O MONAQUISMO PALESTINO
1.
GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DO MONAQUISMO PALESTINO
Os
primeiros monges palestinos, quando não viajavam por mar, devem ter se
utilizado das excelentes estradas imperiais romanas. Elas sulcavam o país ao
longo das planícies costeiras que ligavam o Egito à Síria e se estendiam de
Jerusalém para o interior. O peregrino que vinha de Alexandria dirigia-se então
para Pelusia e Gaza para voltar-se em seguida para Eleuterópolis, Jerusalém e
Belém , ou então continuava sua rota para Cesaréia, Tiro e Sídon. Cesaréia
continuava sendo a capital dos procuradores nos tempos de Tibério e Nero, sede
do governo militar sob a autoridade do Dux Palestinae. No domínio
eclesiástico, o bispo de Jerusalém ocupava uma posição privilegiada, embora
permanecesse submetido ao metropolita de Cesaréia. Somente no Concílio de
Calcedônia, em 451, o Patriarcado de Jerusalém foi reconhecido.
Com
suas importantes cidades, Belém e Jerusalém, duas regiões retêm nossa atenção,
por terem abrigado os dois grandes personagens fundadores do monaquismo
palestino: santo Hilário viveu nos arredores de Gaza, a cidade “amiga das
musas”, célebre por sua escola de sofistas que se tornou cristã; são Caritão
habitou a solidão do deserto da Judéia que se estende do vale do Jordão até o
mar Morto.
É
útil, para começarmos, lembrar as principais correntes ascéticas que precederam
o monaquismo egípcio e palestino e cujos vestígios encontram-se nas primeiras
produções da literatura monástica. A teoria de Platão referente à unificação da
alma que passa da diversidade à unidade e à beleza havia se espalhado por toda
a bacia do Mediterrâneo e encontrara seu fundamento bíblico em Fílon. Dentre as
filosofias da Antigüidade, o ideal pitagórico e o estoicismo de Epíteto eram
bastante conhecidos. As tradições judaica e judaico-cristã haviam desenvolvido
tendências ascéticas bem ilustradas no Testamento
dos doze patriarcas, e Alexandria era, ao lado de Atenas, um prestigioso
centro de reflexão e sabedoria.
No
início da literatura monástica encontram-se, ao lado dos textos sapienciais da Septuaginta, alguns escritos ascéticos
de Nag Hammadi[1].
Os ensinamentos de Silvano, as sentenças de Menandro e de Sextus, aparecem
tanto nas Cartas de Antônio quanto nos escritos de são Pacômio[2].
E Armand Veilleux mostrou que o gnosticismo teve um importante desenvolvimento
ao mesmo tempo e nos mesmos meios geográficos freqüentados por monges
discípulos de Pacômio.
Quando
o monaquismo cristão difundiu-se no Egito no início do século IV, ele foi
modelado com múltiplas correntes ascéticas que se unificavam em torno da
mensagem evangélica. Ele reflete incontestavelmente uma forma de inculturação[3]
cristã nova e forte. Esta traz em si a memória daqueles que professaram a fé e
dos mártires, vítimas de muitas perseguições. Assim, o monge egípcio, conduzido
ao deserto pelo Espírito, enfrenta aí os demônios seguindo o exemplo de Cristo.
Esta tradição rapidamente prolongou-se por toda a Palestina, reaparecendo sob
outras formas na Capadócia, na Mesopotâmia, por todo o Oriente cristão e no
Ocidente.
As
origens do monaquismo de Gaza foram registradas por são Jerônimo e santo
Epifânio. Santo Hilário (291-371), nasceu perto de Gaza uns vinte anos antes do
édito de Constantino em 313. No Egito, Antônio aproxima-se dos quarenta anos,
Pacômio e Macário o Grande, fundador de Sceta, são da mesma geração de Hilário,
todos nascidos antes do início do século IV. O local de nascimento de Hilário,
Thavatha, oito quilômetros a sudeste de Gaza, se tornará renomado com a
fundação do mosteiro do abade Seridos.
A Vita
Hilarionis, escrita por são Jerônimo por volta de 390, parece acelerar o
processo da história do protagonista: aos quinze anos, ele já freqüentava a
escola de Alexandria e passara algumas semanas com Antônio, cuja reputação já
era conhecida em todo o Baixo-Egito. Como seus pais haviam falecido, estimulado
por santo Antônio, ele distribuiu sua herança e estabeleceu-se na solidão, não
longe de sua cidade natal. Sua cabana estava construída próxima ao mar, onze
quilômetros a sudeste de Maiouma, o porto de Gaza. Santo Hilário irá morara aí
durante vinte anos, acolhendo outros irmãos numa colônia informal de eremitas.
Assinalemos a propósito que a família do historiador Sozomeno, que nasceu em
Betiléia, perto de Gaza, em 380, foi marcada pelo movimento monástico e, em
especial, por santo Hilário. Escrevendo mais tarde em Constantinopla em 440,
Sozomeno iria lembrar-se dos monges de Gaza e em particular do abade Silvano e
de seu grupo. Surge assim uma certa continuidade na tradição monástica da região[4].
Não longe dali, em Besanduce, perto de Eleuterópolis, um dos presumíveis
discípulos de Hilário, Epifânio, monge palestino de origem judaica, fundara uma
das primeiras comunidades. Quanto a Hilário, ele deixou definitivamente a
Palestina em 356, mesmo ano da morte de Antônio, para fugir ao afluxo de seus
visitantes. Depois de muitas etapas, encerrou sua vida em Chipre, aonde foi
enterrado. Um discípulo roubou seu corpo e o devolveu a Gaza.
Notemos
que são Jerônimo, que vivia em Belém, na maior concentração religiosa urbana da
Palestina, a dois passos dos mosteiros da Judéia, não faz nenhuma alusão a
essas realidades. E, no entanto, rezava uma tradição que homens, fugindo à
perseguição, haviam desenvolvido eremitérios, lugares de reunião de vida anacorética,
nas grutas de Calamon, perto do mar Morto. E havia também a lembrança de Elias,
de Eliseu, de são João Batista, além daquela referente às tentações do próprio
Cristo no deserto.
A
grande figura fundadora do monaquismo nesta região é a de santo Caritão,
seguido de santo Eutimo. O monte Wadi Khureitun conservou o nome do eremitério
de são Caritão que foi um mosteiro ativo até o século XIII.
A Vida de são Caritão foi redigida por um
monge anônimo do século VI. Confessor da fé na Ásia Menor sob Aureliano,
Caritão veio a Jerusalém em peregrinação e fundou seu primeiro mosteiro em Aïn
Fará próximo à única nascente do deserto, onze quilômetros a nordeste de
Jerusalém. Outras fundações lhe são creditadas a seguir, Douka e Pharan. Os
três lugares, bastante conhecidos, corroboram os dados da Vita Charitonis e fazem de Caritão um fundador incontestável do
monaquismo palestino. Depois de Caritão, vieram Eutimo e seus discípulos:
Passarion, que construiu um hospício para os pobres perto de seu cenóbio em
Jerusalém, Martyrios e Elias, monges e patriarcas, Gerásimo e seu discípulo
Kyriakos, Saba e Teodoro, e outros ainda. A realidade histórica é ainda mais
elaborada e mais complexa, integrando monges de diferentes culturas e de
formações algumas vezes opostas. Essas figuras centrais do deserto da Judéia
vinham da Ásia menor, da Síria e do Egito, tendo recebido previamente uma
sólida formação.
Como
escreve Leah Campagnano di Segni, o monaquismo que floresceu sob seu impulso e
sua direção certamente era mais devedor de outras influências do que das
tradições embrionárias e daquela de Caritão. Apesar destas reservas, Caritão
permanece sendo um arquétipo, um fundador. E a afirmação do autor da Vita reivindicando para seu protagonista
o papel de pai do monaquismo não é injustificada. A ligação genealógica
indicada pela hagiografia é bastante clara. Ele tinha sob seus olhos os
mosteiros do patriarcado de Jerusalém que estavam sob a condução indiscutível
de são Abas e de são Teodoro e dos higoumenos que os sucederam com o título de
arquimandritas dos monges.
Cirilo
de Scythopolis havia mostrado que são Abas e são Teodoro dependiam do
ensinamento de Eutimo e notado que este se deixava guiar em sua atividade de
fundador do monaquismo pelo exemplo do eremitério de Pharan aonde ele havia
passado seus primeiros anos de vida anacorética.. O autor anônimo da Vita Charitonis completa a cadeia das
tradições fazendo do fundador de Pharan e dos dois outros lugares monásticos o
pai dos centros mais antigos do deserto da Judéia.
O
cristianismo vai se propagar na Palestina a partir do século IV, com o apoio
dos imperadores cristãos, com o afluxo de peregrinos aos lugares santos e com a
aparição progressiva dos primeiros mosteiros urbanos. Novos mosteiros aparecem
também no deserto[5].
O movimento acentua-se ainda nos séculos V e VI no deserto da Judéia e na
região de Gaza. Dois aspectos irão chamar nossa atenção: Gaza, lugar de
passagem, e Gaza, lugar de acolhida.
GAZA, LUGAR DE PASSAGEM
Sobretudo
em seu último quarto, o século IV verá numerosos viajantes vindos da Palestina
prolongar seu périplo até o Baixo Egito com a intenção de visitar os lugares
monásticos e neles encontrar os Padres do monaquismo. São Jerônimo ensina que
Rufino partiu para Nitria para encontrar Macário. Rufino permaneceu seis anos
em Alexandria junto a seu amigo Dídimo o Cego e prolongou sua viagem, chegando
até Pispir. Por volta de 385, o próprio são Jerônimo fez a viagem a Alexandria
e Nitria. Paládio esteve com são Menos, em Nitria e nas Kellia. Evagro, originário
do Ponto, discípulo de são Basílio e ordenado diácono por são Gregório de
Nazianze, fugiu de Constantinopla, permaneceu algum tempo na Palestina, e
depois, sob o aconselhamento de Melânia, foi se estabelecer nas Kellia no Egito
até sua morte em 399. Germano e Cassiano, residindo em Belém, também tomaram a
rota do Egito. Estes poucos exemplos testemunham o quanto as últimas décadas do
século constituem a idade de ouro de Nitria e de Sceta.
A História lausíaca, escrita por Paládio,
e dedicada a Lausus, o capelão do imperador Teodósio I, apresenta as grandes
figuras monásticas deste período de prosperidade das comunidades
semi-anacoréticas das Kellia e de Nitria. Quando Paládio organizou seu relato,
por volta de 419-420, os conflitos teológicos já haviam estourado em
Alexandria. Depois da famosa carta contra o antropomorfismo, o patriarca
Teófilo condenou o origenismo no Sínodo de Alexandria em 400. Trezentos monges,
junto com alguns êmulos de Orígenes, fugiram de Nitria para Jerusalém,
Scythopolis e Constantinopla.
As
primeiras devastações de Sceta pelos Maziques situam-se perto de 407. O
movimento dos monges do Baixo-Egito para a Palestina, que havia diminuído com a
morte dos dois Macário, acentua-se então resolutamente. Os monges egípcios
traçam cada vez mais os caminhos, seja para o mar Vermelho, seja para a parte
oriental do Sinai e a Palestina. No início do século V, o monaquismo palestino
é chamado para um grande vôo.
GAZA, LUGAR DE ACOLHIDA MONÁSTICA
A
região de Gaza, de Thavatha até Maiouma, ao longo da costa, torna-se uma
encruzilhada aonde se encontram os buscadores de Deus vindos do norte e do sul,
muitas vezes pela rota de Jerusalém: o abade Silvano e seus onze discípulos
deixaram Sceta, instalaram-se por algum tempo no Sinai, depois se estabeleceram
na região de Gaza, perto de Gérara, no Ouadi Ghazzeh. Dentre eles, distingue-se
um mestre espiritual, Zenon o Profeta, que terá por discípulo um príncipe
georgiano, Nabarnugi, mais conhecido pelo nome de Pierre de Ibéria, que veio a
falecer perto de Gaza em 488; o próprio Zenon faleceu recluso em 451, ano do
Concílio de Calcedônia. Outro monge célebre na região foi Isaías de Gaza;
segundo a biografia escrita por Zacarias o Escolástico, Isaías era um monge
egípcio que vivia em um mosteiro de cenobitas, e que se retirou para a solidão
de Sceta antes de avançar para o sul da Palestina, aonde morreu recluso em 491;
ele escreveu um ascéticon dentro da
mais pura tradição dos Padres egípcios.
Sob
os imperadores Justino e Justiniano, as igrejas e os mosteiros da Palestina
irão florescer. Na região de Gaza, o mosteiro do abade Seridos conheceu um
período de maturidade com as grandes figuras de Barsanulfo, de João o Profeta,
de Dositeu e Doroteu. A Correspondência
reflete admiravelmente a maturidade religiosa que reinava neste mosteiro; ela
também assume o melhor das tradições monásticas egípcias, sem esquecer os
escritos dos grandes Capadócios e a literatura monástica da época: os Padres do
Egito, Isaías, Evagro, a História dos
monges do Egito, a História lausíaca
de Paládio, a Vida de Malchus de são
Jerônimo e os comentários de são João Crisóstomo sobre são Mateus.
Na
região de Gaza, como em outros lugares na Palestina, e cada vez mais, diversas
influências vindas do Egito e do Oriente, sobretudo da Ásia Menor,
entrecruzam-se, dando ao monaquismo palestino sua fisionomia própria. Uma
questão das mais interessantes em relação ao nosso propósito foi levantada por
dom L. Regnault: “Diante da difusão maciça de apoftegmas na Palestina a partir
dos séculos V e VI, e a presença na coleção alfabético-anônima de quase
sessenta peças referentes aos monges palestinos de origem ou de adoção, podemos
nos perguntar se as duas grandes coletâneas alfabético-anônima e sistemática
não foram constituídas na Palestina.”
A
presença do abade Silvano e de seus discípulos colocara em evidência o ambiente
de Gaza; ela também revelou as relações que ligavam os meios monásticos com o
dos sofistas cristãos de Gaza refratários ao Concílio de Calcedônia. O Ascéticon de Isaías, já assinalado, é
igualmente um elemento importante nessa tradição. Da mesma forma, a confluência
de numerosos testemunhos relacionados com as tradições monásticas do
Baixo-Egito, o uso abundante da tradição apoftegmática nos escritos da região,
fazem de Gaza um centro privilegiado desta reunião de Padres de sorte que esta
região convém perfeitamente à hipótese proposta por dom Regnault.
Mais
tarde, outro compilador anônimo recolherá preciosamente a Correspondência de Barsanulfo e de João o Profeta, prolongando
assim a veneração pelas Palavras dos Antigos e apresentando a tradição dos
Padres do Egito sob uma nova luz, espelho da vida cotidiana dos solitários de
Gaza, testemunho tão único quanto indiscreto, do estado de alma daqueles que
vinham a consultar os dois sábios de Gaza no século VI.
As
controversas origenistas que haviam conhecido um tempo de calmaria durante o
século V, retornaram com força nos primeiros anos do século VI, e a
Correspondência de Barsanulfo lembra com conhecimento de causa o quanto os
escritos dos Padres são “úteis à alma”, quando os separamos das especulações
gnósticas sobre a pré-existência da alma, a apocatástase e a cristologia.
O
equilíbrio e a sabedoria do ensinamento dos Padres de Gaza refletem de modo
incontestável um ápice da literatura monástica da Palestina. Seu discípulo
Doroteu fundou por sua vez seu próprio mosteiro em Gaza e Maiouma, conforme
afirma João Moschus. Isto se passa depois da morte de João o Profeta e a
reclusão definitiva de Barsanulfo, em meados do século VI. As Didascalias de Doroteu de Gaza situam as
bases da ascese cristã e monástica dentro da perspectiva da história da
salvação; elas serão lidas por toda a região e provavelmente também no Sinai.
Alguns séculos mais tarde, Teodoro Studita fará o elogio de Doroteu defendendo
vigorosamente a ortodoxia deste último em seu testamento espiritual.
Na
segunda metade do século VI, depois do Concílio de Constantinopla de 553,
Cirilo de Scythopolis põe-se a escrever numerosas biografias monásticas
referentes a algumas figuras importantes, dentre as quais são Eutimo, são
Sabas, João o Hesiquiasta, Kyriakos e outros.
João
Moschus, no início do século VII, apresenta-se como um dos últimos testemunhos
desta tradição monástica. Ele vai ao Egito, visita numerosos lugares, e em sua
obra O terreno espiritual, retraça
com precisão os lugares geográficos do deserto da Judéia e descreve, com
ingenuidade desconcertante, a vida dos monges que encontrou. Mas as páginas da
história logo se tornarão sombrias para o cristianismo e o monaquismo palestino.
Três séculos após o édito de Constantino, os Persas invadiram Jerusalém, em
614, e entregaram a cidade ao massacre por três dias; duas décadas depois, sob
o novo patriarca Sofrônio, a dominação árabe iria abrir um outro período na
história palestina.
2. FONTES E CRONOLOGIA
A Correspondência apresentada é obra de
dois santos monges reclusos, Barsanulfo e João o Profeta, que viveram na região
de Gaza no início do século VI. Do conjunto de documentos examinados, é
precisamente nas informações contidas na coletânea de cartas que se deve dar
mais crédito. Referindo-se a tradições mais antigas, ela contém, com efeito, os
dados autobiográficos de seus autores, constituindo um testemunho de primeira
mão. Outras fontes podem ser mencionadas, a saber:
A Vida
de Dositeu – Esta Vida, conhecida a partir dos trabalhos
do padre Brum e de dom Regnault, é uma fonte importante para nosso conhecimento
do cenobium do abade Seridos. A
enfermaria foi construída aí por Doroteu sob o aconselhamento de Barsanulfo e
João. O conteúdo das cartas 220 a 223 endereçadas provavelmente a Dositeu,
sofrendo de tísica e próximo da morte, deve ser colocado em paralelo com este
documento. Este Dositeu foi noviço no tempo em que Doroteu era mestre dos
noviços.
As Didascalias
do abade Doroteu – As Didascalias do abade Doroteu são uma
fonte de primeira, pois este abade foi formado por Barsanulfo e João, tendo a
seguir fundado seu próprio mosteiro, onde ele as escreveu. Muitas indicações
sobre a estadia de Doroteu no cenobium
de Seridos e sobre suas relações com os dois mestres encontram-se aí.
O prefácio anônimo – o prefácio anônimo que precede as Didascalias
repousa sobre uma tradição manuscrita menos antiga, como o Vaticanus Graecus 663 do século XV e distingue dois Doroteu e dois
Barsanulfo: ele defende a ortodoxia dos personagens que nos ocupam, enquanto
que taxa os outros dois de “acéfalos entre os acéfalos (...) anatematizados por
são Sofrônio em seu libelo[6]”.
Três argumentos são fornecidos para defender a ortodoxia dos Padres de Gaza: o
testemunho do hierarca na ocasião, o santo patriarca Taraise de Constantinopla
(+806), e de outros personagens dignos de fé, gregos e orientais; a
representação de Barsanulfo sobre a toalha do altar na Grande Igreja (Hagia
Sophia em Constantinopla) ao lado dos santos Antônio, Ephrém e outros; e o
testemunho do próprio Teodoro Studita.
Outros testemunhos literários – outros testemunhos literários nos ensinam sobre a
existência do cenobium de Seridos em
Gaza, sobre as vidas de Barsanulfo e João o Profeta e nos fornecem precisões
cronológicas úteis:
Leôncio de Nápoles – na vida do patriarca de Alexandria, São João o Esmoler, que este escreve no
século VII, aparece menção ao cenóbio do abade Seridos.
Evagro o Escolástico – em sua História
Eclesiástica, consagrou um capítulo de sua obra a Barsanulfo. Vailhé[7]
nota a propósito: “No momento em que Evagro escrevia, ou seja, em 593,
Barsanulfo havia morrido há mais de cinqüenta anos, o que nos leva ao ano 540
aproximadamente, data provável da reclusão definitiva de Barsanulfo e de sua
morte”. A tradição popular assegurava que Barsanulfo continuava vivo. Para
desestimular os boatos, conforme diz Vailhé apoiado nos escritos de Evagro o
Escolástico, o patriarca de Jerusalém, Eustochios, ordenou já no início de seu
patriarcado, em 552 ou 553, a destruição da cela do recluso, mas uma chama
ardente pôs os operários em fuga.
João Mochus – em seu O campo
espiritual, menciona a partida de Doroteu de Gaza para o cenóbio do abade
Seridos e nos mostra s relações de Doroteu com Zózimo, o autor das Entrevistas.
Menaias, sinaxários e martiriológios – a veneração por são Barsanulfo em Constantinopla,
desde o século X, sobressai com a presença de seu nome em certos manuscritos do
Sinaxário, livro litúrgico que reúne
breves elogios a cada um dos santos venerados em cada dia; estas poucas linhas
são lidas no ofício das matinais (orthros),
entre a sexta e a sétima odes. Em particular, a presença do nome de Barsanulfo
nos dois manuscritos que são os principais testemunhos da recensão (exame
crítico) do Sinaxário realizado em
Constantinopla no final do reinado do imperador Constantino IX Porfirogeneta
atesta sem hesitação que ele era venerado como santo na Grande Igreja (Hagia
Sophia) na data de 6 de fevereiro, já desde o século X; este ponto é confirmado
pela menção a são Barsanulfo em outro testemunho antigo do sinaxário grego[8].
Mas a ausência do nome de Barsanulfo em várias outras recensões do sinaxário
mostra que seu culto não estava estabelecido em toda parte.
Os
documentos georgianos parecem também mostrar que seu culto espalhou-se a partir
de Constantinopla: com efeito, o calendário palestino-georgiano copiado por
João Zózimo na segunda metade do século X, que reflete a aplicação
hierossolomita, não menciona seu nome, apesar do manuscrito conter suas obras.
Entretanto, algumas dezenas de anos mais tarde, um livro litúrgico georgiano (menaia) copiado no mosteiro da Santa
Cruz em Jerusalém em meados do século XI, anuncia em 6 de fevereiro a memória
“de são Barsanulfo, de seu discípulo João e de são Doroteu”. Sabemos que este
manuscrito integrou maciçamente as festas bizantinas, chegando a substituir os
antigos usos de Jerusalém; esta comemoração é um indício a mais. Sua forma
mesmo, acrescentando os nomes de João e Doroteu à memória de Barsanulfo,
levanta suspeitas: tudo se passa como se algum monge de Jerusalém, leitor
assíduo dos veneráveis ascetas, tendo encontrado em um exemplar vindo de
Constantinopla o nome de Barsanulfo ausente da regra palestina, considerou boa
providência acrescentá-lo junto com seus dois discípulos; se esta hipótese é
exata, a menção de Barsanulfo no manuscrito “P” é de origem
constantinopolitana.
Outro
indício da origem constantinopolitana deste culto pode estar na ausência do
nome de Barsanulfo nos martiriológios ítalo-gregos, ainda que, como veremos,
uma Vita Barsanuphii faça alusão a um
traslado das relíquias do santo para o sul da Itália.
Em
todo caso, foi apenas com o Synaxaristes
de são Nicodemo o Hagiorita que Barsanulfo será gratificado com uma curta nota,
pois os sinaxários de modo geral não lhe consagravam mais do que uma única
linha[9].
Mas Nicodemo, como sabemos, pesquisou diversos elementos, e notadamente a Correspondência que apresentamos aqui,
cuja primeira edição foi feita por ele. Segue-se que, salvo a descoberta de uma
fonte desconhecida, seu testemunho não tem muito mais valor histórico daquele
que podemos nós deduzir da mesma leitura. Em todo caso, são Nicodemo despertou
o interesse pelos nossos santos: os editores seguintes desta coletânea moderna
de Vidas de santos vão se inspirar ainda mais daqui para frente com a
Correspondência dos santos monges; outros elementos biográficos serão retomados
nas adaptações recentes do Sinaxário [10]
publicadas pela Igreja ortodoxa. O abade Seridos é venerado aí em 13 de Agosto,
junto com são Doroteu.
U.
Zanetti, s.j., descobriu recentemente que o Menaia
georgiano, estudado por G. Garitte, contém um ofício a são Barsanulfo nas
folhas 312 e 322/323. Este texto parece ser ainda inédito. O mosteiro russo de
são Panteleimon no monte Athos, possui um ofício (akolouthia) de são Barsanulfo e de seu amigo João. Isto nos lembra
o quanto são Barsanulfo era honrado em Constantinopla já nos séculos IX e X,
segundo o testemunho pessoal de são Teodoro Studita. Isto mais uma vez confirma
a origem constantinopolitana de seu culto.
Quanto
ao martiriológio romano, um documento redigido no século XVI e que reflete
apenas a tradição dos martiriológios históricos da Idade Média, encontramos sob
a data de 11 de junho: “apud gazam
palestinae sancti Barsanuphii anachoretae sub Justiniano imperatore”.
Vita Barsanuphii – uma Vita
foi escrita por um clérigo da igreja de Oria, não longe de Brindisi na Itália
do sul, por volta do final do século XII e início do XIII. Alguns extratos
foram publicados nas Acta Santorum.
As informações que parecem mais autênticas nos são conhecidas a partir de
outras fontes; estes textos aludem também a uma translação das relíquias de
Barsanulfo para a Itália no século IX. Estas parecem ter sido esquecidas
durante a invasão dos sarracenos e foram encontradas em 1170. A tradição
reporta que o crânio do “bem-aventurado Barsanulfo” foi transportado por via
marítima com grande veneração. Esta preciosa relíquia foi confiada ao bispo
Teodoro de Oria homem famoso por sua santidade em vida e sua doutrina. Ele foi
escolhido dentre os bispos da região compreendida entre o monte Gargano e o
cabo de Salento. Assim, a cidade de Oria foi sempre protegida e o perigo da
guerra passou longe daí. Em Oria, são Barsanulfo é festejado em 6 de fevereiro
conforme o calendário local. Ainda hoje, segundo a tradição, algumas relíquias
do santo continuam conservadas na catedral. Também um fragmento, de grande
valor, nos fala sobre a origem da família de Doroteu em Gaza.
Destes
documentos, repetimos, os dados históricos e cronológicos mais importantes
provêm da Correspondência. Senão
vejamos, acompanhando as cartas:
-
as cartas 252 a 338 fornecem ensinamentos preciosos sobre as etapas da vida
monástica de Doroteu de Gaza que estão relacionados às Didascalias publicadas e comentadas nas Fontes cristãs comentadas por dom Regnault. É preciso acrescentar a
este conjunto que fornece elementos de cronologia relativa, as cartas 220 a
223, endereçadas provavelmente a Dositeu, de quem, aliás, possuímos uma Vita;
-
as cartas 568-569 aludem à peste que se espalhou pelo império Romano entre os
anos de 542 e 543;
-
as cartas 600 a 607 tratam de questões referentes ao origenismo. Elas devem ser
vistas em conjunto com a história eclesiástica e com a dos monges origenistas
da Palestina no século VI. Os primeiros incidentes aconteceram em 514, ano em
que Nonnos recrutou seus adeptos; as discussões prosseguiram até o concílio
ecumênico de Constantinopla em 553. As cartas que se referem a estas discussões
situam-se provavelmente logo antes do édito do imperador Justiniano de 543, que
condenou o origenismo em diversas passagens do Peri Archôn. João o Profeta escreveu muitas cartas referindo-se às
acaloradas discussões origenistas dos anos 537-540; por sua vez, Barsanulfo
ainda ditava suas cartas entre os anos 542-543. Na impossibilidade de nos
apoiarmos sobre dados mais precisos, pensamos poder situar entre os anos de
543-544 as mudanças que o mosteiro sofreu após as mortes do abade Seridos e de
João o Profeta, a reclusão total de Barsanulfo e a partida de Doroteu. A
condenação de Orígenes, Dídimo e Evagro no V Concílio data de 553;
-
a carta 792 trata da “luta pela fé”; um bispo foi enviado a Barsanulfo e João
de Gaza pelo imperador para pedir-lhes aconselhamento;
-
as cartas 820 e 821 relatam que alguns maniqueus tomaram o caminho de Jerusalém
para serem batizados em outro lugar. João o Profeta levou a coisa a sério. A
carta 821 faz menção a uma ordenação imperial contra os pagãos e os cismáticos,
promulgada pelo imperador Justiniano em 528. As cartas dos Padres de Gaza eram
provavelmente endereçadas ao Patriarca Pedro de Jerusalém;
-
a carta 835 relata que importantes personagens de uma cidade pretendiam impor
uma taxa aos navios que chegavam ao cais; esta taxa deveria ser confiada à
Igreja. João de Gaza estima que o assunto não é de sua alçada.
Muitas
cartas, compreendidas entre as de números 570 e 599, fornecem numerosas
indicações referentes às vidas de João o Profeta, Seridos e de seu sucessor Elién.
Face
a esses dados, parece prudente levar em conta a distribuição das cartas na
coleção para que o leitor possa sempre se referir aos textos nos quais nos
apoiamos. Neste sentido, a apresentação dos volumes e dos comentários está
ordenada em três fases segundo a própria ordem das perguntas e das respostas:
-
correspondência essencialmente endereçada aos solitários: cartas de 1 a 224;
-
correspondência dirigida a irmãos, cenobitas e sobretudo a Doroteu de Gaza:
cartas de 225 a 616;
-
correspondência dirigida principalmente a leigos cristãos e a bispos: cartas de
617 a 850.
3. VIDAS DOS SANTOS
BARSANULFO E JOÃO DE GAZA
Por
sua situação privilegiada às margens das areias entre o Egito, a Palestina e a
Síria, a região de Gaza, próxima do mar, foi chamada, no final do século IV, a
tornar-se uma terra de acolhida para muitas comunidades monásticas.
O
abade Seridos veio estabelecer-se perto de Thavatha, lugar ilustre pelo
nascimento de Hilário, um dos fundadores do monaquismo palestino. Isto foi nos
últimos anos do imperador Anastácio que morreu em 518, ou, mais provavelmente,
no início do reinado de Justino. O período de florescimento do cenobium do abade Seridos cobre ao menos
vinte anos, marcados pelo édito de Justiniano sobre os pagãos em 528 e a grande
epidemia de peste dos anos 542-543.
O
local escolhido não era apenas favorável à implantação de uma comunidade de
cenobitas, mas ainda oferecia possibilidades para uma vida solitária aos moges
desejosos de levar uma vida de kelliota
ou de hesiquiasta, ou seja, uma vida reclusa. Não longe dali, na direção
sudoeste, corria o rio de Gaza que, nos períodos de cheia, tornava-se perigoso
para quem estivesse do lado de Ascalon. O mar, a no máximo um quilômetro do cenobium, era um ponto de comunicação
com o Egito, berço do monaquismo cristão. A Correspondência evoca uma viagem de
barco feita por João de Beersheba ao Egito.
Várias
tentativas foram feitas para encontrar o mosteiro do abade Seridos. Em uma
carta ao abade Brun, F. M. Abel identifica o estabelecimento do abade Seridos
com o Magdel Thoutha de Pedro o Ibero: “Um palmeiral com algumas ruínas,
escreve ele, repovoada por algumas famílias parabes, ao sul do wâdi Ghazzeh, conservou o antigo nome
sob a forma Khirbet Oumm ET-Toût. Perto dali, o túmulo do sheikh esh-Shobâni
marca provavelmente sobre uma iminência arenosa o lugar do mosteiro de Seridos.
Nenhuma escavação foi feita nestes lugares...”
O
prólogo da Correspondência de
Barsanulfo e de João o Profeta é precedido por um título que varia conforme o manuscrito.
Duas tradições aparecem. A primeira, sustentada por manuscritos excelentes,
fornece os nomes dos dois anciãos Barsanulfo e João, reclusos no cenobium nas cercanias de Gaza. Suas
respostas eram transmitidas aos seus consultantes por intermédio do superior, o
abade Seridos que era também o servidor dos dois anacoretas. A segunda tradição
manuscrita informa que João era discípulo e companheiro de ascese (synasketes) de Barsanulfo. Apesar de
trazer alguns dados sobre o gênero literário e os destinatários das cartas, o
prólogo não traz nenhuma outra informação útil sobre a vida dos Padres de Gaza.
A VIDA DE SÃO BARSANULFO
Ela
se inscreve em primeiro lugar na fascinação do silêncio que habita o deserto.
Calcando passo a passo os caminhos da solidão, habitado por Aquele que conduz
pela Palavra, Barsanulfo foi o único dos Padres de Gaza a receber o título de
“venerável ancião”. O epíteto geron,
Ancião, não tem nenhuma relação com o patronímico semítico; trata-se de uma
denominação copta bem conhecida na tradição dos Padres do Egito. É chamado de
Ancião, o Velho que se distinguiu pelo conjunto de sua vida ou pelo exercício
de uma virtude em especial. No dizer de Paládio, Antônio, quando ainda vivo, já
era chamado simplesmente de “o Grande”.
Barsanulfo
é o “grande Ancião” de Gaza. De origem egípcia, ele já era, ao que parece,
célebre nos meios monásticos no momento em que aceitou estabelecer-se no cenobium do abade Seridos. Outros
fizeram barulho para acolher os dois Padres em seus mosteiros; Seridos permaneceu
quieto e obteve de Deus esta graça.
Toda
sua vida é à imagem de sua cela e de sua reclusão: um espaço habitado pelo
silêncio à escuta da Palavra divina, entre o combate e a oração; esta é a fonte
da qual Barsanulfo extraiu o segredo de suas respostas aos que o consultavam.
Como
o declara o próprio Grande Ancião na primeira carta que possuímos dele, é sobre
o impulso do Espírito Santo que ele ditava a Seridos, abade do cenobium, as respostas às questões
essenciais que surgiam no correr dos dias na vida de seus correspondentes,
solitários e cenobitas, ou ainda às perguntas feitas por bispos e leigos
cristãos diante de decisões que teriam que tomar.
São
Barsanulfo é um homem de Deus, testemunho, por sua vida e seu ensinamento, da
grande tradição cristã oriental surgida a partir de Antônio e dos Padres dos
desertos egípcios. Sua Correspondência
testemunha um enorme respeito pelos homens que ele encontra. Como já
explicamos, sua pedagogia adapta-se a cada um dos seus correspondentes, em
mesma situação que ele, com grande cortesia e liberdade espiritual. Ela está
fundamentada nas rupturas necessárias para fazer crescer o homem interior, no
caráter importante mas relativo da ascese diante da salvação dada por Jesus
Cristo e a misericórdia do Pai, no sentido da ação de graças e da alegria
presente nas suas palavras que apontavam para o retorno de Cristo e naquilo que
ele chamava de “a grande apresentação final”.
Se
for preciso extrair um traço essencial na história desta vida feita de silêncio
que encerra e carrega as confidências de seus correspondentes, será um que
Evagro exprime em uma fórmula cujo segredo ele conhece: “Unido a todos e
separado de todos”. Seguindo as pegadas dos grandes solitários do Egito e da
região de Gaza, Barsanulfo resiste em receber visitantes, como o monge que
insistia em vê-lo e que recebeu a resposta de Arsênio: “Se abro para você,
abrirei a todos”. Alguns monges chegaram a colocar em dúvida sua existência, e
acreditavam tratar-se de um subterfúgio de Seridos para afirmar sua autoridade.
Então, magnanimamente, o Grande Ancião recebeu como exceção o irmão, junto com
os que estavam com ele, e lavou-lhes os pés. O irmão Teodoro que era um dos
céticos recebeu esta ablução e confessou sua própria incredulidade. A outro
irmão que duvidava de sua existência, ele permitiu permanecer em uma cela
vizinha à sua para ouvi-lo ditar uma carta ao abade Seridos. Visitando as Kellia, pudemos ver as longas ânforas
com as extremidades quebradas que permitiam comunicar entre as celas sem ser
visto. Isto permitia ao discípulo ou ao servidor de um solitário preveni-lo da
visita de um hóspede.
Ao
longo da Correspondência, o leitor descobrirá o lugar incomparável que ocupam o
Grande Ancião e João o Profeta na vida do cenobium.
Foi Barsanulfo, por exemplo, que consentiu na entrada de Dositeu no mosteiro,
assim como já havia recebido Doroteu; foram os Padres de Gaza que confiaram a
este último a obrigação de construir uma enfermaria e ocupar-se dela. O leitor
poderá seguir com interesse como João de Beersheba, responsável por uma
comunidade, engajou-se pouco a pouco na vida eremítica e como ele entrou para o
pequeno círculo de amigos de Barsanulfo; ele descobrirá por dentro a vida
desses monges e desses reclusos e encontrará nas cartas um espelho incomparável
da vida e dos combates dos monges no século VI.
Raramente
uma correspondência revelou tanto o coração humano nas suas questões e nos seus
combates essenciais. No meio das trocas epistolares, muitos estados de alma
transparecem, deixando aflorar o inconsciente, os fantasmas, os sonhos, as
lutas com este príncipe pervertido que é o demônio, os discernimentos que devem
ser realizados, a presença salvífica de Jesus, a misericórdia do Pai e a graça
do Espírito Santo.
Com
um dedilhado incomparável, marca de uma grande humanidade, Barsanulfo apaga-se
por detrás da palavra de Deus, indicando firmemente o caminho a seguir. Jamais
a lei o faz sobrepor-se ao Espírito, os princípios à pessoa que ele guia. Ele
recebe um dom de vidência e de profecia, e chega até a perdoar à distância os
pecados de seus consultantes como podemos ver pela correspondência endereçada a
André, o Solitário.
Que
sabemos nós do passado de Barsanulfo e de sua juventude? Suas cartas raramente
evocam algumas poucas lembranças. Mas quase nada possuímos de dados precisos
sobre sua família ou sua formação. O próprio Barsanulfo nos diz que esteve
doente muitas vezes e que, mesmo gravemente enfermo, jamais deixou de lado o
trabalho manual. Algumas vezes ele sequer suportava qualquer alimento e vomitava
noite após noite. Depois, à custa de lutar, ele superou esta prova. Em sua
juventude, confessou certa vez a Doroteu, ele foi tentado pelo demônio da
luxúria.
A
João de Beersheba ele confia: “Se eu lhe descrevesse as provas que suportei, eu
lhe afirmo, seus ouvidos não suportariam, assim como quaisquer outros ouvidos
de nossa época.” Suas confidências são de certa forma arrancadas de si mesmo,
do silêncio que envolve sua vida; elas são partilhadas com seu correspondentes
para ajudá-lo a suportar as provações que ele atravessa.
Como
irá terminar esta vida consagrada ao silêncio e à oração, mas cuja irradiação
expandiu-se até Constantinopla? Em resposta ao apelo ouvido e, fiel a esta
ruptura essencial que paradoxalmente o colocara em relação com tantas vidas
humanas, o Grande Ancião parece haver rompido finalmente com todos os laços
exteriores para estabelecer-se numa reclusão definitiva. Assim é que depois das
mortes do abade Seridos e de seu amigo João o Profeta, ninguém mais ouviu falar
dele.
Não
podemos aqui mais do que citar as próprias palavras de Barsanulfo dirigidas a
um irmão que se afligia com a proximidade de sua morte: “Eu não os deixarei
órfãos, disse ele... mas seja eu considerado digno de conduzi-los ao meu Deus,
a ele que quer sempre a salvação de todos, e dizer-lhe: Eis-me aqui, eu e os
pequeninos que me destes; guardai-os em teu nome; que tua direita os proteja.
Conduzi-os até o porto de tua vontade e escreve seus nomes em teu livro... Pai,
concede-me que aonde eu estiver, estejam também meus pequeninos, na vida
inefável”.
Ao
venerá-lo sobre seus altares, a própria Igreja confirma que são Barsanulfo, com
a graça de Deus, está inscrito no Livro da Vida e que aqueles que lhe foram
confiados o acompanham na vida inefável.
A VIDA DE SÃO JOÃO O PROFETA
João
é o companheiro e o discípulo de são Barsanulfo. Aos olhos dos monges de Gaza,
sua comunhão era tão grande que se Barsanulfo é chamado de “Grande Ancião”,
toda a Correspondência chama João o Profeta de “o outro Ancião”[11].
Como Barsanulfo, ele viveu solitário e recluso, comunicando-se com seu mestre
por correspondência. Sua doutrina situa-se na linha exata da de Barsanulfo.
Um
monge, inquieto com a aproximação da morte do Grande Ancião, interrogou-o junto
com outros irmãos a respeito de João o Profeta, recebendo esta resposta: “A
respeito da minha de meu filho querido, humilde e obediente, que é um comigo e
que renunciou completamente até a morte a todas as suas vontades, que posso
dizer? O Senhor disse: Quem me viu, viu ao Pai; e ele disse do discípulo que
também ele pode, ‘como seu mestre’. Quem tiver ouvidos que ouça!”
Quem
interrogasse João o Profeta não deveria consultar Barsanulfo que respondia
imediatamente ao consulente que ele se mantivesse dentro do que lhe dissera
João e, reciprocamente, quem interrogasse João o Profeta, tendo já recebido uma
resposta de Barsanulfo, seria despachado nos mesmos termos. Esta comunhão entre
os dois anacoretas supõe que eles conheciam muito bem um ao outro e que o abade
Seridos os mantinha a par das respostas de um e outro, pois o abade tomava nota
e transmitia as cartas dos dois sábios de Gaza.
O
título de profeta que lhe foi atribuído, explica a Vida de Dositeu, veio-lhe por seu carisma de discernimento. O
carisma profético apareceu entre os primeiros monges do Egito. Santo Antônio o
Grande descrevia eventos que aconteciam longe dele, e recebeu o dom de
discernir os espíritos e expulsar os demônios. E quando santo Atanásio descreve
a vida de santo Antônio, ele o compara a numerosos profetas, como Moisés, Samuel
e sobretudo Elias e Eliseu. João de Lycóplis, monge de Tebaida, anunciara com
antecedência ao imperador Teodósio o que ainda iria se passar no mundo. Na
região de Gaza, dentre os discípulos do abade Silvano, Zenon era apelidado de
profeta, Isaías de Sceta era chamado de terceiro Isaías o Profeta. João o
Profeta situa-se em uma tradição na qual o dom da profecia relaciona-se com a
vidência, ao discernimento e à clarividência espiritual.
Na
Correspondência endereçada aos solitários, João o Profeta permanece a maior
parte do tempo à sombra do Grande Ancião, ou responde a perguntas mais diretas,
até mesmo as mais práticas referentes ao regime de vida dos eremitas, ou ainda,
para saber a melhor hora para a vigília de seis horas.
Barsanulfo
e João o Profeta são os testemunhos vivos de uma mesma tradição monástica.
Barsanulfo muitas vezes cita suas fontes de maneira bastante livre: sua memória
parece ter assimilado pessoalmente os textos aos quais ele se refere. João o
Profeta, por sua vez, bebe das mesmas fontes. Nós o vemos muitas vezes citar
literalmente suas fontes. Ademais, em suas respostas João o Profeta mantém-se
primeiramente na vida comunitária e em sua organização. A autoridade de
Barsanulfo é mais de ordem carismática, a de João o Profeta mais institucional,
ao menos nas linhas gerais que alicerçam seu pensamento e sua correspondência.
Os
dados biográficos referentes ao seu meio de origem, sua juventude e sua
formação não nos são mais bem conhecidos do que aqueles que conhecemos da vida
de Barsanulfo. Um relato inserido na Correspondência pouco nos diz dele:
“O abade João habita na primeira cela que era de Barsanulfo, que fora
construída para ele fora do convento. Ele aí levou por dezoito anos uma vida de
hesiquiasta até sua morte.” Numa resposta que João endereça a um padre que
pretende vir a retirar-se no mosteiro, ele nos revela não ser padre e ter já os
cabelos brancos. O abade Seridos havia colocado um irmão a seu serviço e quando
este caiu doente foi Doroteu que teve a honra de encarregar-se desta tarefa.
Ele a exerceu por nove anos, durante toda sua permanência no cenobium de
Seridos.
Dom
Regnault sublinha a beleza do relato inserido sem dúvida pelo autor da
coletânea das cartas que nos relata as três últimas semanas que decorreram
entre as mortes do abade Seridos e de João o Profeta. Movido por piedade a
Élien, o sucessor do abade Seridos, e, empurrado pelo Espírito Santo que nele
habitava, João o Profeta passou duas semanas aconselhando o abade Élien a
respeito de cada detalhe da direção do mosteiro: “...depois, continua o texto,
tendo feito vir todos os irmãos e todos os que se encontravam no mosteiro, ele
abraçou a cada um e despediu-se de todo mundo; depois disto ele entregou em paz
sua alma a Deus.”
***
A
identidade dos correspondentes será revelada ao longo da Correspondência
segundo as três grandes seções que delimitamos, a saber, as resposta dadas aos
solitários, aos cenobitas, aos bispos e aos leigos cristãos das redondezas. Na
segunda seção, tratar-se-á de Doroteu de Gaza e de textos importantes
referentes ao abade Seridos e de seu sucessor Élien.
Por
enquanto, basta assinalar aqui que o abade Seridos foi o fundador e o
responsável pelo cenobium que leva seu nome. Ele vivia na região de
Thavatha provavelmente bem antes da chega da de Barsanulfo e João o Profeta.
Calmo e confiante, ele teve uma grande alegria em poder acolhe-los junto ao seu
mosteiro enquanto muitos abades da vizinhança havia se esforçado para tal. A
presença dos dois Padres de Gaza deu ao cenobium do abade Seridos uma
aura que passou a atrair aqueles que buscavam a Deus, coisa que a Correspondência
testemunha profusamente.
A
primeira carta da coletânea situa perfeitamente o papel do abade Seridos, o
“verdadeiro filho amado” de Barsanulfo, como este gostava de chamá-lo. Ele era
ao mesmo tempo o responsável pela comunidade, o escriba dos dois anciãos e quem
servia de intermediário para levar as questões e as respostas a quem de
direito. Ele se revela um homem cheio de bondade e sabedoria; quando ele era
muito severo, Barsanulfo chamava sua atenção. Sabemos que ele ignorava o copta
e que deveria assim ser de origem grega ou síria. Suas virtudes são celebradas
na carta 570 junto com as de João o Profeta, que morreria três semanas depois
dele.
CAPÍTULO II
A COLETÂNEA DE CARTAS
1. INVENTÁRIO DAS CARTAS
Assim
como na tradição apoftegmática as palavras dos monges do Egito foram
transmitidas por grupos de textos pacientemente recolhidos e arrumados, podemos
também dizer que a correspondência de Barsanulfo e João foi transmitida por
pacotes de cartas reunidas no mais das vezes conforme os correspondentes a quem
estavam endereçadas, para compor a coletânea que agora publicamos. A história
complexa desta tradição manuscrita será estudada mais adiante; cada pacote de
cartas tem por assim dizer sua própria história e portanto sua própria
genealogia.
O
inventário apresentado é o resultado deste estudo aprofundado segundo a escolha
dos melhores manuscritos conservados. O conjunto da coletânea compreende três
tipos de mensagens:
- simples
bilhetes, geralmente curtos e compostos em grande parte por João o Profeta;
- cartas
mais elaboradas, que respondem a muitas questões; e
-
verdadeiras epístolas didáticas, geralmente redigidas por Barsanulfo.
Algumas
questões, particularmente longas, foram escritas por solitários como o abade
Paulo ou o abade Euthymo. Outros textos foram redigidos pelo monge que recolheu
o conjunto das Questões e das Respostas; estes fornecem preciosas informações
sobre o abade João, sobre Barsanulfo e sobre o abade Seridos, ou ainda resumem
uma situação, como acontece na carta 224.
O
conjunto de cartas está organizado da seguinte maneira:
1 a 54:
correspondência com João de Beersheba; a carta 3 é de João, as demais de Barsanulfo;
55: resposta
de Barsanulfo a Abrahão, monge egípcio que escreveu em copta;
56 a58:
correspondência entre Barsanulfo e Paulo o Solitário;
59 a 71:
cartas ao abade Euthymo;
72 a 123: a
André, ancião enfermo;
124 a 131:
ao monge Teodoro;
132 a 137:
ao irmão que o interrogava por enigmas;
137b:
meditação sobre a letra êta escrita
por Barsanaulfo;
138 a 160:
cartas a dois padres;
161 a 210: a
um irmão e a dois padres;
211 a 213: a
um padre sacerdote;
214 a 219: a
um irmão doente;
220 a 223: a
um irmão moribundo e a seus irmãos;
224 a 244: a
irmãos;
245 a 251: a
dois monges;
252 a 338:
correspondência entre os dois anciãos e Doroteu, o futuro abade autor das Didascalias;
339 a 347b:
cartas a diversos monges;
348: ao
irmão de Barsanulfo;
349 a 389: a
diversos irmãos;
390: aos
monges de um mosteiro;
391 a 398: a
outro irmão;
399 a 491: a
leigos e a irmãos;
492 a 502: a
um irmão, antigo soldado;
503 a 533: a
dois irmãos e a um irmão enfermo;
534 a 570: a
diversos irmãos e padres do mosteiro;
570b: notas
do monge sobre o abade João;
570c: notas
do monge sobre o abade Seridos;
571 a 598:
correspondência entre Elién (sucessor de Seridos) e João, e respostas de
Barsanulfo (cartas 572 e 573);
599: carta
de João a anciãos do mosteiro;
599b: notas
do monge sobre a morte do abade João;
600 a 607:
correspondência com um irmão sobre origenismo; as cartas 601 e 602 são de João,
as demais de Barsanulfo;
608 a 787: a
diversos leigos, professores e a um advogado;
788 a 844: a
alguns bispos e aos habitantes de Gaza;
845 a 850: a
leigos e a um irmão.
Como
já assinalamos, o estudo desta coletânea distingue três grandes seções,
contemplando:
-
a correspondência aos solitários (cartas 1 a 223);
-
a correspondência aos cenobitas (cartas 224 a 616); e
-
a correspondência aos bispos e aos leigos cristãos (cartas 617 a 850).
2. O GÊNERO LITERÁRIO
Depois
de percorrer algumas páginas, o leitor ficará intrigado com a originalidade
desta obra: não se trata de uma “Correspondência” destinada à publicação, nem
de um tratado de vida espiritual, mas de um “documento de época” que descreve,
por meio de perguntas e respostas, a vida cotidiana em um mosteiro, situado na
região de Gaza, na época do imperador Justiniano (século V).
Os
interlocutores são concretos, anacoretas que viviam nas cercanias do mosteiro,
membros da comunidade, padres, leigos e até bispos da região. Os assuntos
tratados são bastante variados: eles vão desde as dificuldades reais, físicas
ou espirituais, encontradas pelos monges em sua ascese monástica, aos conselhos
e encorajamentos, às sugestões para a nomeação de novos bispos, até as questões
teológicas do momento.
Um
outro aspecto salta aos olhos: a espontaneidade com que os temas mais diversos
são abordados: a linguagem direta, viva, incisiva e simples pretende derrubar,
mover, persuadir e até acalmar o interlocutor.
É
por isso que, se a correspondência dos dois Anciãos não constitui uma
verdadeira obra literária, não podemos subestimar o interesse histórico e
espiritual que ela apresenta para o estudo do cristianismo dos primeiros
séculos.
A
primeira carta de Barsanulfo a João de Beersheba comenta o gênero literário da Correspondência dos Padres de Gaza. Com
efeito, como conta Seridos, Barsanulfo disse: “Vá, escreva sem medo; mesmo que
eu lhe ditasse milhares de palavras, o Espírito de Deus não permitiria que você
escrevesse sequer uma letra de mais ou de menos, mesmo que fosse
involuntariamente; mas ele guiará sua mão para que você escreva em ordem.”
A
correspondência de Barsanulfo, como costumava ocorrer na antigüidade, era
ditada por ele ao abade Seridos que anotava com cuidado o que lhe era dito. De
entrada, o gênero literário da Correspondência adota a linguagem familiar do
discurso direto. O texto escrito guarda o traço deste lado espontâneo da
correspondência. As frases são curtas, simples, muitas vezes justapostas.
Encontramos também aí a linguagem falada no próprio tom da escrita. Quando se
dirige a João de Beersheba, Barsanulfo começa suas cartas com estas palavras
ditadas a Seridos: “Diga ao irmão João”, ao lado da expressão: “Escreva ao
irmão João”. No conjunto da correspondência aos solitários, a expressão “dizer”
é mais comum do que “escrever”. Na mentalidade dos consultantes e dos dois
Anciãos, a linguagem falada parece predominar.
Tomemos
a carta 55, por exemplo. Barsanulfo retoma as questões de seu correspondente
egípcio e responde como se ele estivesse presente: “Você me disse em sua carta:
‘Se for possível, torne-me digno da sua doçura...’ E você me disse também em
sua carta: ‘Meu pecado me separou de você, meu Mestre.’ Quanto ao que você me
escreveu no fim da carta (...) também eu lhe digo a mesma coisa.” O texto usa a
linguagem falada e a própria correspondência multiplica as expressões “você me
falou”, “você me disse”, “você me escreveu”. Esta linguagem familiar e direta é
habitual no mestre de Gaza. Ele multiplica as questões, as questões sobre si, a
maneira de discernir os pensamentos, os engajamentos, através de uma série de
imperativos.
O
modo de pensamento apóia-se sobre as Escrituras, como já explicamos, que
fornecem os princípios do agir cristão para o eremita que consulta os Padres. A
esse estilo direto junta-se a oração e a esperança, de uma maneira mais
exortativa, como “quem tiver ouvidos que escute...”, ou ainda “esta é minha
prece a Deus, que vocês guardem isto e que possamos nos ver no reino de meu
Deus...”.
Algumas
epístolas de um gênero especialmente original merecem a atenção do leitor.
Trata-se das cartas 132 a 137 e 137b. As seis primeiras são endereçadas a
Barsanulfo por um irmão que se exprimia por enigmas recorrendo às letras do
alfabeto. O Grande Ancião respondeu-lhe também por enigmas utilizando sentenças
e, na carta 137b, ele redigiu uma longa meditação sobre a letra êta do alfabeto. Aqui Barsanulfo
demonstra um grande talento literário: concebida como uma oração, a meditação
contém figuras retóricas, reforços sucessivos, uma progressão ascendente que
vai do concreto ao abstrato, simetrias e “refrões” quase poéticos. Este gênero
literário, no qual se usa o recurso da forma alfabética, já era conhecido em
todas as épocas da Antigüidade, mas as meditações eram raras originalmente. No
monaquismo, estes “exercícios” tornaram-se mais comuns e fizeram parte das
práticas místicas dos monges.
3. O ESTILO E A LÍNGUA
O estilo – O estilo e o tom das Cartas refletem o caráter de seu autor e variam conforme os
assuntos tratados e as pessoas a quem são dirigidas as respostas; é preciso
distinguir as cartas escritas por Barsanulfo daquelas de seu companheiro João o
Profeta.
Cartas de Barsanulfo – Quando o Grande Ancião se dirige a monges, vindos ao
mosteiro de Seridos para se iniciar na vida ascética ou lhe pedir conselhos
para melhor exercer suas funções sacerdotais, seu estilo é enfático e caloroso,
até poético, principalmente nas cartas em que ele se utiliza de comparações[12];
o tom da carta, decidido e vigoroso, reflete uma personalidade forte e possui
um caráter de grande franqueza. Nas cartas em que Barsanulfo desenvolve suas
idéias sobre a vida espiritual ou sobre a ascese monástica[13],
ou ainda quando ele aborda assuntos mais amplos, como a “meditação sobre a
letra êta[14]”
ou as controvérsias teológicas de seu tempo, ele demonstra uma grande
capacidade de expor idéias e de refutar teorias heréticas. Os argumentos são
abordados com sutileza, com interrogações oratórias, definições e repetições;
os períodos são mais longos e complexos, as formas gramaticais mais clássicas.
Às vezes ele recorre a um tom mais duro, a termos mais violentos, mais diretos
e até mesmo crus[15].
Para traduzir uma viva emoção ou seu ressentimento, ele exprime sua indignação
ou sua estupefação com numerosas interrogações e expressões apaixonadas[16].
Em
outras cartas, o tom se torna mais oficial, quase solene, mas ainda enérgico,
traduzindo-se em expressões convencionais e formais[17]. Quando são simples irmãos que se dirigem ao
Grande Ancião, ele responde com bilhetes curtos cheios de simplicidade e
doçura. Ele recorre desde metáforas à linguagem falada, o tom se torna
familiar, exortativo e até afetuoso[18].
Enfim,
na carta 569, que evoca a peste do ano 542-543, é com um tom profético e quase
bíblico que Barsanulfo responde aos monges do mosteiro, que lhe suplicam que
implore pela bondade divina.
Como
procede o Grande Recluso em suas respostas?
Uma
vez que ele introduz o assunto retomando a questão de seu interlocutor, ele
desenvolve a resposta com ordem (mas não uma ordem pré-estabelecida) e com
clareza; ele aprecia as digressões baseadas na Bíblia e os textos patrísticos.
Concluindo,
se o estilo varia segundo o interlocutor, se o tom passa do afeto à exortação,
à exaltação e até à indignação, seu autor permanece sempre humilde (gè kai
spodos eimi, “eu sou terra e cinzas”; egô elachistos, “eu, o menor”;
etc.), consciente de sua condição frágil (adelphe, euxai hyper emou,
“irmão, reze por mim”) e pronto a encorajar todos os que se dirigiam a ele.
Cartas
de João o Profeta – Elas não diferem
muito das de Barsanulfo, ainda que o estilo seja mais clássico. O tom é menos
direto, menos familiar e menos variado. Também o estilo se apresenta mais
uniforme e convencional, menos enfático. João consegue melhor refrear suas
emoções e sua espontaneidade; ele não quer revelar muito de seu caráter.
Em
geral o Outro Ancião responde de modo lacônico: suas mensagens, concisas e
curtas, referem-se ao regulamento e aos problemas cotidianos do mosteiro de
Seridos (horas das orações, vigílias, repouso, modo de orar, de se vestir, de
se ocupar em sua cela, etc., inclusive as relações dos monges com o exterior).
Em seus conselhos, como o outro Grande Ancião, ele recorre às citações bíblicas
e às sentenças dos Padres. Ele emprega imagens expressivas que testemunham uma
grande habilidade dialética, um espírito conciso e didático[19].
A
língua – A língua dos dois Grandes
Anciãos é a linguagem corrente do século
VI, em que se misturam formas clássicas tradicionais e expressões comuns de
época.
Aqui
impõe-se uma observação preliminar: é difícil definir com exatidão a língua dos
nossos autores devido às variações do texto que são muitas vezes discordantes.
Muito provavelmente, alguns copistas corrigiram formas verbais não clássicas ou
palavras raras que não compreendiam. Para esta edição foi escolhido o
manuscrito (Coislin 124) que apresenta formas mais arcaicas e modos de
expressão menos clássicos, que lembram que nossos dois Anciãos não eram gregos
de origem, que eles tiveram que aprender a língua e que assim eles transpunham
às vezes para o grego semitismos ou expressões próprias à sua língua materna.
As
diferenças em relação ao grego clássico podem ser observadas principalmente na
normalização dos comparativos, superlativos, pronomes e formas verbais; casos,
modos e tempos foram invertidos e a sintaxe dos períodos é bem menos complexa.
Entretanto, numerosos traços clássicos infiltram-se em meio ao grego popular
das “Cartas”, como o emprego clássico do aumento, do desdobramento, do
particípio perfeito passivo e de algumas preposições e conjunções.
Segundo
H.I. Marrou[20],
o cristianismo desenvolveu-se no seio da comunidade greco-romana e no século VI
a cultura dos cristãos regos, palestinos e mesmo egípcios absorvera
completamente os elementos clássicos. A educação bizantina, no oriente grego e
em especial em Antioquia na Síria, prolonga sem interrupção a formação
clássica.
O
estudo semântico da Correspondência revela-se cheio de interesse: ele
expõe a evolução que se produziu na língua grega. A chegada do cristianismo e
do monaquismo trouxe consigo a criação de novas palavras e a especialização de
termos antigos.
A
língua vulgar sempre foi sensível às influências estrangeiras e, no grego do
século VI de nossa era, aparecem palavras emprestadas mas “helenizadas”; por
seu turno, o latim desempenhou um papel importante nos termos técnicos que se
referem ao direito romano, à administração imperial, bem como à guerra e às
medidas. O ascendente semítico, em especial na Septuaginta, não havia
ainda desaparecido na época bizantina, quando os autores citam freqüentemente
os versículos da Escritura. Em alguns lugares os nomes das festas judaicas
subsistem e os termos hebraicos são geralmente transcritos em grego. Enfim, o
egípcio e o persa também introduziram algumas palavras no grego tardio. O
vocabulário dos dois Grandes Reclusos é tão rico e variado que poderia
constituir em si mesmo um objeto de estudo: na Correspondência convivem
palavras antigas, neologismos e termos raros.
Convém
igualmente nos determos por um instante sobre as citações bíblicas e
patrísticas confrontando-as com os textos originais, sabendo que esta é uma
tarefa difícil porque os manuscritos existentes apresentam muitas variantes
quanto às citações. Algumas vezes os copistas transcrevem as passagens de cor
ou então as corrigem por sua própria conta.
Os
dois Grandes Anciãos, que exortam seus correspondentes a viver como Cristo,
utilizam a santa Escritura com base didática para seu ensinamento de perfeição,
humildade e obediência. Do Antigo Testamento eles citam principalmente os
Salmos e, do Novo, o evangelho segundo Mateus. Nas Cartas, a importância
dos Padres do Deserto não é menor do que a da Bíblia. As lições dos primeiros
Padres estão constantemente no pensamento dos dois autores.
Nas
respostas de Barsanulfo, as citações emprestadas ao Novo Testamento são mais
numerosas, enquanto que nas cartas de João o Profeta há um equilíbrio entre os
dois textos escriturários. Na maior parte das vezes, Barsanulfo, recluso em sua
cela, confia principalmente em sua memória e na tradição oral. Ele introduz as
citações no seu discurso modificando parcialmente o texto original e utilizando
a linguagem falada em seu tempo. Estas divergências se devem também, talvez, ao
fato dele ditar suas cartas ao abade Seridos. João o Profeta reproduz com mais
fidelidade os textos das Santas Escrituras, mas as diferenças entre suas
citações e os textos originais também não faltam. As numerosas citações
bíblicas e patrísticas indicam que Barsanulfo e João estavam profundamente
ligados à leitura das Vidas e das Sentenças dos Padres do Deserto
e em particular aos Logoi de Isaías de Sceta.
CAPÍTULO III
O CONTEÚDO DAS CARTAS 1 - 223
1. OS CORRESPONDENTES
João de Beersheba, higoumeno chamado à
solidão (Cartas 1-54) – João de
Beersheba, higoumeno de uma comunidade monástica próxima de Gaza, sentiu-se
chamado à vida solitária e abriu-se com Barsanulfo. É o início de uma longa
correspondência em que aparece o humilde ministério do abade Seridos, ao mesmo
tempo abade e escriba de Barsanulfo (1)*.
João o Profeta, o outro sábio de Gaza, foi pouco consultado por ele (3). João
de Beersheba é chamado de irmão, irmão João, “aquele que foi chamado por um
sinal celeste e divino a habitar perto de nós” (7), o bem-amado irmão João,
aquele que faz um só espírito conosco (13), a quem “eu escrevo como à minha
alma” (16). Freqüentemente as cartas mencionam o papel do abade Seridos,
qualificado de criança (9), de “meu filho querido” (10), de criança bem-amada
(24).
Três
etapas escalonam o itinerário de João de Beersheba. No início da
correspondência, Barsanulfo envia seu capuz ao discípulo. Ele o convida a deixar
tudo para seguir a Cristo, e a deixar o Espírito Santo terminar o que começara
nele (1). Ele lhe ensina também quais disposições interiores antecedem a
quietude perfeita (2-20).
Na
segunda parte, é João de Beersheba que se propõe a fixar regras de vida (21,
23, 28) e as submete a seu mestre espiritual. Apenas uma resposta: não fixe
para si nenhuma regra absoluta, mas avance nos preceitos a que se propuser. “Se
você tiver que sair, eu estarei com você para protegê-lo”, declara Barsanulfo.
A
terceira seção de cartas (36 a 54) situa-se num clima de obediência: João de
Beersheba pode começar sua vida solitária. Daqui para frente, o silêncio lhe
será mais proveitoso e estimado do que a palavra. Barsanulfo reprova-lhe a
falta de coerência (37). Incansavelmente, o Grande Ancião lembra a presença de
Deus (46 a 54) e a necessidade de João de Beersheba ruminar as palavras que ele
lhe envia (48, 49, 53). Deixar todas as preocupações do mundo, seguir
livremente as regras dadas, colocar a Deus no centro de sua vida escalam este
itinerário para a solidão. A busca de Deus é vivida na confiança e na ação de
graças, habitada pela presença contínua do Pastor (45) e do Espírito Santo.
Barsanulfo e o pequeno círculo de eremitas que o cercam sustentam e acolhem em
sua comunhão quem se une a eles no silêncio do deserto. As cartas trocadas com
João de Beersheba testemunham um evolução progressiva da vida comum à vida
solitária.
Abrahão, solitário egípcio (Carta 55) – Abrahão, chamado de servidor de Deus, escreve uma
carta em copta a Barsanulfo, ele próprio egípcio de origem. Ele solicita uma
entrevista que não irá obter, ao contrário do monge Teodoro (125). Barsanulfo o
assegura de sua prece: “Orai uns pelos outros para serem curados”, e lembra-o
de que somos todos estrangeiros sobre a terra e que é preciso “morrer para os
homens”. Por respeito ao abade Seridos que não conhecia o copta, ele responde
em grego.
Paulo, o solitário presunçoso (Cartas 56
a 58) – Três cartas de Barsanulfo se
dirigem ao irmão Paulo, muito doente e que, ainda por cima, quer tomar como
servidos um irmão também doente (56). Presunçoso, Paulo mostra-o também em suas
discussões sobre a fé das quais ele sai profundamente aflito. Barsanulfo
partilha deste sofrimento, em profunda comunhão com o abade Paulo, pronto a dar
sua vida por ele (57). Ele lhe dirige, no entanto, uma demonstração firme, mas
cheia de respeito. Na última carta que possuímos, Barsanulfo o faz entender que
ele é incapaz de perscrutar as coisas da fé. Que Paulo se mantenha no caminho
real, ou seja na fé dos trezentos e dezoito Padres na qual ele foi batizado, e
Barsanulfo responderá por ele “no dia em que Deus julgar as ações ocultas dos
homens” (58).
Euthymo, o homem da prece (Cartas 59 a
71) – Euthymo é um homem da oração.
As questões que ele coloca provêm deste aspecto de sua pessoa (71). Barsanulfo
o considera como um irmão, “irmão Euthymo” (67); é um verdadeiro amigo (70) a
quem ele envia seu escapulário (71). Mas ele não utiliza termos calorosos,
tendo em vista sem dúvida a idade e a personalidade de Euthymo. Após sua morte,
Barsanulfo o apresentará como modelo a um solitário (144).
As
dimensões da correspondência se desenvolvem num nível de fé exigente: “A fé
perfeita se revela na cura” (59). A perspectiva da Ressurreição e do Juízo é recorrente.
A correspondência parece seguir um itinerário que vai dos pensamentos impuros e
das questões relativas à Ressurreição à descoberta do amor de Cristo através de
sua cruz (61). Ele é o verdadeiro incorruptível (62), o Pastor das ovelhas
perdidas (67). O combate é incessante, concernente ao regime alimentar (63 a
65), à humildade e ao orgulho (66), à busca do Pastor (67), às questões
decisivas sobre o pecador e a misericórdia divina (68, 69), à dúvida (70), à
dor e às lágrimas (71). Euthymo é excelente na interpretação alegórica das
Escrituras; o Grande Ancião vai ainda mais longe neste sentido.
André, o solitário enfermo e escrupuloso
(Cartas 72 a 123) – Estas cartas nos
permitem seguir a evolução de André. Sujeito a constantes ataques de febre, reumatismo
e queimação estomacal noturna, ele teve, em certos momentos, curtos períodos de
remissão. As duas últimas cartas são endereçadas ao discípulo de André que
cuidou dele nos últimos momentos de sua vida. Ele é qualificado de “irmão
atormentador” (122-123), “meu irmão, meu associado” (73), “meu bem-amado” (78),
“irmão André e bem-amado em Cristo” (91), “irmão querido” (92), “irmão querido
que é um comigo” (93), “irmão e bem-amado de minha alma” (113), “servidor do
Deus Altíssimo”, “co-servidor de minha baixeza”; estas expressões testemunham a
crescente comunhão entre Barsanulfo e André (91-93).
Barsanulfo
lhe enviará água do cantil do bem-aventurado Euthymo e um pouco de sua comida
para que seja abençoada para André. João o Profeta desempenha um papel
discreto, intervindo unicamente para afastar as hesitações de André. Mas ele
está a par das mensagens que Barsanulfo envia a André e as confirma quando
necessário. O discípulo tem um temperamento ansioso, entristecendo-se com o que
é feito pela metade, sempre interiormente inquieto, cândido, quase ingênuo no
dizer do próprio Grande Ancião, sensível, depressa afetado pelo irmão que o
serve com grande desenvoltura.
A
doença ocupa um grande espaço nas trocas epistolares, suscitando fases de
desencorajamento, depressão e até melancolia. A evolução interior de André é a
medida de seu temperamento. Ele chega a tal grau de conversão que Barsanulfo
lhe perdoa todas as faltas cometidas desde seu nascimento (115) e afirma que o
representará pessoalmente perante o Senhor no juízo final (117).
Três
temas emergem desta longa correspondência: a doença, desenvolvida sobretudo na
primeira parte (72 a 85); a perseverança necessária durante a enfermidade, os
combates espirituais consigo mesmo, as dificuldades encontradas com o irmão que
o serve, na segunda (86 a 108); já presente na ascese e mais explícita na carta
103, o lugar preponderante do Senhor Jesus e a prece dominam a última parte da
correspondência (109 a 123). De seu lado, João o Profeta lembra alguns textos
da Bíblia sobre a persistência (76) e sustenta as palavras do Grande Ancião
(89, 94 ss.).
O monge Teodoro (Cartas 124 a 131) – Sob os epítetos de “minha criança”, “criança”,
“irmão”, Teodoro aparece como um anacoreta que coloca as questões fundamentais
da existência, não sem certa presunção. Barsanulfo expõe bem esta separação
entre as idéias e as práticas de seu correspondente. Sua interrogações beiram o
ceticismo, a ponto de duvidar da existência do Grande Ancião. Teodoro aflige-se
também com o fato de ter deixado sua esposa e seus filhos.
As
questões distinguem três modos de pensamento: o que vem de Deus, o que é
natural e o que vem dos demônios (124); elas referem-se à prece (126) e ao
poder concedido ao diabo (127). Teodoro pergunta-se sobre a própria existência
de Barsanulfo e obtém a permissão para vê-lo (125), coisa que Abrahão o Egípcio
não conseguira (55). Ele inquieta-se por sua esposa e filhos, a quem deixou
(128); ele se espanta com a cura de seus olhos doentes (126) e tem medo à noite
(131).
A
aflição de Teodoro é grande por ter deixado sua esposa e filhos. João responde
primeiro (128, 129), Barsanulfo acrescenta (130); João responde às perguntas
relativas aos temores noturnos (131); Barsanulfo educa e forma Teodoro sobre as
questões da fé (124 a 127).
O irmão que perguntava por enigmas
(Cartas 132 a 137) – Iota é a solidão, kappa é o regime alimentar, lambda
são as relações! Este irmão havia encontrado seu código para se comunicar com
Barsanulfo de maneira a que o abade Seridos não compreendesse suas mensagens
(132). Na seqüência, ele não utiliza mais os signos, contentando-se com pensar
neles. As respostas de Barsanulfo são lacônicas, não se afastando para a
direita nem para a esquerda (132), escolhendo o que é proveitoso (133), unindo
corpo e alma (134, 135). Finalmente, uma longa missiva de Barsanulfo convida-o
a não mais se expressar por enigmas, a retomar com o que é humilde, a escrever
ou colocar suas questões por intermédio de Seridos, a viver na misericórdia
divina (136). O irmão adere generosamente a esta maneira de ver (137).
Meditação a partir da letra êta (Carta 137b) – Ela é a expressão de algumas opiniões e ensinamentos
de Barsanulfo ao irmão que o consultava por enigmas, bem como a outros monges
que viviam na solidão. O compilador manteve esta meditação como representativa
da interpretação das letras do alfabeto pelo Santo Ancião.
Êta evoca por inteiro o guia que leva à luz, o Senhor Jesus que está à
direita do Pai e nos liberta de todas as paixões. Ele é a Vítima oferecida pela
vida do mundo; ele é a alegria do Pai; ele é “Emanuel, Deus conosco”.
Um solitário chamado a morrer para si
mesmo (Carta 138) – Cheio de zelo,
este eremita anônimo quer ensinar a sabedoria ao seu servidor. Ele enfrenta os
pensamentos que o fustigam e se interroga sobre as relações que deixou atrás de
si. Fiel à tradição que o leva, o Grande Ancião lembra ao recluso que ele deve
lutar para morrer para si mesmo e conhecer apenas Jesus. Que ele desperte de
seu sono de chumbo para estar preparado quando o Senhor chegar.
Um solitário aprendendo a morrer para si
mesmo (Cartas 139 a 160) – Os dois de
Gaza respondem a um monge denominado apenas “irmão”, “meu irmão” ou “caríssimo
irmão”. O solitário podia se beneficiar das orações de um Ancião perto do qual
ele vivia (149); ele próprio tinha um servidor que lhe fazia suas receitas
alimentares. Seu regime, legumes verdes, nem sempre era bem preparado (151).
Barsanulfo lhe dá como exemplo o abade Euthymo, “companheiro de rota que tomou
a dianteira”, saudando sua perseverança nas provas. Euthymo foi-se
gloriosamente para o Senhor (144). Barsanulfo envia um pão como bênção a seu
correspondente para sustentá-lo (141).
Dois
temas principais são tratados separadamente pelos dois anciãos. Muitas facetas
do cotidiano da vida eremítica vêm deste modo à luz. A prece abre a troca de
cartas. Trata-se da intercessão (139), do Pai Nosso e da oração de Macário de
Sceta (140), da impassibilidade (141), da duração da prece (143), da humildade
e da prece perfeita (150). O consulente pergunta a João o Profeta como obter
pela oração a perseverança perfeita (145).
Um
outro assunto mistura-se ao da oração: o combate espiritual. As questões se
sucedem: como passar da acídia à perseverança e como obter a perfeita
perseverança (144, 145)? Quanto tempo velar e com que vestimentas contentar-se
(146, 147) Como suportar as doenças com alegria e como chorar seus pecados
(148)? Como escapar de sua mediocridade
e preguiça (149)? Uma questão fundamental emerge: o que significa morrer para
si (151, 153)? Para o solitário, ela se aplica sobretudo à alimentação (152,
154, 156, 157, 159) e à temperança (154, 155, 158, 160).
João
o Profeta dá como exemplo um homem que, um ou dois dias da semana, abstém-se de
comida (152); por sua vez, Barsanulfo cita um monge capaz de permanecer “sem
comida, bebida ou vestes até a visita do Senhor, pois sua comida, sua bebida e
suas vestes são o Espírito Santo” (149).
Um irmão do cenobium, obcecado pela comida (Cartas 161 a 165) – As três primeiras cartas referem-se à comida. João
distingue o fato de escolher alimentos doces, salgados ou ácidos conforme
convenham melhor às necessidades do organismo. Que ele não os escolha apenas
por glutonaria, sabendo que estes alimentos tornam o corpo pesado (161). Se a
tentação se afasta, o irmão pode comer enquanto se recrimina. Se ela persiste,
que ele invoque o Nome de Deus e se abstenha de comer (162). O respeito para
com o outro também é importante (163). Em geral, é preciso evitar a
negligência, fonte da cobiça carnal (164), interrogar os pensamentos que atacam
o homem, rezar e salmodiar com os lábios, transportar o que foi visto e ouvido
para a humilde prece acompanhada de lágrimas (165).
Um solitário perturbado pela comida, os
sonhos e os fantasmas (Cartas 166-171) –
João o Profeta não tem igual para responder com lucidez e concisão, apoiando-se
sobre fórmulas emprestadas aos Padres do Egito. O melhor a fazer nas tentações
é colocar sua impotência diante de Deus (166, 167). Os demônios, com efeito,
têm a arte de se metamorfosear para semear a dúvida e a confusão. Mas a prece e
a genuflexão repetidas são um poderoso auxílio (168). Quanto ao discernimento
dos movimentos naturais, ele aparece na ausência da vontade de enlevo, de
prazer ou de inveja vinda do diabo. Mas os eunucos do reino ultrapassaram este
estágio e não sentem mais nada fisicamente (169). A santa comunhão nos é dada
como a pessoas feridas que necessitam de médico (170). É bom confessarmos
nossos fantasmas a um ancião e pedir-lhe sua intercessão; é a fonte da cura
(171).
Um irmão inquieto com a morte próxima de
Barsanulfo, e seus companheiros (Cartas 172 a 210) – Um primeiro grupo de cartas endereçadas a João o
Profeta (172 a 182) constitui uma série de bilhetes nos quais o Ancião responde
a questões precisas sobre como se manter na cela (172), sobre a vontade (173,
191), a oração (175 a 178) e o combate espiritual (174 a 181). A moral do
solitário que havia sido agredido por arruaceiros é retomada por João (182,
184) e por Barsanulfo (182). O solitário sente desejo de retornar ao mundo
(185).
A
segunda parte da correspondência possui acentos muito pessoais e reflete o
próprio coração das idéias de Barsanulfo e de seu ser. Os assuntos abordados
referem-se à aflição do irmão (186) e ao receio da morte próxima de Barsanulfo
(187); a oração ocupa uma parte considerável (188, 194 a 196, 199, 207, 209),
junto com a saúde de Seridos (189), os pensamentos (193, 200 a 202, 204, 205),
a mortificação (198), o progresso espiritual (203), o encontro com os irmãos
(206), a solidão total (207, 208). Na última carta (210), o eremita pede a
Barsanulfo que abençoe seu capuz e seu escapulário.
O
pensamento caloroso do Grande Ancião se mostra em suas invocações: caríssimo
irmão, irmão bem-amado, irmão bem-amado no Senhor, mas também irmão indolente
(191), irmão letárgico (200). João o Profeta é chamado por Barsanulfo de “meu
companheiro” (186) e Seridos, como de costume, “criança bendita, humilde e
obediente” (188), “meu filho”.
Barsanulfo
dirige-se também aos companheiros do hesiquiasta a que ele chama de irmãos,
filhos, filhinhos, crianças queridas de Deus (188, 192, 195). Sabemos que o
eremita preparava fermento horas a fio para fazer pães (193). Barsanulfo quer
fazer dele um soldado de uma tropa de elite (196) mas ele quer sobretudo
conduzir os seus até o instante do juízo final (187), e desde logo, pelo
Espírito Santo, conduzir seu discípulo a Jesus, médico das almas e dos corpos
(199). Esta qualidade de presença forte na intercessão do Espírito Santo aflora
sempre: “E eu (...) por causa do amor, queimando como um fogo ardente de Cristo
em mim (...) não cesso de rezar a Deus dia e noite para preenchê-los com ele,
para que habite em vocês e aí esteja sempre, para que lhes envie o Espírito
Santo” (186).
Um sacerdote ativo faz o aprendizado da
solidão (cartas 211 a 213) – João o
Profeta, já com cabelos brancos, poderá aconselhar este padre mais velho do que
ele? Que ele permaneça cinco dias na solidão e dois dias para encontrar os
outros (211). Se ele desejar comungar todo dia, que alguém lhe leve a santa
comunhão, pois o maior dos médicos transporta-se sozinho para perto daqueles
que estão esgotados e passam mal... (212). Quanto a querer interceder por uma
viúva que passa dificuldades, a resposta de João é sem ambigüidade (213).
Um irmão a serviço de um ancião enfermo
(Cartas 214 a 219) – A este irmão
Barsanulfo ensina a suportar tudo com submissão. Quanto ao resto, por tratar-se
de assunto mais grave, que ele se remeta a seu abade (214). Que ele coloque sua
impotência nas mãos de Deus e não tente compreender aquilo que o ultrapassa
(215). Até o último suspiro, o monge deve permanecer vigilante (216). Que o
irmão adquira a humildade, a obediência e a submissão voluntária (217). Ao
irmão gravemente enfermo, Barsanulfo perdoa todos os pecados, e exorta-o à
perseverança até o fim (218). O mesmo irmão implora a Barsanulfo, com emoção,
que este lhe permita partir para Deus. A resposta de Barsanulfo é uma admirável
oração à Trindade à qual ele apresenta o irmão moribundo (219).
Um irmão (Dositeu) acometido de tísica
grave e a ponto de morrer (Cartas 220 a 223) – É comovente comparar estas cartas com o que sabemos
de Dositeu, por meio de seu mestre de noviços, Doroteu, e, sobretudo, por esta
jóia da literatura patrística que é a Vida
de Dositeu. Barsanulfo perdoa-lhe os pecados e o convida a regozijar-se e a
tremer de alegria no meio de suas penas que terão fim (220). Temendo que
Dositeu morra, como confirma João o Profeta (221), os irmãos suplicam ao Grande
Ancião que o conserve em vida; este responde que ele recebeu a vida eterna, mas
que os irmãos guardem segredo, pois Dositeu vai passar da morte para a vida
eterna e da aflição ao repouso. Que também os irmãos se alegrem no Senhor
(222)! Quanto mais Dositeu é atacado pelo mal, mais os irmãos suplicam a Barsanulfo
que o autorize a entrar na misericórdia divina. Dositeu morreu em paz após
longos sofrimentos (223).
2. LEITURA E INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS EM GAZA
Cada
missiva de Barsanulfo se apresenta como um comentário dos textos escriturários
adaptado ás questões levantadas por quem o consulta e destinado a alimentar o
coração e a vida deste. Muitas pesquisas poderiam ser feitas a respeito da
escolha das citações, sua interpretação e as fontes que inspiraram os sábios de
Gaza.
Dois
pontos chamam nossa atenção: a leitura das santas Escrituras tal como a
descobrimos ao longo das cartas endereçadas aos solitários e a interpretação
exegética que delas nos fornece Barsanulfo.
LEITURA DAS SANTAS ESCRITURAS EM GAZA
A
correspondência dirigida aos solitários descreve o modo como o asceta deve
praticar a salmódia, ruminar a Palavra de Deus e fazer seu exame de
consciência. As alusões à santa liturgia são mais raras. Cada um desses
aspectos da vida cotidiana dos solitários aparece na correspondência.
A jornada do solitário – As santas Escrituras fazem parte integrante da vida
do solitário. O ritmo de sua jornada inscreve-se na linha reta que conhecemos
da tradição dos Scetiotas no Egito. A André enfermo, que pergunta como passar o
dia, Barsanulfo lembra: “Nossos Pais que eram perfeitos não tinham uma regra
precisa; pois a cada jornada, sua regra era de salmodiar um pouco, recitar um
pouco de cor, examinar um pouco seus pensamentos, ocupar-se um pouco da comida,
e tudo isto no temor de Deus, pois foi dito: “Tudo o que fizerdes, fazei-o pela
glória de Deus” (23, 85).
A
salmódia, a recitação dos demais livros da Bíblia, o exame dos pensamentos e a
preparação das refeições, tais eram os momentos marcantes da vida solitária em
Gaza.
A salmódia – A salmódia, lida ou recitada de cor, acompanha o
trabalho manual. Ela é feita enquanto e permanece sentado, dizendo ao final de
cada salmo a oração: “Que Deus tenha piedade de mim, miserável”. Se o monge é
fustigado por pensamentos, diz João o Profeta, que ele acrescente: “Ó Deus,
veja minha aflição, venha em meu auxílio”. João o Profeta especifica para o
eremita em questão: “Quando você terminar três fiadas de malhas de sua rede
levante-se para a oração. Depois, colocando-se de joelhos e levantando-se de
novo, recite a prece mencionada” (143). O Pai Nosso era recitado uma vez depois
dos Salmos, assim como as orações por
intercessão (175, 176).
O
ritmo da salmódia durante o trabalho era deixado à discrição de cada um. A João
de Beersheba, antigo superior que entrou para a solidão e pedia uma regra a
seguir para a salmódia, o jejum e a oração, Barsanulfo responde: “Deixe de lado
as regras dos homens e escute o que Cristo lhe diz: ‘Aquele que perseverar até
o fim será salvo’. Não peça um mandamento, porque eu não quero que você esteja
sob a lei, mas sob a graça” (23). O mesmo [é dito a André: “Quanto à salmódia e
à recitação de cor, não se restrinja, mas faça conforme a força que o Senhor
lhe der” (85).
Segundo
a tradição de Sceta, os solitários recitavam durante as vésperas e nas vigílias
noturnas. Interrogado a respeito por um eremita, João o Profeta confirma que
cabe recitar doze Salmos nas vésperas
e, ao final de cada um, dizer aleluia e fazer uma prece; da mesma forma, à
noite, o monge deverá recitar doze Salmos
e depois sentar-se para o trabalho manual. João acrescenta que esta salmódia se
faz com os lábios, evitando que os vizinhos ouçam (143). De seu lado, André
confessa que, quando está doente, é incapaz de recitar um Salmo de boca por mais de um minuto, na hora das vigílias e, se o
faz de memória, o sono o domina (88).
Estes
vários testemunhos mostram bem a parte da salmódia, recitada nas vésperas e nas
vigílias ou acompanhando o trabalho manual. “Quanto aos Salmos, não deixe nunca
de estudá-los, pois eles são uma força; esforce-se por recitá-los de cor, pois
isto será muito proveitoso. Mas aquilo que o ultrapassa, não tente entender...”
(215). Este conselho de Barsanulfo, o sábio de Gaza, parece aplicar-se a ele
próprio alimentando seus correspondentes com uma quantidade de citações dos Salmos. Um exemplo concreto desta
pedagogia é dado a João de Beersheba, convidado a meditar sem cessar no Salmo 106, do versículo 25 ao 30[21],
para passar da tempestade das provações ao “porto de sua vontade”, ao lugar de
repouso (47). Juntamente com a salmódia, os solitários costumavam também
recitar de cor passagens da santa Escritura.
Ruminação da palavra de Deus – A correspondência é menos explícita sobre a maneira
como os anacoretas aprendiam de cor certas passagens das Escrituras. Os Salmos são evidentemente citados e
Barsanulfo aconselha a um solitário recitá-los de cor porque seria para ele
muito proveitoso (215). A questão é colocada muitas vezes em termos de ritmo,
de tempos a respeitar entre a recitação da prece de Jesus, a dos Salmos e a do resto das Escrituras. A
resposta dos dois Anciãos é unânime: faça uns e outros, diz João (175), faça-o
na medida das forças que Deus lhe der, responde Barsanulfo a André (85). Se a
oração é feita em pé e o trabalho manual sentado, o monge pode recitar os Salmos de cor permanecendo sentado
(143). Esta recitação brota literalmente do peito do monge como bem exprime o
verbo apostèhizo. Ela é feita
geralmente de memória, o que absolutamente não exclui a presença de um
antifonário ou da Bíblia. Assim a carta 147 apresenta um monge que passa a
noite, do por do sol até a aurora, orando e recitando versículos.
Na
Correspondência, dois livros são
explicitamente nomeados: o livro mosaico (8), em referência ao texto do Deuteronônio VIII, 2-3[22]
e o livro de Jó (127), mencionando Jó I, 21[23].
Em duas ocasiões, Barsanulfo assinala que suas próprias cartas ruminadas por
seu correspondente “contêm”, se ele as compreender, o Antigo e o Novo
testamentos (49). Ou ainda, os mandamentos do Grande Ancião contêm “toda a Biblioteca”,
segundo uma expressão que o próprio são Bento retomará em sua Regra, no
capítulo referente ao Carisma. A expressão pode contemplar a Bíblia e os
escritos que contém a sabedoria do deserto. Em outras partes, a Bíblia é
comparada aos livros de medicina úteis para nossa salvação (61).
Com
mais freqüência, as referências mencionam a “Escritura” ou a “santa Escritura”.
Na carta 4 endereçada a João de Beersheba, trata-se de “três testemunhos do
poder de Deus e das Escrituras do Espírito Santo”. Estas três passagens são
respectivamente uma referência a Isaías
XXVI, 20[24],
a 1 Coríntios VI, 17-18[25]
e a Efésios V, 15-16[26].
Barsanulfo acrescenta duas outras
citações escriturárias convidando seu correspondente, João de Beersheba, a
deixar de lado suas atividades para se preparar para a vida solitária: Lucas IX, 60 e 62[27].
Estes dois extratos da carta 4 devem ser lidos a partir da perspectiva que o
próprio Barsanulfo indica: “Pois eu tenho em vista sua quietude, a que o espera
em Jesus Cristo nosso Senhor” (4).
O exame de consciência – A carta 4, que acabamos de comentar, está
fundamentada na santa Escritura. Sem dúvida, o próprio Barsanulfo ruminou as
passagens que ele cita. As duas últimas referências do evangelista Lucas são
propostas a João e Beersheba para que ele faça o exame de consciência de sua
vida a fim de se preparar para a solidão completa. As citações que o monge
aprende de cor e as que servem ao seu exame de consciência complementam-se
imperceptivelmente. Os textos existem para unificar o ser humano em seu
pensamento e em seu agir. Muitos textos refletem as preferências dos Padres de
Gaza, sobretudo as de Barsanulfo. A título de exemplos, eis os mais freqüentes:
Torah
– Gênesis
XVIII, 27 e Jó XLII. 6 (“cinzas e
poeira”); Êxodo, XIV, 16-28 (“o faraó
espiritual afogado”); Levítico XIX,
18 (“amarás o próximo como a ti mesmo”); Deuteronômio
XXXI, 6 e Josué I, 6-9 (“seja forte e
tome coragem”).
Profetas
– Isaías
VIII, 18[28]
(“eis-me aqui, eu e meus pequenos que Deus me entregou”); Isaías XLIII, 26 (“diga primeiro suas iniqüidades para ser
justificado”); Ezequiel XVIII, 23
(“eu não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva!”).
Livros
sapienciais – Provérbios III, 34 (“é aos humildes que ele concede sua graça”); Provérbios XVIII, 19 (“o irmão que ajuda
seu irmão é como uma cidadela fortificada”); Provérbios XXIV, 72 (“faça tudo com ponderação”); Salmo XXIV, 18 (“veja minha humildade e
minhas penas e apague meus pecados”); Salmo
LIV, 23 (“colocando nele todas as preocupações”); Salmo CI, 5-6 (“a dor em meus gritos fez-me esquecer de comer o
pão”); Salmo CXLIV, 18 (“ele está
próximo daqueles que o invocam em verdade”) e 19 (“ele fará a vontade dos que o
temem”).
Evangelhos
– Mateus VI, 8 (“vosso Pai sabe do
que vocês precisam antes que lhe peçam”); VIII, 25 (“Senhor, socorro, estamos perecendo”); X, 16 (“aquele que
perseverar até o fim, este será salvo”); XI, 28-30 (“venham a mim os que sofrem
(...) pois eu sou doce e humilde de coração (...) e vocês encontrarão o
repouso”); XVIII, 18 (“tudo o que vocês ligarem sobre a terra será ligado no
céu e tudo o que vocês desligarem na terra será desligado no céu”); Marcos IV, 8 (“outros grãos caíram na
boa terra (...) eles renderam trinta por um, sessenta por um, cem por um”); Lucas VII, 47 (“seus inúmeros pecados
lhe serão perdoados”); VIII, 24 (“Mestre, Mestre, vamos perecer”); IX, 60
(“deixe que os mortos enterrem seus mortos”); XII, 49 (“eu vim trazer o fogo
sobre a terra”); XVII, 10 (“somos servidores inúteis”); XXI, 19 (“com sua
perseverança, vocês ganharão a vida”); João
V, 14 (“não peque mais”); XVI, 33 (“neste mundo, vocês experimentarão as
adversidades, mas fiquem seguros, eu venci o mundo”).
Atos
e Epístolas – Atos XIV, 22 (“é preciso passar por atribulações para entrar no
Reino de Deus”); Romanos II, 21
(“quem ensina ao próximo, não ensina a si mesmo”); 1 Coríntios II, 9 (“o que o olho não viu (...) tudo o que Deus
preparou para os que o amam”); VII, 15 (“se o infiel quer se separar, que se
separe”); X, 13 (“Deus é fiel. Ele não permitirá que vocês sejam tentados acima
das suas forças”); Gálatas VI, 2
(“carreguem os fardos uns dos outros”);
Efésios III, 20 (“aquele que por seu poder age em nós pode fazer por nós
infinitamente mais do que podemos pedir ou conceber”); Tiago V, 6 (“rezem uns pelos outros para serem curados”); 1 Pedro V, 5-8 (“Deus se opõe aos
orgulhosos, mas concede sua graça aos humildes”).
A santa liturgia – Os monges alimentavam-se das santas Escrituras, mas
acontecia muitas vezes que estas suscitassem acalorados debates, chegando até
às contestações. Uma discussão surgira entre João de Beersheba e o abade
Seridos: Barsanulfo lembra a importância de afastar toda cólera e irritação nas
discussões (24). Ademais, esta mesma Carta 24 contém algumas citações
fundamentais, evocando talvez uma leitura contínua que pode ter sido utilizada
seja nos ofícios, nas vésperas ou nas vigílias, ou mesmo durante a santa
eucaristia. Conhecemos também as questões teológicas que perturbaram Paulo o
Solitário em suas meditações (Cartas 56 a 58).
A
menção explícita da eucaristia aparece na meditação sobre a letra êta em que Barsanulfo fala do
“sacrifício imortal oferecido pela vida do mundo” (137b). No mais das vezes, é
o coração do monge que é “o santuário do altar do homem interior no qual são
oferecidas a Deus as vítimas espirituais, em que são apresentados o ouro
confirmado, o incenso e a mirra, onde é imolado o bezerro gordo[29]
e no qual é espalhado o sangue precioso do cordeiro imaculado” (201).
A INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS POR BARSANULFO
A
lista das citações explícitas e implícitas das santas Escrituras comentadas por
Barsanulfo impressiona. Seu conhecimento é vasto. A maior parte dos livros do
Antigo e do Novo Testamento é mencionada de forma desigual. Estudos mais
refinados poderiam avaliar as passagens preferidas do autor e as razões de sua
utilização. Com era costume entre os monges, além do abundante uso dos Salmos, o Grande Ancião apóia-se
freqüentemente nos livros sapienciais, no livro de Jó, nos Provérbios, no Eclesiastes, um pouco no Cântico dos Cânticos e no Livro da Sabedoria. As menções aos
livros proféticos concentram-se nos mais antigos, como Isaías, citado muitas vezes, seguido de Jeremias, Ezequiel e os
demais.
O
Novo Testamento ocupa o lugar principal: são abundantes as citações. De novo, é
interessante observar de perto o uso explícito que os mestres de Gaza fazem
desta ou daquela passagem das santas Escrituras. Os quatro Evangelhos são citados muitas vezes, e o Sermão da Montanha ocupa
um lugar de destaque. Dentre as epístolas paulinas, Barsanulfo gosta de citar
as dirigidas aos Romanos, aos Coríntios e sobretudo aos Hebreus. A perspectiva do reino que virá
explica em parte este emprego.
Os
textos joaninos são bem conhecidos e, como de costume nas obras monásticas, a Epístola de são Tiago é uma referência;
aqui, é a coerência da vida que é sublinhada.
Desta
primeira olhada impõe-se uma constatação. Barsanulfo possui um conhecimento
excepcional da Palavra de Deus que o alimenta. Ele se afirma como mestre
espiritual por sua explicação e por sua atualização das santas Escrituras.
Barsanulfo dá grande importância à sua maneira de comentar a Palavra de Deus,
que visa sempre transformar a vida de seus correspondentes. O alcance moral de
seus comentários, em sua perspectiva prática, domina seu pensamento. Mas sua
leitura da Bíblia é brilhante, colorida, livre e rica.
Muitas
vezes, um argumento é apoiado por dois ou três testemunhos tirados do Antigo ou
do Novo Testamento. No início da Carta 4, lemos: “Escreva ao irmão João: Eis
que eu lhe envio três testemunhos do poder de Deus e das Escrituras do Espírito
Santo, por meio dos quais eu incito meu espírito a manter-se atento a Deus e
aos pensamentos do Espírito Santo, a fim de que você conheça o que é
oportuno...” A Carta 31 abre com três citações contra o desencorajamento nas
atribulações; ela continua com a evocação das grandes figuras Bíblicas como
José, Moisés, Davi, Jonas, Jó, Paulo. Barsanulfo não ignora que tanto Jó como
Abrahão designam a si mesmos como “cinzas e poeira”.
Numerosas
cartas são pequenos tratados nos quais encontramos reunidas muitas passagens
das Escrituras que servem à mesma argumentação. Esta saborosa leitura bíblica
fundamenta a escolha de João de Beersheba, sustenta André em sua enfermidade,
aparece na resposta do Grande Ancião ao irmão inquieto com a aproximação de sua
morte.
***
Duas
reflexões que o Grande Ancião faz a João de Beersheba são das mais explícitas.
São elas: “Rumine minhas cartas e você será salvo. Pois você tem nelas, se as
compreender, o Antigo e o Novo Testamento. E tendo-as em mente, você não
precisará de outro livro” (49); e em outra parte: “A respeito de outras regras
(dadas a João de Beersheba para sua salvação), isto não é mais necessário.
Contente-se com as que já lhe escrevi; pois elas são suficientes para conduzir
o homem do começo até o fim. Medite-as, guarde-as na memória e nas as esqueça.
De fato, elas contêm toda a biblioteca” (32).
Essas
palavras merecem reflexão, pois parecem precisar de uma compreensão em diversos
níveis. O primeiro nível consiste em reconhecer a primazia absoluta da Palavra
de Deus. Barsanulfo coloca-se assim na tradição dos Padres da Igreja, Orígenes,
os Alexandrinos, os Capadócios, são Basílio e são Bento. A correspondência dos
monges de Gaza, como as Regras de são Basílio, apresenta-se como um comentário,
uma explicação da sagrada Escritura adaptada a cada pessoa para auxiliá-la, nas
circunstâncias dadas, a colocar em prática aquilo que ela ouviu. Em segundo
lugar, o Grande Ancião tinha consciência de extrair da santa Escritura “o que é
útil à alma”, ou seja, aquilo que terá um alcance na vida de seu correspondente
e que iluminará seu caminho pessoal.
Neste
sentido, os Padres de Gaza, como os Scetiotas, estão muito próximos da tradição
judaico-cristã helenística, acolhendo a Palavra como uma Palavra de vida, uma
Palavra eficaz. Segue-se que a autoridade de quem a pronuncia é incontestável e
que não existe separação possível entre a Palavra de Deus, a do mestre
espiritual que a comenta e que foi escolhido por eles, e sua colocação em
prática. Quando Barsanulfo dita suas cartas ao abade Seridos, é um verdadeiro
ritual sagrado que se desenrola. O Espírito Santo está verdadeiramente presente
aí e age por intermédio dos seus servidores.
O
pensamento de Barsanulfo é habitado por um duplo movimento. Tanto transparece
aqui e ali uma profunda humildade fundada sobre o reconhecimento de sua própria
fraqueza, quanto uma segurança firme e tranqüila na autoridade de suas
palavras. Quantas vezes não recomendou ele a João de Beersheba que tomasse a
sério seus escritos. Os dois trechos citados mostram que Barsanulfo tinha em
alta estima aquilo que escrevia e também consciência de participar da salvação
dos solitários que lhe foram confiados, interpretando para eles o sentido da vontade
divina.
Falta
reconhecer o imenso conhecimento do mestre de Gaza a respeito das santas
Escrituras. Ele passeia pelas Escrituras como em um jardim paradisíaco aonde
ele colhe flores susceptíveis de curar e salvar seus correspondentes, em cada
momento crucial de suas vidas, e até o fim de suas existências. A interpretação
alegórica e espiritual das santas Escrituras comentadas por Barsanulfo
alimentam também as leituras bíblicas dos discípulos que não tinham todos
recebido uma formação exegética e uma compreensão da palavra de Deus. O exemplo
de Paulo ilustra bem a mentalidade de alguns.
***
A
interpretação das Escrituras dada por Barsanulfo em sua correspondência retoma
o melhor da tradição alexandrina. O Padre de Gaza pouco entra na explicitação
do sentido histórico, moral e mesmo místico desenvolvido por Orígenes, para ir
diretamente ao sentido espiritual dos textos. Este sentido, que vem depois do
sentido místico, aprofunda, interioriza, completa o sentido dado. Trata-se
antes de tudo aplicar a palavra de Deus à vida de quem o consulta nas questões
presentes que ele se coloca.
É
precisamente o que fazia Orígenes quando aplicava aos cristãos a prece de
Moisés contra Amaleque no combate dos Hebreus: “Quando Moisés erguia seus
braços, Amaleque era derrotado, mas quando os deixava cair, cansado, Amaleque
retomava a dianteira. Também nós, levantemos os braços na força da cruz de
Cristo, ergamos em oração as mãos santificadas[30]”.
Não é a mesma coisa praticada pelos irmãos de Gaza em sua ruminação da palavra
de Deus e em seu trabalho, tanto sentados como de pé? Este combate tomou formas
extremamente concretas e, a propósito de Amaleque, em sua meditação sobre a
letra êta, Barsanulfo enumera as paixões, sementes de Amaleque.
A
um monge que tem o coração pesado de sono, sem compunção, João o Profeta cita a
Epístola aos Efésios e o Livro dos Juízes: “... nós depositamos nossa
impotência na presença daquele que pode fazer muito mais do que pedimos ou
concebemos, até que ele destrua diante de nós os campos dos Amorreus e impeça
Madian, Amaleque e os filhos do oriente de destruir nossas colheitas.” (167).
Como
vemos, Barsanulfo e João de Beersheba vão diretamente ao sentido interior,
ciosos em conduzir seus correspondentes a que conformem suas vidas ao Evangelho
segundo a tradição monástica. O combate é sempre travado seguindo Cristo e com
ele em uma atualização diária. Cada uma das figuras do Antigo e do Novo
Testamento contribui com sua maneira de iluminar o rosto de Cristo presente em
toda a Escritura. Jó evoca a perseverança, José a castidade e o trabalho,
Moisés a doçura, Josué a coragem nos combates, os Juízes a conduta nos
negócios, Davi e Salomão a submissão dos inimigos, os Israelitas a
tranqüilidade da terra. Podemos ainda citar Abrahão, Jonas e outras figuras
mais.
Aas
alusões aos personagens do Antigo Testamento sugerem que o monge está convidado
a imitar seu comportamento. Na biografia de Antônio, santo Atanásio sugere que
este herdou os dons de Moisés, Samuel, Elias, Eliseu, Jó... Na coleção
sistemática dos Apoftegmas, este procedimento escriturário reaparece
freqüentemente: Noé representa a pobreza, Jó as provações, Daniel o
discernimento. São os sinais de uma vida solitária identificados pelo abade
Poêmio.
As
figuras do Novo Testamento não faltam e seria cansativo mencioná-las; o
paralítico evoca o perdão dos pecados e a cura dos corpos, Pedro é salvo do mar
agitado, Paulo escapa às atribulações, etc.
Esta
tipologia é orientada para a Cruz de Cristo que é o símbolo central do
solitário de Gaza, peregrino nos caminhos desta terra. O horizonte é sempre
este reino dos céus que nos abre “aquilo que os olhos não podem ver, que o
ouvido não pode escutar (...) tudo o que Deus preparou para aqueles que ele
ama”.
O
meio monástico de Barsanulfo de Gaza se inscreve definitivamente, em uma
orientação fundamental, unificada, inteiramente voltada para um só objetivo.
Este implica um contínuo ajustamento entre palavra e vida. A grande
preocupação, na linha dos Padres do Egito, consiste precisamente em que a
semente da Palavra traz os melhores frutos possíveis para a vida do buscador de
Deus. O ambiente das citações bíblicas merece a este respeito toda nossa
atenção.
“Lembre-se
do que está escrito”, apela para a memória das Escrituras ao destinatário da
carta. Isto revela até que ponto Barsanulfo interiorizou, ele mesmo, a Bíblia,
como se dizia de santo Antônio: “Sua memória lhe servia de biblioteca”.
Barsanulfo
convida sem cessar seus correspondentes a que deixem descer sobre si esta
Palavra para que ela preencha todos os recantos do seu ser. O maior inimigo da
lembrança, da lembrança de Deus, é a indiferença e o esquecimento. Uma palavra,
escutada para ser vivida, incendeia quem a ouve e está sempre a ponto de
cumprir-se. Ela primeiro é realizada pelo coração que deve se converter,
firmar-se, habitar na confiança, na paz e na humildade. Na carta 20, Barsanulfo
recomenda a João de Beersheba: “Faça a doçura repousar em seu coração,
lembrando-se de Cristo, cordeiro sem malícia, e de tudo o que ele suportou, ele
que era inocente...”
Aqui
como em outras ocasiões, Barsanulfo reveste sua linguagem de imagens bíblicas.
Na carta 11: “Salomão fala a respeito de seus pais: ‘Aqueles que me instruíram
e disseram: que nossas palavras fiquem ancoradas em seu coração’. Da mesma forma,
irmão, eu lhe digo: que minhas palavras fiquem ancoradas no seu coração e que
você medite sem cessar nas coisas que eu lhe escrevi, conforme o que Deus disse
pela boca de Moisés: ‘Prenda-as à sua mão direita e elas estarão constantemente
postas diante dos seus olhos. Medite-as ao se deitar e ao se levantar, em
viagem ou em sua casa’.”
As
palavras de Deus e as de Barsanulfo estão tão intimamente ligadas que o mestre
de Gaza passa facilmente de um a outro. No final da carta 17, ele declara:
“Assim, você recebeu de mim um alimento conforme Deus, para muito tempo.” No
início da carta 43, lemos: “Se alguém beber da água que eu lhe envio por carta,
não terá sede nunca mais.”
A
escatologia desempenha um papel essencial em toda a argumentação de seu
pensamento. A hora do êxodo, a morte, o juízo e o que está além estão sempre
presentes em seu espírito. “Você, portanto, homem de Deus, escreve ele a João
de Beersheba (10), corra sem relaxar no caminho que lhe foi preparado, a fim de
chegar alegremente ao porto de Cristo ao qual chegamos nós, e ouvir as palavras
de felicidade cumprida, palavras de luz, regozijo e alegria: ‘Muito bem,
servidor bom e fiel, etc.’.” Ou ainda a carta 36, na qual Barsanulfo considera
que é chegado o momento de seu discípulo entrar para a solidão. “Quem ignora,
de fato, que estamos nos últimos tempos?”, pontua seu pensamento (36).
Uma
frase chave explica a hermenêutica do pensamento do santo recluso: “O filho de
Deus se fez homem por você; torne-se, você também, Deus por ele” (199). Pois ele
quer, a cada vez, que seu correspondente queira. É, com efeito, o Espírito
Santo que fala por intermédio de Barsanulfo e estas não são as palavras de um
homem (199). “Eu peço que você seja filho de Deus, diz Barsanulfo na mesma
carta; sofra e sue também você, junto comigo”. E mais adiante: “Jesus disse aos
seus Apóstolos: ‘Vocês são o sal da terra’. Ora, a terra é seu corpo, pois está
escrito: ‘Você é terra e à terra retornará’. Seja então sal para você mesmo,
salgando e dessecando as podridões e os vermes, ou seja, os maus pensamentos”
(199). E o Grande Ancião conclui sua carta em uma perspectiva de futuro: “Eu
espero que você entre no porto da vontade de Deus conforme você me dê a mão na
medida de suas forças. Pense nas palavras que lhe são dirigidas siga-as e você
chegará ao objetivo, segundo o que foi dito: “Corram de modo a ganhar o
prêmio”.
A
primazia da Palavra divina preenche toda a carta. Barsanulfo, em sua extrema
humildade, é portador do Espírito Santo e o discípulo é convidado a entrar em
um movimento de conversão sustentado pela oração e pela ascese daquele que o
guia. Toda a carta aponta para diante, ou seja, para o retorno do filho de Deus
e seu julgamento.
O
Padre de Lubac sublinhava em seu estudo sobre Orígenes o quanto a Epístola aos Hebreus era importante no
meio alexandrino por sua tensão que aponta para o Reino. Com Barsanulfo, esta
tradição floresce de maneira nova. Também para ele, com efeito, a Epístola aos Hebreus desempenha um papel capital na herança da vida eterna,
quando, na hora da apresentação ao juízo final, ele poderá dizer por sua vez ao
Senhor Jesus: “Eis-me aqui, eu e aqueles que me foram dados.”
3. O ENSINAMENTO DE BARSANULFO AOS SOLITÁRIOS DE GAZA
A
palavra de Barsanulfo, marcada pelo desejo, é transportada sobre a flecha do
tempo que escoa e sobre a da história da salvação. As palavras, as imagens, as
idéias e os conselhos encontram aí uma última luz que ilumina e envolve toda a
realidade da compaixão e da misericórdia divina.
Sobre
este pano de fundo desenrolam-se esses diálogos inéditos entre o discípulo que
interroga e o mestre cheio de uma grande humildade e de uma audácia rara em seu
tempo.
A
correspondência apresenta-se como o espelho fiel das questões essenciais
colocadas pelos solitários e os monges do cenobium
do abade Seridos na vida de todos os dias. Neste sentido ela sempre apela ao
respeito. As respostas de Barsanulfo e de seu companheiro de solidão, João o
Profeta, brotam desta solidão e do desnudamento do deserto, numa reclusão cada
vez maior, ao mesmo tempo em que elas são tocadas pelo sopro do Espírito Santo
que lhes comunica uma alegria transbordante – para não dizer exultante – e uma
esperança sem limites. As provas, as derrotas, as cruzes surgem no caminho;
elas estão presentes na maior parte das cartas. Mas a criação nova, não nasce
ela das provas? Não é preciso ser testado para se tornar como o ouro que passou
no crisol?
Ao
longo das questões colocadas, três seqüências se misturam e entrecruzam: o
discernimento daquilo que é bom ou mal, em face do Adversário, ao Intrigante
que se serve precisamente do desejo por Deus para transformá-lo em falta de fé
ou em acídia, esta forma de desencorajamento melancólico diante do essencial;
em seguida vêm os remédios propostos para o combate cotidiano e a oração; e
mais fundamental ainda, a convicção de que somente Jesus nos salva, ele o Guia
e o Piloto que no Espírito Santo nos conduz ao Pai por intercessão da Virgem
Maria, a oração aos santos e a oração aos Padres.
A hora da apresentação – As trocas epistolares entre Barsanulfo e um solitário
enfermo, André, testemunham o caminho percorrido na doença, as provações até o
perdão de todos os seus pecados. André e seus companheiros pedem ao Grande
Ancião que os apresente à santa Trindade numa prece a fim de que eles sejam
preservados de todo mal. Barsanulfo lhes dirige então a carta 117. “É no
momento da apresentação que nosso Salvador remeterá o reino de Deus a seu Pai,
brilhando com inefável claridade. Ele dirá estas palavras cheias de felicidade,
alegria e exultação: ‘Venham abençoados de meu Pai, recebam como herança este
reino que lhes foi preparado desde a fundação do mundo’. Então, cada um dos
santos, levando até Deus os filhos que salvou, dirá com voz sonora, com plena e
grande vivacidade, para espanto dos santos anjos e de todas as potências
celestes: ‘Eis-me aqui, eu e as crianças que Deus me deu’. E não apenas ele os
apresentará a Deus, mas apresentará também a si mesmo, e então ‘Deus será tudo
em todos’. Rezem para que cheguemos aí. Bem-aventurado com efeito, o que espera
e alcança.”
Tudo
está aí: o presente, o caminho a percorrer até a morte e a hora da apresentação
final. Esta carta é representativa também do modo como o Grande Ancião situa as
relações entre André e seus companheiros, ele próprio, cada um dos santos,
Jesus e seu Pai. Em pé, Barsanulfo falará com voz forte, vivamente, para
estupefação das potências celestes. Mais do que tudo, está esta solidariedade
última para com os seus que vai até o fim e mesmo além, exprimindo melhor do
que todos os discursos o laço que unia o Grande Ancião aos que o consultavam.
Esta
relação transparece desde o modo como Barsanulfo se dirige a cada um: filho
querido, criança bem-amada, amigo verdadeiro, irmão, bem-amado em Cristo, irmão
querido que é um comigo, bem-amado irmão de minha alma, companheiro,
companheiro de serviços, você que participa da luz dos santos, co-herdeiro,
você que sofre e sua comigo – mas também irmão indolente e letárgico. A
comunhão no combate, a comunhão na morte e a comunhão na glória são uma coisa
só.
Mais
tarde, quando o Grande Ancião aproxima-se da morte, um irmão aflige-se com isto
e o interroga. Vale a pena ler esta longa carta 187, ornamentada de citações
bíblicas: “Eu não os abandonarei absolutamente durante os anos de minha vida e
no último dia não os deixarei órfãos...” Depois, voltando ao momento da última
apresentação, ele retoma a mesma idéia: “Eis-me aqui, eu e os pequeninos que o
Senhor me deu; guarde-os em seu nome; que sua direita os proteja. Conduza-os
até o porto de sua vontade e escreva seus nomes no seu livro...” E sua
solicitude para com os seus chega até a audácia: “Creia-me, irmão, meu espírito
dirá de boa vontade a meu Mestre que se compraz com a oração de seus
servidores: ‘Mestre, ou introduza a mim e a minhas crianças em seu reino, ou
apague-me de seu livro’. A vocação de Barsanulfo é de ser julgado digno de
conduzir os seus a seu Deus e de os apresentar para que Cristo escreva seus
nomes em seu livro.
A
continuação da carta insiste no papel daqueles que carregam miríades de homens
com suas “orações que brotam como relâmpagos e raios de sol; elas sobem
e o Pai se compraz com elas, o Filho se regozija nelas e o Espírito Santo
glorifica-se com elas.”
Não
podemos compreender a pedagogia do Grande Ancião de Gaza sem guardar na memória
esta última apresentação diante do Senhor Jesus. Toda ascese e toda confiança
em Deus que ele desenvolve é sustentada por esta espera final. “Aquele que
perseverar até o fim, este será salvo” (187). “Oremos ao Senhor noite e dia,
prossegue ele na mesma missiva, para que não sejamos separados de nossos Pais
nem neste mundo nem no outro. Aonde iríamos nós? O que poderíamos encontra de
melhor?...”
Esta
visão do Grande Ancião fornece um outro esclarecimento à oração de Euthymo
dirigida ao Senhor Jesus: “Como você me prometeu por intermédio do seu servidor
Barsanulfo em suas cartas que seríamos enterrados na mesma tumba,
ressuscitaremos também juntos?” O contexto é bem o do juízo final (60). A
resposta de Barsanulfo faz eco aos dois extratos apresentados acima: “Não
busquemos saber se ressuscitarão todos, responde ele a Euthymo, mas desejemos
escutar: ‘Venham os abençoados por meu Pai, recebam em herança o reino que lhes
foi preparado desde a fundação do mundo’, e queiramos estar junto com Jesus ‘no
Pai’ como ele disse. A ele a glória. Amém” (60).
O tempo de uma vida – a história da salvação se inscreve na duração do
cotidiano de cada correspondente. A vida do eremita inclina-se e aponta para a
“salvação” e para alcançá-la este deve “passar pela porta estreita” e
“percorrer o caminho estreito e apertado que conduz à salvação”. Barsanulfo
acompanha os seus pelo caminho com a mesma solicitude com que pretende se
manifestar na hora decisiva da apresentação final.
“Aquele
que quer conhecer um caminho perfeito deve saber isto: se ele não caminhar com
seu guia desde o ponto de partida até o termo da viagem, jamais ele atingirá a
cidade” (126) Ou ainda: “Eu falo a você como aos outros, a você que deseja
seguir voluntariamente por causa do seu Nome o caminho sobre o qual marchamos
nas privações e nas aflições” (192). Assim, aquele que caminha para a cidade
não deve dormir nem olhar para trás (33). A André, ele lembra: “Esteja
preparado para as tentações e as aflições a todo instante e esqueça o que ficou
para trás, como o Apóstolo que se inclina inteiramente para diante” (99).
Esta
perspectiva sustenta todo o pensamento do Grande Ancião que apela ao discípulo
para que persevere até o fim. Ela consiste primeiramente em permanecerem em
comunhão um com o outro até o último suspiro. É o que Barsanulfo escreve a
Paulo: “Que Deus lhe dê a paciência para permanecer comigo, seu bem-amado, na
paz, até o último sopro, como nos deu a conhecer antecipadamente por sua graça
aquele que disse: ‘Aquele que perseverar até o fim, este será salvo’.” (57). E
na mesma carta: “Se tivermos este amor, nada nos separará uns dos outros até a
morte” (57). Ele encoraja André, o solitário enfermo: “Aquele que se entregou a
Deus deve remeter-se a ele com todo o coração até a morte” (72).
A
regra dada a André é de manter-se atento aos seguintes pensamentos: “Como me
apresentarei a Deus? Como passei o tempo transcorrido? Farei a penitência ao
menos agora que se aproxima minha partida; suportarei meu próximo, assim como
as aflições e as tentações que me vêm dele, até que o Senhor me faça
misericórdia” (92). Por toda parte aflora esta presença divina que nos sustenta
até o termo da via e o encorajamento à perseverança até o fim.
Sobre
a aproximação da morte, é preciso reler as raras cartas endereçadas pelos dois
Padres de Gaza a um irmão atingido pela tísica, Dositeu (220 a 223), e a bela
oração na qual Barsanulfo apresenta à santíssima Trindade um irmão que se
prepara para a morte (219).
“E agora...” – No cruzamento entre o passado e o futuro entre o
tempo que escoa e a eternidade, dois momentos se conjugam e se correspondem: o
da pergunta e o da resposta.
O
momento da pergunta corresponde a uma necessidade de discernimento, de escolha
de vida, de confusão, de tentação ou de desencorajamento. Toda a
correspondência ilustra isto. A Euthymo, Barsanulfo escreve: “Irmão, a divina
Escritura diz: ‘Faça tudo com ponderação’ e ‘Nada faça sem ponderação’. Quando
você agia não com ponderação, mas segundo a sua vontade, seu espírito não tinha
noção do esforço” (66).
A
mesma recomendação é repetida a João de Beersheba. “Daqui para frente seja
vigilante para exterminar com vigor as oito nações estrangeiras (entenda-se: as
oito paixões). Não se deixe arrastar por infantilidades e adquira a firmeza,
que é, de fato, simplicidade, porque você ouviu muitas vezes: faça tudo com
ponderação” (44).
A
pergunta é fonte e indício de uma necessidade de discernimento[31];
ela é ao mesmo tempo uma provocação aos demônios que a detestam (64; 66). Ela
está ligada a uma prática de vida e a resposta de Barsanulfo implica de sua
parte um engajamento de vida: “Tenha como certo, irmão, escreve ele a Euthymo,
que se eu não o considerasse um comigo, pelo amor de Cristo, eu não lhe daria
resposta” (64). Barsanulfo ama a clareza. Sua resposta passa necessariamente
por aquele a quem ele dita suas cartas e que as entrega, o abade Seridos. Ele
também desaprova o irmão que escreve por enigmas para evitar sem compreendido
pelo abade Seridos. O Grande Ancião encoraja João de Beersheba a pedir
explicações ao mesmo Seridos se ele encontrar em suas cartas coisas difíceis de
compreender (10;13).
As
respostas dos sábios de Gaza correspondem precisamente a um momento de
esclarecimento que implica um engajamento de toda a pessoa. Uma citação bíblica
retorna freqüentemente como um refrão: “E agora, Israel, escute as leis e os
costumes que eu lhes ensino hoje para colocá-los em prática a fim de viver e
entrar em sua posse, no país que Javé, o Deus de seus pais, lhes deu[32]”.
A
alusão a este texto se limita muitas vezes às duas primeiras palavras: “E
agora”. É um apelo constante a começar, côo expressava à sua maneira o abade
Arsênio: “Ó Deus, eu não fiz nada de bom ante seus olhos; mas permita-se,
conforme sua bondade, começar agora[33]”.
A João de Beersheba, é dito: “Seja obediente e humilde e a cada dia preste
contas a si mesmo. O profeta já queria dizer ‘cada dia’ quando ele falou: ‘E eu
disse: agora eu começo’. E Moisés: ‘E agora, Israel’. Guarde assim, também
você, este ‘agora’.” (21).
Trata-se
de um apelo para viver no presente, a começar e recomeçar sempre, a nunca
desertar[34].
Mas o monge, no caso Euthymo, sabe bem que somente Jesus pode salvar neste
“hoje”: “Agora, escreve Euthymo, alguém me estimula a despertar o piloto para
que ele me dê a mão e me tire do abismo, como fez com Pedro e também tal como
me disse: “Porque você duvidou, homem de pouca fé?” Voltaremos a isto mais
adiante.
O
monge é chamado a captar o instante presente sem agir, como o homem que ia à
igreja rezar para obter o que comer. No caminho, ele encontrou alguém que lhe
disse: “Venha comer comigo hoje, depois você irá à igreja”, mas ele recusou o
convite (6).
As
citações do livro do Deuteronômio IV,
1 – “E agora” – e do Salmo XCIV –
“Hoje, se vocês ouvirem sua voz...” – inscrevem-se no contexto de Hebreus III, 7-4, 11 (mesmo que a
passagem não seja explicitada) interpelando Barsanulfo como antes Orígenes e os
Alexandrinos. Neste repouso, diz o salmista, e Barsanulfo depois dele, podemos
penetrar “hoje”; o “agora” torna-se o momento de entrar desde hoje, de modo
antecipado, no repouso de Deus, na terra prometida. Este momento de conversão
passa pelas próprias palavras do Grande Ancião.
Uma palavra de vida – A palavra de vida, que os discípulos pedem a
Barsanulfo, lhe é arrancada contra sua vontade. Homem de fé e de silêncio, ele
é constrangido por aqueles que o consultam a falar. “Irmão, não me force a
falar, a mim que pretendo abraçar a quietude e o silêncio[35]”
(69). “Eu me forço a dizer coisas que me ultrapassam e não há necessidade.
Talvez também não haja ninguém capaz de recolhê-las e compreendê-las, fora uns
poucos. Que o Senhor o conduza a esta alegria” (154). Ou ainda, a um monge
egípcio: “Creia-me, bem-amado, é constrangido pelo amor a Deus que eu
ultrapassei meus limites para dizer isto à sua . Com efeito, que sou eu? O
menor dos homens. Assim eu lhe peço perdão... desculpe minha falação...” (55).
Este
sopro que obriga o Grande Ancião a falar é o próprio Deus (31), o Espírito
Santo: “Escute, irmão bem-amado, e aplique seu coração em guardar as palavras
divinas que lhe são ditas não por um homem, mas pelo Espírito Santo. Jesus é o
médico das almas e dos corpos. Se você tem um ferimento, eu o conduzirei a ele
e rezarei para que ele o cure, se você também quiser[36]”(199).
Estas
palavras, arrancadas ao silêncio que as envolvia, convidam à conversão. A
primeira etapa do discípulo consiste em discernir as palavras que são ditas,
compreendê-las, guardá-las e colocá-las em prática. Ficamos aturdidos em ler da
própria pena de Barsanulfo, que ele considera suas próprias palavras como um
prolongamento do Antigo e do Novo Testamento. Que João de Beersheba rumine suas
cartas e ele será salvo (49). O Grande Ancião reitera a seu discípulo suas
recomendações a fim de que este último escute realmente o que lhe é dito, como
se ele não se conformasse apenas com o que lhe é proposto. Ele não está só. A
mesma observação é feita a outros correspondentes.
Pobre
de quem ensina a outros e não ensina a si mesmo (68)! Barsanulfo tem a
consciência de que isto se dirige a ele próprio. Ele tem noção dos seus
limites, e sabe que deve falar dentro de sua medida. Assim, de maneira
imperceptível e inelutável se opera uma passagem das palavras à ação. A
coerência entre a escrita e a ação passa pelo coração, lugar de conversão. Cada
um poderá chegar aí na medida de sua fé e de suas forças. “Irmão, você escava
pouco a pouco para encontrar as coisas ocultas e eu, tolo como sou, penso que
aquilo que você pede, ninguém é capaz de discernir, senão aquele que chegou a este
termo” (154).
Barsanulfo
está inteiramente implicado na relação com seus discípulos. Ele o faz na medida
de suas forças e se adapta sem cessar às possibilidades dos que o consultam. A
expressão mikron,[37]
“um pouco”, no sentido de orar um pouco, comer um pouco, salmodiar um pouco é
característica do seu discernimento.
A
Paulo o Solitário, ele repete as palavras de Ruth: “Que não me aconteça
separar-me de você. Somente a morte nos separará” (57). Ele fala a seus
companheiros como se fossem ele próprio. Com suas orações e presença ele
acompanha os que nele confiam: “Não está você seguro, escreve a João de
Beersheba, que aonde quer que você vá, e faça o que fizer, meu coração estará
com você” (28).
A
um anacoreta, ele escreve: “Pene e sue também você, comigo... O filho de Deus
se fez homem por você; torne-se você também Deus por ele!” Assim, para que se
tornem eficazes, as palavras do Ancião devem passar pelas penas e pelo suor
(199). “Se você diz, mas não sustenta, o
que você diz é fora de propósito”, afirma ele a outro monge (101).
Poucas
vezes um mestre de vida voltou tantas vezes sobre as questões últimas da
existência. Tudo é levado pelo “desejo de salvação” e “pelo que é útil à alma”.
Apenas esta necessidade justifica que o grande Sábio de Gaza saia de seu
silêncio. Sua palavra de vida prolonga a palavra sagrada. Ela apóia-se na
recitação dos Salmos, na ruminação
das santas Escrituras, no exame dos pensamentos e do coração. São pontos fixos
que dão o ritmo ao dia do solitário, habitado pelo Sopro divino. Pouco a pouco,
o coração do asceta se transforma pelo reconhecimento de seu pecado e a
acolhida da misericórdia divina. Ele passa das lágrimas à alegria e à ação de
graças.
É
o paradoxo da vida deste sábio, mestre de si, que renunciou a tudo, mas que ao
mesmo tempo sente interiormente toda a fragilidade dos seus correspondentes.
Não é ele que repete incansavelmente ser nada, ser apenas cinzas e poeira, um
verme que nem chega a ser homem, que não está sequer à altura de responder aos
que o consultam? Simultaneamente, ele afirma com autoridade a palavra que se
refere aos ditos do próprio Jesus que declarou a seus discípulos que eles
fariam coisas ainda maiores do que seu mestre. Suas próprias palavras são
levadas pelo Espírito Santo, de certa forma investidas da autoridade do próprio
Jesus, e seus correspondentes são instados a escutá-lo com respeito e colocar
em prática aquilo que ele propõe. Se eles obedecerem, eles entrarão no “porto
do repouso”. Eles conhecerão a felicidade e, ademais, estarão em grande
comunhão espiritual com Barsanulfo, os seus, os santos e o próprio Cristo.
***
No
início do ensinamento de Barsanulfo, sobre um plano antropológico, existe uma
noção e um tipo de comportamento que podemos qualificar de equânime. De que se
trata? Possui esta prática de vida matizes estóicos ou será ela
fundamentalmente cristã? Vejamos esses textos e tentemos esclarecê-los a seguir
por meio de duas noções fundamentais: a humildade e o amor.
A
Euthymo, que o interroga a respeito do caminho da vida, Barsanulfo responde sem
sombra de hesitação: “Como você deseja saber claramente o assunto, eu lhe
direi: mantenha-se interiormente como se estivesse morto para o mundo”. E ele
insiste: “Se então você quiser conhecer o caminho, eis no que ele consiste:
considere aquele que agride como quem acaricia, o que repreende como quem
glorifica, o que insulta como quem elogia” (68).
Se
o vocabulário utilizado pelo Grande Ancião é inabitual na tradição monástica e
mesmo nele próprio, ele resume uma idéia corrente entre os Padres monásticos,
como expressa o solitário da carta 185, que leu na Vitae Patrum: “Aquele que quer ser salvo deve, antes de mais nada,
dentre os homens, suportar injúrias, reprimendas, ultrajes, todas perdas por
ter libertado seus sentidos e por ter alcançado a quietude perfeita como a fez
nosso Senhor.” Como interpretar estes textos?
Equanimidade – Podemos entender os dois extratos de correspondência
acima de duas maneiras. A primeira, de intenção estóica, equivaleria a dizer:
veja com um coração neutro, sem estados de alma, por assim dizer, tanto o que
agride como o que acaricia, tanto o que ofende como o que honra. Não é esta a
perspectiva dos monges de Gaza. Trata-se antes de acolher plenamente as duas
situações, penetrando nas suas realidades e aceitando-as por inteiro, ou seja,
com empatia, , compaixão, ao mesmo tempo em que se conserva uma serenidade
interior, paz e repouso.
No
centro desta maneira de agir está o modelo do próprio Filho de Deus “que se fez
obediente e foi obediente até a morte”. A Euthymo, Barsanulfo repete de muitas
maneiras que é preciso morrer à auto-estima para entrar na paz e no amor de
Cristo e do próximo: “mantenha-se interiormente como se tivesse morrido para o
mundo” (68), “acabe com esta mania de se justificar” (68), “condenar a si
próprio, deixar para trás as vontades e se considerar inferior a todas as
criaturas” (69), “ser cinzas e poeira (...) em tudo buscar a humildade, pois a
humildade nos atira ao chão; e aquele que está por terra, aonde poderá ele
cair?” (70).
Esta
maneira de agir implica uma morte para si mesmo, por meio da humildade, da
obediência, da submissão mesmo. O modelo disto é o Cristo do hino aos
Filipenses[38],
que deu sua vida por nós. A humildade, em Barsanulfo, está ligada ao amor
fraternal descrito no capítulo 13 do Evangelho
de são João. É preciso reler aqui a carta 61 dirigida a Euthymo e que une
os dois textos escriturários: “Ele próprio [Jesus] fez-se nosso modelo. Com
efeito, foi dito que ele ‘humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a
morte’. E ao dar sua vida por nós, ele nos ensinou a lição: ‘Amem uns aos
outros como eu os amei’ e ‘quanto a isto, todos reconhecerão que vocês são meus
discípulos se amarem uns aos outros’. Se você não quiser vacilar, tome o bastão
da cruz, coloque suas mãos nele, morra e você não vacilará mais...” (61).
O
clima geral em que se desenvolve a equanimidade abarca duas correntes. A
montante, escreve Barsanulfo a Euthymo, o fundamento é a humildade e a cruz de
Cristo; a jusante, é a e a compaixão que
nascem de uma prática de vida. Veremos mais adiante que estas duas dimensões da
equanimidade vão dar corpo à invocação do Nome de Jesus e à oração de Jesus. O
princípio da equanimidade, entre os Padres de Gaza[39],
recebido dos monges do Egito, consiste exatamente em suportar as injúrias como
elogios de um coração cordato, ou seja transformado pela humilhação de Cristo e
seu amor pelos homens[40].
Humildade e caridade, fundamentos da
equanimidade – A humildade é uma
disposição fundamental. Ela afasta todo desejo de comparação. Ela extrai sua
força do exemplo de Cristo que se fez obediente Este duplo movimento é
onipresente na correspondência, referindo-se aos textos escriturários já
mencionados.
“Não
aspirem às coisas elevadas, mas deixem-se atrair pelo que é humilde”, repete
Barsanulfo em três ocasiões, revelando o fundo do seu pensamento a Euthymo.
“Rendamos graças ao Filho que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte na
cruz por todos os homens (...) em tudo buscar a humildade, pois a humildade nos
atira ao chão; e aquele que está por terra, aonde poderá ele cair? É evidente
que aquele que, ao contrário, está nas alturas, cairá facilmente. Assim, se
fomos convertidos e reformados, isto não vem de nós, é um dom de Deus.”
Toda
a carta 70 é uma ação de graças ao Pai que teve piedade do mundo, ao seu
Enviado, o Filho, redentor e salvador das nossas almas e ao Espírito Santo
Vivificador que sempre previne e destrói as redes do inimigo àqueles que o
invocam. À evocação da humildade segue-se o amor de Cristo (70).
A
mesma lição é ensinada a André. Barsanulfo perdoou os pecados de André e como
este o agradecia, o Grande Ancião acrescentou: De boa vontade e cheio de ardor,
eu me ofereço em sacrifício pelas suas almas. Deus que conhece nossos corações
o sabe... Portanto, seja um humilde discípulo d’Aquele que se humilhou por
você, discípulo obediente do Obediente, discípulo perseverante do Perseverante,
discípulo paciente do Paciente, discípulo misericordioso do Misericordioso,
carregando o fardo do próximo como ele mesmo carregou os seus, amando
sinceramente os homens como ele próprio nos amou, seguindo-o em tudo...” (111).
A
imitação de Cristo é o próprio modelo de humildade e de amor. Um solitário
indaga: como adquirir a humildade perfeita (150)?
“O
Senhor nos ensinou ao dizer: ‘Aprendam comigo que sou doce e humilde de coração
e vocês encontrarão o repouso para suas almas.’ Assim, se você quiser adquirir
a humildade perfeita, aprenda aquilo que ele suportou e suporte-o você também;
em todas as coisas desdenhe sua própria vontade, pois ele disse de si mesmo:
‘Eu desci do céu para fazer não a minha vontade, mas a vontade de meu Pai que
está nos céus.’ Esta é a humildade perfeita: suportar os ultrajes e as injúrias
e tudo o que sofreu nosso Mestre Jesus” (150).
A
medida desta prática de vida consiste precisamente em não se atribuir um valor
em relação aos outros, vale dizer em relação à auto-estima dos outros. Este é o
sentido da apsèphiston: não procurar
o valor do outro, ou seja, não se comparar (94), acusar a si mesmo e nunca ao
outro – eis a vitória (69) –, suportar a vergonha (96), recusar-se a acusar
alguém por irritação ou rancor (68), não responsabilizar o próximo pela aflição
que se sente (17). As recomendações adquirem matizes conforme os
correspondentes, mas a raiz das propostas de Barsanulfo tocam sempre o amor e o
esquecimento de si. E se às vezes atravessa uma nuança de desprezo por si
mesmo, de vergonha de si e de acusação a si próprio, é sempre em referência
Àquele que deu sua vida por nós e que nos convida, por nosso turno, a subir na
cruz.
“Deus
é amor”, diz Barsanulfo a Euthymo (71). E o Senhor, ao dar sua vida por nós,
ensinou-nos esta lição: “Amem uns aos outros como eu os amei” e “assim todos
reconhecerão que vocês são meus discípulos, se vocês amarem uns aos outros”
(61). “Amemo-nos a fim de sermos amados”, declara ele a um outro irmão (196).
É
este amor que chama Barsanulfo a se ligar aos seus discípulos, a não ser senão
um com Euthymo, no amor de Cristo (64), a se ligar a Paulo: “Se tivéssemos este
amor, nada nos separaria uns dos outros até a morte” (57). É isto que os Padres
fizeram: aderir a Deus com um amor perfeito, e assim o Grande Ancião recomenda
amar os irmãos de todo coração em um amor perfeito, como o próprio Seridos
pratica. Dois níveis se distinguem no pensamento do mestre: o amor pede a
correção; o amor pede que observemos os mandamentos.
A
educação que o amor exige inscreve-se na linha direta do ensinamento da Epístola aos Hebreus: “Meu filho, não
desdenhe o corretivo do Senhor e não se desencoraje quando ele o repreende...”.
“Se alguém ama a quem o repreende, comenta Barsanulfo a João de Beersheba, este
é sábio; mas se você ama alguém mas não faz o que ele lhe diz, isto é aversão!”
(17). “É a direita do Senhor que nos concedeu a graça de caminharmos sobre as
pegadas de nossos Padres no ensinamento, na conduta, na paciência, na caridade,
na perseverança, nas perseguições, nos sofrimentos” (187).
A
caridade reside na paciência, ela não fanfarroneia (20), não tomba jamais (99).
Ela é cheia de humildade e do temor a Deus (32). Ela é como o teto do edifício
(208). “Se vocês me amam, guardem meus mandamentos.” Estas palavras, repetidas
a Paulo o solitário, o conduzirão ao amor perfeito (57). Este acolhe a doçura
(71), a graça, a paz (99) e a felicidade (196). “A alma firme e ligada ao
Senhor através de todas as coisas, vigilante na fé, alegre na esperança,
exultante na , guardada na santa e consubstancial Trindade” (2). Consumida pelo
fogo (18), “este fogo celeste que o mestre de todas as coisas veio trazer sobre
a terra” (130), “você aspirará sempre, declara Barsanulfo a Teodoro, a se
tornar companheiro de viagem, concidadão e co-herdeiro dos santos e a penetrar
naquilo que Deus preparou para aqueles que o amam em Jesus Cristo nosso Senhor.
Este é o lugar do repouso e do grande repouso.”
Outras
expressões ressurgem: considerar-se como não mais que poeira e cinzas,
considerar-se o último dentre todos. Assim é que a morte para si mesmo, vale
dizer seguir a Cristo na cruz pela humildade, a obediência e a submissão,
conduz o discípulo de Barsanulfo, no caso Euthymo (61), à caridade e ao amor.
A personalidade de Barsanulfo – Barsanulfo é um homem de Deus, um mestre espiritual
fora do comum cuja personalidade não é fácil cercar. É um ser que sai dos caminhos
batidos, que caminha pelos cumes, perdoando os pecados à distância, convidando
seu discípulo à liberdade do Espírito. De um lado seu extremo isolamento faz
com que alguns duvidem de sua existência (125), de outro, através de sua
correspondência ele dá testemunho de um coração transbordante de comunhão. Ele
toma em seu coração a vida dos que o consultam, carregando com eles o peso de
suas existências com extrema generosidade. “De bom grado eu dou minha vida até
a morte por você, meu irmão, escreve ele a Paulo o Eremita, lembrando-o das
palavras de Ruth na Bíblia: “Que não me aconteça separar-me de você. Só a morte
me separará de você.” (57).
Na
meditação sobre a letra eta, ele
evoca a prece sacerdotal de Jesus no Evangelho de são João: “Que todos sejam
um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti.[41]”
Todas as passagens evocadas sublinham esta comunhão, mas nele existe uma
autoridade de quem assenta-se com Cristo. “Que aquele que pensa haver já sido
ofertado, examine a si mesmo... se ele morreu com Jesus, se está vivo e
senta-se com ele.” Os termos gregos, com a repetição do mesmo prefixo syn-, reforçam a idéia de
“morrer-com-ele” e de “sentar-se-com-ele” (137b). Estas palavras brotam de uma
personalidade mergulhada no silêncio do deserto e que se levantará no fim dos
tempos para dizer a Cristo: “Eis-me aqui, eu e aqueles que me foram dados.”
Barsanulfo tem a convicção íntima de participar, com sua vida e suas orações,
da salvação daqueles que lhe foram confiados.
Barsanulfo
possui incontestavelmente uma grande autoridade carismática. De onde vem ela?
Pensamos não estar ser errado situá-lo, depois de Orígenes, Basílio e de certo
modo Evagro, na linha da submissão à interpretação autorizada da Palavra de
Deus. É uma primazia absoluta à qual Barsanulfo dedica uma total obediência.
Existe uma relação de dependência muito forte entre as sagradas Escrituras e
aquilo que ele escreve aos que o consultam. A Palavra de Deus transmitida
apresenta-se sempre como a suprema referência diante da qual cada um deve se
submeter. A autoridade do Grande Ancião decorre simplesmente deste primado
atribuído à palavra de Deus. Seu modo de citar os versículos da Escritura e de
comentá-los o ilustra profusamente. Mais do que um exegeta, ele é um mestre da
vida que chama para a conversão e para a prática.
Cada
conselho seu aos solitários encontra seu argumento num texto escriturário e
Barsanulfo é, em definitivo, aquele que guia, que conduz seus discípulos para a
salvação discernindo a vontade de Deus na vida de seus correspondentes por
intermédio da fidelidade a Jesus Cristo presente em todas as Escrituras.
Este
enorme prestígio seu é provavelmente devido a uma experiência de vida que
amadureceu Barsanulfo, que o fez morrer para renascer e à qual ele se
dificilmente se remete (13). Em muitas ocasiões, notamos que as palavras
ditadas ao abade Seridos são como se lhe fossem arrancadas contra sua vontade
(40), e que elas são cheias de um sopro vindo de outro lugar, do Espírito Santo
(41).
Outro
traço dessa formação, é que ela é profundamente humana e livre. Um discípulo
pretende seguir uma regra de vida? A resposta a João de Beersheba é sem
ambigüidade: “Não fixe para si nenhuma regra!”, para que uma necessidade
superior não o leve a transgredir o princípio que lhe foi imposto (21, 23, 25).
As exigências de Barsanulfo encerram uma profunda liberdade orientada para Deus
e que respeita o ritmo de cada um.
Sua
conivência com o essencial no despojamento lhe permite também ver o que o olho
não vê e ouvir o que o ouvido não escuta. É uma expressão à qual ele retorna
muitas vezes e a muitos correspondentes ele testemunha possuir um dom
visionário. Barsanulfo era conhecido por suas predições. A João de Beersheba
ele declara logo de saída que há dois anos Deus lhe revelara que ele viria
habitar no mosteiro e que muitos irmãos se reuniriam ao seu redor, de João o
Profeta e do abade Seridos (1). Normalmente, o Sábio de Gaza revela
progressivamente aos que o consultam coisas ocultas da vida (77, 154, 196,
203).
Se
Barsanulfo é capaz de discernir as coisas ocultas e se torna de certa forma o
primeiro de uma corrente, é porque ele segue os passos do Pastor, do grande
Piloto, do Guia. A meditação eta,
sozinha, expressa o que Barsanulfo entende quando fala do guia. A esta visão do
Senhor Jesus que tem o Nome que está acima de todos os nomes, liga-se um outro
carisma do Grande Ancião, o de perdoar os pecados. É preciso aqui reler a bela
missiva a André, que recebe o perdão por seus pecados desde o nascimento até
“agora” (107). Ele também associa João de Beersheba aos seus carismas, dentre
os quais o de perdoar os pecados (10).
Tais
dons, a profecia e o perdão dos pecados, um enorme entusiasmo em sua relação
com Aquele a quem ele chama de Humilde, Obediente, Perseverante, Paciente,
Misericordioso (111) não é possível senão por um modo de agir que renuncia a si
até a morte para ser seu discípulo... A renúncia a si mesmo se apresenta como o
elemento essencial do pertencimento a Jesus e nos introduz agora a considerar o
combate contra os demônios.
O combate contra os demônios – O príncipe dos demônios é o Diabo, ou Satanás segundo
a tradição hebraica. Ele é o que divide, o inimigo do bem e do belo, o mau, o
sopro múltiplo que corresponde a cada uma das tentações. As imagens que o
caracterizam vêm da Escritura e evocam animais selvagens que habitam o deserto,
como o leão que ruge ou o lobo que persegue o rebanho de ovelhas. Cabe assim
proteger-se contra sua “energia” na qual dominam a inveja e o ciúme que
engendram a falta de fé. Sua ação é caracterizada pelo frio, ao qual se opõe a
ação do Senhor, fogo que aquece e abrasa o coração e os rins. Esses maus
espíritos são capazes de povoar os sonhos, de metamorfosear as coisas ao seu
grado. Assim, o monge deve conhecer suas táticas e discernir seus pensamentos.
Por
meio de seu refúgio no deserto (e sob este aspecto a correspondência de
Barsanulfo a João de Beersheba é exemplar), o monge colocou uma distância entre
si e as realidades do mundo, fonte de agitação e perturbação. Ele está livre
das tentações referentes à vista, ao ouvido, à palavra. O campo de combate
desloca-se para um espaço mais interior e imaterial, o coração, memória viva do
monge e aonde residem seus pensamentos.
O
primeiro trabalho do solitário consiste assim em discernir os pensamentos que
provêm dos anjos, do homem ou do demônio. Na correspondência, os pensamentos
são muitas vezes entendidos em um sentido pejorativo. Pouco a pouco, são
identificados, comparados, sistematizados. Evagro os sintetiza em oito
pensamentos principais. São os vícios ou as paixões que correspondem cada qual
a um daimon, um espírito
especializado.
Barsanulfo
menciona explicitamente os oito pensamentos codificados por Evagro,
transmitidos ao Ocidente por Cassiano e inscritos de modo definitivo na
tradição por são Gregório o Grande. Em Barsanulfo, a alusão às “nações” é
extraída de Orígenes em suas Homílias sobre Josué, “assimilando este a Jesus e
os povos de Canaã que é preciso exterminar aos vícios que o próprio Jesus
destrói em nós”. Em número de sete segundo o Deuteronômio (VII, 1), estas “nações”, que são os vícios, são em
número infinito para Orígenes, são oito para Evagro e Cassiano, e também para
Barsanulfo.
O
Grande Ancião parece assim ligar-se a Orígenes e a Evagro, porque ele próprio
cita as “sete nações” do Deuteronômio
e prolonga por sua conta a lista das paixões na meditação sobre a letra eta:
gula, luxúria, avareza, tristeza, acídia, cólera, ódio, maledicência,
rancor, vanglória e orgulho. “Ou simplesmente, prossegue ele, atirando seja
qual for a semente de Amaleque na terra espiritual das promessas. O sinal de
que o homem foi salvo é, portanto, o
fato de ter sido purificado de tudo isso e de cantar com os anjos de Deus.”
Mais uma vez, o Sábio de Gaza revela sua liberdade, escapando aos estereótipos
de sua época.
Acídia e paciência – Não cabe aqui desenvolver todo o combate que seus
correspondentes desenvolvem contra cada uma das paixões. Mas um exemplo nos
permitirá captar uma noção importante que poderia ser desenvolvida de muitas
maneiras. Na carta 13, João de Beersheba, responsável por uma comunidade
cenobítica, constrói um edifício importante em seu mosteiro. Alguns irmãos
modificaram os planos previstos e João ficou aflito e desencorajado.
Barsanulfo
coloca-se então em guarda contra o “sopro (pneuma)
da acídia, pois ele engendra todos os males e diversas inquietações”, e ele lhe
recomenda “a paciência (makrothymia)
que é geradora de todas as benesses”. A acídia e a makrothymia apresentam-se assim como duas noções chave. Estas duas
noções estão incluídas na presença do Espírito Santo que convida Barsanulfo a
escrever por Jesus Cristo nosso Senhor citado no final da carta. “Corra com
firmeza e vigor, conclui Barsanulfo, lembrando-se de minhas palavras, ou
melhor, das palavras do Senhor.”
O
demônio da acídia surgiu porque João de Beersheba teve o coração partido. Mas
para Barsanulfo, tudo contribui para a salvação da alma de seu discípulo. “Tudo
é feito para o proveito e a correção da alma e da consciência do homem
interior, para a repressão e a correção do corpo e para seu coração partido.”
Barsanulfo faz excepcionalmente alusão às provações que ele próprio suportou:
“Se eu lhe contar as provações que eu suportei, seus ouvidos não suportariam e
sem dúvida não suportariam também nenhum dos de nossa época.” Em outras cartas,
a noção de acídia, em Barsanulfo, aproxima-se da indolência (e da negligência),
muitas vezes ligada a sonhos maus e fantasmas. A acídia, em Barsanulfo, toca o
espírito e o coração que se enfraquece de diversas formas. Ele quase não fala
da falta de energia, mais conhecida de João o Profeta.
Ao
contrário da acídia, a paciência é geradora de todos os bens. É preciso
suportar as provações para ser salvo. Esta é uma motivação para Barsanulfo,
assim como para seus predecessores, os monges do Egito: “Somente aquele que for
testado e perseverar até o fim será salvo”. A expressão aparece em duas
citações bíblicas, em 2 Timóteo IV,
2, retomada muitas vezes, e também em Hebreus
XI, 5.
A makrothymia, valor importante,
inscreve-se em uma realidade mais ampla: a hypomonè.
Esta palavra significa literalmente “permanecer na prova, agüentar bem”. A
expressão aparece no testemunho do próprio Barsanulfo que “suportou as provas”
que ouvido nenhum suportaria ouvir (13). Onipresente na correspondência, a hypomenè abarca três aspectos: a
paciência, o fato de agüentar as provas e a perseverança. Estas três realidades
aparecem ao longo da vida do solitário que deve perseverar até o fim para ser
salvo. As presenças do Espírito Santo, do Cristo Pastor de ovelhas, de Barsanulfo,
de Seridos, estão lá para ajudar João de Beersheba a viver em uma caridade
perfeita (13).
A
um irmão que se afligia por sentir a proximidade da morte do Grande Ancião,
este retorna sobre a importância do combate espiritual. “...É direito do Senhor
exercer seu poder, dar-nos a força e a graça de caminhar sobre as pegadas de
nossos Pais” no ensinamento, na conduta, na paciência, na caridade, na
perseverança, nas perseguições e nos sofrimentos, em tudo o que nos vem do
Inimigo de modo sensível ou espiritual. E de comentar a citação de João VIII, 39. Nós devemos produzir as
obras de Abrahão. “Se nós não compartilharmos seus sofrimentos na medida de
nossa fraqueza, como seremos glorificados no último dia? Se não morrermos com
ele rejeitando...” Barsanulfo coloca então seu discípulo em guarda contra a
preguiça, a indolência, a irresponsabilidade e a falta de fé. “Aquele que
perseverar até o final será salvo.” Toda a carta merece ser relida como as
ênfases passionais da conclusão evocando a beatitude da alma que experimenta
essas realidades, a alegria, a felicidade e a justa retribuição para glória do
Filho bendito, para glória do Espírito Santo bendito e santo (187).
Jesus, Senhor e Cristo – Jesus, Senhor e Cristo, Mestre, Piloto, Pastor,
Cordeiro sem mácula, Vítima imortal, está no centro de toda correspondência de
Barsanulfo. O Enviado do Pai misericordioso vem salvar e curar. Seu Nome,
invocado sem cessar pelos orantes, afasta os demônios. Ele introduz os
anacoretas no “porto do repouso”, na ausência de preocupações, na quietude e na
alegria. Ao final da história humana, ele remeterá o Reino a seu Pai em
presença dos santos e daqueles que lhes foram confiados.
Jesus
é, segundo a Epístola aos Hebreus[42],
o iniciador e o consumador de nossa salvação e ele nos mostra a vida da
perseverança e da salvação. Barsanulfo contempla Jesus no Gethsemani e sobre a
cruz; ele convida os que o consultam a seguir a Cristo carregando-lhe a cruz.
Pois os sofrimentos do tempo presente são pouca coisa em comparação com a glória
que virá. E se o solitário aceita morrer para si mesmo, nada o poderá separar
do Amor de Cristo. Desta maneira, o solitário entra por sua vez no mistério da
cruz, lugar de todo discernimento e de toda cura.
Por
esta via estreita, com a fé em Cristo pregada ao corpo, o solitário descobre,
no mais fundo de si mesmo, sob a conduta dos seus mestres, as duas faces do
combate: a vertente da luta, do luto, das lágrimas misturadas às súplicas e
pedidos de intercessão; e a vertente do repouso – diríamos hoje, da iluminação
– na qual dominam a serenidade, a doçura, a exultação, a alegria e a paz. O
papel dos Padres de Gaza consiste em acompanhar seu discípulo colocando o
Senhor Jesus, Mestre da vida, no centro da sua vida.
A
um anacoreta molestado por assaltantes e que contou seus temores ao Grande
Ancião, Barsanulfo replica que não foi sem a permissão de Deus que as tentações
aconteceram. Elas acontecem para testar a fé. “Os assaltantes são mais
numerosos do que os carros e os exércitos do faraó? (...) Tomemos o bastão da
cruz com o qual o mar foi dividido, o Faraó espiritual afogado, os bêbados
curados, os mortos ressuscitados; é a cruz na qual glorificou-se o Apóstolo e
pela qual fomos resgatados da traição, permanecendo o mais próximos possível
daquele que foi crucificado por nós. É por meio dela que ele próprio nos
apascenta, nós suas ovelhas e é por meio dela que ele afasta todos os lobos
sanguinários” (182).
Os
monges de Gaza dão prosseguimento à tradição dos anacoretas do Egito, segundo a
qual que quer ser salvo deve suportar injúrias, reprimendas, ultrajes e ofensas
“para libertar seus sentidos e alcançar a solidão perfeita”. “Ó irmão
bem-amado, pergunta o Grande Ancião, o Senhor suportou a cruz e você, não se
regozija nas atribulações cuja aceitação paciente o conduzirá ao reino dos
céus?” (186). De seu lado, João de Beersheba aprende a suportar a prova e a
subir na cruz de Cristo; assim ele recebe esta promessa: “Você entrará no porto
do repouso, você viverá na quietude em um grande desligamento de todas as
preocupações, como a alma firme e agarrada ao Senhor através de todas as
coisas” (2). O tema é retomado sem cessar: o monge deve “subir na cruz”,
servir-se dela como de um bastão, de uma âncora, para imitar “aquele que nos
mostrou o caminho da perseverança e da salvação”.
A
prece é um meio privilegiado de penetrar na vontade de Deus e de caminhar sobre
a via da perseverança. Ao lado da recitação do Salmos e da ruminação da Palavra de Deus, o monge de Gaza pratica a
oração a Jesus. Esta prática, nascida no Egito, prossegue em Gaza e Doroteu a
ensinará a seu discípulo Dositeu. Um solitário questiona Barsanulfo a respeito
da célebre oração de são Macário de Sceta. O Sábio responde que as palavras do
Pai Nosso: “Não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do Mal”, equivalem
à oração de Macário. “Tende piedade de nós” e “Vem em meu auxílio”. Euthymo,
rezando estas palavras, retoma a cena do Evangelho do cego Timeu, sentado à
beira do caminho implorando: “Filho de Davi, tem piedade de mim”; e também:
“Mestre, que eu veja.”
A prece de Jesus – É a cruz de Cristo, celebrada no Nome que está acima
de todos os nomes, que “destruiu a rede do Inimigo e nos libertou; nosso
socorro está no Senhor que fez o céu e a terra.” O contexto é o da misericórdia
divina que cura nossas enfermidades por meio do Nome de Jesus. O Grande Ancião
não suporta esconder as maravilhas de Deus testemunhadas nos Atos dos Apóstolos
em que o Nome de Jesus levanta o paralítico, ressuscita Tabitha que estava
morta, expulsa os demônios, cura os enfermos. “Também nós devemos, prossegue
Barsanulfo, implorar tremendo de alegria a fim de obter a purificação total de
todas as paixões em seu Nome glorioso e terrível.”
A
conclusão desta carta nos faz penetrar na face oculta e gloriosa destas vidas
fundadas na renúncia. “Quantas vozes, línguas, bocas, corações, pensamentos,
poderão lhe retribuir convenientemente a glória? E eu penso que isto não se
encontrará sequer entre os espíritos, pois a divindade é incompreensível. A ela
a glória, o poder e a potência pelos séculos dos séculos. Amém.”
O
solitário, desembaraçando-se de todas as preocupações e entrando no silêncio de
seu retiro, atinge a quietude perfeita. Ele descobre o dom de Cristo cujas vias
são impenetráveis. “Eu peço a Deus noite e dia, escreve Barsanulfo a João de
Beersheba, a fim de que, aonde vivermos nós, esteja você em um mesmo coração
conosco na inefável alegria dos santos, na luz eterna, para que você encontre a
sua parte naquilo que foi prometido aos santos, aquilo que o olho não viu, que
o ouvido não escutou, que o coração do homem sequer suspeitou, aquilo que Deus
preparou para os que o amam” (22). A prece contínua do monge lhe entreabre o
universo da comunhão dos santos; ela lhe permite entrever o que permanece
escondido e que Deus preparou para aqueles que o amam.
A
doçura de Cristo – A docilidade
encontra sua fonte na humildade de Jesus Cristo que nos disse: “Aprendam comigo
que sou doce e humilde de coração”; ela se expande em serenidade e alegria.
Barsanulfo dá este bom preceito a João de Beersheba: “Faça repousa a doçura em
seu coração, lembrando-se de Cristo, Cordeiro sem malícia, e de tudo o que ele
suportou, ele que era inocente, ultrajes, golpes e todo o resto” (20). O Grande
Ancião era conhecido por sua serenidade, como atesta um anacoreta egípcio que
foi habitar em Gaza: “Se isto for possível, torne-me digno de sua doçura e tenha piedade de minha alma tão miserável”
(55). O modelo é Cristo e sua doçura nos é dada para salvar os homens e não
ferir o próximo (26). Ela é ligada à humildade e à perseverança (91), à
submissão e à resistência (195), à ausência de malícia (22). Moisés é conhecido
por sua docilidade (194). Esta abre as portas ao amor, à paz e à alegria.
O
ingresso no repouso e na felicidade –
A imagem do porto, refúgio dos navegantes, é freqüente na correspondência. Ao
entrar na solidão, João de Beersheba deixa as atribulações do mundo e entra no
porto da quietude aonde ele encontra o repouso e a paz (9). A expressão é
inspirada no Salmo CVI, 30, em que o Senhor conduz os navegantes “até o
porto de sua vontade”.
A
imagem exprime a paz interior que nasce da ausência de preocupações no silêncio
do deserto. Esta última noção, mais complexa do que parece, retoma, de outro
modo, o que foi dito a respeito da equanimidade: a paz verdadeira consiste em
guardar um coração sempre igual tanto nas provas como nas honras. Este refúgio
de paz e felicidade, é o próprio Cristo. A própria pessoa de Barsanulfo é um
refúgio e um porto. A imagem utilizada surge por si só para esses solitários
que habitavam não longe da costa palestina e que viam com admiração a calma do
porto, ao abrigo dos ventos de mar alto.
A
paz dos monges de Gaza é cheia da luz e da alegria do Espírito Santo. O Grande
Ancião multiplica então as expressões de beatitude e de felicidade para aqueles
que, no despertar de seu ser, acedem a tamanho amor e tal perfeição. Seu
entusiasmo e sua alegria transbordam: “Bem-aventurada a alma que foi iluminada
para compreender isto! Bem-aventurada a alma atingida por um tal amor! Pois a
felicidade a aguarda com alegria e a justa retribuição nos céus, na luz eterna,
em presença dos anjos, dos arcanjos e de todas as potências celestes para a
glória do Filho bendito, para a glória do Espírito bendito e santo. Amém.
Comporte-se bem, irmão” (187).
Ação
de graças e Doxologia – O solitário
dá graça a Deus por todas as coisas. Ele bendiz a Deus nas alegrias da
existência. Ele bendiz durante as provações que atravessa. Ele aprende a
paciência e a perseverança. “Aquele que perseverar até o fim, este será salvo”,
gosta de repetir o Grande Ancião. E esta tenacidade conduz o discípulo a uma
felicidade indizível. Esta transborda em exultação; ela irradia uma
luminosidade secreta e um fogo interior.
O
homem é regenerado pela felicidade de Cristo, pela alegria do Espírito Santo e
pela alegria do Pai. Tradicionalmente, Barsanulfo termina suas missivas com uma
Doxologia, que se endereça seja ao próprio Cristo, seja a Cristo e ao Espírito,
seja à Trindade. A compaixão divina permanece sendo um traço dominante nesta
correspondência habitada pela presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
No
inicio deste estudo, nós sublinhamos o quanto a palavra de Barsanulfo é
sustentada e tensionada pelo desejo de salvação, ou seja pelo desejo em viver
na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Numerosas cartas terminam com
uma Doxologia e freqüentemente, o santo Ancião apresenta seus discípulos “à
santa, adorável, consubstancial e vivificante Trindade sem princípio” (117).
Habitado
pelas palavras de são João após a ceia, o monge de Gaza se deixa guiar pelo
Espírito Santo. Este o conduz na plena verdade e ilumina seu coração com uma
alegria inefável. A um monge que interrogou Barsanulfo sobre a quietude
perfeita para si mesmo e seus companheiros, este declara em duas cartas
sucessivas que merecem ser lidas por inteiro: “Que o senhor Jesus, o Filho de
Deus bendito e altíssimo, os fortifique e os torne capazes de receber seu
Espírito Santo, a fim de que ele venha e que por sua benfazeja presença, ele os
ensine sobre todas as coisas, ilumine seus corações e os conduza à plena
verdade[43]”
(207)
“Se
você dispõe assim de sua casa de tal modo que não haja nela nada de
desagradável, ele virá com o Pai bendito e o Espírito Santo e fará sua morada
com você[44];
ele o ensinará o que é a quietude e iluminará seu coração com uma alegria
inefável” (208).
Tradução do grego
L. REGNAULT
Introdução,
texto crítico e notas
François NEYT e Paula de
ANGELIS-NOAH