Foi
você mesmo, meu mestre guardado por Deus, a quem eu recebi, você que me assiste
com suas cartas dignas de todo louvor, que está sempre presente e que não pode
jamais estar ausente pelo Espírito, mas que, imitando a Deus, não recusa ajudar
seus servidores na abundância de sua virtude e através da irradiação que Deus
lhe deu por natureza. Por isso, admirando a grandeza de sua compaixão, eu fiz
com que meu temor diante de você se misturasse com a afeição. E dos dois, do
temor e da afeição, eu suscitei um único amor formado de pudor e
bem-aventurança, a fim de que o temor desprovido de afeto não se tornasse
aversão e que o afeto, por não estar unido ao temor, não se tornasse engano.
Assim, o amor aparece como uma lei interior de ternura unindo tudo o que é
aparentado por natureza: pela bem-aventurança ele domina a aversão, e pelo
pudor afasta o engano. Sabendo bem que ele – refiro-me ao temor – religa ao
amor divino mais do que tudo, o bem-aventurado Davi disse: “O temor ao Senhor é
puro, ele permanece pelos séculos dos séculos[1]”.
Ele sabia, com toda evidência, que este temor é diferente daquele que é causado
pelo medo do castigo quando somos acusados de ter cometido faltas, pois é
verdade que esta segunda forma de temor é afastada e apagada pela presença do
amor, como o demonstra algures as palavras do grande evangelista João que diz
“O amor afasta o temor[2]”,
e que a primeira forma de temor caracteriza a lei da verdadeira ternura,
guardando para sempre, pelo pudor, no coração dos santos, totalmente
incorruptíveis, a lei e o modo do amor de Deus e o amor fraternal.
Assim
é que eu também, como disse, misturei o afeto ao temor que tenho diante de meu
mestre, e suscitei esta lei do amor até hoje. Por pudor, abstive-me de
escrever, para não dar chance ao erro, mas, pela bem-aventurança, eu fui
forçado a escrever, para que a recusa total em escrever não seja considerada
como aversão. Pressionado a fazê-lo, eu escrevi, não o que eu penso, mas o que
Deus quer e concede por graça para que nos aconteça o que é melhor para nós.
Pois “os desígnios do Senhor, diz Davi, permanecem eternamente, e os
pensamentos de seu coração de geração em geração[3]”.
Sem dúvida, ele chama de “desígnio” de Deus a inefável kénose[4] do Filho único em
vista da deificação de nossa natureza, esta kénose por meio da qual ele
carrega em si o fim de todos os séculos. E ele chama de “pensamentos de seu
coração” as razões da providência e do juízo, segundo as quais ele dirige com
sabedoria, como gerações distintas, nossa vida presente e nossa vida futura,
assinalando respectivamente a cada uma o modo de ação que lhe convém.
Mas
se a obra do desígnio de Deus é a deificação de nossa natureza, e se o objetivo
dos pensamentos divinos é levar nossa vida ao termo daquilo que pedimos, então
é útil conhecer e praticar, e portanto escrever como se deve o poder da oração
do Senhor. Ora, como, levado por Deus ao escrever a este servidor, meu mestre
mencionou esta oração, tornei-a o tema de minhas palavras e pedi ao Senhor que
nos ensinou esta prece que abrisse meu intelecto à compreensão dos mistérios
presentes nela e me desse uma palavra na medida da claridade daquilo que esta
oração significa. Pois ela engloba inteiramente o objetivo que mencionei, este
objetivo misteriosamente oculto, ou, para falar com mais propriedade,
proclamado manifestamente por aqueles cuja inteligência é forte.
As
palavras da oração contêm, de fato, tudo o que o Verbo de Deus, por sua própria
kénose, cumpriu na carne[5].
Elas ensinam a se apropriar desses bens que, em verdade, no Espírito Santo,
somente Deus Pai nos dispensa, pela mediação natural do Filho, pois o Senhor
Jesus é “o mediador entre Deus e os homens[6]”,
segundo o Apóstolo divino. Por sua carne, ele tornou manifesto aos homens o Pai
ignorado[7].
E ao Pai, pelo Espírito, ele conduziu os homens com ele reconciliados[8],
estes homens pelos quais e por cuja causa ele se tornou homem sem mudança ou
transformação. Ele mesmo operou e ensinou aos homens muitos mistérios novos
cuja razão não pode ainda ser medida em multitude e grandeza. Podemos enumerar
sete deles, que são mais gerais do que os outros, e que, ao que parece, ele deu
aos homens na eminência de sua generosidade. O objetivo visado pela oração,
como eu disse, contém misteriosamente a potência destes mistérios: a teologia,
a filiação pela graça, a igualdade de honra com os anjos, a participação na
vida eterna, o restabelecimento da natureza devolvida a si mesma na
impassibilidade e no assentimento, a abolição da lei do pecado e a destruição
da tirania do maligno que nos dominou com suas enganações.
Consideremos
então a verdade aquilo que dissemos. Com efeito, o Verbo de Deus encarnado nos
ensina a teologia, pois ele nos mostra em si mesmo o Pai e o Espírito Santo.
Pois o Pai inteiro e o Espírito Santo inteiro estavam essencial e perfeitamente
no Filho inteiro, mesmo encarnado, enquanto eles próprios não eram encarnados,
mas um queria a encarnação, por sua benevolência, enquanto o outro a cumpria
com o Filho que por si só a operava, uma vez que o Verbo permaneceu em seu
próprio intelecto e em sua própria vida, ao mesmo tempo em que não era
compreendido na essência por nada outro do que o Pai e o Espírito, quando, por
amor ao homem, cumpriu a união na hipóstase da carne.
Ele,
o Verbo, deu a filiação, concedendo pelo Espírito, na graça, o nascimento que
veio do alto sobrenaturalmente e a deificação correspondente, que estão
guardados e conservados em Deus pela escolha daqueles que nascem. Esta escolha
afeta a alma que pede uma disposição inata: ela adorna a beleza que a graça dá
pela prática atenta dos mandamentos; e pela kénose das paixões, ela se
apropria da divindade enquanto que o Verbo de Deus, conforme a economia,
esvazia voluntariamente a si mesmo de sua própria glória sem mistura, ao se
fazer verdadeiramente homem.
Ele
tornou os homens dignos de receber a mesma honra que os anjos, não apenas por
ter, após haver pacificado pelo sangue de sua cruz o que está nos céus e na
terra[9]
e depois de haver batido a inércia das potências inimigas que enchem o espaço
entre o céu e a terra, demonstrado que é única a assembléia das potências
terrestres e celestes que recebem em partilha os dons divinos, uma vez que a
natureza humana, na única e mesma vontade, celebra com alegria, com as
potências do alto, a glória de Deus; mas também porque, depois de haver
cumprido a economia de nossa salvação e de se ter elevado com o corpo que havia
assumido, uniu em si o céu e a terra, religou o sensível ao inteligível, e
mostrou que a natureza criada é uma, que ela forma um todo unido a si mesmo,
até em suas partes extremas, pela virtude e o conhecimento da causa primeira.
Assim, ele quis significar misteriosamente, penso eu, por meio daquilo que ele
cumpriu, como a razão é a união do que havia sido separado, e como a
irracionalidade é a divisão daquilo que havia sido unido. E nós aprendemos a
nos apropriar da razão pela ação, a fim de nos unirmos não apenas aos homens
pela virtude, mas também a Deus, pelo conhecimento, nos destacando dos seres.
O
Verbo nos comunicou a vida divina, fazendo a si próprio alimento, como ele
próprio sabia e como sabiam os que receberam dele este sentido do intelecto, um
sentido tal que, provando deste alimento eles souberam por um conhecimento
verdadeiro que o Senhor é bom[10],
e que, para os deificar, ele transforma os que comem misturando-os a uma
qualidade divina, pois ele é e é chamado claramente de pão de vida e de poder[11].
Ele
restabeleceu a natureza devolvendo-a a si mesma, não apenas porque, tornado homem,
ele manteve diante da natureza sua vontade impassível, calma e imperturbável em
seu próprio fundamento natural, mesmo diante daqueles que o crucificavam,
escolhendo por eles a morte ao invés da vida, como o demonstra o caráter
voluntário da Paixão, confirmado pela disposição que levou Aquele que sofreu a
Paixão a amar o homem; mas também porque ele “aboliu a inimizade pregando na
cruz a caução do pecado[12]”,
por cuja causa a natureza guerreava implacavelmente contra si mesma e porque, depois de haver chamado os que
estavam próximos e os que estavam distantes – ou seja, os que estavam sob a Lei
e os que não estavam submetidos a ela – e de haver destruído o muro de
separação, ou seja, de ter dito o que era a Lei dos mandamentos em seus
segredos, ele criou os dois em um só homem novo, fazendo a paz e nos
reconciliando em si mesmo com o Pai[13]
e uns com os outros, para que não tivéssemos mais em nós a vontade oposta à razão da natureza e que fôssemos imutáveis
em nossa vontade como o somos em nossa natureza.
Ele
purificou a natureza da lei do pecado, porque ele não permitiu que o prazer
preceda sua encarnação por nós. Sua concepção foi feita sem semente,
paradoxalmente, e seu nascimento foi sobrenaturalmente feito sem corrupção. Com
toda a evidência, o Deus que foi gerado deste modo mais alto do que a natureza
encerrou em sua mãe, com seu nascimento, os laços da virgindade e libertou toda
a natureza do poder da Lei que a dominava, naqueles que o desejam e o imitam em
sua morte voluntária fazendo morrer de encontro aos sentidos seus membros que
estão sobre a terra. Pois o mistério da salvação é para aqueles que o desejam,
não para os que o recebem.
Ele
destruiu a tirania do maligno que nos dominou com suas enganações. Pois,
projetando a carne como uma arma contra o maligno, ele venceu a carne vencida
em Adão, a fim de mostrar que esta carne, que havia tomado o fruto e dele
recebido a morte, tomou aquele que a havia dominado e destruiu sua vida pela
morte natural; e para mostrar também que ela se tornou para ele um veneno
destinado a lhe fazer vomitar todos os que havia engolido, pois ele deteve o
poder da morte; assim ela se tornou para a raça dos homens uma vida que permite
fermentar como uma massa toda a natureza para que a vida ressuscite, esta vida
pela qual, justamente, o Verbo, que é Deus[14],
se fez homem (coisa nova e verdadeiramente estranha) e aceitou voluntariamente
a morte na carne.
De
tudo isto, como eu disse, encontraremos a demanda nas palavras da oração.
Com
efeito, ela fala do Pai, do nome do Pai e do Reino. Ela mostra, de resto, que
quem reza é filho deste Pai na graça. Ela pede que aqueles que estão no céu e
os que estão na terra provenham de uma única vontade. Ela prescreve pedir o pão
épiousios[15].
Ela dá aos homens a lei da reconciliação: e, pelo fato de perdoar e ser
perdoado, ela religa a natureza a si mesma para que ela não seja dividida pela
diferença das vontades. Ela ensina a se esforçar, pela prece, a não cair em
tentação, que é a lei do pecado. E ela exorta a que nos libertemos do maligno.
Era preciso, com efeito, que aquele que cumpriu ele próprio os bens e os deu
aos que acreditaram nele e imitaram sua conduta na carne, fosse também o que os
ensinou como a discípulos, oferecendo-lhes os fundamentos desta vida, as
palavras da oração, estas palavras por meio das quais ele revelou os tesouros
ocultos da sabedoria e do conhecimento[16]
que permaneciam especificamente nele, uma vez que ele conduziu com toda
evidência para a fruição de seus tesouros o desejo daqueles que pediram.
É
por isso que, penso eu, o Verbo denominou oração este ensinamento que carrega
em si o pedido dos dons que, pela graça, Deus concede aos homens. Assim, nossos
Pais inspirados por Deus expuseram e definiram a oração dizendo que a prece é
uma demanda daquilo que Deus concede naturalmente aos homens conforme lhe
apetece. Do mesmo modo, eles expuseram que o voto é uma profissão, ou seja, uma
promessa daquilo que os homens oferecem a Deus quando lhe prestam um culto
legítimo. E eles estabeleceram que a Escritura dá testemunho disto de muitas
maneiras. Ela diz: “Faça seus votos e ofereça-os ao Senhor nosso Deus[17]”,
e: “Aquilo que eu prometi, eu lhe oferecerei, Senhor[18]”.
Isto quanto à promessa. Quanto à oração, ela diz: Senhor todo-poderoso, Deus
das Potências, se você quiser atender à sua serva e dar um fruto ao seu seio[19]”,
e “Ezequias, rei de Judá, e o profeta Isaías, filho de Amós, oraram ao Senhor[20]”.
E disse o Senhor aos seus discípulos: “Quando vocês rezarem, digam: Pai nosso
que estais nos céus[21]”.
Assim, a promessa pode ser a guarda dos mandamentos decidida pela vontade
daquele que faz o voto, e a prece pode ser a demanda que aquele que guardou os
bens faz para ter parte nos bens que guardou. Ou antes, o voto pode ser o
combate pela virtude, que Deus recebe com benevolência, como uma oferenda; e a
prece é a recompensa da virtude, que Deus dá em retorno, cheia de alegria.
COMENTÁRIO
Portanto,
como ficou demonstrado que a oração é a demanda de bens que o Verbo encarnado
concede, avancemos com confiança, aproximando-nos d'Aquele que nos ensina as
palavras da prece e pondo cuidadosamente a nu pela contemplação, na medida do
possível, o sentido de cada palavra, como o próprio Verbo costuma fazer para
nosso bem dando a compreender o poder do pensamento daquele que fiz:
“Pai nosso que estais no céu,
santificado seja o vosso nome,
venha a nós o vosso reino[22]”.
Com
estas palavras, o Senhor ensina aos que oram a iniciar como convém pela
teologia e os ensina no mistério como existe a causa criadora dos seres, ele
que é, por essência, a causa dos seres. As palavras da oração apontam, com
efeito, o Pai, o nome do Pai e o Reino do Pai, para que aprendamos a partir da
origem mesma a venerar, invocar e adorar a Trindade una. Pois o nome de Deus
Pai, este nome que existe essencialmente, é o Filho único. E o Reino de Deus
Pai, este Reino que existe essencialmente, é o Espírito Santo. Aquilo que aqui
Mateus chama de Reino, outro evangelista denomina algures de Espírito Santo, ao
dizer: “Que venha o Espírito Santo e que ele nos purifique[23]”.
Com efeito, o Pai não adquiriu seu nome na seqüência, e tampouco nós concebemos
o Reino como uma dignidade considerada depois dele. Ele não começou a ser, para
começar também a ser Pai ou Rei. Mas ele é sempre, e é igualmente sempre Pai e
Rei, pois ele não precisou absolutamente começar a ser, nem começar a ser Pai
ou Rei. Ora, se ele que é sempre, é sempre Pai e Rei, então o Filho e o
Espírito Santo sempre existiram na essência do Pai. Eles são naturalmente dele
e estão nele, para além da causa e da razão, mas não depois dele, como vindos a
seguir a partir de uma causa. Pois a relação possui a faculdade de mostrar
simultaneamente: ela não permite que sejam considerados um após outro aqueles
dos quais ela é e é chamada de relação.
Portanto,
ao iniciarmos nossa oração somos conduzidos a honrar a Trindade consubstancial
e supra-essencial como causa criadora de nossa gênese. Além disso, aprendemos a
anunciar para nós mesmos a graça da filiação, uma vez que somos considerados
dignos de chamar de Pai, pela graça, Aquele que nos criou por natureza. Assim,
reverenciando a invocação d’Aquele que nos engendrou pela graça, nos esforçamos
para transparecer na vida que levamos as marcas d’Aquele que nos fez nascer:
santificamos seu nome sobre a terra, o imitamos como a um Pai, nos mostramos
filhos seus por nossos atos e glorificamos naquilo que pensamos e fazemos o
Filho do Pai por natureza, o qual opera esta filiação. Ora, nós santificamos o
nome do Pai pela graça nos céus mortificando, claramente, o desejo provocado
pela matéria e nos purificando das paixões corruptoras, pois a santificação é a
total imobilidade e a mortificação da concupiscência dos sentidos. Quando
atingimos esta condição, apaziguamos os mugidos inconvenientes do ardor, pois
não temos mais a concupiscência para excitá-lo e persuadi-lo a defender nossos
prazeres: a concupiscência foi mortificada pela santidade conforme a razão.
Pois o ardor que, por natureza, vinga a concupiscência, cessa de ser furioso
quando a vê mortificada.
É
assim com todo o direito que, pela rejeição do ardor e da concupiscência chega,
seguindo-se à prece, o poder do Reino de Deus Pai para aqueles que, depois de
despojados, são considerados dignos de dizer: “Venha a nós o vosso Reino”. Vale
dizer, o Espírito Santo, pois, graças à razão e ao modo da mansidão, estes já
se tornaram templos de Deus pelo Espírito[24].
De fato, foi dito: “Sobre quem repousarei eu, senão sobre aquele que é manso e
humilde e que teme minhas palavras?[25]”
Daí fica claro que o Reino de Deus Pai pertence aos humildes e aos mansos,
conforme foi dito: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra[26]”.
Não se trata desta terra colocada pela natureza no meio do universo que Deus
prometeu como herança aos que o amam, se é verdade o que ele disse: “Quando
eles ressuscitarem, já não tomarão esposos e esposas, mas serão como os anjos
nos céus[27]”,
e também: “Venham, benditos de meu Pai, herdem o Reino que foi preparado para
vocês desde a fundação do mundo[28]”.
Também foi dito a um outro que havia servido com benevolência: “Entre na
alegria do Senhor[29]”.
E segundo o Apóstolo divino: “Pois a trombeta soará, os que estão mortos em
Cristo ressuscitarão primeiro, incorruptíveis. Depois nós, os vivos, que
permanecemos, seremos arrebatados com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor
no espaço, e assim estaremos sempre com o Senhor[30]”.
Uma
vez que são estas as promessas feitas aos que amam o Senhor, quem jamais poderá
dizer – se for conduzido pelo Verbo e se desejar ser servidor do Verbo – que o
céu, o Reino preparado desde a fundação do mundo, a jóia misteriosamente oculta
do Senhor e, para os que são dignos, o fato de que permanecerão resolutamente e
sem descontinuidade junto ao Senhor, são coisas semelhantes à terra? Agora, no
entanto, penso poder afirmar que a terra consiste no estado e na potência
firmes e imutáveis suscitados pela beleza da retidão dos mansos, pois ela está
sempre com o Senhor,, ela carrega uma alegria incessante, ela conquistou o
Reino preparado desde a origem e foi tornada digna do lugar e da ordem do céu,
tal qual uma terra cujo posto no meio do universo é a razão da virtude, segundo
a qual o homem manso que está no meio permanece impassível entre o louvor e a
difamação, nem inchado pelos elogios, nem entristecido pelas difamações. Pois
depois de haver afastado o desejo destas coisas das quais ela é livre por
natureza, a razão já não sente seus ataques quando elas a perturbam: ela
descansou de sua agitação e transportou toda a potência da alma para o porto da
liberdade divina desembaraçada de toda e qualquer ação, esta liberdade que o
Senhor desejava transmitir aos seus discípulos. Ele disse: “Carreguem minha
carga e aprendam comigo que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão
o repouso de suas almas[31]”.
Ele chamou de repouso a potência do Reino divino, esta potência que suscita
naqueles que são dignos uma soberania livre de qualquer servidão.
Ora,
se a potência indestrutível do Reino em estado puro é dada aos humildes e aos
mansos, quem seria a tal ponto sem amor e sem desejo dos bens divinos para não
tender ao extremo para a humildade e a mansidão, a fim de se tornar a marca do
Reino de Deus – na medida em que isto é possível ao homem – levando em si
aquilo que, pela graça, lhe dá uma forma espiritual semelhante à de Cristo, o
qual é naturalmente por essência o grande Rei? Quando adquirimos esta forma,
diz o Apóstolo divino, “não há mais homem nem mulher[32]”,
ou seja, nem ardor nem concupiscência. O ardor empurra tiranicamente o
pensamento e o faz afastar-se da lei da natureza da reflexão. E a concupiscência
desvia o desejo para aquilo que está depois da causa, ao invés de orientá-lo
para a causa única e para a natureza única, que é a única desejável e
impassível. Ao fazer isto, ela concede à carne mais honrarias do que ao
espírito e encontra mais delícias no desfrutar do visível do que na glória e no
esplendor do inteligível: pela doçura do prazer dos sentidos, ela afasta o
intelecto da percepção divina inata dos inteligíveis.
Mas
quando alcançamos uma forma semelhante à de Cristo, não resta mais do que a
razão somente, a qual, por um acréscimo de virtude, se despoja até o fim da
ternura e da afetividade pelo corpo, que são impassíveis, mas que também são
naturais. A partir daí, o espírito domina perfeitamente a natureza e convence o
intelecto a abandonar a filosofia moral e a se unir ao Verbo supra-essencial
pela contemplação simples e indivisível, ao mesmo tempo em que contribui
naturalmente para que o intelecto se separe facilmente das coisas que escoam no
tempo. Uma vez ultrapassadas estas coisas, não cabe mais impor como um manto um
caminho ético para aquele que se mostrou separado do sensível.
É
isto o que quis dizer claramente o grande Elias quando, por suas ações, mostrou
em imagens este mistério[33].
Quando ele foi arrebatado ao céu, ele deu seu manto a Eliseu (ou seja, a
mortificação da carne, por meio da qual ele assegurou a magnificência da boa
ordem moral) para que assistisse o espírito no combate contra as potências
adversas e para bater a natureza instável que escoava – esta natureza cuja imagem
é o Jordão – a fim de que não fosse impedido de passar para a terra santa o
discípulo engolido por tudo o que há de confuso e escorregadio na tendência
para as coisas materiais. Quanto a ele, avançou na direção de Deus, liberto,
totalmente desembaraçado daquilo que o ligava aos seres, simples em seu desejo
e sem nenhuma composição em sua vontade, para estabelecer sua morada junto
d’Aquele que é simples por natureza, por intermédio das virtudes gerais unidas
entre si, atreladas ao conhecimento como cavalos de fogo. Ele sabia, com
efeito, que o discípulo de Cristo devia se afastar das disposições desiguais
cujas diferenças estabelecem o caráter alienante, pois a paixão da
concupiscência provoca um empanzinamento ao redor do coração e o movimento do
ardor faz manifestamente ferver o sangue. Alcançando o movimento, a vida e o
ser de Cristo[34],
ele afastou de si as coisas desiguais e estrangeiras (pois já não trazia em si
as disposições passionais, estas disposições contrárias de que falei, que são
como homem e mulher) a fim de a razão não fosse submetida a estas coisas,
alterada por suas mudanças instáveis, ela na qual foi naturalmente infundida a
santidade da imagem divina para persuadir a alma a se transformar por sua
vontade na semelhança de Deus e pertencer ao grande Reino que está em sua
essência com Deus Pai de todas as coisas , como uma morada luminosa do Espírito
Santo, morada que recebe, se podemos nos exprimir assim, o poder de conhecer a
natureza divina, na medida em que isto é possível. Por este poder desaparece
naturalmente a origem do inferior e subsiste naturalmente a origem do superior,
a alma, semelhantemente a Deus, guardando intacta em si mesma pela graça de sua
vocação a hipóstase dos bens que lhe foram dados. E por este poder, Cristo
nasce sempre, como quer, misteriosamente, encarnando-se através daqueles a quem
salva: ele faz da alma grávida uma mãe virgem, que não traz, para dizê-lo em
poucas palavras, como na relação entre homem e mulher, as marcas da natureza
submetida à corrupção e à geração.
Que
ninguém se espante de ver a corrupção vir antes da geração. De fato, se
examinarmos sem paixão e com razão direita a natureza daquilo que nasce e
daquilo que morre, veremos claramente que a geração extrai sua origem da
corrupção e depois termina na corrupção. Ora, as paixões que são os sinais da
corrupção – essas paixões de que falei – Cristo (ou seja, a vida e a razão de
Cristo e segundo Cristo) não as tem, pois é verdade o que foi dito: “Pois em
Jesus Cristo não existe homem nem mulher”, mostrando assim, com toda evidência,
os sinais e as paixões da natureza submetida à corrupção e à geração. Existe
apenas uma razão semelhante a Deus, suscitada pelo conhecimento divino, e um
movimento único da vontade que escolhe apenas a virtude.
“Nem
grego, nem judeu[35]”.
Grego e judeu significam concepções diferentes, ou, para falar mais exatamente,
opostas, da crença em Deus. Uma introduz com fartura uma multitude de origens e
divide a origem única em energias e potências opostas: torna-se um culto
politeísta em plena dimensão, tão numerosos são os deuses adorados, e risível,
tantos e tão diversos são os modos de adoração. A outra introduz uma origem
única, mas estreita e imperfeita, quase inconsistente, como que desprovida de
razão e de vida. Indo em sentido contrário, ela cai num mal idêntico ao da
primeira concepção: o ateísmo. Ela limita a uma só pessoa a origem única, que
existe sem o Verbo e sem o Espírito, ou que foi suscitada pelo Verbo e o
Espírito. Ela não enxerga que tipo de Deus é este Deus provado de Verbo e de
Espírito, ou de que modo ele é Deus se tem parte no Verbo e no Espírito como
acidentes, por uma participação próxima daquela dos seres racionais submetidos
à geração.
Como
eu disse, nenhuma destas concepções está em Cristo. Nele não existe mais do que
uma concepção de verdadeira piedade e uma sólida lei de teologia mística, que
recusa distender a divindade, como a primeira concepção, e que não aceita
reduzi-la, como a segunda. Assim, não existe nem dissensão pela natural
pluralidade, como entre os gregos, nem submissão à unidade da hipóstase, como
entre os judeus, dentre os quais, privado do Verbo e do Espírito ou suscitado
pelo Verbo e pelo Espírito, o divino não é venerado como Inteligência, Verbo e
Espírito. A nós que, pela vocação da graça segundo a fé, fomos introduzidos no
conhecimento da verdade, a concepção cristã ensina a saber que a natureza e a
potência da divindade são únicas, e que, portanto, existe um só Deus,
contemplado no Pai, no Filho e no Espírito Santo: Inteligência única, sem causa,
existente por essência, que engendrou o Verbo único, sem começo, existente por
essência, e que é fonte da vida eterna única, existente por essência, como Espírito Santo, Trindade na Unidade e Unidade
na Trindade.
Não
como um outro dentro de um outro, pois a Trindade não está contida na Unidade
como um acidente está contido na essência, e, inversamente, a Unidade tampouco
está com tida na Trindade como acidente, pois ela não possui qualidade própria.
Nem
como um outro e um outro: pois a Unidade não difere da Trindade por uma
diferença de natureza, uma vez que sua natureza é simples e única.
Nem
como um outro que se segue a outro: pois a Trindade não se distingue da Unidade
por um relaxamento da potência, nem a Unidade se distingue da Trindade por este
mesmo relaxamento; ela não difere dela também como algo de comum e de
semelhança geral entre partes e que não pudesse ser contemplada senão por um
pensamento único, pois ela é uma essência que existe propriamente por si mesma,
e uma potência que possui em si sua própria força.
Nem
como um outro a partir de um outro: pois a Trindade não provém da Unidade, pois
ela não é engendrada e gera a si mesma.
Afirmamos
e acreditamos que uma só coisa é em verdade Unidade e Trindade. Ela é Unidade
em razão da essência. E é Trindade pelo modo de existência. Uma só coisa é
inteiramente Unidade, sem ser partilhada pelas hipóstases; e ela mesma é
inteiramente Trindade, sem que se confunda com a Unidade. Assim, o politeísmo
não é introduzido pela divisão, nem o ateísmo pela confusão. Fugindo a uma e
outra, resplandece a concepção cristã. Chamo de concepção cristã a nova
proclamação da verdade: “Nele não existe homem nem mulher”, ou seja, nem os
sinais nem as paixões da natureza submetida à corrupção e à geração. “Não existe
grego nem judeu”: não existem concepções opostas da divindade. “Não há
circunciso nem incircunciso”, portanto não existem cultos correspondentes a
estas concepções: um – o culto da circuncisão – através dos símbolos da Lei,
considera que a criação visível é má e acusa o Criador de ser o autor dos
males; o outro – o culto da incircuncisão – através das paixões, deifica a
criação e subleva a criatura contra o Criador. Ambos desembocam no mesmo mal: o
ultraje a Deus. “Não há bárbaro nem cita”, ou seja, não existe distensão da
vontade que leva a natureza única a se voltar contra si própria, esta distensão
por cuja causa introduziu-se entre os homens a lei contra a natureza que os
leva a se destruírem mutuamente. “Não existe escravo nem homem livre”, ou seja, não há divisão da mesma
natureza de encontro à vontade, pois a divisão traz consigo o desprezo por
aquele que por natureza é digno da mesma honra; ela traz em si, como uma lei
que a confirma, a tendência dos mestres despóticos de tiranizar a imagem de Deus.
Mas “Cristo é tudo em todos[36]”,
ele que, por intermédio daquilo que ultrapassa a natureza e a lei, suscita no
Espírito a formação do Reino sem começo, formação assinalada naturalmente pela
marca da humildade e da doçura de coração, como foi demonstrado, e cuja reunião
significa o homem perfeito criado segundo Cristo. Com efeito, todo homem
humilde é também manso, e todo homem manso é humilde. Ele é humilde, porque
sabe que o ser lhe foi emprestado; e ele é manso, porque sabe utilizar as
potências da natureza que lhe foram dadas. Ele coloca estas potências a serviço
da razão para engendrar a virtude. E ele reduz com perfeição sua atividade nos
sentidos. É por isso que em seu intelecto ele está em permanente movimento para
Deus, mas não produz nenhum movimento nos sentidos quando experimenta
simultaneamente todas as coisas que afligem o corpo, nem imprime em sua alma
traço algum de tristeza para substituir o estado de bem-aventurança que reside
nela. Pois ele não considera que a dor dos sentidos seja uma privação do
prazer. Ele só conhece um prazer: a vida em comum da alma com o Verbo, cuja
privação sim é um tormento que não tem fim e que engloba naturalmente todos os
séculos. É por isso que, abandonando este corpo e tudo o que é do corpo, ele se
dirige intensamente para a vida em comum com Deus. De fato, ele considera como
o único dano, ainda que fosse ele mestre de tudo o que há sobre a terra, perder
a deificação pela graça, esta deificação que ele espera acima de tudo.
Assim,
purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito[37],
a fim de santificar o nome de Deus extinguindo a concupiscência indecentemente
varrida pelas paixões. E afoguemos sob a razão o ardor levado à fúria pela
desordem dos prazeres, a fim de acolher o Reino de Deus Pai, que vem pela mansidão,
e de acrescentar às primeiras palavras as palavras seguintes da oração,
dizendo:
“Seja feita a vossa vontade assim na
terra como no céu.[38]”
Aquele
que, unicamente pela potência da razão desembaraçada da concupiscência e do
ardor, oferece misticamente a Deus o culto de adoração, cumpre a vontade divina
sobre a terra, do mesmo modo como as ordens dos anjos nos céus. Ele adora e
vive constantemente com os anjos, como diz o grande Apóstolo: “Nossa cidadania
está nos céus[39]”,
onde não existe concupiscência para relaxar pelos prazeres as tensões do
intelecto, nem ardor raivoso para rosnar de inveja contra o semelhante. Nos
céus não há outra coisa do que a pura razão, que conduz naturalmente os seres
racionais à razão primeira. É somente nela que Deus se regozija, e é somente
ela que ele nos pede, a nós seus servidores. É o que ele quis dizer quando fez
o grande Davi falar: “O que existe para mim no céu, e que poderei eu querer de
outro sobre a terra?[40]”
Ora, nada há nos céus que seja oferecido a Deus pelos anjos senão a adoração da
razão, esta adoração que ele nos pede ensinando-nos a dizer quando rezamos:
“Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”.
Que
nossa razão se coloque, assim, à procura de Deus, que a potência da
concupiscência se esforce por desejá-lo, e que o ardor se esforce por
guardá-lo, ou, para falar mais precisamente, que todo o intelecto se volte para
Deus, tensionado pelo ardor como uma corda, e queimando de desejo pelo apelo
extremo da concupiscência. Pois, imitando desta maneira os anjos do céu,
adoraremos a Deus continuamente mostraremos possuir sobre a terra a mesma
cidadania que eles, e como eles não teremos o intelecto voltado para nada além
do que aquilo que nos aproxima de Deus. Pois, assumindo esta cidadania conforme
nossos votos receberemos como um pão épiousios
e vivificante para nutrir nossas almas e conservar em bom estado os bens que
nos foram dados, o Verbo que disse: “Eu sou o pão que desceu dos céus e que dá
vida ao mundo[41]”.
Assim, ele se torna tudo para nós na medida em que somos alimentados de virtude
e sabedoria, e, de maneira inversa, como ele o sabe, ele toma um corpo em cada
um dos que foram salvos, mesmo que ainda estejam neste século, segundo o poder
do texto da oração, que diz:
“O pão épiousios nos daí hoje.[42]”
Eu
penso, com efeito, que “hoje” significa “este século”. Assim, para
interpretarmos com a maior clareza possível esta passagem da oração, diríamos:
nosso pão, que você preparou no começo para a imortalidade da natureza[43],
nos dê hoje, a nós que estamos na vida presente destinados à imortalidade, para
que a morte do pecado seja vencida pelo alimento do pão da vida e do
conhecimento, que a transgressão do mandamento divino impediu ao primeiro homem
de tomar parte[44].
Pois se ele tivesse se saciado com este alimento divino, ele não teria sido
presa da morte pelo pecado.
De
resto, aquele que ora para receber este pão épiousios
jamais o acolhe inteiramente tal como ele é, mas cada qual o acolhe na medida
de sua capacidade em recebê-lo. Pois o pão da vida, em seu amor pelo homem, é
dado a todos os que o pedem, mas não da mesma maneira a todos. Aos que fizeram
grandes obras é dado mais; aos que fizeram obras menores é dado menos. Ele é
dado, portanto, a cada um conforme o possa acolher a dignidade de seu intelecto.
Ora, o Salvador revelou-me o sentido dessas palavras quando prescreveu
explicitamente aos seus discípulos que não se preocupassem com o alimento
sensível, quando disse: “Não se aflijam em suas almas sobre o que irão comer ou
o que irão beber, nem em seus corpos com o que irão vestir. Todas estas coisas,
as nações do mundo as buscam. Mas procurem antes o Reino de Deus e sua justiça,
e todas essas coisas lhes serão dadas em acréscimo[45]”.
Assim, como poderia ele ensinar a rezar por coisas que antes ele ordenava não
buscar? É claro que ele não prescreveu pedir, na oração, aquilo que, pelo
mandamento, ele exortou a não procurar. Pois não se pode pedir na oração senão
aquilo que se deve buscar pelo mandamento. Aquilo que não nos foi ordenado pelo
mandamento tampouco nos é permitido solicitar pela prece. Se o Salvador ordenou
que buscássemos apenas o Reino de Deus e sua justiça, é razoável que seja
também este Reino que ele incentivou aos que desejam os dons divinos a pedir na
oração, a fim de que, depois de haver confirmado a graça daquilo que é
naturalmente solicitado pela oração, ele pudesse ligar, à vontade d’Aquele que
concede a graça, a resolução dos que demandam, tornando esta resolução idêntica
à vontade de Deus pela união que as liga.
Se
nos foi ordenado pedir também pela oração o pão de cada dia por meio do qual
nossa vida presente é conservada naturalmente, não ultrapassemos os limites da
oração atribuindo-nos cupidamente longos períodos de anos. Não nos esqueçamos
de que somos mortais e que nossa vida passa como uma sombra. Peçamos pela
prece, sem nenhuma preocupação, o pão para um dia, e mostremos que, segundo a
filosofia de Cristo, passamos a vida a nos preparar para a morte, protegendo a
alma dos cuidados com as coisas do corpo, a fim de que ela não seja acorrentada
ao corruptível desviando para a matéria a finalidade do desejo natural e não
aprenda a cupidez, que priva da abundância dos bens divinos.
Fujamos
portanto, na medida de nossas possibilidades, do amor à matéria, e livremos os
olhos de nosso intelecto, como de uma poeira, daquilo que liga a ela.
Contentemo-nos com as simples coisas que nos permitem subsistir, evitando
aquelas que dão prazer à nossa vida presente. E peçamos a Deus, ademais, como
nos foi ensinado, poder manter a alma livre de qualquer servidão, nunca
submetida a nenhuma coisa visível por causa do corpo. Mostremos que comemos
para viver, e não sejamos acusados de que vivemos para comer. Pois a primeira é
nitidamente própria de uma natureza dotada de razão, enquanto a outra é própria
de uma natureza desprovida de razão. Guardemos rigorosamente a oração,
mostrando por nossos próprios atos que estamos firmemente ligados apenas e tão
somente à vida no Espírito, e que é visivelmente para possuirmos esta vida no
Espírito que usamos nossa vida presente. É ainda por causa desta vida no
Espírito que nos contentamos de usar assim nossa vida presente, na medida em
que não nos é recusado confortá-la apenas pelo pão e de manter intacto seu bom
estado natural, na medida em que nos é permitido, não a fim de viver, mas a fim
de viver para Deus[46],
fazendo do corpo submetido à razão pelas virtudes um anjo da alma, e fazendo da
alma levada pela firmeza do bem um mensageiro de Deus, enfim, limitando este
pão a um dia apenas, sem ousar estender a demanda a um segundo dia, por causa
d’Aquele que nos deu a oração. Assim agindo conforme a potência da prece,
possamos, com efeito, avançar com toda pureza para as palavras seguintes, e
dizer:
“Perdoai as nossas dívidas assim como
perdoamos
os nossos devedores.[47]”
Aquele
que, conforme a primeira extensão da contemplação das palavras precedentes,
busca na oração, neste século cujo símbolo dissemos ser o “hoje”, o pão
incorruptível da sabedoria de que fomos privados inicialmente pela
transgressão, este, sabendo que o único prazer consiste em alcançar as coisas
divinas, cujo acesso é dado naturalmente por Deus e cuja guarda cabe à
resolução voluntária de quem as recebe, e sabendo também que a única dor é a
falta destas coisas divinas cuja perda é inspirada pelo diabo (mas cumprida por
quem abandona o divino pelo relaxamento da vontade sem proteger com seu amor
aquilo que deveria ser honrado por uma disposição desta vontade), este, cuja
resolução não se inclina para nada de visível e que, por causa disso, não está
submetido às coisas penosas que acontecem a seu corpo, este verdadeiramente
perdoa aqueles que pecam contra ele. Pois absolutamente ninguém pode lançar mão
sobre o bem a que ele se dedica com todo seu desejo, este bem que acreditamos
ser por natureza inalcançável. E ele próprio se torna para Deus um exemplo de
virtude, se podemos dizê-lo, convidando o Inimitável a imitá-lo quando diz:
“Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos nossos devedores”. Ele
pede a Deus que faça por ele o mesmo que ele faz por seu próximo. Como ele
perdoa as dívidas àqueles que pecaram contra ele, ele pede que suas próprias
dívidas lhe sejam perdoadas por Deus. Vale dizer que, como Deus em sua
impassibilidade perdoa aos que perdoam, também ele, permanecendo impassível naquilo
que lhe acontece, perdoa aos que o ofenderam, não permitindo a nenhuma
lembrança daquilo de penoso que lhe aconteceu se imprima em seu intelecto, a
fim de não ser acusado de romper a natureza por sua vontade, afastando-se de
outro homem, ele que também é homem. De fato, uma vez que a vontade está assim
unida à razão da natureza, a reconciliação de Deus com a natureza se faz
naturalmente. De outra maneira não é possível natureza revoltada contra si
mesma pela razão acolha a inexprimível compaixão divina. É sem dúvida por isso
que Deus quer que nos reconciliemos primeiro uns com os outros, não para
aprender conosco a se reconciliar com os pecadores e a consentir na quitação de
suas numerosas e terríveis faltas, mas a fim de nos purificar das paixões e mostrar
que a disposição dos que são perdoados corresponde à relação da graça. Ora, ele
quis dizer claramente que, se a vontade estiver unida à razão da natureza, a
escolha dos que cumprirem com sucesso esta união não estará em dissensão com
deus, uma vez que ele não deseja nada de irrazoável na razão da natureza, que é
também a lei natural e divina, quando o movimento da vontade se faz segundo
esta razão. E se não há nada de irrazoável na razão da natureza, é verossímil
que a vontade movida por esta razão terá sua atividade continuamente votada a
Deus, qual uma disposição efetiva suscitada pela graça d’Aquele que é bom por
natureza, para engendrar a virtude.
É
neste estado que encontra, ao rezar, aquele que pede o pão do conhecimento. E
depois dele, o que pede o pão de cada dia, apesar da natureza, achar-se-á no
mesmo estado: tendo perdoado as dívidas aos que lhe deviam, por saber-se mortal
por natureza, e aguardando na incerteza a cada dia aquilo que lhe permitirá
viver naturalmente, ele ultrapassa a natureza com sua vontade e, por si mesmo,
morre para o mundo, conforme as palavras: “Por sua causa somos levados à morte
todos os dias, somos considerados como cordeiros destinados à imolação[48]”.
É por isso que ele se reparte em libação para todos[49],
a fim de não levar consigo nenhuma marca da miséria do século presente quando
de sua passagem para a vida que não envelhece, e receber do Juiz do universo a
recompensa se suas obras anteriores aqui em baixo. Uma disposição pura voltada
para aqueles que os afligiram é necessária tanto a um como ao outro para o
benefício de ambos, por causa de tudo o que foi dito, mas sobretudo por causa
do poder das palavras que restam e que dizem o seguinte:
“Não nos deixeis cair em tentação, mas
livrai-nos do mal[50]”
Pois
a Escritura nos mostra com estas palavras que aquele que não perdoou
perfeitamente aos que o ofenderam e que não ofereceu a Deus seu coração puro de
toda tristeza, iluminado pela luz da reconciliação com o próximo, perderá a
graça dos bens pelos quais orou e, por um justo julgamento, será abandonado à
tentação do maligno, a fim de aprender a se purificar de suas faltas deixando
de condenar os outros. A tentação significa aqui a lei do pecado, que o
primeiro homem não carregava quando foi criado. O mal significa o diabo, que
misturou esta lei à natureza humana e que persuadiu o homem a transportar o
desejo de sua alma daquilo que lhe era permitido para o que era proibido e de
se voltar para a transgressão do mandamento divino, que lhe fez perder a
incorruptibilidade que a graça lhe havia concedido.
Também
podemos denominar “tentação” a tendência voluntária da alma para as paixões da
carne. E podemos chamar de “mal” o cumprimento ativo da tendência passional. E
o Juiz não libera de nenhum dos dois – nem da tentação, nem do mal – quem não
perdoou as dívidas aos seus devedores, ainda que este lhe peça na oração, mas,
ao contrário, ele permite que este homem seja manchado pela lei do pecado, e
abandona ao domínio do mal aquele cuja vontade é dura e cortante, pois ele
preferiu as paixões da infâmia semeadas pelo diabo à natureza criada por Deus.
Deus não o impede de tender voluntariamente para as paixões da carne e não o
livra do cumprimento ativo de sua tendência passional pois, ao considerar menos
a natureza do que as paixões inconsistentes, ele, em seu ardor pelas paixões,
ignora a razão da natureza. Sob a autoridade desta razão ele o fará conhecer
qual é a lei da natureza e qual a das paixões, cuja tirania é suscitada em nós
por uma escolha da vontade, mas não pela natureza. Ser-lhe-á necessário ainda
preservar a lei da natureza pelas atividades naturais, afastar da vontade o
ardor pelas paixões, salvaguardar pela razão a natureza que por si só é pura e
irrepreensível, fazer com que por sua vez a vontade se torne irrepreensível, sem
ódio e sem dissensão, e que acompanhe a natureza não se aplicando a nada que
não seja suscitado pela razão da natureza, com isto rejeitando todo ódio e toda
dissensão em relação a quem lhe é semelhante por natureza, a fim de que, ao
dizer esta oração ele seja atendido e receba de Deus uma dupla graça ao invés
de uma simples, a saber o perdão das faltas passadas e a proteção e redenção
das faltas futuras: Deus não permitirá que ele caia em tentação e não deixará o
maligno subjugá-lo, pelo simples fato de haver perdoado diligentemente as
dívidas ao seu próximo.
Portanto,
também nós, para retrocedermos um pouco retomando sucintamente o significado do
que foi dito, se quisermos nos livrar do mal e não cair em tentação,
acreditemos em Deus e perdoemos as dívidas a quem nos deve. Com efeito, foi
dito: “Se vocês não perdoarem aos homens seus pecados, tampouco o Pai celeste
lhes perdoará os seus[51]”.
Assim, não apenas receberemos o perdão das faltas que cometemos, como também
venceremos a lei do pecado, se não formos levados a experimentá-la. E
pisotearemos a serpente maligna, que engendrou esta lei e da qual pedimos ser
libertados. Pois Cristo, que venceu o mundo[52],
nos leva ao combate. Ele nos dá como armas as leis dos mandamentos e,
fazendo-nos rejeitar as paixões por intermédio destas leis, ele religa pelo
amor a natureza a ela mesma, ele conduz nosso desejo insaciavelmente para si
próprio que é o pão da vida, de sabedoria, de conhecimento e de justiça, e,
pelo cumprimento da vontade paterna, ele faz de nós adoradores semelhantes aos
anjos, a partir do momento em que refletiremos, imitando-o em nossa conduta de
vida, a beatitude celeste. Enfim, daí ele nos elevará para o Pai das luzes[53],
na suprema ascensão do divino, e nos fará comungar da natureza divina[54]
concedendo-nos parte na graça do Espírito, pela qual seremos consagrados filho
de Deus revestindo inteiramente, sem limite nem mancha, Aquele que por si só
opera esta graça e que é por natureza o Filho do Pai, de quem, por quem e em
quem temos e teremos o ser, o movimento e a vida[55].
Que
a finalidade da prece seja para nós o olhar voltado para este mistério da
deificação, a fim de que saibamos em lugar de quê a kénose do Filho único na carne nos tornou aquilo que somos e de
onde, e onde, pelo poder de sua mão que ama o homem, ele fez subir aqueles que
haviam tocado o fundo do universo, sobre o qual fôramos precipitados pelo peso
do pecado, para que assim possamos amar daqui em diante Aquele que, com tanta
sabedoria, nos preparou tal salvação. Com aquilo que fazemos, mostremos que a
oração está cumprida e manifestemos, proclamando-o, que Deus é verdadeiramente
Pai pela graça. E mostremos claramente que não temos o maligno como pai de
nossas vidas, o qual, por meio das paixões da infâmia, tenta sempre dominar
tiranicamente a natureza, e não tomemos contra nossa vontade a morte em lugar
da vida, uma vez que cada um dos adversários divide naturalmente com os que vão
contra eles. Um concede a vida eterna aos que o amam; outro, sugerindo que
cedamos voluntariamente às tentações, suscita a morte naqueles que dele se
aproximam.
Pois,
conforme as Escrituras, existem dois modos de tentação. Um leva ao prazer,
outro à dor; um é deliberado, outro involuntário. Um engendra o pecado e nos
foi ordenado pelo ensinamento do Senhor rezar para evitá-lo, ao dizer: “Não nos
deixeis cair em tentação[56]”,
e: “Vigiem e rezem, a fim de não cair em tentação[57]”.
O outro protege do pecado, invertendo por acréscimos involuntários de penas
nossa tendência a desejá-lo. Se o suportarmos com paciência, e sobretudo se não
nos ligarmos a ele pelas cadeias da malícia, ouviremos o apóstolo Tiago dizer
precisamente: “Considerem como uma alegria total, irmãos, cair diante de todas
as sortes de tentações, pois a prova de sua fé suscitará a paciência, e a paciência
suscitará a experiência. Quer a experiência traga consigo uma obra perfeita[58]”.
O maligno, em suas enganações, dedica-se aos dois tipos de tentação ao mesmo
tempo, à voluntária e à involuntária. Semeando e excitando a alma por meio dos
prazeres do corpo, ele trama a primeira para afastar nosso desejo do amor
divino. E, querendo alterar a natureza por meio da dor, ele solicita
falaciosamente a segunda, a fim de abrigar a alma abatida, enfraquecida pelas
penas, a emitir pensamentos que irão separá-la do Criador.
Mas
nós, uma vez que descobrimos os desígnios do maligno, afastemo-nos da tentação
voluntária, a fim de não separarmos nosso desejo do amor divino, e suportemos
nobremente, com paciência, a tentação involuntária que nos acontece com a
permissão de Deus a fim de tornar manifesto que preferimos à natureza o Criador
da natureza. E possamos todos, que invocamos o nome de nosso Senhor Jesus
Cristo[59],
sermos separados dos prazeres presentes do maligno e libertados das dores por
vir, pela participação na hipóstase real dos bens futuros[60],
que veremos no próprio Cristo nosso Senhor, que, com o Pai e o Espírito Santo é
glorificado por toda a criação. Amém.
Máximo o Confessor
[1] Salmo XIX, 10.
[2] I João
IV, 18.
[3] Salmo XXXIII, 11.
[4] Kénose:
vacuidade, despojamento de si.
[5] Cf. Colossenses III, 13.
[6] Cf. I Timóteo
II, 5.
[7] Cf. João XIV, 9.
[8] Cf. Efésios II, 18.
[9] Cf. Colossenses I, 20.
[10] Salmo XXXIV, 9.
[11] Cf. João VI, 48; Salmo LXXVII, 25.
[12] Colossenses II, 14.
[13] Cf. Efésios II, 14.
[14] Cf. João I, 1.
[15] Épiousious: conforme a derivação, pode
significar o pão “que vem” ou o pão “supra-essencial”, que é mais do que o ser
do mundo.
[16] Cf. Colossenses II, 3.
[17] Salmo LXXVI, 12.
[18] Jonas II, 10.
[19] I Samuel I, 10-11.
[20] II Crônicas XXXII, 20.
[21] Mateus VI, 9-10.
[22] Mateus VI, 9-10.
[23] Lucas XI, 2, de acordo com determinados
manuscritos.
[24] Cf. Efésios II, 21-22.
[25] Isaías LXVI, 2.
[26] Mateus V, 4.
[27] Mateus XXII, 30.
[28] Mateus XXV, 34.
[29] Mateus XXV, 21.
[30] I Tessalonicenses IV, 16-17.
[31] Mateus XI, 29.
[32] Gálatas III, 28.
[33] Cf. II Reis II.
[34] Cf. Atos XVII, 28.
[35] Gálatas III, 28; Colossenses III, 11.
[36] Para o conjunto
destas citações, cf. Colossenses III,
11 e Gálatas III, 28.
[37] Cf. II Coríntios VII, 1.
[38] Mateus VI, 10.
[39] Filipenses III, 20.
[40] Salmo LXXIII, 25
[41] João VI, 33.
[42] Mateus VI, 11.
[43] Cf. Gênese II, 9.
[44] Cf. Gênese III, 19.
[45] Mateus VI, 25. 31-33.
[46] Cf. Gálatas II, 19.
[48] Salmo XLIV, 23, citado em Romanos VIII, 36.
[49] Cf. Filipenses II, 17.
[50] Mateus VI,
13.
[51] Mateus VI, 15.
[52] Cf. João XVI, 33.
[53] Cf. Tiago I, 17.
[54] Cf. II Pedro I, 4.
[55] Cf. Atos
XVII, 28.
[56] Mateus VI,
13.
[57] Mateus XXVI, 11.
[58] Tiago I, 2-3; Romanos V, 4.
[59] Cf. Atos II, 21.
Fantástico!
ResponderExcluir