
Em primeiro lugar renunciando a si mesmo, devemos seguir o Mestre carregando a
cruz[127],
para alcançar o estado extremo da deificação.
Mas o que são a elevação e a deificação? Na ordem do
intelecto, é a ciência mais completa dos seres e d’Aquele que está para além
dos seres, na medida em que for possível à natureza humana. Na ordem da
vontade, é a tensão total e contínua, o movimento em direção à beleza primeira.
Na ordem do ardor, é o impulso mais forte e mais ativo, firme e perseverante,
em direção àquilo que se deseja. Nada do que acontecer, por aflitivo que seja,
pode detê-lo em sua marcha avante, e ele segue seu caminho, transbordante e sem
retorno. O impulso da alma para a beleza deve ser mais forte que sua tendência
para o inferior, tanto mais na medida em que a beleza inteligível é mais forte
do que a beleza sensível. E o retorno à carne deve ser tal que lhe baste velar
e prover o necessário, a fim de que o que está vivo não seja destruído. É fácil
de conceber a ação direita, mas é difícil cumpri-la. Pois não é sem esforço que
se desenraizam da alma estes estados difíceis de mudar, nem é sem suor que se
adquire a ciência. Para conseguir o olhar fixo sobre a natureza bem-aventurada,
para tender para ela até que a vontade obtenha o fruto deste impulso, são
necessárias muitas penas e um bocado de tempo. O intelecto tem que resistir aos
sentidos, que puxam para baixo, com todas as suas forças. Este é o
enfrentamento, o combate contra o corpo, que não finda senão com a morte, mesmo
que pareça acalmar-se quando o intelecto, superando-o, domou o ardor e o desejo
e controlou os sentidos. É preciso notar, por outro lado, que a alma não pode
ser iluminada a menos que receba o socorro de Deus, que sem isto ela não pode
se purificar verdadeiramente nem elevar-se à luz divina, como foi dito.
Lembrem-se de que aquilo que foi dito o foi para os fiéis.
Mas para termos maior clareza a respeito dessas
coisas, devemos em primeiro lugar discernir em breves palavras o que entendemos
por conhecimento. Com efeito, tudo o que conhecemos aqui em baixo é natural ou
sobrenatural, sendo que o segundo se revela a partir do primeiro. Assim,
chamamos de conhecimento natural aquilo que a alma, utilizando-se de seus
órgãos e potências naturais, consegue captar da criação pela pesquisa e pelo
exame, na medida em que isto lhe é possível, uma vez que ela está ligada à
matéria. Com efeito, foi dito a respeito da relação dos sentidos com a
imaginação e a inteligência, que o intelecto perde sua força quando se junta e
se une ao corpo. Torna-se então impossível para ele atingir as formas
espirituais. Mas para compreendê-las ele necessita da imaginação que, por
natureza, está voltada para os simulacros, e também da extensão e da pesandez
materiais. Para que o intelecto que está preso à carne possa captá-las, ele
necessita de formas que sejam correspondentes. Sendo esta a constituição do
intelecto, chamaremos de natural o conhecimento que ele adquire em seu próprio
caminho natural. Mas o conhecimento sobrenatural é aquele que, nascido do
intelecto, escapa a esta caminhada e às suas potências, quando em verdade as
concepções da inteligência aliada à carne ultrapassam sua própria medida. Cabe
então à inteligência separada do corpo conhecê-las. E este conhecimento vem
somente de Deus, quando esta inteligência se encontra inteiramente purificada
de toda tendência natural e traz em si o amor divino. Ora, não é apenas o
conhecimento que é então partilhado, mas também a virtude. Esta é diferente a
virtude que não ultrapassa a natureza, e à qual chamamos justamente de natural.
Ela é animada pela energia da beleza primeva, para além de toda potência e de
toda condição naturais, e a que devemos chamar propriamente de sobrenatural.
Dadas estas distinções, aquele que não recebeu a luz
poderá possuir o conhecimento e a virtude naturais, mas de modo algum o que é
sobrenatural. Como isto seria possível, uma vez que está privado d’Aquele que é
sua causa ativa? Mas quem recebeu a luz pode possuir as duas coisas. Porém,
para adquirir a virtude sobrenatural é preciso primeiro adquirir a virtude
natural. Por outro lado, nada impede que o conhecimento sobrenatural se faça
sem a participação e o concurso daquilo que conhecemos pela natureza. Ao
contrário, devemos saber o seguinte: assim como os animais possuem a sensação e
a imaginação e o homem as possui igualmente muito mais fortes e mais elevadas,
também aquele que recebeu a luz e o que não a recebeu, possuem ambos as
virtudes e os conhecimentos naturais, mas o primeiro muito mais forte e elevado
do que o segundo. Temos aqui, ao que parece, que o conhecimento natural em
questão, relativo às virtudes e aos seus contrários, é também duplo. De um lado
é abstrato, quando aquele que filosofa sobre estas noções não possui a
experiência, e permanece na incerteza; de outro é ativo, quando o conhecimento
é confirmado pela experiência de tais noções. Este conhecimento é claro e
seguro; ele está totalmente fora da incerteza e da dúvida.
Sendo assim, o intelecto que busca adquirir a virtude
tem diante de si, ao que parece, três obstáculos. Um é a predisposição aos
estados contrários, de que falamos, e que tende a nos levar, devido a um longo
costume, para as coisas terrestres. Outro é a energia dos sentidos, suscitada
pelas belezas sensíveis, e que atrai para si a inteligência. Um terceiro é o
esgotamento da energia intelectual, que afeta o intelecto unido ao corpo. Com
efeito, se a visão corresponde ao visível e em geral os sentidos ao sensível, o
mesmo não acontece com o intelecto em relação ao inteligível. Falo da
inteligência da alma que ainda está presa à carne. Pois os intelectos
imateriais tendem mais ativamente para o inteligível do que a visão para o
visível. Mas o intelecto que está em nós e recebe o inteligível é como uma
visão do visível ferida pelo ofuscamento e que não recebe as imagens nem com
clareza nem com precisão, mas antes confusas e obscuras. Incapaz de contemplar
na luz as belezas inteligíveis, de um lado é impossível à alma nada desejar – a
medida do desejo depende da medida do conhecimento – e de outro ela é atraída
para as belezas sensíveis, que se oferecem a ela de maneira mais imediata. Ela
precisa voltar-se para a beleza que lhe aparece, seja ela real ou não. Assim, a
malícia dos espíritos impuros que desprezam o homem coloca no caminho das almas
armadilhas das quais é impossível dizer o número ou a natureza, tantas são suas
múltiplas formas e maneiras, através dos sentidos, da palavra, da inteligência,
e por assim dizer de tudo o que existe. Se aquele que carrega sobre seus ombros
a ovelha perdida[128]
não velasse do alto, em sua infinita solicitude, por aqueles que para ele
voltam o olhar, nenhuma alma escaparia.
Para escapar a todas estas armadilhas três coisas são
necessárias. A primeira de a maior é tender a Deus com toda nossa alma, pedindo
o socorro de sua mão, nele colocando toda nossa esperança, rigorosamente
persuadidos de que se ele não vier em nosso auxílio todas as necessidades puxam
em sentido contrário para nos levar. A segunda, que eu penso ser causa da
primeira, é o contínuo alimento que a ciência fornece para o intelecto. Falo da
ciência de todos os seres sensíveis e inteligíveis, tais como são em si mesmos
e na sua relação com a origem primeira da qual saíram e para a qual tendem; e
falo da ciência d’Aquele que é a causa dos seres, desta ciência que fornece a contemplação
da causa, na medida em que isto é possível. Penetrar desta maneira na natureza
dos seres é uma coisa muito purificadora, que nos liberta de nosso estado
passional diante deles e do erro em que incorremos a seu respeito, e que nos
eleva ao mais alto ponto na direção da origem de tudo. No meio daquilo que é
belo, maravilhoso e grande reflete-se o mais belo, mais maravilhoso e maior, ou
antes, aquilo que está além da beleza, do maravilhoso e da grandeza. Quando o
intelecto se mantém permanentemente voltado para tais esplendores, como poderá
ele não desejar o verdadeiro bem? Se, com efeito, eles se volta para aquilo que
lhe é estranho, quanto mais não se voltará para o que lhe é próprio! Como
suportaria viver a alma que ama tais esplendores, com as coisas daqui de baixo
que nos distanciam naturalmente d’Aquele que nos ama? Porém, não nos deixemos
enganar, pois a vida na carne não é obstáculo para a beleza. Com efeito,
dissemos que o intelecto preso à carne contempla obscuramente a beleza
inteligível. Mas tais maravilhas e tão grandes bens, que são como uma breve
emanação e uma obscura aparição desta beleza transbordante, persuadem o
intelecto de que ele pode voar acima de todo o sensível e se dirigir apenas ao
inteligível. Não devemos suportar afastarmo-nos de tais delícias, mesmo que
caiamos na maior aflição.
Em terceiro lugar, devemos nos dedicar a fazer morrer
o corpo ao qual estamos unidos. Pois de outra forma é impossível receber essas
revelações de uma maneira precisa e clara. Fazemos morrer a carne por meio dos
jejuns e das vigílias, dormindo no chão, portando vestimentas pobres e
grosseiras, trabalhando e nos esforçando. É assim que morre a carne, ou melhor,
é assim que ela é crucificada com Cristo. Ela se afina e se purifica, torna-se
leve e rarefeita, e segue com mais facilidade os movimentos do intelecto, sem
se opor a eles. Ela eleva-se ao alto. Sem a carne, de fato, desaparece toda
ocupação vã. Quando esta venerável tríade – a mortificação, a purificação e a
elevação – está em harmonia, ela engendra na alma o coro das virtudes
bem-aventuradas, Pois é impossível encontrar um traço de malícia ou qualquer
falta de virtude naqueles que estão paramentados com estes três movimentos.
Mas pode acontecer que a rejeição do dinheiro e o
desprezo pela vanglória perturbem a razão. Enquanto a alma estiver ligada ao
dinheiro e à vanglória, ela será trespassada por múltiplas paixões. Eu afirmo
fortemente que é impossível à alma ligada à riqueza e à vanglória voar. Mas
também digo que não é possível à riqueza e à vanglória investir contra uma alma
exercitada nos três movimentos de que falei, pelo tempo suficiente para ter
criado o costume. Com efeito, ainda que ela não conheça nada sobre a verdadeira
beleza, ou sobre a beleza que está além de tudo, se ela estiver persuadida de
que quanto mais uma coisa – ainda que a menor de todas – se pareça com a beleza
primeira mais bela ela é, como poderá esta alma amar e acolher o dinheiro ou o
ouro, ou qualquer outra coisa das que atraem para baixo? E o mesmo vale para a vanglória.
E mesmo aquilo que mais nos detém, ou seja, as
preocupações, não se contrapõe ao meu propósito. Pois com quê poderá se
preocupar aquele que não abriga paixão nem tendência por seja lá o que for
daqui de baixo? A nuvem das preocupações surge, de fato, como uma exalação das
paixões fundamentais, vale dizer, do amor pelos prazeres, pelo dinheiro e pela
vanglória. Quem se libertou destas paixões é estranho às preocupações.
Também não devemos crer que a reflexão do intelecto
seja diferente da sabedoria, e que ela não esteja compreendida naquilo que
falamos, quando na verdade ela é a mais forte das virtudes que levam ao alto.
Com efeito, a ciência das virtudes abarca o discernimento mais preciso do bem e
de seu contrário, do qual a reflexão do intelecto necessita para seu benefício.
Mas as maneiras de agir e de lutar nos são ensinadas pela experiência e pelo
combate com o corpo.
Não nos esqueçamos de falar no temor. Pois quanto
maior for o amor, maior será o temor. Quanto mais forte for a esperança de descobrir
o bem, que sabe morder os que são abençoados mais do que a ameaça de miríades
de castigos (pois descobrir o bem é uma imensa beatitude), mais forte será o
temor de não o descobrir, o que é uma enorme infelicidade.
Mas para que nossa reflexão siga seu curso e a partir
dele forme uma nova, devemos conduzi-la a partir de sua finalidade. Pois todo
ser parece possuir de sua própria finalidade a distinção e a ordenação das
partes. Ora, a finalidade de nossa vida é a beatitude, ou seja, o Reino dos céus
e o Reino de Deus. E não se trata apenas de contemplar a Trindade soberana, se
posso dizer, mas de receber o influxo divino, experimentar por assim dizer a
deificação, cumprir e completar por este influxo aquilo que em nós é
insuficiente e imperfeito. Este influxo divino preenche aquilo que nos falta.
Ele é o alimento que nos é fornecido pelas coisas do espírito. Trata-se de um
ciclo infinito que começa pelo mesmo e termina pelo mesmo. Pois aquilo que ele
concebe ele busca e aquilo que ele busca ele usufrui. E quanto mais ele
usufrui, mais força ele recebe para conceber de novo, e assim ele recomeça o
movimento imóvel, que é a imutável imobilidade.
Tal é o fim, na medida em que ele está ao nosso
alcance. Mas precisamos considerar o modo de chegarmos a este fim. Para as
almas racionais, que são essências intelectuais, pouco menores do que as
inteligências angélicas, a vida aqui de baixo, a vida na carne, é uma luta, um
combate ao qual devem se entregar. O estado de que falamos é a recompensa
disto. É também um dom digno da bondade e da justiça divinas; uma, por que é
aparentemente com nosso suor que adquirimos os bens; outra, porque o poder que
nos cumula infinitamente ultrapassa todas as penas. Acima de tudo, é ele que
nos dá o bem e o poder de fazer o bem.
Qual é então o combate desta vida? A alma racional se
une a um corpo vivo, que tem uma existência terrestre e que tende com todo seu
peso para baixo. Ela mistura-se a ele, até que destes dois contrários, alma e
corpo, surge uma unidade, não por causa de uma alteração ou de uma confusão das
partes, longe disto, mas quando estas duas partes, mantendo cada qual sua
natureza, formam uma hipóstase em duas naturezas perfeitas. O homem consiste,
portanto, neste vivente com duas naturezas misturadas, que cumpre em cada
instante o que é próprio a cada uma delas. Ao corpo é inerente a procura dos
semelhantes, pois o amor aos semelhantes é natural dos seres. O ser é
aparentemente ajudado pela união com os semelhantes e por desfrutá-los por meio
dos sentidos. Ora, o relaxamento rapidamente pesa sobre aquele que ama
verdadeiramente. A relação amorosa é inerente à natureza animal. Mas a alma
racional, que é como que uma essência intelectual, deseja naturalmente os
inteligíveis, e desfruta deles segundo um modo que lhe é próprio. Mas antes de
tudo e acima de tudo é o amor a Deus que está naturalmente enraizado nela. Ela
quer desfrutar deste amor e dos outros inteligíveis, mas é impedida. Claro que
o primeiro homem podia conceber sem obstáculo tanto as coisas sensíveis pelos sentidos
como as inteligíveis pelo intelecto, e desfrutar delas. Mas ele precisaria
dedicar-se não ao pior, mas ao melhor; pois a ele foi dado fazer ambas as
coisas, ou unir-se ao inteligível pela inteligência, ou ao sensível pelos
sentidos. Não digo que Adão não devesse se servir dos sentidos; não foi à toa
que ele foi revestido de um corpo. Mas ele não deveria se comprazer nos
sentidos. Tendo recebido a beleza das criaturas, ele deveria remontar à sua
causa, e aí sim se comprazer, maravilhando-se, pois tinha então estas duas
razões para admirar o Criador. Mas ele não devia se ligar ao sensível, e
admirá-lo em lugar do Criador, deixando de lado a beleza inteligível. Ora, foi
isto que fez Adão: ele usou mal seus sentidos. Ele admirou a beleza sensível: o
fruto pareceu-lhe bom de ver e provar[129],
e ele o comeu, deixando de lado a fruição do inteligível. A partir daí o justo
Juiz, considerando-o indigno, retirou dele a contemplação de Deus e dos seres,
que ele havia desprezado, e escondeu em trevas as essências imateriais. Pois os
profanadores não devem se aproximar daquilo que é santo. Deis concedeu a Adão o
usufruto daquilo de que ele se tornou cativo. Ele lhe permitiu viver dos
sentidos, e dos ínfimos resquícios da inteligência.
A partir daí, como estamos presos às coisas da terra,
tornou-se mais difícil para nós o combate. Pois não está em nosso poder
desfrutar do inteligível, como o fazemos do sensível por meios dos sentidos,
como foi dito, mesmo que, purificados e elevados pelo batismo, tenhamos sido
grandemente ajudados. Porém, na medida em que nos for possível, devemos nos
voltar para o inteligível e não para o sensível; é o inteligível que devemos
admirar e querer. Devemos lembrar que o sensível não tem realmente nenhuma
medida comum com o inteligível. Assim como a essência de um é mais maravilhosa
do que a do outro, também a beleza de um é mais maravilhosa do que a beleza do
outro. Preferir o mais feio ao mais belo e o mais vil ao mais precioso – não é
o cúmulo da loucura? E isto também é verdadeiro entre as criaturas sensíveis e
as criaturas inteligíveis. E que dizer quando preferimos a matéria informe e
sem beleza Àquele que está para além de todas as criaturas?
Tal é, pois, o combate: guardarmo-nos rigorosamente, a
fim de desfrutarmos do inteligível, tendendo para ele nosso intelecto e jamais
nos deixando enganar pelo sensível, nem nos deixando arrastar a ele pelos
sentidos por o admirarmos em si mesmo. E se nos é necessário utilizar os
sentidos, devemos fazê-lo de maneira a compreender o Criador nas criaturas,
vendo-o nelas como o sol que se reflete nas águas. Na medida em que lhes é
possível contê-lo, existem de fato nos seres imagens d’Aquele que é a causa
primeira de tudo.
Aí está, portanto, a obra direita. Devemos considerar
como alcançá-la. Com efeito, dissemos que o corpo tende a desfrutar daquilo que
lhe é próprio por meio dos sentidos, o que é contrário à distinção da alma.
Quanto mais forte é o corpo, mais ele busca. Devemos, portanto, velar pela
alma, colocarmos um freio nos sentidos, a fim de não desfrutarmos dos sentidos,
como foi dito.. Pois quanto mais forte for o corpo, mais ele irá desejar. E
quanto mais ele desejar, mais difícil será para a alma operar para fazê-lo
morrer, forçando-o a jejuar, a velar, a se manter em pé, a dormir no chão, a
não se banhar e todos os outros sofrimentos, a fim de que, esgotadas as suas
forças, se torne fácil de conduzir e dócil às ações espirituais da alma.
Este estado é, com efeito, o fundamento da ação
direita. Mas é fácil querer e difícil fazer, tão numerosas são as faltas que
podemos cometer agindo, mesmo que estejamos atentos. Como os sentidos se
apresentam diante de nós como um véu espesso, surgiu um terceiro remédio: a
prece e as lágrimas. De fato, a oração dá graças pelos bens que nos foram dados
e pede o perdão pelas faltas e o poder que nos fortifique para o futuro, pois,
sem o impulso divino, como já foi dito, a alma nada pode fazer. Rezar é ainda
unir-se Àquele que se deseja, desfrutar dele e inclinar totalmente para ele a
potência volitiva, porque a melhor parte da ação direita consiste em persuadir
a vontade a desejar aquilo, na medida do possível. Também as lágrimas possuem
uma grande força: elas clamam pela compaixão do Mestre sobre as faltas. Elas
purificam das manchas que nos advém dos prazeres sensíveis, e dão asas ao
desejo para se elevar até as alturas.
A ação direita é assim a contemplação o inteligível e
o desejo absoluto. E por meio dela que a carne é subjugada, e todas as virtudes
parciais – o jejum, a castidade e as outras – são cumpridas graças a uma outra
virtude. É por estas virtudes e com elas que a prece é suscitada. Pois cada uma
dela se divide em numerosas partes, e cada parte engendra outra assim como ela
própria foi engendrada.
Que ninguém pense que o amor à vanglória e o amor ao
dinheiro concernem ao corpo. Somente o amor pelos prazeres está ligado apenas
ao corpo. E o remédio correspondente é o sofrimento do corpo. Os dois primeiros
vícios são engendrados pela ignorância: com efeito, é pela inexperiência sobre
a verdadeira beleza e pela ignorância do inteligível que a alma acaba por se
alterar. Ela acredita compensar a sua falta pela riqueza. Mas esta é procurada
ao mesmo tempo pelo amor ao prazer e pelo amor à vanglória, e em si mesma como
um outro bem. E dissemos que isto sempre acontece por causa da ignorância da
verdadeira beleza. O amor à vanglória não vem por faltar algo ao corpo (pois
ela em nada reconforta o corpo), mas é suscitado pela inexperiência e pela
ignorância da beleza primeira e da verdadeira glória. A ignorância é a causa da
vaidade e, de modo geral, a raiz de todos os males. Pois quem compreende como
se deve a natureza das coisas, de onde vem cada uma delas e para onde ela
retorna, já não pode se enganar sobre o próprio fim e nem se voltar para o que
é terrestre. Pois a alma não tende para a beleza aparente. Se ela é tiranizada
por seu estado, ela pode muito bem dominá-lo, uma vez que ela não se achava
neste estado até ser iludida pela ignorância. É preciso, assim, que, em
primeiro lugar, ela se volte para os seres pensando corretamente a seu
respeito, para em seguida dar asas à vontade para se elevar à beleza primeira,
desprezando todas as coisas do presente século e banindo sua grande vaidade.
Afinal de contas, o que é que contribui para o fim que nos é próprio? Para
resumir tudo em poucas palavras, a alma racional que está no corpo só tem uma
coisa a fazer: tender para seu próprio fim.
A energia da vontade não é capaz de se exercer sem o
entendimento. É por isso que devemos agir sobre nós intelectualmente. Ou bem o
ato da inteligência vem da vontade, ou vem de si mesmo e da vontade; na
verdade, parece que esta última hipótese é correta. A beatitude, da qual a vida
do homem virtuoso aqui em baixo é não apenas a causa, mas também a imagem,
possui duas energias, a inteligência e a vontade, ou o amor e o prazer. Aqueles
que quiserem filosofar devem pensar para saber se estas duas energias são
iguais, ou se uma delas é mais importante. Aqui devemos colocar juntas as duas
energias. Chamaremos a uma contemplação e à outra ação. Estas energias são
extremas, e é impossível encontrar uma sem a outra. Quanto às energias menores,
podemos compreendê-las com elas. O que as obstaculiza, ou que lhes apresenta os
contrários, denominamos vícios; o que nos ajuda e nos liberta dos obstáculos
chamamos de virtudes. As energias que provêm das virtudes são as ações
direitas; as energias das potências contrárias são as faltas e os pecados. E
aquilo que dá forma a qualquer energia, seja para o pior, seja para o melhor, é
o fim extremo, que nós sabemos ser uma energia composta de inteligência e de
vontade.
[9] Cf. Lucas XV, 17.
[12] Cf. I Tessalonicenses V, 17.
[13] Gálatas V,
24.
[15] Cf. Colossenses III, 3s.
[16] Cf. Romanos XIII, 14.
[17] Cf. Gálatas V, 24.
[18] Cf. II Coríntios IV, 10.
[19] Cf. Salmo CXXXVII, 9.
[20] Cf. Lucas XV, 7.
[21] Cf. Romanos XIII, 10.
[22] Cf. I Coríntios IX, 27.
[23] Cf. Provérbios XI, 25.
[24] I Timóteo II, 8.
[25] Salmo CIV, 15.
[27] Cf. I Timóteo VI, 10.
[28] Cf. Mateus XIII, 44.
[29] Cf. Mateus XIX, 21.
[30] Cf. Êxodo XXXII, 33; Salmo
LXIX, 29.
[31] Cf. I Coríntios XIII, 13.
[32] Cf. II Timóteo IV, 7-8.
[34] Cf. Hebreus XII, 1-2.
[36] I João IV, 16.
[37] II Timóteo II, 4.
[38] Cf. Mateus XI, 30.
[39] Cf. Lucas X, 42.
[40] Salmo LV, 8.
[41] Cf. Salmo CXVIII, 12.
[43] Mateus XII, 50.
[44] I Timóteo V, 6.
[46] Sabedoria IV, 12.
[47] Cf. Marcos IX, 44; Mateus VIII,
12.
[49] Cf. Hebreus XI, 1.
[50] Salmo XXXIV, 16.
[51] Evagro, o Pôntico.
[52] Cf. Mateus IV, 1-10.
[53] Cf. Hebreus IV, 15.
[54] Cf. Colossenses III, 10.
[55] Cf. Salmo CXXXIX, 22.
[56] Cf. Mateus XXIV, 1s.
[57] Cf. supra no. 10.
[58] Cf. Lucas XV, 11-22.
[59] Cf. Mateus XXVII, 5.
[61] Cf. Salmo CXXVII, 1.
[62] Cf. Salmo XCI, 13.
[63] Lucas X, 19.
[64] Cf. Mateus VI, 13.
[65] Cf. Efésios VI, 16.
[66] Cf. Efésios VI, 11.
[67] Levítico XXVI, 11-12; II Coríntios
VI, 16.
[73] Cf. I Pedro V, 8.
[74] Cf. Colossenses III, 5.
[75] Cf. Gálatas V, 24.
[76] Gálatas II, 20.
[77] Cf. Gálatas VI, 17.
[78] Lucas XVII, 10.
[79] Cf. Salmo CXXXVII, 1.
[80] Cf. Êxodo V, 7s.
[81] Cf. Efésios IV, 22.
[82] Cf. I Coríntios XV, 49.
[83] Cf. Hebreus V, 7.
[87] Provérbios X, 9.
[91] Salmo V, 7.
[92] Salmo XII, 4.
[93] I João IV, 8.
[94] I João III, 6.
[95] Cf. Mateus XXII, 40; Romanos
XIII, 10.
[96] I João IV, 20.
[97] João I, 18.
[98] I João IV, 12.
[99] I João III, 18-19.
[100]
Cf. Gênese, XVIII, 1.
[101] Mateus XXV, 40.
[102] Cf. I João III, 21.
[103] Mateus V, 8.
[104] Mateus V, 16.
[105] Cf. Mateus VII, 14.
[106] Cf. Mateus XI, 30.
[107] Cf. Atos V, 41.
[108] Salmo XVI, 8.
[109] Salmo LXIII, 9.
[110] Salmo LXIII, 2.
[111] Cf. Efésios IV, 13.
[112] Cf. Gênese II, 15.
[114] Cf. João XIV, 33.
[115] Cf. Lucas XII, 36.
[116] Cf. Deuteronômio VI, 5.
[117] Cf. Filipenses
II, 12.
[118] Cf. Efésios
VI, 11.
[119] Cf. Lucas XVII, 10.
[120] Cf. Romanos II, 29.
[121] Eclesiastes XII, 13.
[122] Provérbios III, 32; Hebreus II,
1.
[123] Cf. Salmo XIX, 10.
[124] Cf. II Timóteo III, 17.
[125] Cf. Salmo LI, 19.
[127] Cf. Mateus XV, 24.
[128] Cf. Lucas XV, 5.
[129] Cf. Gênese III, 6.
Onde você encontrou isso?
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