sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Jacques Touraille - Postfácio à Filocalia dos Padres Népticos

Em 1782, na véspera dos acontecimentos que iriam sacudir a Europa das Luzes, foi publicada em Veneza uma antologia de textos bizantinos, cuja origem e a região de extração eram os eremitérios e os monteiros da envoltória do Mediterrâneo Oriental, dos desertos egípcios e do Monte Sinai, até Constantinopla e o Monte Athos. Esses textos, heterogêneos mas todos escritos por monges – cerca de trinta autores – como numa inspiração única, do fundo do indizível e do intangível, mas sempre seguindo o curso de uma história de mais de mil anos, do século IV ao XV, faziam a ligação desde o fim da Antiguidade pagã e o fim da Idade Média cristã, ou da fundação à derrocada do Império Romano do Oriente, ou ainda, e sobretudo mais precisamente, e mais misteriosamente, da desaparição histórica à transfiguração interior, do temporal ao eterno. A antologia se intitulava Filocalia dos Padres Népticos, composta a partir dos escritos dos Santos Padres que traziam a Deus em si, e na qual, por uma sabedoria de vida, feita de ascese e de contemplação, a inteligência é purificada, iluminada e atinge a perfeição. Um título assim, no final do século XVIII, ultrapassava a barreira do som, se podemos nos exprimir assim. E não é certeza que hoje, dois ou três séculos depois – e que séculos! – possamos nós entender o que os editores de 1782, Macário de Corinto e Nicodemo o Hagiorita, tentaram expressar com essa obra.

Seja como for, esse livro surgiu para exprimir por si mesmo, a qualquer tempo, na linha do Evangelho, dois paradoxos que eram então, e ainda são, tanto anacronismos como antecipações. De um lado o intelecto – em grego nous – cessando de se voltar todo o tempo para o mundo para conhecê-lo e utilizá-lo até o limite do possível, volta-se sobre si mesmo pra se confiar pelo impossível à origem do mundo, nesse fundamento abissal que os monges denominavam “lugar do coração” ou “lugar de Deus”. De outro lado, esse intelecto “retornado” – tornado meta-noia, arrependimento ontológico, e noera proseuche, prece intelectual ou noética, prece do intelecto no “lugar do coração” – constitui uma espécie de sexto sentido, um noera aisthesis – o sentido intelectual ou sentido do intelecto – capaz de absorver os cinco sentidos corporais, de recapitular o mundo inteiro e finalmente de se deixar imantar e transfigurar em pleno corpo e em pleno mundo, como se fora do corpo e fora do mundo (“Deus o sabe”, dizia São Paulo) pela luz anterior ao mundo e criadora do mundo, bem diferente daquela com que se enfeitavam os enciclopedistas na aurora da modernidade.

A Filocalia consiste em algo bem maior do que um documento de época. A própria palavra significava para a Antiguidade grega o amor à beleza estética, cósmica ou moral, no fundo o inverso silencioso da filosofia, e de fato o campo da arte. A revelação evangélica, seu sentido do Deus amor, do Deus luz, do Deus Um, do Deus Trindade, do Deus vivo, Criador e Salvador, Pai eterno anterior ao mundo, Filho eterno encarnado na criação, Espírito eterno imantando a gestação do criado, não podia senão implodir essa primeira Filocalia grega e fazer do amor pela beleza a um tempo a lembrança da origem e a esperança do fim: “a arte das artes e a ciência das ciências”, diziam os monges. Pois a beleza não se limitava nem ao cosmos, nem ao corpo humano dos deuses cósmicos, nem às obras de arte. Ela não se deixava definir por rótulos. Ela era o Deus vivo em pessoa. Ela era Cristo e, nele e por ele, aquilo que o Novo Testamento chamava de “luz do Cordeiro” e os monges bizantinos de phos aktiston, a luz incriada, justamente Deus luz, tanto nas extremidades como no coração do curso temporal e espacial da luz criada. A Filocalia, o amor pela beleza, se transformara em amor a Cristo, nos dois sentidos, e no fundo sutil das raízes dos sentidos: o amor louco que o Filho de Deus, pelo Espírito da verdade, dedica ao homem criado à sua imagem, e também o amor louco que o homem, em troca, por suspiros inefáveis desse mesmo Espírito, dedica ao Filho do homem, que ele gera em seu coração à semelhança de Deus.

Essa Filocalia evangélica faz corpo com a transmissão mais secreta e mais direta. Ela indica as modalidades, as causas e os efeitos de uma interiorização abissal, diretamente sobre a vida, onde se abrem a treva e o silêncio que separam e unem o criado e o incriada, as sementes e a colheita, o origem e o fim do possível. Nada menos do que uma abertura infinita. Quem teve essa experiência é como se tivesse sido tocado pela morte. Ele perde suas marcas do tempo e do espaço. Mas agora ele pode também atestar que a carne não está jurada à fatalidade do despedaçamento e da dissolução. Pois existe a liberdade de oferecer sua vida mortal em sacrifício de louvor ao Pai das luzes, à luz anterior, à luz eterna, única capaz de fazer dos cristãos o sal da terra. A transfiguração do tempo e do espaço não é necessariamente uma abstração, nem forçosamente uma ilusão. Ela pode também, ao vivo e a nu, apenas pela abertura do coração em prece, se tornar o lugar e o momento em que é dado ao homem perdido beber da energia incriada, da fonte do real, do inacessível, da luz do Cordeiro. Claro, entre a abstração e a ilusão, a porta é estreita. Não existe outro lugar de passagem que não o “lugar do coração”, onde os monges projetam sua agonia, sua espera, seu desejo. Eles contam as dores e as delícias do novo nascimento, e como a porta se abre finalmente para a liberdade dos filhos da luz.

Aqui cabem três observações liminares. Em primeiro lugar, a Filocalia é indissociável da Bíblia. Ela está cheia de citações escriturárias. No fluxo da História sagrada, ela se coloca como memória permanente da origem e como abertura para o século futuro. Ela precede e antecipa. A revelação bíblica se encontra aí precisa e totalmente captada na fulgurância última e na questão que ela coloca a todos a quem ela toca em último lugar. Como se oferecer ao Cristo ressuscitado? Como viver com ele, no coração crucificado do impossível, ainda que em espelho, o mais próximo possível da luz do Cordeiro?

A resposta é eclesial. Na medida em que ela é obtida a partir de todos esses textos nas condições e nos efeitos do amor louco do coração em prece, a Filocalia realiza a Igreja em tudo  e por tudo, como o Evangelho realiza a Lei, dando-lhe significado e assumindo-a desde sua origem: um chamado perdido e profético a se unir a Cristo corpo e alma, para que todos sejam um, como o Filho e o Pai são um.

Mas com a Filocalia se dá o mesmo que com o Evangelho. Ela realiza sem abolir. Assim como a luz do Cordeiro é o lugar do incriado, também o corpo e o sangue de Cristo – o Cordeiro em pessoa – presentes no pão e no vinho, na carne do mundo, assumem até o sacrifício o lugar do criado: a dupla passagem da luz para a carne e da carne para a luz. A eucaristia sacramental que a Igreja celebra e manifesta está assim no coração de tudo que os monges aqui mencionados reportaram. Muitos eram também padres. Todos – muitas vezes sem mencioná-lo, por evidente que era – incorporaram o mistério matricial. Mas todos engajaram suas vidas,  - é o que disseram e repetiram – na interiorização ascética, orante e contemplativa da liturgia e da comunhão. E todos oraram a Jesus Cristo sobre o “altar do coração”, como o chamavam, ali invocando o Senhor e Filho de Deus, clamando continuamente pelo Espírito Santo.

Isso significa que a Filocalia convida o monge, o cristão, à radicalização e à finalidade evangélicas, à empresa e ao trabalho do Espírito de verdade que procede do Pai, e também ao exercício e à transmissão da vida espiritual, no sentido próprio, no sentido forte, em que o próprio Espírito intercede com suspiros inefáveis, os únicos que, num coração orante, estão à altura da impossível passagem do corpo de carne para o corpo de luz, para o qual a Páscoa de Cristo chama todos os homens.

Assim é que a experiência dos monges não faz outra coisa do que representar a permanência da revelação bíblica, atestando a passagem da imagem à semelhança de Deus: o próprio lugar da liberdade humana, na medida mesma em que o Reino de Deus deve ser tomado pela força. Mas essa liberdade não é nem arbitrária, nem improvisada. Da perspectiva do reino, menos voltada para o horizonte do espaço e do tempo do que derramada sobre o coração atual, a liberdade do homem constitui um sacrifício de amor, uma oferenda ao amor. Ela é o amor à beleza. É isso que a Filocalia implica em todos os seus textos: uma relação livre do amor une os dois polos da criação, o modelo e a imagem. A imagem – a hominização do mundo – era exclusiva de Deus. Mas aqui e agora, o homem, imagem última de Deus, deve assemelhar-se ao modelo original. A atestação dos monges está no coração da mensagem bíblica. Ela transmite a obrigação cristã da semelhança. Uma semelhança que é daqui em diante típica do homem, e que coloca em causa e em ação a liberdade de imagem e o amor que ele dedica ao seu modelo.

Com efeito, a semelhança cria uma obrigação. Os monges devem, por sua vocação – que é a vocação de todo cristão – na dianteira do decurso do mundo, tanto em sua liberdade como em sua carne, ser os testemunhos vivos da dupla passagem de Cristo do incriado para o criado na origem do mundo, e do criado para o incriado no fim do mundo, e trazer consigo essa passagem última, a Páscoa, no seu coração atual. Assim, o nascimento e a morte não são vividos apenas na necessidade da fatalidade cósmica. Eles se tornam em plena liberdade aquilo que o Novo Testamento denomina como o novo nascimento. Enquanto que todos os corpos que nascem no tempo e no espaço, todos os  corpos mo curso do mundo, deixam atrás de si seu nascimento,  seu “alfa” e se dirigem para seu fim, seu “ômega”, o monge, sem abolir seu corpo nem o curso do mundo – pois ele está nos antípodas do suicídio e da deserção – retorna para sua alma e sua consciência, para não mais considerar senão o “alfa”. Tampouco ele se dirige para a morte recuando. Muito pelo contrário. Diante de si ele vê seu nascimento, seu novo nascimento, e atrás de si fica sua morte. Dito de outra maneira, se isso é verdade, se ele não estiver se iludindo, se a prece e a graça lhe bastarem, ele estará continuamente voltado para o estado de prece e até transportado pelo estado de  graça como que para fora do tempo e do espaço, diretamente na passagem do criado para o incriado, diretamente para a Páscoa, nas condições da eucaristia sacramental, aqui e agora, pura e simplesmente, para o coração da própria vida. Assim como o Evangelho anunciava mais do que a adoração do Deus vivo no templo de Jerusalém e representava a adoração em espírito e em verdade, a adoração interior, contínua, imediata, da Pessoa divina, o amor do amor, fora de todo ritual, de todo edifício construído, diretamente no coração, também a via filocálica, sem buscar fazer mais ou diferente do que a comunhão eclesial, não deixa de se esforçar por celebrar continuamente, também em espírito e verdade, também diretamente no coração, neste lugar que era para os monges o lugar de Deus, o lugar da passagem obrigatória da carne para a luz.

Mas aqui é impossível nada saber, nada querer. É forçoso remeter-se em tudo e por tudo Àquele que encarnou em seu corpo a passagem, Àquele que é o Cordeiro, e o Cordeiro imolado. É o que fizeram os monges que se expressaram na Filocalia. Eles foram os ascetas da fé, ascetas da esperança, ascetas do amor. Acima de tudo, mais do que tudo, ascetas do amor: um amor mergulhado na origem, voltado para o último, plenamente oferecido ao amor de Deus, depois entregue pelo próprio amor a Deus ao mundo presente, e finalmente entregue em Deus ao amor pelo homem. A própria inspiração do Evangelho. Nada de outro aqui, no mais profundo, na própria carne, do que um amor louco. Com o coração crucificado da salvação, o coração quebrantado do impossível, esses monges amaram o Senhor, eles amaram Jesus, eles amaram a Cristo, eles amaram o Filho de Deus em pessoa. É a ele que eles oraram com toda sua inteligência. É dele que eles esperaram a resolução do impossível, a abertura desse lugar do coração onde tudo é  conduzido ao nada, e finalmente transfigurado na origem e no último, como se fosse entre o menos infinito e o mais infinito.

Tal é a Filocalia em todos os seus estados. Nada que se pareça com uma suma teológica. Nada que possa ser analisado como uma construção da inteligência humana. Nenhum sistema de pensamento, nenhuma conceptualização, nenhum fundamento intelectual além da própria inteligência dos monges, todos, como um único homem, forjados pelo mesmo retorno da inteligência – a metanoia, o arrependimento – e suas consequências – a aproximação do Reino de Deus – e transmitindo de geração em geração e de lugar em lugar o encaminhamento e as modalidades de uma experiência – a anacorese e o Hesiquiasmo – que iremos agora analisar em sua essência, primeiro nas condições históricas do movimento, depois no seu conteúdo e na extensão de seu testemunho, e enfim na atualidade secreta e real de sua transmissão.

AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS

Milhares de anos depois da origem e da criação temporal do mundo, depois dos “seis dias”, nesta extremidade do possível onde não cessa de se agudizar e se afinar o martírio da consciência, os monges atestaram que a criação está concluída, que ela alcança seu termo no corpo do homem, que o lugar de Deus, assim como o lugar divino do homem, é o sabat, o repouso do sétimo dia, que já não existe doravante outra história senão a passagem do sétimo para o oitavo dia, do fim do mundo ao Reino de Deus, da morte do corpo de terra à sua ressurreição no corpo de luz, e que essa passagem não apenas não  tem lugar no tempo e no espeço cósmicos, mas que ela implode – ela transfigura – toda a criação na interioridade, nesse fundamento divino do criado que os Padres gregos chamaram de hipóstase, e que a Filocalia chama de coração. Falar das condições históricas da Filocalia, na medida em que a antologia transcreve e transmite tal experiência dos limites do temporal, surge como um paradoxo. Mas não como um contrassenso. Pois a história dos monges é como a História Santa. Ela não se desenvolve tanto no tempo, antes ela é o próprio tempo em busca da eternidade, no seu extremo radical, onde se exerce o desejo consciente de mergulhar no sétimo dia, para finalmente forçar a passagem para o oitavo. Assim é que essa cabeça que procura já não tem onde repousar. Como o Filho do homem, ela é o signo da contradição: a mais sábia e calma interiorização da origem, e ao mesmo tempo a mais louca e violenta tensão em direção ao último.

Os monges, abandonando o percurso natural das gerações humanas, partiam pelo caminho do impossível. Eles não podiam deixar no decurso do mundo nenhum traço tangível de sua tensão, de sua agonia, de seu combate de linha de frente entre a carne e a luz, cujo objetivo, o testemunho imantado e imantador, será até o final a prova que falta. O mundo se apresenta aqui como o túmulo vazio: Cristo ressuscitado não está mais aqui. Agora a imantação é mística, e não pode ser senão mística. Assim é que a Filocalia não poderia se apresentar de modo diferente do Evangelho: uma mnemotécnica da origem, daqui por diante erigida em memorial do último. Nos dois sentidos: um abismo intemporal. Mas a mnemotécnica, por suas fontes, pela ordem cronológica dos textos, pelo que sabemos da vida de seus autores, não deixa de desenhar, como uma filigrana, diretamente a anacorese e o Hesiquiasmo, um afresco histórico.

A história dos textos do memorial, os tempos e os lugares em que viveram seus autores, revelam assim como o movimento monástico passou da cidade aos eremitérios do deserto, de Constantinopla e Alexandria à Tebaida egípcia, depois para os eremitérios nos mosteiros cenobíticos, para as comunidades de monges, do Egito ao Monte Sinai e às margens do Mediterrâneo, e por fim aos mosteiros nas cidades, nos conventos urbanos de Constantinopla e Tessalônica, para ser finalmente recapitulado, no Monte Athos, numa cidade de mosteiros e eremitérios. Foi principalmente ao redor desses quatro lugares, tão aparentados ao símbolo quanto com a história, mas bem reais – Egito, Sinai, Constantinopla, Athos – que se agruparam e se coordenaram todos os textos da antologia filocálica. A bem dizer, essa classificação é uma dentre muitas. Ela não tem limites precisos. A distinção entre tempos e lugares se apaga continuamente, e se transfigura pela osmose que os reúne. Finalmente só permanece a osmose e a transmissão. Mas o sentido está lá. A história, tanto a dos monges como a dos textos, em sua fase bizantina e em seus prolongamentos ou em sua irradiação – pois ela é bem mais do que um pergaminho – faz corpo com a parábola do Reino de Deus: ela é o germe que pede o crescimento, o crescimento que chama o fruto, o fruto que produz o grão, portanto, o novo. No coração da permanente osmose do tempo e da eternidade estão os signos mesmos dos quatro lugares, reais, históricos, mas também emblemáticos, místicos, dos quais todos, cada qual à sua maneira, encarnou e significou um dos tempos por onde passou o movimento monástico, do século IV ao XV, conforme aparecem na Filocalia.

Os primeiros tempos, dos quais dão testemunho os textos iniciais e seus autores, próprios ou figurados (Antônio o Grande, Evagro o Pôntico, Macário o Egípcio,, Isaías o Anacoreta, Cassiano o Romano, Marcos o Asceta, Diádoco de Foticéia, Filemon, Teodoro de Edessa, João Damasceno), constituíram o movimento egípcio dos eremitas e anacoretas, e suas metástases pela bacia do Mediterrâneo, entre as duas crises históricas dos séculos IV e VII, a “transferência” do Império Romano e a chegada do Islam. Na origem, um monaquismo fundamental, dedicado à permanência do martírio, à partida, ao deserto, à nudez cósmica: entre o homem e Deus, cara a cara, frente a frente a sós, às portas da morte e às portas do inferno, a retomada do diálogo que ficou suspenso à saída do Éden. Toda a mensagem filocálica – sua radicalidade, e também sua finalidade – já se encontra aí em germe: a ascese do corpo, a prece contínua do intelecto no coração, o combate pela manutenção e a transmissão da ortodoxia eclesial, o retiro do criado, a morte ao mundo, o gosto das primícias da luz incriada.

Um segundo momento, ilustrado na antologia pelos testemunhos conjuntos de Máximo o Confessor e Thalassius o Africano, bem como pelo exemplo da escola sinaíta e o movimento que a acompanhou – Hesíquio de Bathos, Filoteu o Sinaíta, João Carpatos – desenvolve e amadurece em plena crise histórica, do século VII até o fim do primeiro milênio, na partilha e na interiorização, na errância e nas implantações comunitárias, as aquisições da solidão cósmica. O monaquismo permanece fundamental. Mas o crescimento natural do germe ao mesmo tempo se enraíza no lugar do coração e secreta ao seu redor um monaquismo mais visivelmente eclesial que reúne os solitários em solidariedades orgânicas e organizadas. Desde os desertos do Egito, depois desde o Sinai, e por todo o mundo mediterrâneo, a passagem, rápida, da solidão à comunhão, da anacorese à pericorese, tece uma teia de lugares consagrados à celebração eucarística, a criação e ao convívio dos ofícios litúrgicos, ao exercício comum das virtudes teologais, à guarda do coração, aos refinamentos interiores da ascese e da prece contínua. Sobretudo, pelo número de extratos da obra englobante e crucial de Máximo o Confessor, a Filocalia nos lembra aqui do quanto a essência do monaquismo é o amor sacrificial, a história toda imantada pela teologia, até a passagem derradeira dos lugares do mundo ao lugar de Deus.

O terceiro momento, entre os séculos X e XII, é como que o fruto do crescimento: a integração da aquisição dos mosteiros. Também aí temos dois testemunhos. Uma longa reflexão de Pedro Damasceno, central à antologia. E a contribuição estremecedora dos monges formados daí por diante no interior da cidade, nos conventos urbanos de Constantinopla: Simeão o Novo Teólogo, Nicetas Stethatos, Elias de Ecdicos. Todos têm em comum levar a evolução do movimento monástico ao ponto de partida: um gesto e uma consciência infinitamente pessoais, e com o Outro assim como com todos os outros, mais do que nunca, uma relação de coração para coração. A própria finalidade dos mosteiros: levar cada monge ao cúmulo da interiorização, ao martírio da consciência e ao êxtase, para finalmente fazer dele a irradiação consciente do divino, para além dos limites da clausura conventual, até secretar diretamente na cidade um monaquismo aberto, inteiramente fundamental.

O quarto momento, do século XII ao XV, retorna e realiza o primeiro, como a semente no interior do fruto traz em si um novo germe. A Filocalia reúne a nuvem de seus últimos testemunhos. Teófano o Clímaco, Teolepto de Filadélfia, Nicéforo o Solitário, Gregório o Sinaíta, Gregório Palamas, Calixto e Inácio Xantophouloi, Calixto o Patriarca, Calixto Telicoudes, Calixto Cataphygiotes, Simeão de Tessalônica, todos (salvo talvez Teófano, de quem nada sabemos) entre Constantinopla e Tessalônica, sob as turbulências e os terremotos que anunciavam a desaparição do Império Bizantino, enraizaram seus ensinamentos no Monte Athos, concebido a um tempo como uma ressurgência da Tebaida egípcia, como uma sublimação da cidade terrestre e como uma aproximação da nova Jerusalém. O movimento monástico se concentrou aí inteiramente na atestação do revelado, na confirmação do transmitido, na recapitulação da origem e do caminho, na transfiguração interior, numa defesa e uma ilustração definitivas do Hesiquiasmo, na guarda e manutenção históricas da Igreja ortodoxa, enfim, na abertura extática ao devir absoluto, mas também, como numa passagem através do fogo, no passo suspenso em direção a um futuro possível.

Resta, no final do volume, como uma possibilidade de futuro, a chave de abóboda: um conjunto de textos, sem cronologia, sobre a prece, traduzidos em grego demótico, em língua popular. Esse “epílogo”, a um tempo plenamente tributário e como que separado do memorial, mostra bem qual era, no fundo, o objetivo dos editores de 1782: claro, fornecer aos mosteiros uma coletânea filocálica que cobrisse todo o período bizantino, ordenada cronologicamente num único livro (embora nada houvesse ali que os monges herdeiros da tradição ortodoxa já não soubessem), mas, sobretudo, oferecer a todos os cristãos que levam sua vida nas condições do mundo, o próprio sentido do engajamento monástico – a prece contínua – e deixar claro que essa ordem é comum a todos e que ela está aberta a todos.

De todo modo, a abertura aconteceu, e ela prossegue hoje. Desde a partida, o germe egípcio passou para o Ocidente, onde os mosteiros beneditinos, depois cistercienses, irrigaram a Cristandade. Da mesma forma, para o norte, bem antes do desastre do século XV e depois da desaparição do Império Bizantino, outros mosteiros, de tradição ortodoxa, se implantaram na Bulgária, na Sérvia, na Romênia, na Ucrânia, na Rússia. Quanto à área helênica, totalmente sob o domínio otomano, ela manteve a herança, como num lugar fechado, por seus Patriarcas, por seus mosteiros – em especial Patmos, e sempre Athos – até o final do século XVIII quando, quarenta anos antes da insurreição de 1821, a Filocalia foi publicada em Veneza. A edição, repatriada para a Grécia – os livros tomaram primeiro o caminho dos mosteiros do que o das casas – não constituiu nem um acontecimento, nem uma chegada. É verdade que os mosteiros estavam mais do que nunca no coração daquilo que os Gregos chamavam de ethnos, a nação, inteiramente ocupada, nos primeiros decênios do século XIX, em se libertar do jugo otomano e em gerar as primícias de sua nova e problemática independência. Foi preciso aguardar pela segunda metade do século XX para que a transmissão se operasse no sentido indicado, e acolhida pelos pioneiros. A obra só foi editada em Atenas, quase na íntegra, em 1893. E não foi verdadeiramente difundida, transmitida a todos, senão após uma terceira reimpressão, de 1957 a 1963, e de uma quarta, de 1974 a 1976, sempre em Atenas.

Mas os editores de 1782 tiveram uma antevisão correta. Houve, imediata e rapidamente, uma transmissão e uma irradiação da mensagem filocálica, mas no mundo eslavo. Em 1793, Paissy Velichkovsky, um monge russo da Moldávia, que havia morado por cerca de vinte anos no Monte Athos em meados do século XVIII, editou em Moscou (com uma sequência de cinco reimpressões de 1822 a 1902) uma Dobrotoliubie, uma Filocalia eslavônica, redigida em paralelo ao trabalho de Nicodemos e Macário, revisada e organizada sobre o modelo da Filocalia grega. A essa antologia eslavônica acrescentou-se, também publicada em Moscou, de 1877 a 1905, por Teófano o Recluso, uma tradução russa, diferente, mais voltada à ascese, podando alguns textos e acrescentando outros, criando uma obra mais volumosa. Essas duas versões irrigaram os mosteiros, alimentaram os monges e, por meio deles, tocaram muitos Russos, de grandes escritores – como Tolstoi e Dostoievsky – a pessoas do povo. Um testemunho disso foram os Relatos de um Peregrino Russo, publicados pela primeira vez em Kazam em 1870. A Filocalia, fora dos mosteiros, diretamente na decadência e nos males do mundo, aí colocou em movimento, até o êxtase, as beatitudes evangélicas: uma confirmação.

A chegada da Filocalia no século XX está primeiramente ligada à tradução e à edição romena (pelo Padre Dumitru Staniloae, desde 1946 até os anos 80) de uma antologia bem mais ampla, também ela, do que a versão grega. Foi também na segundo metade do século XX que a França, bem como toda a Europa ocidental, foi tocada, ou melhor, atingida por um evento editorial específico: a tradução dos Relatos de um Peregrino Russo, uma Pequena Filocalia da Prece do Coração (um florilégio da Filocalia grega), uma tradução integral da Filocalia grega (em onze fascículos e sem ordem cronológica) e uma Nova Pequena Filocalia, que, na sua concepção, intitulava-se simplesmente O Amor ao Belo, e era menos um florilégio do que uma colocação de uma perspectiva temática. Finalmente, a Filocalia dos Padres Népticos, editada pela Abadia de Bellefontaine, reproduziu tal e qual a tradução integral, restabelecendo a ordem cronológica dos textos, sobre o modelo da Filocalia grega. Nessa edição tomou-se o cuidado (que também vale para todas as edições atuais da Europa ocidental, onde a chegada da Filocalia não se deu por si só, uma vez que tamanha herança só pode ser transmitida como um transplante) de transcrever, em sua historicidade e sua coerência, profundidade e alcance, as escolhas feitas no momento em que foi ofertada e aberta a todos essa transmissão da experiência hesiquiasta. No mesmo sentido, em respeito aos pioneiros e com o cuidado de mostrar o espírito de piedade da edição original, essa edição contou com uma introdução por Olivier Clement, seguida da introdução geral de Nicodemos o Hagiorita, parceria mantida em todas as notas, capítulo após capítulo, sobre a vida de cada autor.

O CONTEÚDO E O ALCANCE

Bíblica, eclesial, em todos os seus textos aberta ao sopro de Deus, do qual ninguém sabe “de onde vem ou para onde vai”, a Filocalia não estabelece nem organiza nenhum limite. A sequência das gerações de monges que ela testemunha não indica senão o seguinte: todos foram imantados por Cristo. Nós gostaríamos de tornar sensível essa nota fundamental, mantida durante um milênio por vozes sucessivas e unânimes, e tentar mostrar, na linha dos pioneiros, como, dos eremitérios da Tebaida aos conventos urbanos de Constantinopla, do Monte Sinai ao Monte Athos, e mensagem vai de um extremo a outro com um só e mesmo conteúdo. E isso para sublinhar o que nos parece aqui essencial: a imantação é a própria Filocalia, o amor da beleza original e última, que irradia no lugar do coração onde se conjugam os três estados clássicos da vida do monge, a iniciação, o progresso e a perfeição, e os três movimentos da vida de Cristo, como reportados no Evangelho, a imolação, a compaixão e a glorificação.

Antes de tudo, como na origem da criação, como na origem da salvação, a imolação pelo amor. a Filocalia é fundamentalmente o testemunho de homens que, loucamente fiéis ao mandamento evangélico, e sem ostentação, sacrificaram em silêncio tudo o que suas vidas tinham a ganhar no curso do mundo. Nesses limites, nesses abismos, eles representaram sem querer a chave de abóboda da revelação bíblica: a imolação pascal do Cordeiro. Eles não podiam senão se despojar de si mesmos. Daí veio toda uma sequência de engajamentos sacrificiais, que constituíram a ação, a praxis ou pratktiké, a qual, no movimento monástico desde Evagro, não tem nada a ver com aquilo q eu um homem pode fazer no mundo. A praxis dos monges não é uma ação em relevo, mas uma ação no vazio. O monge apaga toda suficiência de si para oferecer a Deus apenas o coração quebrantado pela consciência do desvio e da maldade, a consciência da perdição e do desastre, para finalmente não ser mais do que o testemunho – o mártir – dessa consciência. A atestação filocálica não conduz a nada na ordem do mundo. A perspectiva que ela abre é invertida. O ponto de fuga, como já dissemos, está menos no horizonte do espaço e do tempo do que na atualidade do coração, onde se encontra, aqui e agora, a implosão, o retorno da morte. Isso equivale a dizer o quanto as virtudes ativas não garantem nenhuma suficiência. Em caso algum (salvo para encerrar aquilo que os monges chamavam de desvio do direito) elas poderiam constituir um sistema psicossomático tranquilizador e edificante. Por si sós, elas não confortam nenhuma permanência biológica, nenhuma situação social, nenhuma construção metafísica. Menos ainda qualquer coisa que se pareça com uma imitação moral. Nada capaz de reduzir o movimento circular do amor, a escada dos anjos que subiam e desciam acima de Jacó, como com o Filho do homem, a escada mística que não passa de uma performance humana. A Filocalia testemunha o contrário. Sim, ela atesta o fundamento correto do trabalho das virtudes ativas e de seus nexos, e o faz a partir de situações que implicam de todo modo circunstâncias de tempo e de lugar, mas ela também exige e suscita, sobretudo, e sempre, um discernimento, escolhas e resoluções pessoais, ou seja: a liberdade. A ascese das virtudes nunca passa de um exercício de orientação. Como se deixar imantar, da melhor maneira, da mais simples, mais direta, pela beleza última, por Cristo? Como se colocar bondosamente, pura e simplesmente, sob a escada angélica?

Todos os engajamentos sacrificiais fazem corpo aqui com a virtude cardinal, que orienta e reúne todas as demais com vistas ao incriado, e que os monges orientais, desde o princípio, chamaram em grego hesychia, uma palavra que acabou por significar no limite a identidade desses monges – os hesiquiastas – e a especificidade de sua experiência e de sua atestação – o Hesiquiasmo. Hesychia significa calma, repouso, paz, silêncio, solidão. Mas o que significa exatamente a hesychia diretamente na vida e no coração do monge, em sua alma e em sua consciência? O problema da interpretação, capital desde o século IV, prossegue hoje em dia, e com mais ênfase até. A Filocalia define a hesychia como “a retirada que se corta o mal[1]”, mas toda a atestação mostra que ela é na verdade uma retirada indizível do criado para o interior de si mesmo, no fundo aquilo que Simone Weil chamava de “descriação”. A tradução da Filocalia da Abadia de Bellefontaine conserva tal e qual o termo hesychia, no sentido de “retirada do criado”, repouso sabático e paz de Cristo ressuscitado, entre o sétimo e o oitavo dia, na fronteira entre o criado e o incriado, aqui e agora.

Aqui e agora, ou a eterna atividade do coração. Assim como toda passagem da Bíblia comporta um sentido literal, ligado à história e às modalidades do tempo e do espaço, e um sentido espiritual, ligado à interiorização da mensagem, também na antologia filocálica é preciso sempre discernir dois sentidos em toda virtude, um sentido segundo o qual ela faz seu caminho e seu trabalho no decurso de uma vida mortal, e um sentido segundo o qual ela se interioriza no coração. Assim, num primeiro nível, um monge que vive na hesychia é um homem que se retira para a calma, o repouso, o silêncio, a solidão de seu eremitério ou de sua cela. “Viva em sua cela, e ela lhe ensinará tudo”, diz o adágio. “Ela lhe ensinará tudo”: equivale a dizer que esta primeira hesychia ajuda o monge a alcançar o segundo nível, que é propriamente o da “hesychia do coração”, a própria retirada do criado. E mais uma vez, equivale a dizer, tão crucial é este ponto, o quanto a hesychia não foi concebida nem vivida pelos monges como um tranquilizante espiritual. A retirada não tem nada de uma técnica de concentração ou de domínio de si mesmo; ela não pode encerrar-se a si própria.

Aquilo que a Filocalia testemunha é o contrário de uma sabedoria fechada. No fio estreito do Evangelho, ela atesta o risco da liberdade e o amor louco pelo Deus vivo. A retirada permite justamente tocar de leve essa liberdade e esse amor. E se de fato se chegar a tocar o fundo, e se esse fundo for de fato a origem do mundo, se ele for verdadeiramente o Deus de amor em pessoa, a retirada atrairá o dom. Finalmente, a imolação pelo amor se constitui numa abertura infinita. O monge que alcança a hesíquia, que se retira do criado tanto quanto pode, que se engaja incondicionalmente no impossível, este toca simultaneamente nos dois polos da criação: seu nada enquanto criatura, e o amor que o tirou deste nada. É uma fulminação certeira. Mas a Filocalia é formal: um monge não poderia, por impossível, fazer da hesíquia a matriz do dia eterno, sem um pé na terra, se podemos dizê-lo, no caso, a compaixão de um pai espiritual que possa ser e significar aos olhos deste monge o ícone vivo da plenitude, a face oculta do nada, a revelação do “Eu sou” divino. E aí, nenhuma fulminação, mas outra vez a osmose e a transmissão, na medida em que a compaixão que ele recebe o leva a se abrir como monge hesiquiasta, a compadecer-se dos demais, a se deixar absorver de corpo e alma por toda a decadência e os males do mundo, a nada guardar de sua vida, entregando-a por inteiro por amor ao seu próximo. Sempre o caminho do impossível. A compaixão jamais terá feito senão cumprir e verificar a imolação por amor. Mas, assim como a retirada, o dom tampouco poderá encerrar-se em si mesmo.

Resta, continuamente recomeçado, o recurso ao amor, o apelo imemorial à origem da misericórdia, à misericórdia encarnada, a prece do coração quebrantado ao coração compassivo: exatamente o que a Filocalia chama de prece do coração. Mas não somente. Os anacoretas egípcios falavam de uma “meditação secreta” que de fato retomava a antiga invocação do Salmista: “Senhor, tem piedade”. Mas eles já a envolviam com a forma evangélica que ela haveria de se apresentar depois: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Os monges do Sinai a chamavam de “prece de Jesus”. Muitos a chamaram de “prece pura” ou “prece contínua”, sublinhando assim seu caráter iminentemente interior, pessoal, destacado de todo ritual espacial, e sobretudo pronunciável incessantemente, em silêncio, mesmo no curso e em meio às necessidades do mundo. Mas seu nome específico, seu nome propriamente filocálico, como dissemos, é noera proseuché, a prece intelectual, a prece do nous, a prece do intelecto. E aqui ocorre a mesma coisa com a noera proseuché como ocorreu com a hesychia. Coloca-se um problema de interpretação e de avaliação. E da resposta daquele que ora depende no fundo o sentido transmissível e o alcance perceptível da atestação hesiquiasta. Pois existem duas interpretações. Uma, mínima, reducionista, que se mantém dentro do campo do possível, faz da noera proseuché uma oração psicossomática separada, ou desviada, do puro apelo do amor e da espera nua pela graça: um limiar útil e fechado. A Filocalia assinala esse risco, dentre outros. Mas ao mesmo tempo em que manifesta e aceita a expressão tardia de um método que passou em silêncio nos eremitérios e nas celas do Monte Athos, ela nos leva a seguir a outra interpretação, maximalista, que faz do intelecto em oração o lugar da metanoia, do retorno que o Evangelho associa à aproximação do Reino de Deus: portanto, um santuário do último. Pois somente o abismo chama o abismo. Todos os nossos textos concordam em dizer: o lugar do coração é um lugar aberto, o lugar das aberturas. Existem entradas permanentes e saídas permanentes. A saída da ação é a prece. A saída da prece é a contemplação. A saída da contemplação é a gestação do criado, a passagem da carne para a luz, para o coração quebrantado penetrado pela inteligência oferecida em agradecimento ao Deus vivo, diretamente para a indizível abertura do selo do impossível.

A abertura do selo constitui finalmente na saída do criado, que o Evangelho chama de “glorificação” ao falar de Cristo, e a Filocalia chama de theosis, a deificação, ao falar dos cristãos. Mas o sentido é o mesmo: é sempre a transfiguração do corpo de carne, no coração e para além de sua desaparição. Apesar de que nos nossos textos a deificação seja menos projetada num além futuro do que integrada à derrocada da morte pelo amor louco do coração presente. Isto equivale a dizer que no fundo ela compõe uma coisa única com a ressurreição histórica do Cristo crucificado, morto e enterrado, e com sua aparição mística no coração orante, no coração amoroso, como nos olhos de Maria Madalena. Existe aqui uma dupla mediação: de Cristo e do coração. É essa dupla mediação que os escritos filocálicos chamam de nous.

Ainda aí, a tradução e a interpretação de nous representa um problema. Durante muito tempo essa palavra foi traduzida como “espírito”, mas isso criava uma confusão com a tradução obrigatória do pneuma grego e bíblico, que é precisamente “espírito”, e resultou na ocultação do sentido específico do nous. Da mesma forma, a tradução mais recente de nous como “intelecto” acaba por ser reducionista[2]. Nós aqui traduzimos nous por “inteligência” por duas razões. Primeiro porque inteligência, como o nous filocálico, é um termo ambivalente: faculdade, mas também atividade, ele pode se aplicar tanto ao conhecimento do mundo como ao conhecimento de Deus. E também porque a ambivalência permite o retorno, a metanoia, o arrependimento ontológico, a passagem de um conhecimento a outro, e assim, a utilização da noera proseuché, a prece intelectual. A inteligência se sutiliza pela permanência na imantação de sua própria prece, e acaba por se tornar, no limite do possível, a noera aisthesis, o sentido intelectual, uma aisthesis, um sentido que se acrescenta aos cinco sentidos, ou melhor, que os engloba e os absorve, mas que não é em si mesmo corporal, e que, recolhido no coração, no centro real e místico do corpo vivo, percebe e recebe a atualidade da origem absoluta. Desde o século V, em nome da experiência atestada pela anacorese egípcia, Diádoco de Foticéia afirma que esse sentido é a própria mediação da luz incriada – não sem advertir que tal transfiguração interior do corpo pela iluminação da inteligência se encontra na ordem do impossível, ou seja, da graça, e que ninguém seria capaz de se imaginar capaz de alcançá-la ou prevalecer-se dela sem incorrer numa total ilusão.

E, no entanto, é exatamente essa interiorização da luz incriada, da luz do Cordeiro, que toda a Filocalia propõe, declarando a todo o momento, com o Evangelho, que somente uma coisa é necessária: manter-se em contemplação. Atirar-se em tudo e por tudo ao impossível. E aguardar. Mas não apenas isso. Trabalhar também, no mais profundo, aqui e agora, na possibilidade do impossível. Já vimos que num primeiro momento a hesíquia, reunindo em torno de si todas as virtudes ativas, conduzia o monge, o cristão, diretamente ao lugar do coração, na retirada do criado, no repouso do sétimo dia. Num segundo momento o monge é chamado a conservar e a perpetuar, sempre no lugar do coração, a própria possibilidade do impossível, a espera pela Páscoa, as primícias da transfiguração. Este segundo momento da ascese hesiquiasta, a ascese fina, a ascese da inteligência, a própria virtude da contemplação, é chamada na Filocalia de nepsis, um termo que, em grego, que possui dois sentidos: sobriedade e vigilância. É por isso que traduzimos nepsis por “sobriedade e vigilância”, pois a sobriedade implica que no limite a nepsis herda da hesíquia a retirada do criado, e a vigilância implica que ela é um despertar permanente, na espera dos sinais e das graças do incriado. Mas convém sublinhar aqui que a bem dizer a relação entre a hesíquia – o repouso no sétimo dia – e a nepsis – a imantação e a espera pelo oitavo dia – não é uma relação linear irreversível, na qual o monge passaria de uma à outra como numa sucessão natural de causa e efeito. As duas coisas não cessam de se envolver e se penetrar. Também aí, entre a retirada do criado no coração e a guarda do coração, a ascese é como um movimento circular, uma escada viva, uma circulação permanente nos dois sentidos.

E a chave final, num último momento, no tempo limítrofe, no ponto assintótico, alfa e ômega reunidos, que se aparenta ao que o Apocalipse chama de “primeira ressurreição” – justamente a ressurreição interiorizada aqui e agora – e que a Filocalia nomeia como o “arrebatamento da inteligência”, sem mais, e que somente a experiência pode testemunhar: uma saída do tempo e do espaço, que não é a morte espacial e temporal do corpo, mas sua transfiguração na luz incriada, um êxtase teofânico indizível – embora transmissível, como num espelho ou num enigma, de coração para coração, de Deus para o homem, de homem para homem. Entre ilusão e ilusão, a Filocalia não poderia fornecer aqui a prova que falta: a própria transcendência. Mas ela a indica a quem desejar e quiser ouvir, e, no limite, que não queira ouvir, graças a ela, nada senão a música do coração, a música da boa nova: “O Reino de Deus está em vocês”.

A ATUALIDADE

Muito antes da Subida do Monte Carmelo de São João da Cruz, os escritos hesiquiastas representaram junto com o Evangelho que nenhum caminho traçado no espaço e no tempo do mundo conduz ao último, que o caminho é uma coisa só com a verdade e a vida, e que ele é Cristo em pessoa. Vale dizer que a marcha consciente em direção ao último não é possível senão nas condições de Cristo, que não são forçosamente as mesmas do século.

Assim é que as condições de Cristo – a imolação, a compaixão, a glorificação – não são simples caminhos previamente traçados. Não há outra coisa a fazer aqui do que responder claramente à questão que o Ressuscitado coloca, e à ordem que ele dá: “Você me ama?[3]”, e “Siga-me[4]”. Quem responder é contemporâneo do Ressuscitado. Mas sempre no mesmo sentido: aparentemente no intemporal, mas em verdade na transfiguração do tempo, retomando e seguindo aqui e agora, hoje como ontem, e também amanhã, o trabalho de interiorização que a antologia testemunha. Trabalho de luto, todo uma apagar-se, todo um enterrar-se nos estratos originais do mundo (“colocar-se sob a criação”, diziam os monges), lá onde se radicaliza a praxis psicanalítica moderna, uma vez que a Filocalia não assinala ao trabalho de luto nenhuma finalidade utilitária, nenhuma busca de terapia. A terapia se faz por si mesma, com a ascensão da hesíquia à nepsis, à sobriedade e à vigilância, à ascese da inteligência, e finalmente à alegria ontológica, ao “Eu sou” divino.

“Penso, logo existo”. Toda a modernidade se resume a isso. O “eu sou” se faz acompanhar do “eu penso”, portanto do exercício da inteligência. Mas Descartes reconstruía o mundo a partir do “eu penso”. É o contrário de uma ascese no vazio. Também para os hesiquiastas, um milênio antes, o “Eu sou” fazia causa comum com o “eu penso”. Mas o “Eu sou” era o Nome bíblico, o Nome revelado de Deus, e o “Eu penso” de Deus era o homem, e este não tinha que fazer outra coisa do que entrar de corpo e alma no “Eu sou” de Deus. Ora, o “Eu sou” de Deus, como a sarça ardente, é o fogo que não consome jamais. É a luz incriada. Os monges repetiram isso durante toda a Idade Média Bizantina: a atividade própria da inteligência, o “Eu penso” bíblico, o “Eu penso” Deus, é a prece, e o homem que pensa Deus com toda sua inteligência em prece pode tornar a si em seu próprio corpo uma sarça ardente, lugar de Deus, lugar da luz incriada, portanto lugar de revelação e sinal de contradição, o próprio sinal que une e separa a Filocalia da modernidade.

De todo modo, o encontro é difícil. Pois não se trata aqui de simplesmente refletir sobre a modernidade. Nem de apresentar a Filocalia como uma documento exótico, exumado da caverna da memória que consiste geralmente a Idade Média Bizantina. Trata-se de introduzir na modernidade uma antecipação tanto mais ignorada por ela na medida em que a precede e a fundamenta na ideia de que a inteligência é a origem, mas atribuindo aos termos de “origem” e “inteligência” um significado diferente. A partir daí, ou a Filocalia permanece encerrada com o Império Bizantino e todo o Oriente cristão nas oubliettes, nos impasses e nas captações da história, ou, tomando seu lugar, o último, mas mesmo assim um lugar que é seu, e que no fundo é o primeiro, na imensa recapitulação que é também o mundo moderno, faz parte das instâncias da memória e da profecia que informam a marcha do século sobre as modalidades e a finalidade de sua fuga sempre para adiante.

Mas o dilema não tem razão de ser. A Filocalia deve afrontar o mundo moderno. Ela já viu outros mundos. Ela que atesta o retorno das inversões e das captações que foram o paganismo antigo e o cristianismo imperial, pode ainda atestar, na interioridade das consciências, o retorno das inversões e das captações atuais, aquilo que se convencionou denominar hoje em dia de neopaganismo e de pós-cristianismo modernos. Acima de tudo, ela permanece aquilo que ela é: um santuário eclesial da revelação bíblica, uma vez que ela faz e refaz a convocação original da Igreja a todos os cristãos, chamados principalmente a amar a Deus na solidão e na imolação do coração quebrantado, e, em segundo lugar, mas um segundo lugar que atesta o primeiro, a trazer o amor a Deus na compaixão e no amor ao próximo. Enfim, ela é o amor das saídas luminosas do mundo, o amor à beleza original e última. E aí ela coloca em causa a relação mais rigorosamente pessoal e a mais infinitamente aberta que o homem pode ter com a encarnação da  vida eterna e a transfiguração da carne mortal. Assim, não existe dilema, mas apenas o paradoxo evangélico: “Feche a porta e ore ao seu Pai[5]”. A atualidade da Filocalia, por tão real que ela seja diretamente para a abertura infinita, permanece não obstante o mais secreta possível.




[1] Marcos o Asceta, Dos que pretendem ser justificados pelas obras, 30.
[2] Em nossa tradução para o português, de modo geral optamos traduzir nous pela palavra “intelecto”, no sentido que lhe é atribuído por René Guénon, como sendo o equivalente de Buddhi, o “intelecto superior”, primeiro grau da manifestação de Atmâ.
[3] João 21: 16.
[4] João 21: 19.
[5] Mateus 6: 6.

Um comentário:

  1. ORAÇÃO DO PAI NOSSO
    Pai nosso que estais nos céus,

    Santificado seja o Vosso nome.

    Venha a nós o Vosso Reino.

    Seja feita a Vossa vontade,

    Assim na Terra como no Céu.

    O pão nosso de cada dia nos dai hoje.

    Perdoai as nossas ofensas,

    Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.

    E não nos deixeis cair em tentação,

    Mas livrai-nos do mal.

    Amém.

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